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Agnes e Garfinkel: pensando gênero através de um clássico da sociologia

Agnes and Garfinkel: thinking about gender through a classic of sociology

Agnes y Garfinkel: Pensando género a través de un clásico de la sociología

Resumo

Neste artigo buscamos apontar como a relação entre Agnes e o sociólogo estadunidense Harold Garfinkel produziu uma análise de gênero que se diferenciava das teorias biologizantes do seu tempo. Através do conceito de passing e da noção de rotineirização da Etnometodologia, o autor antecipa, em certa medida, certos pressupostos que viriam a nortear a noção de gênero que se desenvolveria na década de 1990. Na primeira parte do texto, o nosso enfoque será nos impactos da experiência de Agnes para a etnometodologia; em um segundo momento, provocaremos um diálogo entre Garfinkel e a teoria da performatividade de Judith Butler.

Palavras-chave:
gênero; etnometodologia; performatividade; transexualidade; passing

Abstract

In this article we intend to show how the relationship between Agnes and the American sociologist Harold Garfinkel produced a gender analysis that differed from the biological theories of its time. Through the concept of passing and the ethnomethodology’s notion of routine the author anticipates certain assumptions that would guide the notion of gender that would develop in the 1990s. In the first part of the text, our focus will be on impacts of Agnes’ experience for ethnomethodology; in a second step, we will provoke a dialogue between Garfinkel and Judith Butler’s theory of performativity.

Keywords:
gender; ethnomethodology; performativity; transsexuality; passing

Resumen

En este artículo buscamos señalar como la relación entre Agnes y el sociólogo estadounidense Harold Garfinkel ha producido un análisis de género que se distinguía de las teorías biologizantes de su época. A través de la concepción de passing y de la idea de rotinerización de la Etnometodología, el autor adelanta, hasta cierto punto, determinados presupuestos que vendrían a guiar la idea de género que se desarrollaría en la década de 1990. En la primera parte del texto, nuestro énfasis será en los impactos de la experiencia de Agnes para la Etnometodología; en segundo momento, provocaremos un diálogo entre Garfinkel y la teoría de la performatividad de Judith Butler.

Palabras clave:
género; etnometodología; performatividad; transexualidad; passing

Introdução

O sociólogo Harold Garfinkel nasceu em 1917 nos Estados Unidos e desenvolveu seus estudos inicialmente na Universidade da Carolina do Norte. Lá, teve contato com os estudos desenvolvidos pela sociologia da Escola de Chicago. Com o término da Segunda Guerra Mundial, realizou seu doutoramento em Harvard sob a orientação de Talcott Parsons. Em 1952, defendeu sua tese intitulada “The Perception of the Other: A Study in Social Order”, que também teve a influência do fenomenólogo Alfred Schutz. No ano de 1954, se torna docente no departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade da Califórnia (Chabaud-Rychter, 2014)CHABAUD-RYCHTER, Danielle. 2014. “Harold Garfinkel: competência social e atribuição do gênero”. In: CHABAUD-RYCHTER, Danielle; DESCOUTURES, Virginie; et al. (org.). O gênero nas Ciências Sociais: releituras críticas de Max Weber a Bruno Latour. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp; Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília. pp. 295-312..

Em 1967, Harold Garfinkel publica no seu livro “Studies in Ethnomethodology1 1 O livro foi recentemente traduzido para o português com publicação da editora Vozes em 2018. um capítulo, denominado “Passing and the Managed Achievement of Sex Status in an Intersexed Person”, que propõe compreender como os indivíduos se diferenciam entre os sexos masculino e feminino através da análise de uma pessoa “intersexuada”2 2 Optamos por utilizar a terminologia adotada pela tradução da obra de Garfinkel referenciada na nota anterior. denominada Agnes, que realiza o trânsito entre os gêneros no decorrer do seu estudo. As narrativas de Agnes, acerca do gerenciamento da sua identidade de gênero, tornaram-se um importante estudo para a dessencialização do sexo, ainda mais quando se é revelado que Agnes era uma mulher transexual.

O estudo realizado por Garfinkel para a construção do capítulo consistiu em uma parceria acadêmica com Robert Stoller3 3 Robert Stoller possui uma grande influência na criação da transexualidade enquanto objeto das ciências psi. Sua etiologia da transexualidade adquiriu uma rápida repercussão nos anos de 1960 nos Estados Unidos com a publicação do seu artigo em parceria com Garfinkel na Archives of General Psychiatry. Em seguida lançou sua obra “Sex and Gender: The Development of Masculinity and Femininity” em 1968, posteriormente lançou uma continuação “Sex and Gender: The Transsexual Expiriment”, o segundo volume de sua obra. Suas ideias reforçaram preconceitos e a própria patologização das identidades trans, tendo suas pesquisas servido como base para a construção nosográfica da transexualidade no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) na década de 1980. Entretanto, devemos pontuar que o mesmo foi responsável pela popularização de conceitos como o de identidade de gênero que viriam a ser posteriormente incorporado por teóricas feministas e por movimentos sociais. , professor de Neuropsiquiatria na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). A história se inicia em outubro de 1958, quando a paciente Agnes (nome fictício cunhado por Garfinkel) é encaminhada para tratamento médico com Robert Stoller. A jovem de 19 anos, branca e economicamente independente, alegava ter nascido e vivido como garoto até os seus 17 anos quando, a partir dessa idade, teria adotado uma identidade feminina. Segundo ela, seu corpo passou a desenvolver características físicas do sexo feminino durante sua puberdade, onde simultaneamente ao desenvolvimento do seu pênis e escroto, seu corpo apresentou seios, nenhum pelo facial e medidas corporais comumente atribuídas as mulheres (Garfinkel, 2006GARFINKEL, Harold. 2006. Estudios en Etnometodología. Tradução por: Hugo Antonio Pérez Hernáiz. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; México: UNAM. Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades; Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.).

No decorrer do estudo clínico, Agnes é diagnosticada por Stoller como uma pessoa “intersexuada”4 4 Nos textos originais, tanto de Harold Garfinkel quanto nos de Robert Stoller, a terminologia adotada seria a de “intersexed”, segundo o próprio Stoller “While the term intersexed has occasionally been used in the past to refer to people with gender problems without genetic or anatomical defects, everyone today, I believe, uses it to mean only those with pronounced biological defects.” (Stoller, In: Stryker, Whittle, 2006:56) No Brasil, a terminologia mais utilizada na mesma época seria o de hermafrodita sendo substituído posteriormente para intersexual (Corrêa, 2004). Atualmente, em língua inglesa se utiliza a nomenclatura intersex (tendo caído o uso do sufixo ed), sua tradução para o português pode ser assimilada pela palavra intersexo. Para maior compreensão sobre o processo de construção nosográfica da intersexualidade, sugerimos a leitura da dissertação “Distinções do Desenvolvimento Sexual: percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade” de Barbara Pires (2015). portadora da rara síndrome de feminização testicular. Como, primeiramente, Agnes nega a ingestão de hormônios, a presença de altos níveis de estrógeno no seu testículo só poderia ser justificada por um defeito biológico, tendo seu testículo produzido no período da puberdade hormônio feminino de forma descontrolada.

