Open-access Interdito e transgressão, morte e memória: sobre o erotismo em tempos de hiv e aids no Brasil

Interdict and transgression, death and memory. Discussing eroticism in times of hiv and aids in Brazil

Interdicto y transgresión, muerte y memoria. Acerca del erotismo en tiempos de vih y sida en Brasil

Resumo

Neste ensaio, trato sobre a articulação entre interdito e transgressão do erotismo na experiência histórica das epidemias de hiv e aids no Brasil. Para isso, retomo narrativas e imagens poéticas que contam sobre a posição de algumas dissidências sexuais e de gênero diante da negação de suas vidas concretas - sofrendo, resistindo e transgredindo aos interditos físicos, sociais e da memória, impostos por uma práxis hegemônica em torno das epidemias. A partir desse gesto, busco entender como o díptico interdito-transgressão se constitui como uma unidade contraditória na complexidade histórica e social. Para expor tal movimento, recorro à técnica da montagem, através da qual disponho texto, imagem e narrativa, propondo não só um resgate da memória da experiência das epidemias, mas uma (re)feitura da própria experiência, através de uma (re)escritura da sua história.

Palavras-chave: hiv/aids; erotismo; memória; narrativa; dissidências sexuais e de gênero.

Abstract

In this essay, I discuss the connection between interdict and transgression of eroticism in the experience of the hiv and aids epidemics in Brazil. In order to do this, I retake narratives and poetic images that tell about the position of some sexual and gender dissidents in the face of the denial of their concrete lives - suffering, resisting and transgressing the physical, social and memory interdict, imposed by a hegemonic práxis surrounding epidemics. From this starting point, I intend to comprehend how the interdiction-transgression diptych is constituted as a contradictory unit within historical and social complexity. I resort to montage, a technique through which I bring together texts, images and narratives, proposing not only to revive the memory of the experience of hiv and aids, but to (re)make the experience itself, through a (re)writing of its history.

Keywords: hiv/aids; eroticism; memory; narrative; sexual and gender dissidents.

Resumen

En este ensayo, abordo la articulación entre interdicto y transgresión del erotismo en las experiencias de las epidemias de vih y sida en Brasil. Para eso, retomo narrativas y imagenes poéticas que cuentan acerca de la posición de algunas dissidências sexuales y de género frente a la negación de sus vidas concretas - sufriendo, resistiendo y transgrediendo los interdictos físicos, sociales y de la memoria, impuestos por uma praxis hegemónica acerca de las epidemias. A partir de este gesto, busco comprender de qué manera el díptico interdicto-transgresión se ha constituido como una unidad contradictoria en la complejidad histórica y social. Para exponer este movimiento, recurro a la técnica del montaje, a través de la cual ubico textos, imágenes y narrativas, proponiendo no sólo recuperar la memoria de la experiencia del vih y sida, sino (re)componer la experiência misma, a través de una (re)escritura de su historia.

Palabras clave: vih/sida; erotismo; memoria; narrativa; disidencias sexuales y de género.

Interdito e transgressão, morte e memória: sobre o erotismo em tempos de hiv e aids no Brasil.

O erotismo é a aprovação da vida até na morte.

Georges Bataille. O Erotismo, 1957.

A experiência histórica das epidemias de hiv e aids é marcada por movimentos contraditórios de interditos e transgressões. Entre esses interditos estão não só os eventos que tolhem a vida propriamente dita - a morte -, ou que muitas vezes a limitam - o adoecimento -, mas tudo aquilo que nega, proíbe, reprime, castra, interrompe, aliena e censura física, afetiva, sexual e socialmente os sujeitos. Entre essas transgressões estão todos os gestos que resistem, renunciam e transpõem aos interditos e suas imposições.

Ora, para além da morte e do adoecimento do corpo físico, muitas pessoas que representam dissidências sexuais e de gêneros, particularmente homens homossexuais e mulheres transexuais e travestis, tiveram seu direito à vida, à sexualidade, à memória, ao desejo e ao erotismo interditados ao longo da história das epidemias. No entanto, esses sujeitos também operaram gestos de transgressão, forjando para si experiências assentadas na afirmação ética, política, poética e erótica de suas histórias e existências.

Para expor tais movimentos, me inspiro na técnica da montagem, organizando a disposição de texto, narrativa e imagem, de modo a instaurar confrontos, saltos, aproximações e distanciamentos entre as cenas históricas. Através dessa operação dialética, busco evidenciar novas relações entre seus elementos, no intuito de fazer revelar sua verdade - seu movimento concreto imanente. Não se trata, pois, de produzir uma (re)montagem linear da história, mas de (re)configurá-la, denunciando suas contradições e oferecendo uma (re)escritura particular do processo histórico (Didi-Huberman, 2012).

Morte

As epidemias de hiv e de aids irromperam no Brasil entre o final da ditadura militar-civil-empresarial (1964-1985) e o início da chamada “revolução sexual”. Se antes, torturas, censuras, prisões e execuções políticas atualizavam o interdito ao erotismo das dissidências sexuais e de gênero, perpetrado no país desde a colonização, foi durante o gradual processo de abertura democrática, entre o final dos anos 1970 e início dos 80, que pessoas LGBTIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexuais, assexuais, entre outras expressões de gênero e sexualidade), mais ou menos próximas dos ideais libertários e feministas, inauguraram tempos de desbunde sexual (Green e Quinalha, 2014).

