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FEITOSA, Cleyton. 2017. Políticas Públicas LGBT e Construção Democrática no Brasil. Curitiba: Appris.

FEITOSA, Cleyton. . 2017. Políticas Públicas LGBT e Construção Democrática no Brasil . Curitiba: Appris.

A obra Políticas Públicas LGBT e Construção Democrática no Brasil, de autoria de Cleyton Feitosa, é fruto de um estudo realizado pelo pesquisador no âmbito do curso de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco. Compreendendo as contradições e as disputas nos campos do Estado e do Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), Feitosa analisou princípios, tensões, avanços e desafios na constituição das políticas públicas de direitos humanos LGBT a partir do Centro Estadual de Combate à Homofobia de Pernambuco (CECH).

O campo de pesquisas no qual o estudo de Feitosa pode ser situado tem se avolumado nos últimos anos. O livro se soma a outras investigações que se debruçam sobre as políticas públicas de direitos humanos LGBT no nosso país, a exemplo daquelas que foram conduzidas por Bruna Irineu (2009IRINEU, Bruna Andrade. 2009. A Política de previdência social e os direitos LGBT no Brasil. 2009. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Universidade Federal de Goiás., 2016IRINEU, Bruna Andrade. 2016. A política pública LGBT no Brasil (2003-2014): homofobia cordial e homonacionalismo nas tramas da participação social. Tese de Doutorado em Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.) e Luiz Mello et al. (2011MELLO, Luiz et al. 2011. “Políticas de saúde para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: em busca de universalidade, integralidade e equidade”. Sexualidade, Saúde e Sociedade. Vol. 9, p. 7-28., 2012aMELLO, Luiz et al. 2012a. “Políticas públicas para a população LGBT no Brasil: notas sobre alcances e possibilidades”. Cadernos Pagu. Vol. 39, p. 403-429., 2012bMELLO, Luiz et al. 2012b. “Por onde andam as políticas públicas para a população LGBT no Brasil”. Sociedade e Estado. Vol. 27, p. 289-312., 2013MELLO, Luiz et al. 2013. “Políticas públicas de trabalho, assistência social e previdência social para a população LGBT no Brasil: sobre desejos, realizações e impasses”. Revista de Ciências Sociais. Vol. 44, p. 132-160., 2014MELLO, Luiz et al. 2014. “Políticas públicas de segurança para a população LGBT no Brasil”. Revista Estudos Feministas. Vol. 22, p. 297-320.).

Inserida em um campo ainda em construção e dada a sua qualidade, a investigação feita por Feitosa oferece grandes contribuições para entender as características, as limitações e as potencialidades das políticas públicas de direitos humanos LGBT no Brasil. Ao optar por analisar um caso concreto de uma política pública recorrentemente acessada pela população LGBT vítima de violência, o estudo de Feitosa se diferencia de outras investigações que buscaram analisar as políticas públicas LGBT de uma perspectiva mais estrutural, a partir de suas diretrizes nacionais ou mesmo de seu processo de formulação.

Nesse sentido, apesar de guardar algumas semelhanças com os estudos efetivados por Bruna Irineu e Luiz Mello, a obra de Feitosa tem a singularidade de evidenciar as características de uma política pública de direitos humanos LGBT executada por um governo estadual, tomando como ponto de partida as trajetórias e os projetos políticos dos(as) atores/atrizes que atuaram na sua implementação, sem perder de vista os desafios e mesmo as precariedades inerentes às políticas sociais no Brasil.

No primeiro capítulo do livro, intitulado “Direitos Humanos, Projetos Políticos, Trajetórias Individuais e Cidadania LGBT”, assentado em Dagnino et al. (2006DAGNINO, Evelina; OLVERA, Alberto J.; PANFICHI, Aldo. 2006. “Para uma outra leitura da disputa pela construção democrática na América Latina”. In: DAGNINO, Evelina; OLVERA, Alberto J.; PANFICHI, Aldo (orgs.). A disputa pela construção democrática na América Latina. São Paulo: Paz e Terra.), o autor apresenta uma densa discussão teórica sobre projetos políticos, trajetórias individuais e construção democrática que fundamentará suas reflexões e análises contidas nos capítulos seguintes. Nessa discussão, ganha relevo a crítica à noção de sociedade civil enquanto “polo de virtude democrática”, em oposição ao Estado que seria o representante das “forças do mal”. Acompanhando uma crítica feita por Dagnino et al. (2006), o autor reforça que no interior da sociedade civil coexiste uma pluralidade de projetos e práticas políticas que evidentemente contribuem para ampliar a compreensão a respeito dos papéis do Estado e da sociedade civil.

Já no segundo capítulo - “Trajetórias Individuais de Membros e Ex-membros do Centro Estadual de Combate à Homofobia” - o autor aponta ricos elementos das trajetórias daqueles(as) que atuaram na execução dessa política pública nas funções de coordenador(a), advogado(a), assistente social e psicólogo(a).