Sete anos após a realização da cirurgia de redesignação de sexo, Agnes revela a Stoller nunca ter tido nenhuma síndrome, mas sim, ter ingerido secretamente, a partir dos 12 anos, os hormônios de reposição de estrógeno de sua mãe. A ingestão dos hormônios justamente no período da puberdade resultou no crescimento normal dos seus órgãos genitais masculinos, embora as demais características físicas que se podem atribuir aos sexos desenvolveram-se enquanto aspectos tipicamente identificáveis como femininos. Dessa forma, Agnes dos 12 aos 19 anos ingeriu ininterruptamente hormônios femininos, escondendo esta informação dos médicos para a obtenção do seu fim, a cirurgia que construiria o corpo feminino que sempre quis ter.

É apenas no apêndice do livro, onde Garfinkel revela que, pouco antes do lançamento da publicação, Stoller5 5 Esse evento teve implicações diferentes para Stoller e Garfinkel, enquanto Garfinkel mantêm sua ideia e texto original, ganhando até um reforço da sua perspectiva; Stoller se sente traído e em suas obras posteriores podemos encontrar o caso de Agnes (ele não utiliza seu nome, mas é possível identificá-la pelo contexto) sendo utilizado para um reforço de suas ideias de que pessoas transexuais são “enganadoras”. Não temos evidências sobre o impacto disso na relação entre os dois autores, mas o trabalho que se é prometido para uma futura parceria nunca foi realizado. Para melhor compreensão sobre os impactos da atribuição de uma personalidade “enganadora” às pessoas transexuais e na construção de diagnósticos enviesados e estigmatizantes por parte da medicina, ler “A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual” de Berenice Bento (2006). o informa de como Agnes havia “enganado” a todos. Embora fosse do sexo biológico masculino, Agnes desejava ser mulher; dessa forma, os pesquisadores estavam diante de uma pessoa que se identificava com um determinado gênero sem haver interferências biológicas condizentes a um corpo intersexual. A análise de Garfinkel trazia uma percepção sociológica sobre as diferenças sexuais, inédita até então, que rompia com o determinismo biológico hegemônico daquele período propondo uma análise do gênero e da sexualidade enquanto práticas socialmente construídas, que precisavam ser diariamente ritualizadas para garantir o seu reconhecimento social. A experiência de Agnes demonstrava em sua vivência a complexidade deste processo. No decorrer desse texto iremos apontar como a experiência de Agnes foi importante paras as percepções sociológicas do seu tempo e a atualidade de sua releitura.

Agnes sob a ótica da etnometodologia: performance e rotinização

Garfinkel inicia o capítulo com a seguinte afirmação: “Toda sociedade exerce controles rígidos sobre as transferências de pessoas de um status para outro. No que diz respeito às transferências de status sexuais, esses controles são particularmente restritivos e rigorosamente aplicados” (Garfinkel, 2018:192GARFINKEL, Harold. 2018. Estudos em Etnometodologia. Vários tradutores. Petrópolis: Vozes .). Com essa declaração, o autor parte do seu antigo pressuposto da ordem social6 6 Como apontado na introdução, a tese de doutoramento de Garfinkel consiste em um estudo para análise da ordem social. Entretanto, enquanto a ordem social para Parsons estaria vinculada a um sistema de valores pré-existente aos sujeitos que precisa ser seguido fortemente para que haja integridade social, Garfinkel entende que é preciso enxergar a ordem nas práticas dos sujeitos, essas práticas é que levariam a percepção integrativa da sociedade. As práticas rotineirizadas que proporcionariam o senso de estrutura social e não o contrário. , porém já sinaliza suas particularidades ao levar o controle da ordem para a via dos “status sexuais”. Deve-se perceber que o autor não utiliza o termo gênero que será popularizado na década de 19907 7 Um ano antes da realização desse estudo, em 1957, o conceito de gênero surge, através do pedopsiquiatra John Money que realizava estudos com crianças intersexos (estudos inclusive de uma ética completamente duvidosa), para ele o sexo se referia aos atributos físicos e é anatômica e fisiologicamente determinado. Enquanto isso, o gênero conceituaria as transformações psicológicas do eu, a convicção adquirida subjetivamente sobre o pertencimento à diferença sexual. Durante a década de 1980, o conceito de gênero é apropriado pelos estudos feministas e passa a adquirir o entendimento teórico que apreendemos atualmente. . Em seu lugar, ele opta por utilizar o termo “status sexuais” para compreender o que seria hoje as diferenças de gênero presentes na sociedade.

Na sua análise dos status sexuais, Garfinkel nos apresenta logo de início que o trânsito entre os sexos seria, na sociedade estadunidense, uma ação bastante controlada, sendo permitido apenas em situações festivas e de curto tempo8 8 Como, por exemplo, no Carnaval brasileiro, onde temporariamente é permitido o trânsito nas performances de gênero, principalmente homens vestindo-se com adereços tipicamente atribuídos às mulheres. onde são observadas de perto para que não se prolongue essa “usurpação” de papéis.

Para Garfinkel, a percepção dos sexos é vista de forma binária e dicotomizada. Os sujeitos sexualmente “normais” estariam unicamente e para sempre no seu sexo designado, no caso, aqueles que nasceram designados como “homem” sempre seriam lidos como “homem” nunca seriam interpretados como “mulher”; aquelas que estiveram desde ao nascer designadas como “mulher” estariam em qualquer outro momento de sua vida sendo lidas como “mulher”.

Garfinkel aponta que é dessa forma que a sociedade encara os status sexuais. Entretanto, sua fonte de análise para observar como os status sexuais são construídos e rotinizados no cotidiano seriam aqueles momentos nos quais uma pessoa sairia de um status sexual e passaria para o outro, sendo este o caso de Agnes. Para a vivência de um status sexual não basta apenas senti-lo individualmente, é preciso interpretá-lo e ser interpretado dentro de uma linguagem compartilhada sobre o que significa pertencer socialmente ao status atribuído ou “escolhido”. Para o autor:

Em casa caso, as pessoas gerenciavam a aquisição de seus direitos de viver no status sexual escolhido, ao mesmo tempo em que operavam com as convicções realistas de que a revelação de seus segredos traria ruína, rápida e certa, na forma de degradação de status, trauma psicológico e perda de vantagens materiais. Cada uma teve como uma tarefa prática permanente adquirir os direitos de serem tratadas e de tratar os outros de acordo com as prerrogativas obrigatórias do status sexual eleito. (Garfinkel, 2018:193GARFINKEL, Harold. 2018. Estudos em Etnometodologia. Vários tradutores. Petrópolis: Vozes .)

Para a etnometodologia, os fenômenos sociais são vistos enquanto etnométodos. Etnométodos consistiriam em todos os procedimentos que formam o raciocínio sociológico prático, ou seja, uma lógica do senso comum onde os membros comuns da sociedade geram frequentemente as suas atividades cotidianas. A etnometodologia está preocupada, assim, com os métodos usados pelos sujeitos que os permitem a se reconhecerem enquanto viventes de um mesmo mundo social (Coulon, 1995)COULON, Alain. 1995. Etnometodologia. Tradução por: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes.. Dessa forma:

Garfinkel uses Agnes as an example for ethnomethodology. He examines the methods Agnes uses to pass as a woman, or to live successfully as a woman in a context in which there is “the possibility of detection and ruin” due to the “socially structured conditions” in which the passing occurs. (Raby, 2000:22RABY, Rebecca. 2000. “Re-configuring Agnes: The telling of a transexual`s story”. Torquere: Journal of the Canadian Lesbian and Gay Studies Association, vol. 2, 2000, p. 18-35.)