No entanto, foi justamente no momento no qual afirmávamos a diversidade das corporeidades, gêneros, sexos e sexualidades, transgredindo a moral cimentada pela ditadura, que fomos surpreendidos poe essa “irrupção mórbida no devir histórico” (Perlongher, 1992, p. 40).

Éramos nus

Na década de oitenta.

A liberdade se impunha.

Corpos expostos,

Almas compartilhadas

Cabeças.

Olhos famintos de mundo.

Mas veio a peste:

No umbigo da busca

No plexo

O osso duro de roer

A nos ceifar pelo sexo.

(Viviane Mosé, 2018, p. 115).

Sem cura ou tratamento, destruindo as células do sistema imunológico e tornando o corpo vulnerável a infecções oportunistas - o que configura a síndrome da imunodeficiência adquirida, a aids -, o vírus hiv levou à morte a imensa maioria das pessoas que viviam com ele naquelas primeiras décadas. Como, em um primeiro momento, a enfermidade prevaleceu entre homens homossexuais, ela foi identificada como uma doença do sexo, particularmente, uma doença gay (Daniel e Parker, 2018).

Na época, artistas como o compositor e cantor carioca Cazuza e o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu narraram o sentimento de interdito ao (homo)erotismo, consumado na cisão objetiva do adoecimento e da morte do corpo físico. “O meu prazer / Agora é risco de vida” (Cazuza e Frejat, 1988).

“Você sabe que de alguma maneira a coisa esteve ali, bem próxima. Que você podia tê-la tocado. Você podia tê-la apanhado. No ar, que nem uma fruta” (Abreu, 2012, p. 108). Mas de repente: “a mão que daqui a pouco você tinha certeza de que ia estar cheia - pronto! - está vazia de novo” (Ibidem, p. 111).

Quase quatro décadas depois, ainda persiste a lembrança de que os[...] sexos, impossibilitados de prazeres, escorriam um pulsar do encontro entre a morte e a importação do gozo derretido em uma ligeira dor costumeira, que doeu tão profundamente que sua ausência é impossível. A peste em formato de monstro aparecida na crua carne, e os afagos de antes dissolveram junto desse corpo a se decompor (Faria, 2018, p. 91).

Apesar disso, Néstor Perlongher, antropólogo e poeta argentino fixado no Brasil, advertia que[...] o que desaparece não é tanto a prática das uniões dos corpos do mesmo sexo genital, [...] mas a festa do apogeu, o interminável festejo da emergência à luz do dia, no que foi considerado o maior acontecimento do século XX: a saída da homossexualidade à luz resplandecente da cena pública [...] Acaba, poder-se-ia dizer, a festa da orgia homossexual, e com ela termina-se [...] a revolução sexual que sacudiu o Ocidente no decorrer deste acidentado século. [...] Ela abandona a cena fazendo uma cena poética e desgarrada: a da sua morte. Aos que agora sentimos esses acontecimentos não pode escapar a sinistra coincidência entre um maximum (um esplendor) de atividade sexual e a emergência de uma doença que utiliza os contatos entre os corpos (e usou, [no] Ocidente, sobretudo dos contatos homossexuais) para se expandir de forma terrificante, ocupando um lugar axial na constelação de coordenadas do nosso tempo, em parte por se registrar aí a atraente (por ser misteriosa e ambivalente) colusão de sexo e morte (Perlongher, 1992, p. 40).

Materializando a imagem da queda do “império da liberação sexual (e mais acentuadamente a liberação homossexual)” (Perlongher, 1992, p.41), Sebastião Miguel orienta nosso olhar pela fragmentação do corpo e da sexualidade sob o peso da doença (Figura 1):Nestas fotos comecei com recortes de modelos masculinos de revistas pornôs. Armei um cenário em que essas figuras formavam uma paisagem. Derramei um inflamável e fotografei de um só fôlego, pois coloquei fogo, as figuras consumiram rapidamente. Corpos antes perfeitos e tesados, agora cinzas… (Miguel, 2005, p. 49)

Figura 1
Sem título. Sebastião Miguel, 1993.

O artista plástico mineiro dispõe, por meio de uma fotomontagem, uma unidade de diferenças que suspende a dialética do tempo, conservando esse acontecimento no devir histórico (Didi-Huberman, 2017). Se adoecimento e morte arrebatavam os corpos sarados e tesados, as fotografias os salvam, resguardando sua memória, apesar da destruição. Ao preservar essa imagem de ruína, o artista a transforma em um documento visual da história (Benjamin, 1983), formando, “do mesmo modo que a linguagem, superfícies de inscrição privilegiadas para complexos processos memoriais” da experiência, “viabilizando uma legibilidade do tempo através da legibilidade da imagem” (Didi-Huberman, 2017, p. 37).

De modo semelhante, José Leonilson, pintor e desenhista cearense, traduziu a experiência da ruína do corpo no conjunto de sua obra. A disposição de uma sequência de pinturas produzidas, respectivamente, em 1988 e 1991, é reveladora desse gesto (Figuras 2 e 3). Na primeira imagem nos é apresentado um conjunto de órgãos que organizam um corpo inteiriço, enquanto na segunda, produzida dois anos antes da sua morte, o corpo só pode ser identificado através de fragmentos.