Na realização da pesquisa, Cleyton Feitosa entrevistou quatro membros e quatro ex-membros que trabalharam no CECH. A análise das trajetórias dos(as) participantes da pesquisa evidenciou: (i) a jovial faixa etária da equipe técnica dessa política pública, que variava entre 25 e 31 anos; (ii) forte relação com a academia, todos(as) possuindo formação de nível superior entre graduação e mestrado; (iii) no momento da pesquisa, todos(as) os(as) então membros do CECH residiam na capital pernambucana; (iv) predominância de homens homossexuais trabalhando na execução da política pública; (v) em termos de perfil racial, relativa paridade entre brancos e pretos/partos; (vii) praticamente todos(as) atuaram em algum Movimento Social, sendo o Movimento Estudantil e o Movimento LGBT os mais citados; e (viii) dos(as) oito participantes da pesquisa, apenas uma estava filiada a um partido político, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), porém outros(as) participantes afirmaram compartilhar simpatia pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

O segundo capítulo trata de outro ponto importante, as principais motivações destacadas pelos(as) participantes da pesquisa para trabalhar no CECH, sendo elas: (i) o fato de já atuarem em movimentos sociais que lutam pelo reconhecimento da diversidade sexual e da identidade de gênero; (ii) as suas próprias identidades; e (iii) a afinidade com o campo dos direitos humanos LGBT. Nesse sentido, os(as) participantes da pesquisa viram no CECH uma possibilidade de conciliar o ativismo político com a atuação profissional. Isto indica que os(as) profissionais que trabalham na execução das políticas públicas LGBT guardam uma forte relação com a defesa dos direitos humanos desta população.

No terceiro capítulo - “Centro Estadual de Combate à Homofobia: Projetos Políticos, Serviços e Estrutura” - Feitosa (2017FEITOSA, Cleyton . 2017. Políticas Públicas LGBT e Construção Democrática no Brasil. Curitiba: Appris.) explora as compreensões dos(as) participantes da pesquisa sobre o Centro. Neste ponto merece destaque a posição mais crítica dos ex-membros do CECH que apontam para a sua dimensão política, também a entendendo como um espaço de mediação do tensionamento feito pelo Movimento LGBT sobre o governo de Pernambuco.

Além disso, ainda no terceiro capítulo, o autor faz uma rica descrição dos serviços ofertados pelo CECH, agrupando-os em três categorias: jurídico, psicológico e socioassistencial. A elevada demanda por esses serviços evidencia o quanto a população LGBT ainda tem grandes dificuldades de ter acesso à cidadania, na medida em que não consegue recorrer às Defensorias Públicas, aos Postos de Saúde da Família e Centros de Referência em Assistência Social para se beneficiar com os serviços básicos, o que demonstra a elevada LGBTfobia institucional que afasta essa população de equipamentos públicos, sendo necessária a criação de um serviço especializado, como o CECH, para que LGBTs consigam garantir os direitos assegurados pela Constituição Federal.

Os “Avanços e Desafios das Políticas Públicas LGBT no Enfrentamento à Violência” são explorados no quarto capítulo do livro. Os principais avanços consistem na publicação de marcos normativos, como portarias, visibilidade da pauta na sociedade, realização de campanhas de combate à violência e aproximação com o Movimento LGBT. Por outro lado, os principais desafios são a LGBTfobia institucional, a precariedade de recursos, a estrutura de trabalho e a permanente cobrança de resultados por parte do governo. Apesar de a escassez de recursos para políticas sociais não ser uma novidade, o livro indica o alto grau de precariedade das políticas públicas LGBT, que funcionam com muitas limitações em termos de estrutura física, material de trabalho e de vínculos empregatícios fragilizados.

O quinto e último capítulo - “A Participação Social nas Políticas LGBT: Interlocução entre Estado e Sociedade” - aponta que no Brasil esse tipo de política pública surge a partir da interlocução entre Estado e sociedade civil através das instâncias de participação social, como conselhos, fóruns, conferências, audiências públicas etc. O último capítulo do livro também evidencia que os trânsitos e os descolamentos que ocorrem entre Estado e sociedade civil fazem com que atores e atrizes que antes atuavam no campo do movimento social passem a agir no sentido da execução das políticas públicas, provocando grande dificuldade para o Movimento LGBT, na medida em que apontar as lacunas das políticas públicas LGBT também pode significar uma crítica ao trabalho dos(as) então ativistas que agora operam na estrutura estatal.

Ao final da obra, o autor indica o quanto as trajetórias individuais e os projetos políticos daqueles(as) que atuam na execução das políticas públicas LGBT estão fortemente relacionados. Sendo assim, ainda que o CECH, caso analisado do estudo, fosse dotado de uma diretriz governamental, na prática essa diretriz foi moldada por sujeitos concretos.