As estratégias de reconhecimento em sociedade, utilizadas por Agnes para vivenciar o status sexual “mulher”, são articuladas através do conceito denominado pelo autor de passing9 9 Este termo pode ser traduzido como trânsito, morte, passagem, ou literalmente passando, porém será utilizado o termo original devido a limitação que a tradução exerce na aplicação do conceito. . Este conceito traria para o caso a percepção dos modos pelos quais os sujeitos articulam o seu reconhecimento no status sexual desejado diante dos demais membros do seu grupo social. O conceito exprime a noção de estar se passando uma mensagem sobre o seu status sexual para a sociedade através de determinados mecanismos sociais. Estes mecanismos seriam as práticas realizadas rotineiramente que tornariam segura a sua vivência no “(...) gênero desejado e rigorosamente encenado e interpretado, o que mostra que, embora passando despercebido aos protagonistas, a demonstração do gênero tem que ser cuidadosamente “gerida” e é objeto de estrita vigilância por parte dos outros” (Saleiro, 2013:38SALEIRO, Sandra Palma. 2013. Trans Géneros: Uma abordagem sociológica da diversidade de género. 2013. 335f. Tese (Doutorado) pela ISCTE - Instituto -Universitário de Lisboa, Lisboa.).

Segundo Saleiro (2013)SALEIRO, Sandra Palma. 2013. Trans Géneros: Uma abordagem sociológica da diversidade de género. 2013. 335f. Tese (Doutorado) pela ISCTE - Instituto -Universitário de Lisboa, Lisboa., o estudo das “exceções” defendido por Garfinkel ao observar as situações de passing de Agnes era, naquele momento, um modo privilegiado de observação de como socialmente os gêneros são representados. As “exceções” também evidenciavam as normas que agiam silenciosamente na naturalização dos sexos. Essa condição de análise, tomada por Garfinkel, compreendia que a ação, realizada pelos indivíduos, era racional e reflexiva, mesmo sem intenção dos atores. Pois, ao incorporarem os etnométodos, havia uma sensação de naturalização, mas os atos tinham um referencial, dessa forma não eram “irracionais” ou aleatórios, a reflexividade se dava na própria ação. Por isso no passing há relações entre rotina, confiança e racionalidade, evidenciando a produção das estruturas sociais na construção dos status sexuais (Saleiro, 2013SALEIRO, Sandra Palma. 2013. Trans Géneros: Uma abordagem sociológica da diversidade de género. 2013. 335f. Tese (Doutorado) pela ISCTE - Instituto -Universitário de Lisboa, Lisboa.).

Sua socialização primária tornou Agnes apta a realização de etnométodos relacionados a práticas cotidianas necessárias na performatividade do status sexual masculino. No decorrer do passing para o gênero feminino, Agnes desenvolveu, a partir da observação dos demais membros de suas interações sociais, quais seriam os métodos necessários para, na sua prática diária, ser reconhecida como a mulher que sempre se sentiu ser. Desenvolvendo mecanismos de percepção de situações, onde seu papel enquanto mulher precisava seguir comportamentos específicos para que não fosse “detectada” e sua legitimidade perante os membros da sociedade não fosse arruinada. Por isso, Garfinkel enfatiza que sua intenção era explicar o que Agnes precisava esconder, a relevância estrutural dos seus segredos, a situação socialmente estruturada de suas crises, as estratégias de gestão e legitimação utilizadas por ela para, com isso, evidenciar as circunstâncias práticas enquanto fenômenos sociológicos (Garfinkel, 2006GARFINKEL, Harold. 2006. Estudios en Etnometodología. Tradução por: Hugo Antonio Pérez Hernáiz. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; México: UNAM. Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades; Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.).

Garfinkel estrategicamente posiciona a revelação do segredo de Agnes em um apêndice que se segue logo após o término da leitura do texto redigido antes da descoberta e resultado de sua análise etnometodológica. Saleiro (2013)SALEIRO, Sandra Palma. 2013. Trans Géneros: Uma abordagem sociológica da diversidade de género. 2013. 335f. Tese (Doutorado) pela ISCTE - Instituto -Universitário de Lisboa, Lisboa. aponta que a leitura do apêndice após a leitura do capítulo 5 provoca “(...)nos leitores o mesmo sentimento de surpresa que Stoller e Garfinkel experimentaram na revelação de Agnes” (Saleiro, 2013:39SALEIRO, Sandra Palma. 2013. Trans Géneros: Uma abordagem sociológica da diversidade de género. 2013. 335f. Tese (Doutorado) pela ISCTE - Instituto -Universitário de Lisboa, Lisboa.).

Henry Rubin (1999:174-175)RUBIN, Henry. 1999. “Trans Studies: Between a Metaphysics of Presence and Absence”. In: MORE, Kate; WHITTLE, Stephen (org.) Reclaiming Genders: Transsexual Grammars at the Fin de Siècle. New York: Cassel. pp. 173-192. considera que a revelação do apêndice transformou o artigo em dois. Lido como um artigo de uma pessoa intersexo que gere a sua aparência física, trata do trabalho de gênero que é universalmente performado por todos. Lido de novo como um texto acerca de uma pessoa transexual que gere a sua identidade até (ou será sobretudo?) para os prestadores de cuidados de saúde, remete para o trabalho específico produzido por alguém que está sempre em risco de se perder a si próprio se esse trabalho for malsucedido. (Saleiro, 2013:39SALEIRO, Sandra Palma. 2013. Trans Géneros: Uma abordagem sociológica da diversidade de género. 2013. 335f. Tese (Doutorado) pela ISCTE - Instituto -Universitário de Lisboa, Lisboa.)

A dupla interpretação proporcionada pela revelação de Agnes somente no apêndice, posterior à primeira leitura do artigo, reafirma a proposta de análise de Garfinkel, ao passo que intensifica o caráter social da construção dos status sexuais e da capacidade prática e racional dos sujeitos de gerirem suas narrativas através da linguagem para serem compreendidos pelos seus interlocutores, tornando-se membros de um mesmo grupo social.

Agnes manejou o seu passing tanto diante da sociedade como um todo, mas principalmente, no período de entrevistas com a equipe da UCLA. Ela manejou particularmente a percepção de Stoller e de Garfinkel ao seu favor, para garantir o tratamento que desejava: sem custos financeiros e com assistência médica de qualidade. Importante salientar que Agnes era a quarta filha de uma mãe viúva. Desde os 17 anos, ao sair de casa para adotar sua identidade feminina, trabalhava como datilógrafa, não tendo como arcar financeiramente com os procedimentos cirúrgicos de redesignação de sexo. Assim, o “custo” da sua operação com a UCLA era consultar-se com Stoller e toda a equipe médica, realizar entrevistas com Garfinkel (pesquisador de sociologia vinculado à pesquisa do Stoller), tendo que atender às expectativas da equipe médica até a realização da cirurgia (compreendendo cinco meses de estudo).