Figura 2
Leonilson, As ruínas da cidade, 1988, acrílico sobre lona, 200 × 95 cm. Acervo Particular.

Figura 3
Leonilson, C/ ela sempre por perto, 1991. Acrílico e lápis de cor sobre tela, 143 × 85 cm.

Mais do que narrar o processo de desintegração do corpo enfermo, ao elaborar uma forma sensível de manter viva sua lembrança, Leonilson transgride, de certo modo, os interditos impostos pela morte e pelo esquecimento. Sobre esse processo, o artista comenta, em entrevista concedida à Adriano Pedrosa, em 1991:

[...] Eu fico pensando que a morte fica rondando, que todo dia eu tenho notícia de um amigo que está morrendo ou que está apodrecendo vivo. Nesse trabalho eu estava pensando nisso. Eu estava doente, mas há duas florzinhas que eu acho que são uma coisa do fogo, que é esse espírito que não se apaga, assim, que não me apaga. Tem uma âncora [...] um coração e um pulmão. [...] Aí tem a âncora, que é um símbolo para dizer que a gente persiste na vida, continua vivo [...] (apud Pedrosa, 2014, p. 84).

Essa relação entre morte e memória na experiência do hiv e aids é elaborada quase 30 anos depois, na performance teatral de Prata-Paraíso (2018), do diretor e performer gaúcho João de Ricardo. A peça remonta a história de Tod, um jovem gay afeminado que após morrer, na década de 1990, em decorrência das complicações causadas pela aids, volta do “mundo dos mortos” para um “acerto de contas” com a família conservadora.

No entanto, ele se vê preso à uma realidade estranha que se move à sua revelia, sendo invalidado pelas idealizações dos pais, esquecido pelos apagões alcoólicos da mãe e recalcado pela “surdez histérica” e “amnésia crônica” da irmã. Esses sintomas familiares, que no fundo revelam um sintoma social, trabalham a favor da repressão das “sujeirinhas” imorais que sua imagem evoca - a homossexualidade afeminada, a dita doença gay e sua pretensa sina de morte. Ao ser espoliado de sua memória, Tod é exilado de si mesmo e do mundo, e na impossibilidade de resgatar e narrar sua história, se depara com a perda da própria identidade (Gagnebin, 2013).

Ao narrarem experiências singulares, essas obras contam não só de experiências particulares (compartilhadas) do adoecimento e da morte relacionados às epidemias, mas de aspectos da vida concreta na totalidade social e histórica que as (re)produzem (Lukács, 2010). Nesse sentido, denunciam a experiência de exílio social, afetivo e sexual (re)produzida pelas formas sociais institucionais de nossa sociedade, a partir de suas respostas políticas, jurídicas e ideológicas ao hiv e a aids.

Exílio

Diante das limitações científicas para identificar com rapidez a etiologia do vírus e elaborar formas de tratamento e prevenção; da ausência de políticas públicas de saúde; e do moralismo reacionário do Estado brasileiro e de suas instituições, as epidemias avançaram inexoráveis pelo país durante as décadas de 80 e 90 (Daniel, 2018). Na tentativa de explicar e responder a esse fenômeno, a Igreja Católica, a ciência biomédica e as instâncias jurídicas do Estado fizeram das dissidências sexuais e de gênero - vivendo ou não com hiv e aids - legítimas cobaias de sua visão de mundo.

Retomando o mito medieval que compreende as enfermidades infectocontagiosas como uma punição divina, a qual é imposta aos dissidentes da moral sexual cristã, a Igreja Católica batizou a aids de “peste gay” (Sontag, 2007, p. 71). Segundo essa crença, o enfermo era considerado duplamente culpado: por contrair e transmitir a doença. E, embora recaísse sobre o sujeito tido como pecador, esse castigo era temido por toda a comunidade, pois representaria a iminência de uma contaminação moral generalizada. Por efeito, a Igreja passou a justificar o adoecimento, a morte e o afastamento do convívio social de pessoas de “conduta sexual [considerada] promíscua” (Daniel e Parker, 2018, p. 18).

Ora, a mitologia da peste acompanha a história das grandes epidemias desde a Idade Média, fazendo referência a doenças como a sífilis, a hanseníase e a “peste” bubônica. Isso não só porque tais enfermidades produziam uma deterioração física visível, mas porque estariam associadas a atmosferas pútridas, infectas, impuras e moralmente degradantes, fato que reforçava a visão de uma “comunidade poluída para a qual a doença representa uma condenação” (Sontag, 2007, p. 67).

Em 1989, Angela Ro Ro e Cazuza nos convidavam a perceber a concretude dessa experiência:

Se você quer saber como eu me sinto

Vá a um laboratório ou um labirinto

Seja atropelado por esse trem da morte

Vá ver as cobaias de Deus

Andando na rua pedindo perdão

Vá a uma igreja qualquer

Pois lá se desfazem em sermão [...]