Tendo delineado o panorama de todos os capítulos, abro aqui um parêntese para apresentar uma pequena lacuna na obra. Um elemento importante na investigação das políticas públicas que está ausente ao longo do estudo é o orçamento reservado para a sua manutenção. Ainda que a ênfase dada pelo autor tenha sido nas trajetórias individuais e nos projetos políticos daqueles(as) que atuaram no CECH, o livro poderia trazer alguns quadros ou tabelas nos quais constasse o orçamento direcionado anualmente ao órgão, tornando mais nítida as fragilidades e as precariedades apontadas pelos participantes da pesquisa. Isto poderia contribuir para que investigações futuras que venham a se debruçar sobre outras políticas similares possam estabelecer comparações entre as cifras orçamentárias destinadas às políticas públicas de direitos humanos LGBT. Todavia, essa pequena lacuna em nada macula a qualidade da obra, pois, levando em consideração os objetivos da investigação, sua opção teórica e metodológica, o autor cumpre fielmente aquilo a que o estudo se propôs.

Apesar de limitadas, insuficientes e muitas vezes contraditórias, o Brasil nunca assistiu a tantas iniciativas estatais de promoção da cidadania LGBT como nas últimas duas décadas. Coincide com esse período uma ampliação significativa dos estudos que apresentam gênero e sexualidade como categorias centrais em distintas áreas do conhecimento, como as ciências humanas, sociais e da saúde. O livro Políticas Públicas LGBT e Construção Democrática no Brasil se insere, com grande destaque, nesse contexto.

Ao fazer uma análise de uma política pública sem esquecer seu conteúdo político, em detrimento dos estudos estritamente técnicos, Cleyton Feitosa inaugura uma nova tipologia de análise para as políticas públicas LGBT quando estuda os projetos políticos e as trajetórias de atores e atrizes envolvidos na execução de tais iniciativas governamentais. Sua contribuição aos estudos das políticas públicas de direitos humanos LGBT é relevante, tendo em vista que aponta novas perspectivas para este campo ao compreender a complexa teia de implementação dessas políticas no Brasil.

Os trânsitos e os descolamentos de ativistas do Movimento LGBT para o interior da estrutura estatal, atuando na implementação de políticas públicas, conforme evidenciado na obra, também são uma outra contribuição, na medida em que revelam a atenção do Movimento LGBT às oportunidades de atendimento de suas demandas pelo Estado, através da criação das políticas públicas de combate à violência LGBTfóbica e de caráter afirmativo.

Diante dos apontamentos expostos ao longo desta resenha, reafirmo que a qualidade da obra Políticas Públicas LGBT e Construção Democrática no Brasil tornou-a uma referência indispensável para os(as) pesquisadores(as) que estudam as políticas públicas de direitos humanos LGBT no Brasil.

Referências

  • DAGNINO, Evelina; OLVERA, Alberto J.; PANFICHI, Aldo. 2006. “Para uma outra leitura da disputa pela construção democrática na América Latina”. In: DAGNINO, Evelina; OLVERA, Alberto J.; PANFICHI, Aldo (orgs.). A disputa pela construção democrática na América Latina São Paulo: Paz e Terra.
  • FEITOSA, Cleyton . 2017. Políticas Públicas LGBT e Construção Democrática no Brasil Curitiba: Appris.
  • IRINEU, Bruna Andrade. 2009. A Política de previdência social e os direitos LGBT no Brasil 2009. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Universidade Federal de Goiás.
  • IRINEU, Bruna Andrade. 2016. A política pública LGBT no Brasil (2003-2014): homofobia cordial e homonacionalismo nas tramas da participação social Tese de Doutorado em Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • MELLO, Luiz et al. 2011. “Políticas de saúde para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: em busca de universalidade, integralidade e equidade”. Sexualidade, Saúde e Sociedade Vol. 9, p. 7-28.
  • MELLO, Luiz et al. 2012a. “Políticas públicas para a população LGBT no Brasil: notas sobre alcances e possibilidades”. Cadernos Pagu Vol. 39, p. 403-429.
  • MELLO, Luiz et al. 2012b. “Por onde andam as políticas públicas para a população LGBT no Brasil”. Sociedade e Estado Vol. 27, p. 289-312.
  • MELLO, Luiz et al. 2013. “Políticas públicas de trabalho, assistência social e previdência social para a população LGBT no Brasil: sobre desejos, realizações e impasses”. Revista de Ciências Sociais Vol. 44, p. 132-160.
  • MELLO, Luiz et al. 2014. “Políticas públicas de segurança para a população LGBT no Brasil”. Revista Estudos Feministas Vol. 22, p. 297-320.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019
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