Para Leia Armitage (2001)ARMITAGE, Leia Kaitlyn. 2001. “Truth, Falsity, and Schemas of Presentation: A Textual Analysis of Harold Garfinkel’s Story of Agnes”. In: Electronic Journal of Human Sexuality, v.4, n.29, abr. 2001. Disponível em: Disponível em: http://www.ejhs.org/volume4/agnes . htm [Acesso em: 13.01.2019].
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, o sucesso da análise de Garfinkel diante da interpretação dos leitores se dá principalmente por desde o início do seu texto o autor apresentar Agnes como mulher. A questão de se Agnes seria intersexo ou transexual pouco importaria, uma vez que os mecanismos de manejo do status sexual feminino aplicar-se-iam a todas as mulheres. A descrição de Agnes10 10 O autor descreve Agnes da seguinte forma: “A aparência de Agnes era convincentemente feminina. Ela era alta, magra, com uma silhueta muito feminina. Suas medidas eram de 38-25-38 (polegadas). Tinha cabelo louro escuro, longo e fino e um rosto jovem com feições bonitas, pele clara e rosada, tom de pêssego, nenhum pelo facial, sobrancelhas sutilmente cuidadas, e nenhuma maquiagem, exceto batom” (Garfinkel, 2018:194). dada pelo autor, assim como a forma que ele sempre se refere a ela, além das situações narradas por ele sobre as vivências cotidianas dela, induzem o leitor a percebê-la enquanto uma mulher, dentro das características sociais que essa sociedade compreenderia como femininas, o que para a Armitage (2001) seria a intenção de Garfinkel já que ele defende o caráter social do gênero em detrimento do aspecto biológico.

The work of transforming Agnes into a woman is work begun by Agnes, who took the hormones, aided by Garfinkel, who organized the text, and completed by the reader who augments the story by drawing on what he or she “knows” or accepts in terms of the relevant discourses he or she has had to draw upon in order to follow Garfinkel’s argument and see Agnes as she sees herself. Garfinkel suggests that Agnes’ disclosures have no effect on the “managed achievement of [her] sex status”. (…) A rereading of the text, as Garfinkel invites on the last page of the text, will result in an appeal for Agnes to again be perceived as a woman because the schema of presentation remains unchanged. Regardless of our ensuing knowledge that Agnes lied and is not the intersexed individual she claimed to be, the organising schema within which Garfinkel has articulated her story remains intact. The reader will, while reading the text, still tend to draw upon those particular discourses in order to piece his or her understanding of Garfinkel’s project together. (…) Garfinkel’s decision not to rewrite or alter the text was perhaps his wisest choice of action. (Armitage, 2001:13ARMITAGE, Leia Kaitlyn. 2001. “Truth, Falsity, and Schemas of Presentation: A Textual Analysis of Harold Garfinkel’s Story of Agnes”. In: Electronic Journal of Human Sexuality, v.4, n.29, abr. 2001. Disponível em: Disponível em: http://www.ejhs.org/volume4/agnes . htm [Acesso em: 13.01.2019].
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)

A análise de Armitage (2001)ARMITAGE, Leia Kaitlyn. 2001. “Truth, Falsity, and Schemas of Presentation: A Textual Analysis of Harold Garfinkel’s Story of Agnes”. In: Electronic Journal of Human Sexuality, v.4, n.29, abr. 2001. Disponível em: Disponível em: http://www.ejhs.org/volume4/agnes . htm [Acesso em: 13.01.2019].
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traz um dos pontos mais importantes na inovação do texto de Garfinkel: o fato de ele ter respeitado Agnes da forma como ela mesma se via. Apesar de não podermos afirmar que Garfinkel não duvidava da feminilidade de Agnes, o que temos certeza é de que em todo o seu texto ele não tentou provar que ela não merecia ser vista como mulher. Ao contrário. Garfinkel a narra em todo o texto como “Agnes, a mulher natural e normal”11 11 Esse é o título do subtópico do texto localizado em Garfinkel, 2006:140 . Inclusive, mesmo com a revelação de Agnes, em nenhum momento ele traz uma narrativa que evidencie a “ruína” da performance realizada por Agnes, há um reforço de tal atuação, um reforço da Agnes aprendiz secreta que ele havia pontuado no texto desde o seu princípio. Diferentemente de Stoller, que se sente enganado e ridicularizado levando o comportamento de Agnes ao patamar de “diagnóstico da transexualidade” e estigmatizando ainda mais as vivências trans, Garfinkel interpreta as mentiras de Agnes como parte da prática dos etnométodos, como estratégia do sujeito dentro de uma linguagem que roteiriza suas ações.

Segundo Garfinkel, Agnes está sempre preocupada com a natureza do comportamento feminino. Ela afirma com veemência que é, sempre foi e sempre será uma mulher. Apesar da transformação do seu corpo ter ocorrido na puberdade e sua decisão definitiva de adotar a identidade feminina ter se dado aos 17 anos, para Agnes, ser mulher nunca foi uma alternativa; ela nunca havia se visto de outra forma. Além disso, Agnes afirmava nunca ter se visto como fora do sistema “normal” dos status sexuais. Assim como os indivíduos “normais”, ela via seu comportamento como tradicionalmente feminino e ela demonstrava essa perspectiva em diversas passagens do texto. Há aí uma inferência sobre como seus discurso sobre si mesma buscava refletir o que ela esperava ser a expectativa da escuta médica, dentro da circunstância que se encontrava, o reforço intenso de sua feminilidade pode demonstrar o receio que sentia de ser deslegitimada pelos profissionais que detinham o controle sobre a realização da sua cirurgia.

Agnes concordava com os normais em sua adesão a essa definição de um mundo real de pessoas sexuadas, e tratava isso, assim como eles, como uma questão de fatos objetivos, institucionalizados, isto é, fatos morais. Agnes insistia veementemente que era, e deveria ser, tratada como uma mulher natural, normal. (Garfinkel, 2018:197, grifo no originalGARFINKEL, Harold. 2018. Estudos em Etnometodologia. Vários tradutores. Petrópolis: Vozes .)

O passing de Agnes reafirma como corriqueiramente as noções criadas no senso comum agem, através da prática racional e lógica, no modo de interpretação do “gênero” realizada pelos sujeitos. Como dito por Garfinkel, é uma “resistência institucionalmente motivada” com o compromisso da ordem moral dos tipos sexuais, resistindo principalmente às caracterizações que se distanciam dos modos tidos como naturais da vida. Por isso, o autor destaca que a percepção dos membros “normais” sobre a sexualidade como um fato “natural” é, consequentemente, “moral”, indo de encontro com a perspectiva biologizante hegemônica de seu tempo (Garfinkel, GARFINKEL, Harold. 2006. Estudios en Etnometodología. Tradução por: Hugo Antonio Pérez Hernáiz. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; México: UNAM. Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades; Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.2006).