(Angela Ro Ro e Cazuza, 1989)

Por sua vez, as ciências biomédicas, encarando o desconhecido das epidemias, também projetaram sobre elas os ideais moralistas e individualizantes do seu tempo. De acordo com a medicina epidemiológica, a aids teria surgido no “continente negro”. Tais considerações, somadas às evidências de que ela teria “se originado em animais e passado para seres humanos [...] desencadeiam inevitavelmente uma série de estereótipos [...] que associam os negros a ideias de animalidade e licenciosidade sexual” (Sontag, 2007, p. 70, sic), uma conjunção que, além de reforçar uma práxis racista, responsabilizava e culpabilizava os indivíduos por seus comportamentos.

Diante da ameaça de uma enfermidade “contagiosa, incurável e mortal” (Daniel, 2018, p. 41), a medicina decretou guerra à doença. Assim, quando as pessoas vivendo com hiv e aids ou outros dissidentes morais, sexuais e de gênero não tinham seu acesso aos serviços (públicos ou privados) de saúde interditados (Daniel e Parker, 2018), a medicina recomendava que essas “[...] sejam submetidas a ‘exames’ [(testagens obrigatórias)], que sejam isolados os doentes e os suspeitos de estar doentes ou transmitir a doença, que sejam levantadas barreiras contra a contaminação [...]” através da imposição “de quarentena - ou seja, detenção” (Sontag, 2007, p. 82).

Reproduzindo uma perspectiva individualizada sobre a doença, a medicina transformou não só o vírus em um inimigo a ser combatido, mas o próprio sujeito passou a ser alvo de práticas de repressão, já que o carrega dentro de si. Foi nesse contexto que, na tentativa de descrever os fatores de risco para o hiv e a aids, a epidemiologia classificou os indivíduos para quem a prevalência da enfermidade era maior, em comparação à população geral, como pertencentes a um grupo de risco (Daniel e Parker, 2018).

Em consonância com essa práxis e com o entendimento da aids como uma doença gay, as instâncias jurídico-policiais do Estado deliberaram uma espécie de caça à homossexualidade, no intuito de combater a aids. Foi o caso da Operação Tarântula, executada pela polícia civil da capital paulista em 1987 (Trevisan, 2018).

Enquadrando criminalmente mulheres transexuais e travestis que se prostituíam no centro da cidade, a operação sustentou-se legalmente na definição do crime de “contágio venéreo” (Trevisan, 2018). Esse fato não se deu apenas em função da dita licenciosidade das suas práticas sexuais, mas também porque elas eram lidas como sujeitos gays masculinos.

A voz de Cazuza ainda ecoa:

[...] Me sinto uma cobaia, um rato enorme

Nas mãos de Deus mulher

De um Deus de saia [...]

Me tire dessa jaula, irmão, não sou macaco

Desse hospital maquiavélico

Meu pai e minha mãe, eu estou com medo

Porque eles vão deixar a sorte me levar [...]

(Angela Ro Ro e Cazuza, 1989)

Nesse cenário, coube à imprensa reafirmar tais práticas e discursos, recorrendo, muitas vezes, à divulgação de falsas notícias e especulações pseudocientíficas no intuito de justificá-las (Cf. Daniel e Parker, 2018, p. 25). Além disso, narrando a experiência das epidemias por meio de abordagens sensacionalistas, fatalistas e alarmistas, os jornais e revistas da época compuseram verdadeiras “estratégia[s] de apavoramento” (Daniel, 2018, p. 23), reforçando um estado de “pânico moral” (Daniel, 2018, p. 21).

Em uma manchete da época, por exemplo, lê-se: “AIDS. A doença mortal que assusta o mundo (Figura 4). Diante de tal anunciação, Leonilson intervém sobre as páginas do jornal, imprimindo marcas vermelhas e douradas que sugerem como essa abordagem das epidemias (re)produzia uma marca no sujeito, a qual se espalhava para além das notícias, para tantas outras “seções” da vida cotidiana.

Figura 4
Leonilson, Saque e aproveite a vantagem, 1985. Acrílico, guache e verniz sobre papel jornal, 58 × 68,5 cm. Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Figura 5
Leonilson, O perigoso, 1991. Tinta e sangue sobre papel, 30,5 × 23 cm. Acervo Coleção Inhotim.

Ora, a práxis da Igreja, da medicina, do poder jurídico e da imprensa inscreveram, de fato, um profundo estigma na subjetividade, na sexualidade, na história, na memória e na socialização das pessoas vivendo ou não com hiv e aids, já que as dissidências sexuais, morais e de gênero representavam o risco da infecção e da doença, mesmo quando não viviam com o vírus.

O termo estigma, que tem origem na Grécia Antiga, se refere à prática de produzir, com fogo ou ferro sobre a pele, uma marca que indicava uma pessoa moralmente condenável. Essa identificação, de cunho altamente depreciativo, identificava um sujeito que deveria ser evitado nas mais diversas esferas sociais, em particular as de caráter público e institucional (Goffman, 1988). Na modernidade, no entanto, a estigmatização não passa necessariamente pela marcação física no corpo, mas por uma ação social - jurídica, política e ideológica.

Ainda que o estigma relacionado ao hiv e à aids tenha se estendido a outras dissidências, como trabalhadoras/es do sexo, usuárias/os de drogas injetáveis, pessoas privadas de liberdade no sistema prisional e mulheres travestis e transexuais, o fato da aids ter sido considerada uma doença gay imprimiu uma marca fundamental nas práticas homoeróticas masculinas. Assim, por meio de mecanismos institucionais de discriminação, repressão, condenação e criminalização que reafirmavam uma “perigosa imoralidade” (Daniel e Parker, 2018, p. 18), esse processo fez “crer que um homossexual está sendo castigado por uma culpa que carrega” (Daniel, 2018, p. 22), como se ele fosse um (potencial) vetor de um mal que deve ser evitado e combatido em nome do bem-estar da sociedade (Sontag, 2007).

Com uma gota de sangue, sob a qual traça o título “O Perigoso”, em meio a um grande espaço em branco, Leonilson grava o sentimento solitário de ameaça iminente representada por um homem gay vivendo com aids no início da década de 1990 (Figura 5). A respeito da obra, o artista explica, em entrevista à Lisette Lagnado, durante uma internação hospitalar nos seus últimos anos de vida:Eu sou uma pessoa perigosa no mundo. Ninguém pode me beijar. Eu não posso transar. Se eu me corto, ninguém pode cuidar dos meus cortes, eu tenho que ir numa clínica. Tem gente perigosa porque tem uma arma na mão. Eu tenho uma coisa dentro de mim que me torna perigoso. Não preciso de arma. (Leonilson apudLagnado, 2019, p. 123).

Tais narrativas contam sobre uma experiência de sucessivos interditos impostos aos sujeitos homossexuais vivendo com hiv e aids. Interditos esses que vão para além do adoecimento físico e da morte, mas que acabam por reprimir o erotismo, castrar o desejo, punir a (homo)sexualidade e alienar o sujeito de sua liberdade, da sua dignidade e de seus direitos fundamentais.

Eis sua condenação a uma “morte civil” (Daniel, 2018, p. 21). “Uma espécie de morte social que precede a morte física” (Sontag, 2007, p. 104). Uma morte que se dá em vida e que, encadeando fatores econômicos, políticos, ideológicos e culturais, impõe aos sujeitos uma experiência de assujeitamento, mortificação, exílio e abjeção (Daniel, 2018).

Ao (re)produzirem essa experiência de morte social, as práxis hegemônicas das instituições burguesas (re)produziam, ainda, uma visão de mundo dilacerada. Pois, ao justificarem idealmente suas práticas, a totalidade social e histórica na qual se expressa o fenômeno das epidemias se expressa de maneira fragmentada, de forma que a experiência concreta é estranhada, muitas vezes, sob argumentos a-históricos e a-sociais (naturais ou sobrenaturais) (Marx e Engels, 2007).

Retornando à obra de João de Ricardo, Prata-Paraíso denuncia essa fratura ao sugerir como a imagem da morte, assim como sua memória, evocadas na figura de Tod, nos é afastada ao ponto de alienar-se da unidade contraditória da vida e expressar-se como uma fantasmagoria, como algo que está alheio às relações sociais e histórias dos homens (Marx e Engels, 2007). Ainda que as narrativas sobre a morte fossem largamente difundidas entre as décadas de 80 e 90, sua experiência, assim como a do adoecimento, no contexto das epidemias, era tratada através de mitologias moralistas, abordagens individualistas e narrativas empobrecidas que nada ensinavam sobre a doença, a vida ou a morte (Benjamin,1983) senão a temê-las.

Por efeito, também a “visão dos moribundos” (tal como Tod) - daqueles que, no leito de morte, narram a experiência da vida vivida, retornando para ela como um ensinamento que a enriquece - nos é furtada (Benjamin, 1983), sobretudo ao passo que ele é desumanizado, estranhado e alienado de si mesmo e das relações sociais. “Morrer, outrora um processo público e [uma experiência] altamente exemplar [...tornou-se], durante a Era Moderna [...] cada vez mais repelido do mundo perceptível dos vivos” (Benjamin, 1983, p. 64).

Renúncia

Resistindo e renunciando aos interditos impostos pelas mortes física e social, o movimento homossexual e o movimento de luta contra a aids engendraram as primeiras respostas às epidemias, construindo, através de organizações não governamentais (ONGs), uma rede de assistência jurídica, social, psicológica e comunitária às pessoas vivendo com hiv e aids (Galvão, 1997). Tais atores compuseram, ainda, a ampla frente popular de luta pelo reconhecimento da saúde como direito de todos e dever do Estado, o que foi assegurado pela Constituição Federal de 1988 e efetivado em 1990, com a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS).

Em 1996, conquistou-se a distribuição gratuita e universal das medicações para o tratamento do hiv e da aids pelo SUS (Brasil, 1996). Ao longo dos anos, o contínuo desenvolvimento farmacológico da Terapia Antirretroviral de Alta Potência (TARV) - também conhecida como coquetel - possibilitou a melhora da qualidade de vida das pessoas vivendo com hiv, a diminuição das infecções pelo vírus, dos adoecimentos oportunistas e da morbi-mortalidade por aids (Guimarães et al., 2017).

Durante os anos 2000, a TARV seguiu sendo aprimorada, de modo que, recentemente, seu uso regular reduz tanto a quantidade do vírus no organismo que o torna indetectável. Nesses casos, a possibilidade de transmissão é tão ínfima que, na prática, é intransmissível. Além disso, as medicações que a compõem passaram a ser utilizadas em estratégias de prevenção, como nos casos da profilaxia pós-exposição (PEP) e pré-exposição (PrEP) (ABIA, 2021).