Agnes’s methodological practices led Garfinkel to conclude that “normally sexed persons” are cultural events “and that members practices produce the observable-tellable normal sexuality of persons” (Garfinkel 1967:181GARFINKEL, Harold. 1967. Studies in ethnomethodology. New Jersey: Prentice Hall.). It was on the basis of his study of Agnes that Garfinkel was able to demonstrate precisely how it is that “over the temporal course of their actual engagements, and “knowing” the society only from within, members produce stable, accountable practical activities, i.e., social structures of everyday activities” (1967:185GARFINKEL, Harold. 1967. Studies in ethnomethodology. New Jersey: Prentice Hall.). (Speer, 2005:54SPEER, Susan. 2005. Gender Talk: Feminism, Discourse and Conversation Analysis. New York: Routledge Taylor & Francis Group.)

Segundo Garfinkel, “Agnes não só expressou direta e insistentemente que sempre havia sido uma mulher, como também construiu uma biografia notavelmente idealizada (…)” (Garfinkel, 2006:148, tradução nossaGARFINKEL, Harold. 2006. Estudios en Etnometodología. Tradução por: Hugo Antonio Pérez Hernáiz. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; México: UNAM. Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades; Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.) 12 12 Texto original: Agnes no sólo expresó directa e insistentemente que siempre había sido una mujer, sino que construyó una biografía notablemente idealizada (...)” (Garfinkel, 2006:148). . Sua feminilidade era extremamente destacada no seu discurso, enquanto traços que remeteriam a uma possível masculinidade eram completamente apagados. A sua prática diante de Garfinkel e dos demais pesquisadores da UCLA, como observada pelo autor, levava todos a enxergar sua feminilidade. Para obter o seu fim, Agnes agia reflexivamente; seus atos práticos precisavam ser o mais feminino possível para assegurar o seu diagnóstico e realizar a sua cirurgia.

Passamos a nos referir à sua representação como 120% feminina. Não apenas em seus relatos, mas às vezes nas suas conversas comigo, Agnes era a “coisinha” recatada, sexualmente inocente, animada, passiva e receptiva. Como um tipo de contraparte dialética para os 120% femininos, Agnes retratou seu namorado como 120% masculino. (Garfinkel, 2018:203GARFINKEL, Harold. 2018. Estudos em Etnometodologia. Vários tradutores. Petrópolis: Vozes .)

As percepções de Agnes para articular o seu gênero levaram Garfinkel a pensar o quanto ela aprendia como “ser mulher” enquanto performava a sua identidade feminina. Ao transitar em busca de uma feminilidade, Agnes não só agia como mulher, como também buscava estar sempre aprendendo nas situações do cotidiano o melhor modo de sê-la.

Uma ocasião desse tipo ocorria muito frequentemente: Agnes, agindo como uma “aprendiz secreta”, aprendia, como ela disse, “a agir como uma garota”. Sua abordagem foi mais ou menos assim: Agnes e seus parceiros de interação seriam direcionados a uma meta mutuamente compreendida e valiosa, enquanto, ao mesmo tempo, uma outra meta mutuamente compreendida e valiosa, enquanto ao mesmo tempo, uma outra meta de valor equivalente, para a qual a outra pessoa contribuía, permanecia conhecida apenas por Agnes, e cuidadosamente escondida. (...) tal ocasião era caracterizada por sua natureza continuada e em desenvolvimento. Além disso, suas “regras” são aprendidas apenas durante o curso da própria interação, como uma função da participação real e pela aceitação dos riscos envolvidos. (Garfinkel, 2018:216/217GARFINKEL, Harold. 2018. Estudos em Etnometodologia. Vários tradutores. Petrópolis: Vozes .)

Garfinkel evidencia o caráter rotinizado com que Agnes realiza o passing ao lograr a ideia de tornar-se uma “mulher verdadeira”. Ela precisou no cotidiano apreender os etnométodos dos membros com que interagia que tornavam legitimo um comportamento feminino. Assim, nas relações com sua colega de quarto, com seu namorado Bill, com a sua futura sogra, com suas primas, entre outros sujeitos, observava cada detalhe que a faria passar enquanto mulher na sua sociedade, principalmente diante dos médicos.

A perspectiva etnometodológica de Garfinkel possibilitou perceber, através das narrativas de Agnes, a construção sociológica prática e racional do gênero dentro da sociedade americana. Agnes é vista por ele como uma agente que realiza ações reflexivas que se pautam na ordem social, porém vai além dela.

Norman Denzin (1990)DENZIN, Norman K. 1990. “Harold and Agnes: A Feminist Narrative Undoing”. Sociological Theory, v.8, n.2, set./dez. 1990. pp. 198-216. critica a abordagem metodológica de Garfinkel ao não trazer em nenhum momento do texto a voz de Agnes. A todo o momento lidamos com a interpretação de Garfinkel acerca da interpretação de Agnes de seu cotidiano. O autor aponta que Garfinkel parte da voz de um homem cisgênero13 13 Importante destacar a cisgeneridade do autor, ou seja, que ele não seria uma pessoa trans ou intersexo. A nomenclatura “cis” surge: “Em 1994, quase um século depois do surgimento da terminologia transexual, em um fórum na Universidade de Minnesota, a professora de biologia Dana Leland Defosse apresenta o termo “cis” como uma necessidade linguística/discursiva de se ter um termo que pudesse se opor ao prefixo “trans”, até então as pessoas “não trans” eram lidas como “normais”.” (Vasconcellos, 2018:19). Para uma maior compreensão sobre o assunto recomendamos a dissertação “Cisnorma: acordos societários sobre o sexo binário e cisgênero.” de Brune Bonassi (2017). , branco, heterossexual de classe média e acadêmico, silenciando a voz de Agnes ainda mais por raramente trazer uma transcrição de suas narrativas (apenas algumas frases ao longo do texto), temos sempre a Agnes do Harold, nunca se saberá o verdadeiro posicionamento dela diante de sua biografia.

Mary Rogers (1992)ROGERS, M. 1992. “They all were passing: Agnes, Garfinkel, and company”. Gender and Society, v.6, pp. 169-191.1992. traz uma crítica feminista ao trabalho realizado por Garfinkel. Segundo a autora, as próprias condições em que a pesquisa se realiza já estariam marcadas por relações hierárquicas e de poder que dificultam o conteúdo e a análise do mesmo realizada por Garfinkel. Aqueles homens tinham o poder de decidir se ela realizaria sua cirurgia e isso influenciou completamente na performance realizada por Agnes. Além disso, a autora critica o fato de Garfinkel não problematizar as relações de poder presente entre homens e mulheres, tanto dele e dos demais pesquisadores como as ações do Bill, namorado da Agnes.