Diante de tantos avanços tecnológicos, científicos e políticos, anuncia-se cada vez mais o “fim da aids” (Parker, 2015). Tal compreensão sustenta uma forma neoliberal de gestão do Estado brasileiro em torno das epidemias, que passa pela valorização da eficácia farmacológica e da responsabilização de cada indivíduo pelas suas escolhas de tratamento e prevenção. Nesse sentido, as ações políticas, pedagógicas e econômicas de respostas ao hiv e a aids têm sido julgadas cada vez mais dispensáveis (Parker, 2015).

Em 2011, o Governo Federal proibiu a distribuição de materiais didático-pedagógicos destinados a abordar questões de gênero, sexualidade, saúde e direitos humanos nas escolas públicas (G1, 2011). Em 2017, o governo do Rio Grande do Sul interrompeu o repasse financeiro para o aluguel da casa que sediava o Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (GAPA/RS) (Gaúcha ZH, 2017). Em 2019, a referência ao hiv e à aids foi suprimida do nome do antigo Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/AIDS e das Hepatites Virais, do Ministério da Saúde (Agência Aids, 2019). Em 2022, por sua vez, foi comunicada a perspectiva de um corte importante de verbas federais para prevenção, tratamento e controle das epidemias (Andrade, 2022).

Apesar desses desinvestimentos sugerirem que as epidemias não são mais um problema com o qual devemos nos preocupar, a realidade concreta revela que elas percorrem silenciadas entre nós. Em 2022 foram registrados 36.753 casos de aids no país e 10.994 óbitos tendo a aids como causa básica (Brasil, 2023). Em 2018, quando se contavam 38.251 casos e 11.222 óbitos (Brasil, s/d), já se anunciava uma “segunda onda da epidemia da aids (Reis, 2018).

O fechamento da sede do GAPA/RS no ano anterior, na capital que apresentava as maiores taxas de detecção de hiv e aids (Brasil, 2017), é expressão simbólica da gestão silenciosa das epidemias em curso no Brasil. Esse processo se evidencia no contraste entre imagens da casa que sediava a ONG nos anos 90 (Figura 6) e atualmente (Figura 7). Enquanto a primeira fotografia mostra um lugar repleto de ativistas - na época em que o investimento brasileiro nas respostas às epidemias era mundialmente reconhecido (Parker, 2015) -, a segunda revela o mesmo lugar deteriorado, esvaziado e interditado.

Figura 6
Sede do GAPA/RS na década de 1990.

Figura 7
Sede do GAPA/RS em 2017, por Samuel Maciel.

Desde 1989, o GAPA/RS era referência no acolhimento de pessoas vivendo com hiv e aids, assim como tantas ONGs que estiveram próximas das populações mais vulneráveis, cumprindo funções muitas vezes negligenciadas pelo Estado. Além disso, sua sede guardava um acervo de materiais gráficos e de pesquisa que narravam a história das epidemias, tanto do ponto de vista científico, quanto dos movimentos sociais (Minha Porto Alegre, 2017).

A disposição dessas imagens evoca um evento singular, porém, opera como uma citação, dando sentido exemplar (Didi-Huberman, 2017) dos retrocessos políticos e históricos que vivemos hoje. Ora, desde a entrada das epidemias nos anos 2000, as infecções por hiv e a mortalidade por aids voltaram a crescer através de movimentos contraditórios (Guimarães et al., 2017; Cunha, Cruz e Pedroso, 2022). Esse avanço tem significado a interdição, principalmente, de vidas em situação de vulnerabilidade social - vidas marcadas pela pobreza, pelo estigma relacionado ao hiv e a aids, bem como pela discriminação de raça, gênero e sexualidade (Parker e Aggleton, 2020).

Além disso, uma das consequências mais marcantes e ambíguas desse movimento é que, atualmente, o hiv incide, principalmente, sobre a “geração pós-coquetel”, a geração de jovens nascidos entre os anos de 1990 e 2000 e que tiveram acesso as mais eficientes medicações antirretrovirais (Brasil, 2017). Entre os anos de 2007 e 2017, foi registrado um crescimento de 700% do hiv em jovens com idade entre 15 e 24 anos (Brasil, 2018). Mais recentemente, de 2012 a 2022, os jovens entre 20 e 24 anos, apresentaram as maiores taxas de detecção de aids (Brasil, 2023). Assim, cada vez mais, as epidemias se tornam concentradas entre pessoas jovens e, particularmente, negras e pobres (Brasil, 2017; 2018; 2023)

A conjunção desses elementos históricos, políticos e epidemiológicos expõe que, se durante as décadas de 80 e 90, o hiv e a aids eram anunciados através de narrativas míticas ou biologicistas, fragmentárias e fatalistas de “fim do mundo”, que escondiam suas verdades, favorecendo seu espraiamento (Daniel e Parker, 2018, p. 12), agora, por detrás das promessas neoliberais de “fim da aids”, revela-se a renúncia da própria existência das epidemias, da sua memória e do papel histórico desempenhado pelos movimentos sociais nas ações de prevenção e controle da infecção e do adoecimento. Agora é, acima de tudo, o silêncio, a censura, o abandono, a negação e o esquecimento que encobrem a verdade, projetando sobre as epidemias a ideia de “banalização” (Kerr et al., 2018), de um trauma que ficou no passado, que não nos assusta mais ou que nos esforçamos para esquecer.