Tanto Denzin quanto Rogers evidenciam que havia uma desigualdade na relação entre Agnes e Harold. Agnes estava nessa pesquisa em uma posição de objeto a ser analisado sem ter espaço para trazer seus próprios pensamentos, ao contrário, ela os esconde e os manipula por saber que aqueles homens tinham expectativas sobre ela e que a frustração deles causaria a perda de seu maior objetivo. Até o nome que a designamos é uma ficção. Harold, por outro lado, se é conhecido pelo sobrenome, aqui ele é Garfinkel, o sociólogo. Ele está ali realizando um estudo social através das experiências da Agnes, mas em nenhum momento dá vazão para as próprias falas dela; ele sempre está em uma posição dominante na narrativa exposta. Segundo Barbara Pires (2015)PIRES, Barbara. 2015. Distinções do Desenvolvimento Sexual: percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Rio de Janeiro., os estudos sobre a intersexualidade, nas décadas de 1950 e 1960, foram marcados por uma tentativa dos cientistas de trazerem suas narrativas de verdade biológica e social, havendo uma forte coerção do discurso médico sobre os corpos vistos como “desviantes”. Inclusive Stoller, que era o médico responsável pelo estudo, tinha um papel dominante sobre o próprio Garfinkel, que se encontrava em uma posição subordinada dentro do estudo.

As críticas são plausíveis. Porém, apesar da limitação do trabalho de Garfinkel, o seu pensamento desbiologizante com relação aos “status sexuais” antecipa um debate que só alcançaria validade acadêmica depois dos anos de 1980. Além disso, o próprio autor estava realizando o passing durante a investigação; ele precisava agir como um homem normal típico de sua época, inclusive seu papel enquanto professor era analisado por Agnes. Ele também precisava corresponder às expectativas dela. Não somente ela estaria elaborando sua performance, ele também estava, apesar de não analisar sua própria atuação, todos estamos atuando e isso não está descartado da visão etnometodológica, inclusive em uma breve passagem da obra o próprio autor aponta para esse caminho autorreflexivo14 14 Podemos encontrar tal aspecto no segmento: “Se Agnes estava fazendo o passing conosco, deve ser declarado com toda a franqueza que houve muitos momentos, de fato, quando eu estive fazendo o passing com ela. Houve muitas ocasiões nas trocas de ideias entre Agnes e eu, nas quais foi necessário para mim deixar de lado seus pedidos por informações, de forma a evitar qualquer mostra de incompetência, e para manter o relacionamento com Agnes” (Garfinkel, 2018:229). , infelizmente pouco explorado.

Agnes performática: um diálogo entre os conceitos de Garfinkel e Butler

Janice Irvine (2003)IRVINE, Janice M. 2003. ““The Sociologist as Voyeur”: Social Theory and Sexuality Research, 1910-1978”. Qualitative Sociology, v. 26, n.4, jan./mar. 2003. categoriza o trabalho de Garfinkel na sua divisão histórica sobre os estudos de gênero na sociologia como a fase da teorização de gênero e sexualidade enquanto performance. Segundo ela, o autor conseguiu antecipar a noção de performatividade sem utilizar esta nomenclatura em um tempo pregresso daquele em que o termo viria a ser trabalhado. No caso, gênero e sexualidade foram definidos enquanto performatividade nos anos de 1990, através do posicionamento acadêmico de teorias feministas e Queer, tendo destaque a obra da filósofa Judith Butler (2008)BUTLER, Judith. 2008. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira..

Na obra de Garfinkel, temos dois conceitos expressivos que garantem a sua pioneira visão sobre a construção das identidades de gênero: “status sexual” e “passing”. Como dito anteriormente, o autor não utiliza o termo gênero como conceito para as diferenças sociais pautadas no sexo, utilizando em seu lugar o conceito de status sexual. Como apontado por Danielle Chabaud-Rychter (2014)CHABAUD-RYCHTER, Danielle. 2014. “Harold Garfinkel: competência social e atribuição do gênero”. In: CHABAUD-RYCHTER, Danielle; DESCOUTURES, Virginie; et al. (org.). O gênero nas Ciências Sociais: releituras críticas de Max Weber a Bruno Latour. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp; Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília. pp. 295-312., a noção de status sexual trazida por ele, sob a ótica do pensamento atual, abarcaria sexo e gênero ao mesmo tempo. Em consonância com os debates teóricos feministas atuais, onde se compreende que a distinção entre sexo e gênero não é tão demarcada quanto se pensava no passado, sendo a própria construção de corpos sexuados histórica e socialmente definida (Chabaud-Rychter, 2014)CHABAUD-RYCHTER, Danielle. 2014. “Harold Garfinkel: competência social e atribuição do gênero”. In: CHABAUD-RYCHTER, Danielle; DESCOUTURES, Virginie; et al. (org.). O gênero nas Ciências Sociais: releituras críticas de Max Weber a Bruno Latour. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp; Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília. pp. 295-312..

Ainda assim, o conceito de status-sexual teria suas limitações. Uma delas refere-se à forma binária e dicotômica do mundo social, baseado numa divisão social dos sexos em apenas dois polos: masculino (homem) e feminino (mulher). Embora compreenda através de Agnes que há indivíduos que transitam entre essas categorias, só existiriam essas categorias, limitando a possibilidade de construção de outras identidades de gênero ao longo da vivência humana.

É com o conceito de passing que Garfinkel analisa como os sexos se diferenciam na prática cotidiana, já que sua noção remete à compreensão dos modos por meio dos quais os sujeitos articulam seu status sexual e com isso são reconhecidos pelos interlocutores que interagem na sua sociedade. Sua visão se distancia de uma percepção estritamente biologizante dos sexos e gera uma interpretação dos corpos enquanto atuações diárias de demonstração intencional de papéis socialmente atribuídos a um determinado sexo. O sujeito rotineiramente constrói sua identidade de gênero através da interação com os demais membros da sociedade, utilizando-se de etnométodos para se fazer crível no sexo ao qual este sujeito se circunscreve (Garfinkel, 2018GARFINKEL, Harold. 2018. Estudos em Etnometodologia. Vários tradutores. Petrópolis: Vozes .). Importante ressaltar que nas décadas de 1940 e 1950 além da teoria social de Parsons, havia outras correntes do pensamento sociológico norte-americano que influenciaram os estudos de Garfinkel. Na obra “A representação do Eu na vida cotidiana”, Erving Goffman (1985)GOFFMAN, Erving. 1985. A representação do eu na vida cotidiana. Tradução por: Maria Célia Santos Raposo. Petrópolis: Vozes . defende que os sujeitos, como atores em peças teatrais, interpretam seus papéis sociais e articulam suas performances a fim de agradar ao seu público (a sociedade), quando sua performance não atende as expectativas do grupo seu self fica ameaçado e sua máscara cai.

As teses de Goffman sobre a performance e o convencimento dos sujeitos na realização das práticas sociais está presente na teoria de Garfinkel, entretanto, através do conceito de etnométodos, Garfinkel abarca tanto a noção de racionalização das ações e do manejo dos papéis sociais, quanto a normatização presente na linguagem do grupo que se impõe para os sujeitos e que somados a ideia de rotineirização, produz a sua concepção de construção da ordem social. A ordem se estabelece através das performances realizadas diariamente com o parâmetro da linguagem do grupo que funcionam como roteiros prévios, mas que só se tornam convenções e verdades através da repetição dos atos. Podemos afirmar, no limite, que o passing do status sexual é uma noção incipiente da performatividade de gênero trabalhada pela Butler (2008)BUTLER, Judith. 2008. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira..

Apesar das limitações de Garfinkel na sua observação das diferenças de status sexuais, inclusive tendo uma visão estereotipada de feminilidade, seu estudo proporciona uma análise de como Agnes exerceu sua agência em seu gênero escolhido, resistindo, através do seu gerenciamento, às estigmatizações sociais e médicas (Hines, 2004)HINES, Sally. 2004. Transgender Identities, Intimate Relationships and Practices of Care. United Kingdom: The University of Leeds, School of Sociology and Social Policy.. Nesse momento da história, a análise de Garfinkel foi um passo importante, já que nesse período os estudos médicos e psi dominavam a temática, principalmente ditando normas e silenciando vozes de pessoas transgêneras.

Butler (2008)BUTLER, Judith. 2008. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., em diálogo com Foucault, Derrida e as teóricas feministas, traz uma noção de gênero de um feminismo pós-estruturalista. Além disso, é importante pontuar que apesar de Butler não trazer Garfinkel como uma de suas referências teóricas, há duas importantes pontes entre os seus trabalhos. Primeiramente, o uso que ambos fazem da fenomenologia, que os leva para uma preocupação com as práticas e os processos de racionalização presentes nas experiências. E a segunda ligação, pode ser vista na presença de Suzanne Kessler e Wendy McKenna15 15 Suzanne Kessler e Wendy McKenna são psicólogas sociais que desenvolveram um trabalho pioneiro sobre gênero na década de 1978 com a obra “Gender: An Ethnomethodological Approach”. Foram orientadas por Harold Garfinkel e ressurgem com um tema deixado de lado pela etnometodologia desde o caso Agnes (1967). A obra traz uma importante visão desbiologizante das diferenças sexuais e se propõe a analisar gênero enquanto uma categoria construída socialmente. As autoras também trazem o corpo para o campo interpretativo e destacam como as vivências de gênero se materializam e ganham conotações diferentes a depender do corpo que o performa. Para maior compreensão do impacto da obra para a teoria feminista, recomendamos o artigo “Confounding Gender” da Mary Hawkesworth (1997). nas referências bibliográficas da Butler, ambas as autoras foram orientandas de Garfinkel e desenvolveram estudos sobre gênero utilizando a etnometodologia como aporte teórico. Portanto, quando provocamos esse diálogo, estamos resgatando conexões de uma rede de pensamentos que constituem partes fundamentais da teoria social atual.

Para a autora, gênero é entendido enquanto performatividade, ou seja, seriam atos reiterados da linguagem generificada, que se materializam nos objetos, nas roupas, nas expressões dos corpos, nas intervenções corporais. Os corpos transitam entre as expressões de gênero, limitados, ao seu ver, por uma economia masculinista que regula os corpos pelo binarismo homem-mulher através de uma matriz heterossexual que regula o sexo/gênero/desejo. Assim, a heterossexualidade é dada de forma compulsória pela sociedade aos sujeitos e é através dela que a sociedade torna os corpos inteligíveis. Além disso, tanto a performatividade de gênero defendida por Butler quanto o conceito de passing defendido por Garfinkel, nos trazem uma noção de que gênero é uma tarefa que não se conclui na mera atribuição legal ou social de uma determinada identidade de gênero. Os corpos não estão legitimados apenas pelas genitálias atribuídas aos sexos. Os sujeitos precisam estar em uma atuação constante, rotineiramente precisam articular suas expressões performáticas para a manutenção das suas identidades.

In both Gender Trouble and Bodies that Matter, Butler elaborates on the discursive mechanisms through which gender is constituted. According to Butler, the process of becoming gendered-of becoming a man or a woman-is never complete. Instead, we must continuously accomplish the ‘naturalness’ of gender through a performative display of gendered characteristics. Thus, for Butler, gender is not a singular act or event, but is ‘the stylised repetition of acts through time’ (1990b: 271) and the coherence of gender is achieved through ‘the repeated stylization of the body…within a highly rigid regulatory frame that congeal over time to produce the appearance of substance, of a natural sort of being’. (Speer, 2005:48, grifo no originalSPEER, Susan. 2005. Gender Talk: Feminism, Discourse and Conversation Analysis. New York: Routledge Taylor & Francis Group.)

Nesse aspecto Susan Speer (2005)SPEER, Susan. 2005. Gender Talk: Feminism, Discourse and Conversation Analysis. New York: Routledge Taylor & Francis Group. defende que, assim como Butler, Garfinkel compreende gênero mais como uma atividade do que como uma essência, isto é, um sistema de crenças e não um fato dado. Gênero não pertence ao indivíduo, mas acontece através das situações sociais que a suscitam. Para a autora, as perspectivas dos dois autores dentro do tempo e do contexto em que estão inseridos, possibilitaram implicações políticas significativas, já que ao contestarem as visões naturalizadas do sexo e do gênero, ambos os trabalhos provocaram rupturas nas noções do senso comum que organizam a sociedade enquanto “masculino-feminino”, “homem-mulher”, entre outras dicotomias dos corpos.

Butler (2008)BUTLER, Judith. 2008. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. afirma que: “(...) a ação do gênero requer uma performance repetida. Essa repetição é a um só tempo reencenação e nova experiência de um conjunto de significados já estabelecidos socialmente; e, também, é a forma mundana e ritualizada de sua legitimação” (Butler, 2008:200BUTLER, Judith. 2008. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). Garfinkel, por sua vez afirma:

O caso de Agnes nos instrui sobre o quanto “estabilidade de valor”, “constância de objeto”, “controle de impressão”, “comprometimentos com aquiescência a expectativas legítimas”, “racionalização” estão intimamente ligados ao trabalho inevitável do membro de chegar a um acordo sobre as circunstâncias práticas. (Garfinkel, 2018:247GARFINKEL, Harold. 2018. Estudos em Etnometodologia. Vários tradutores. Petrópolis: Vozes .)

A narrativa de Agnes dá corpo àquilo que foi rotineirizado e naturalizado pelo cotidiano, mas que na verdade, são experiências necessariamente ritualizadas para que sejam vistas de forma legitima. Dessa forma, a repetição dos etnométodos, utilizados por Agnes para gerenciar sua identidade, precisa ser diária, assim como para todos os membros da sociedade. Porém, por ser vista através da matriz heterossexual como um corpo não inteligível, suas práticas precisam estar em constante vigilância. Por isso, Garfinkel observa a partir da experiência de Agnes como os valores de estabilidade, o compromisso em obedecer às expectativas socialmente legítimas e a racionalização são tarefas inevitáveis para a gestão de todos os membros da sociedade nas suas circunstâncias práticas, reforçando sua ideia de que a ordem social se dá através das práticas. Apesar de pontuar o quanto para Agnes a gestão do seu status sexual gerava constante tensão e medo de ruína, o que a levou em busca da cirurgia e ter um corpo que correspondesse às expectativas sociais de um corpo feminino, o que para a matriz heterossexual seria um corpo sem pênis, o autor acaba não problematizando as próprias pressões exercidas pela equipe médica e o quanto a própria abordagem do estudo tornava a atuação social de Agnes mais árdua e vigiada.