Apesar de expressarem justificativas diferentes, ambos os discursos históricos operam, em sua essência, através da mesma razão fragmentada e fragmentária de mundo, retirando o caráter social e histórico das epidemias e escondendo que as “catástrofes ‘imprevistas’ são preparadas por um longo [e contraditório] processo” histórico (Lukács, 2010, p. 160). Fundamentadas na renúncia da vida, da verdade e da memória (passada e presente) das epidemias, tais enunciações compõem uma narrativa dominante que nega o passado, estranha o presente e interdita o futuro.

Se sobrepormos o tempo histórico da narrativa (1990) ao tempo histórico da encenação (2017) de Prata-Paraíso, veremos como as imagens do presente iluminam as imagens do passado (Löwy, 2005), nos colocando diante dessa profunda contradição. Essa visão nos revela um passado em eterna repetição, um passado que é presente e, portanto, prisão. Pois, mesmo depois de cinco décadas de epidemias, permanecemos, em muitos aspectos, alheios à sua realidade, apartados da sua história e presos à uma forma social na qual a morte, assim como a vida, nos é estranha, e sua memória se dissipa na lembrança precária de um tempo distante e vazio.

No entanto, entre vida e morte, lembrança e esquecimento, transgressão e interdito, Tod reivindica sua existência e sua memória. E, na cena final, desaparece na escuridão, declarando: “Eu não vou morrer. E quando vocês todos virarem pó, eu continuarei.”

Esse ato ético, poético e político, expresso na sua renúncia à morte, expressa a resistência e a afirmação de uma potência que busca transgredir aos interditos impostos tanto pela morte física, quanto pela morte social e da memória. Ao longo da história das epidemias, esse gesto se expressou através de narrativas contra-hegemônicas que anunciavam outras verdades sobre a experiência do hiv e aids. Verdades que narravam a vida, a morte e o adoecimento como experiências genuínas, afirmando o erotismo da existência e salvaguardando a memória do seu tempo na imanência do seu gesto.

Nos anos 80, Cazuza não cantou só a morte, mas a vida, o presente e o porvir. E, então, quando viu “a cara da morte / e ela estava viva”, afirmava rem resistência:

Direi milhares de metáforas rimadas

E farei

Das tripas coração

Do medo, minha oração

Pra não sei que Deus H

Da hora da partida

Na hora da partida

A tiros de vamos pra vida

Então, vamos pra vida

(Cazuza, 1988).

Caio Fernando Abreu, apesar da contemplação melancólica dos “muros brancos do cemitério no outro lado da rua” (Abreu, 2015, p. 232) do hospital no qual estava internado, reconhecia que “A vida grita. E a luta continua” (Abreu, 2015, p. 233).

Leonilson, ainda que percorrendo os abismos da doença e da solidão, escolheu se lançar nas vicissitudes da vida. “Eu vou fazer tudo que minha cabeça mandar, sabe? Porque eu tenho trinta e três anos e eu tô completamente cheio de vida, e eu quero aproveitar ela o tempo inteirinho. Eu tô cheio de vontade. [...] Homem peixe com o oceano inteiro pra eu nadar” (Harley, 1997).

O escritor, militante e sociólogo mineiro Herbert Daniel (2018), dedicou-se a desvendar as fantasmagorias e os mitos das epidemias, revelando suas verdades. Reivindicando uma “vida antes de morte”, ele renunciava à morte como uma condenação, propondo uma “concepção de ‘viver com AIDS’: onde se aprende não apenas a conviver e evitar o vírus, como também a conviver e viver melhor” (Daniel e Parker, 2018, p. 12), sobretudo de forma digna, com as epidemias. Uma posição que pressupunha, ainda, um comprometimento com a luta política por direitos sociais.

No mesmo sentido, em 1995, a peça teatral Cabaret Prevenção, do diretor, ator e crítico de teatro carioca Vagner de Almeida, propunha a expressão da singularidade do sujeito vivendo com hiv e aids, a afirmação de uma identidade gay e a denúncia da estigmatização e da discriminação relacionadas às epidemias. Além tratá-las através da perspectiva das próprias pessoas vivendo com hiv e aids, a obra enfatizava o prazer erótico-sexual sem culpa, medo ou moralismo, tal como representa o fragmento de uma cena, na qual três homens nus entrelaçam seus corpos vivendo esse encontro erótico (Figura 8).

Figura 8
Cena do espetáculo Cabaret Prevenção, dirigido por Vagner de Almeida em 1995 e encenado na Galeria Alaska, na capital carioca.

A partir dos anos 2000, com popularização da TARV, das novas tecnologias de prevenção, a viabilidade da indetectabilidade do vírus e, consequentemente, da sua intransmissibilidade, inaugurou-se uma nova possibilidade de experienciar, significar e narrar as epidemias, fazendo emergir o que Alexandre Nunes de Sousa (Cf. Melo & Penna, 2017) intitulou de “narrativas pós-coquetel”. Tratam-se, sobretudo, de discursos que exploram as formas contemporâneas de se relacionar com a experiência e a história do hiv e da aids.

Apesar de abordarem, muitas vezes, a experiência do morrer de aids, essas narrativas não se detêm à sua memória e a seus ecos no presente, antes, elas buscam expressar a experiência do viver com hiv, engendrando uma afirmação ética, política, poética e erótica dos nossos corpos, sexualidades, subjetividades, enfim, de nossas existências concretas. Nesse movimento, outras narrativas e vozes são evocadas, para além da experiência de homens homossexuais, cisgêneros e brancos que predominaram nos discursos não-hegemônicos sobre as epidemias nas suas primeiras duas décadas.

Além disso, diante de um mundo que insiste em renegar a história, muitas dessas narrativas resgatam a memória das epidemias, renunciando seu esquecimento, (re)montando a experiência do passado e (re)fazendo-a no presente. Entre elas, o poema Olhos Amarelos (referência ao efeito colateral de uma das medicações que compõe um dos esquemas da TARV), da poeta, cantora e transativista paulista Maria Sil, expressa a afirmação da autonomia da pessoa vivendo com hiv para escrever sua própria história, para renunciar aos mitos e aos interditos de uma morte social e da memória:

Dos meus olhos amarelos eu que sei

Não há vergonha em tudo isso que sou

Agora ainda há sonhos

Nesta estrada eu vou pisar com toda a história que calaram

Neste velho armário novo eu não vou entrar

Parcelado em dias de aflição

Não me perguntaram se eu queria ir

Só me apontaram a direção

Do segredo, da vergonha e do medo de ser assim: positivo!

Dos meus sonhos reescritos eu que sei

Trago na boca cada canção que mudou

Quem luta mostra os dentes e a minha alma eu vou lavar

Com a força do meu canto

(Maria Sil, Olhos Amarelos, 2018, p. 146).

Igualmente “lavando a alma” das marcas da estigmatização, da vergonha e do assujeitamento, Micaela Cyrino (2015) realiza uma performance cujo título, Cura, sugere o desdobramento da ação. Na obra, a artista e ativista pelos direitos das pessoas negras vivendo com hiv e aids inscreve, com batom vermelho, sobre sua pele as letras V I H (sigla para hiv em espanhol, já que a ação ocorreu no Equador), as quais esfrega, com um pano branco embebido em ervas, em referência aos rituais afro-brasileiros, os ebós. Quando Micaela abandona a cena, totalmente nua, é como se os repetidos estigmas sobre o corpo de uma mulher jovem e negra vivendo com o vírus, fossem apagados, abrindo caminhos para outras inscrições possíveis (Figuras 9 e 10).

Figura 9
Captura de tela da performance "Cura", de Micaela Cyrino, realizada na cidade de Quito, Equador, em 2015.

Figura 10
Captura de tela da performance "Cura", de Micaela Cyrino, realizada na cidade de Quito, Equador, em 2015.

As narrativas que compõem este ensaio, além de expressarem os efeitos dos interditos ao erotismo das dissidências sexuais e de gêneros na história das epidemias, revelam dobras, desvios e rupturas que sugerem outros sentidos para essa experiência. A partir de gestos de resistência, renúncia e transgressão aos interditos impostos pelas mortes física, social e da memória, elas afirmam ética, política, poética e eroticamente nossas existências e nossas histórias.

Ainda, ao expressarem a experiência contraditória do díptico interdito-transgressão, inscrita na imagem e na palavra, tais narrativas se materializam como registro sensível da história. Suas disposições, a partir de um processo de montagem, nos oferecem a possibilidade de “acesso à historicidade pela iluminação de uma remontagem do tempo” (Didi-Huberman, 2017, p. 217).

No entanto, como imagem e memória da experiência e, dessa forma, como “autoconhecimento da humanidade, [a arte] não poderia [...] se limitar ao inventário do que já existe de fato: cabe-lhe [ainda] iluminar o que está por existir, [...] cabe-lhe iluminar os sonhos do homem e ajudar a concretizar tais sonhos” (Konder, 2009, p. 163). Por isso a “rememoração do passado não implica simplesmente a restauração do passado, mas [...] uma transformação do presente tal que, se o passado perdido aí for reencontrado, ele não fique o mesmo, mas seja, ele também, retomado e transformado” (Gagnebin, 2013, p. 16).

Assim, penso que uma política da memória do hiv e da aids deve se fundamentar não só no resgate fugidio da sua experiência, mas na (re)escritura da sua história. Uma (re)escritura que exponha as contradições de nosso tempo, remonte seus cacos, traia seus mitos, desvele seus fantasmas, (re)fazendo a própria experiência, passada, presente e futura. Nesse gesto reside uma possibilidade de resistirmos aos interditos às nossas existências concretas, de nos apropriarmos do rumo de nossas histórias, elaborando outras formas de vivê-las, lembrá-las e narrá-las.

Recorrendo às palavras do poeta, concluo:

Mas se você achar

Que eu tô derrotado

Saiba que ainda estão rolando os dados

Porque o tempo, o tempo não para [...]

(Cazuza & Arnaldo Brandão, 1988).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Maio 2023
  • Aceito
    15 Ago 2024
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