Portanto, compreendemos que a análise de Garfinkel sobre as vivências do passing realizadas por Agnes, dialoga com a noção de performatividade de Butler. A maneira como o passing conceitua o gênero (o status sexual, na terminologia de Garfinkel) a partir de uma reafirmação das noções criadas socialmente que são aplicadas no cotidiano através da prática interpretativa dos sexos pelos indivíduos em interação, antecipa a ideia performativa, principalmente os aspectos de ritualização e prática constante. Garfinkel, ao afirmar que para Agnes:

Sua preocupação em escapar da detecção tinha a mais alta prioridade. Quase todas as situações tinham, portanto, as características de um potencial ou real “prova de caráter e aptidão física”. Não seria, portanto, correto dizer que ela havia realizado o passing, mas que ela estava continuamente implicada na tarefa de realizar o passing. (...) O passing não era um assunto do agrado de Agnes. Era algo necessário. Agnes tinha que ser uma mulher. Ela gostando ou não, tinha que realizar o passing. Desfrutava dos êxitos, porém temia e odiava os fracassos. (Garfinkel, 2006GARFINKEL, Harold. 2006. Estudios en Etnometodología. Tradução por: Hugo Antonio Pérez Hernáiz. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; México: UNAM. Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades; Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.:156, tradução e grifos nossos)16 16 Texto original: Su preocupación por escapar a la detección tenía la más alta prioridad. Casi todas las situaciones tenían por tanto las características de una potencial o real “prueba de carácter y de aptitud física”. No sería, por lo tanto, exacto decir que ella había realizado el tránsito, sino más bien que ella estaba continuamente implicada en la tarea de realizar ese tránsito. (…) El tránsito no era un asunto del agrado de Agnes. Era algo necesario. Agnes tenía que ser una mujer. Le gustara o no, tenía que realizar el tránsito. Disfrutaba de los éxitos, pero temía y odiaba los fracasos. (Garfinkel, 2006:156)

Ele nos aponta para o caráter contínuo das práticas generificadas, na sua reflexão sobre o passing (trânsito) a percepção de continuidade e repetição trazem à tona a necessidade de garantia de uma linguagem em comum dos membros para o seu pertencimento social. Os seus status sexuais já trazem, mesmo de forma limitada, a compreensão de que as performances de gênero (etnométodos) precisam ser realizadas no cotidiano. Não há descanso para Agnes. Ela não pode deixar de gerenciar seu status sexual, pois suas interações só podem ser bem-sucedidas através de sua racionalização constante. Agnes só pode ser vista enquanto membro do seu grupo social se utilizar a mesma linguagem que os demais, ou seja, só poderá ser compreendida como mulher se utilizar das noções que sua sociedade apreende enquanto típicas de uma mulher.

A decisão de Agnes em ser mulher não só é vista como definitiva, como é necessária para sua existência. Agnes não se via de outra forma: ela era “120% feminina”, necessitava ser vista enquanto tal, não aceitava que ninguém nem seus familiares, nem seu namorado, nem a equipe da UCLA, nem os demais membros da sociedade com que interagia, a vissem de outra forma. Assim, como afirma Garfinkel, “Sua situação [a de Agnes] característica durante o passing consistia em que ela estava preparada para escolher, e com frequência escolhia, entre assegurar sua identidade feminina e alcançar seus objetivos comuns” (Garfinkel, 2006:159, tradução e grifo nossosGARFINKEL, Harold. 2006. Estudios en Etnometodología. Tradução por: Hugo Antonio Pérez Hernáiz. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; México: UNAM. Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades; Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.)17 17 Texto original: Su situación característica durante el tránsito consistía en que ella estaba preparada para escoger, y con frecuencia escogía, entre asegurar su identidad femenina y lograr sus metas ordinarias. (Garfinkel, 2006:159). .

Para Agnes nada era mais importante do que a manutenção do seu status sexual enquanto mulher. Ela poderia perder chances de emprego, se afastar de amigos e familiares, contanto que sua identidade feminina não fosse arruinada. Ela diz que só teria revelado ao seu namorado ter “problemas” com seu corpo, por este desejar ter relações sexuais e ela não queria que sua imagem fosse desfeita. Ela só procura a ajuda da UCLA porque seu namorado insiste que seu “problema biológico” precisa ser consertado. Ela revela para seu namorado ser intersexual, porém esconde dele e dos demais que seu corpo não tinha nenhum problema e que ser mulher era quem ela era, independentemente de sua genitália.

Agnes precisou se reinventar e gerir diversas situações para não ser excluída de sua sociedade. As normas sociais, que regulam o gênero através de uma ótica binária, tornavam o corpo de Agnes algo ininteligível, impedindo-a de ser facilmente reconhecida da forma que gostaria de ser, o que acarretou na sua busca por meios de garantir a sua adequação, como observamos ao longo do texto, ela desenvolveu estratégias para a sua sociabilidade (etnométodos) e a própria procura pela cirurgia com a equipe da UCLA. Aqui podemos apontar que os avanços na teorização de Butler poderiam expandir a análise de Agnes ao pensar em corpos abjetos e em como a inteligibilidade de corpos existe através da abjeção de outros. Certos corpos precisam ser “apagados” para que um modelo específico de regulação de papéis sociais de gênero seja compreendido pela sociedade enquanto legítimo.

Garfinkel afirma que, após a cirurgia, Agnes relatava ter o desejo de deixar Los Angeles porque acreditava que muitas pessoas ali sabiam demais sobre sua vida, todos os médicos, enfermeiros, internos, entre outros, sabiam de sua antiga condição e atual mudança (Garfinkel, 2006GARFINKEL, Harold. 2006. Estudios en Etnometodología. Tradução por: Hugo Antonio Pérez Hernáiz. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; México: UNAM. Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades; Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.). Para Agnes, permanecer em um lugar onde muitas pessoas sabiam que ela não era uma mulher “natural” a fazia se sentir ameaçada. Além de ter que gerenciar o seu passing diariamente, ela sabia que sua atuação não seria suficientemente convincente diante de pessoas que já “sabiam” que ela não era “naturalmente mulher”.

As práticas metodológicas de Agnes são nossas fontes de autoridade para o achado, e política de estudo recomendada, de que pessoas normalmente sexuadas são eventos culturais em sociedades, cujo caráter como ordens visíveis de atividades práticas consiste nas práticas de reconhecimento e produção dos membros. Aprendemos com Agnes, que tratava pessoas sexuadas como eventos culturais que os membros fazem acontecer, que as práticas dos membros por si produzem a sexualidade normal, observável-narrável, das pessoas, e o fazem apenas, inteiramente, exclusivamente em ocasiões reais, singulares, particulares, através de mostras reais testemunhadas de conversa e de conduta comum. (Garfinkel, 2018:244GARFINKEL, Harold. 2018. Estudos em Etnometodologia. Vários tradutores. Petrópolis: Vozes .)

Agnes, portanto, propiciou aos estudos sobre gênero e sexualidade uma antecipação daquilo que viria a ser trabalhado décadas depois. O capítulo “Passing and the Managed Achievement of Sex Status in an Intersexed Person” pode ser visto como uma análise sociológica sobre performance de gênero em plena década de 1960. Esta análise sociológica das diferenças entre os sexos foi inovadora naquele momento histórico em que o discurso sobre gênero era dominado pelos saberes médicos e psi, sendo visto de forma biologizante e naturalizada.

Considerações Finais

Nesse artigo, buscamos realizar uma breve análise sobre como o trabalho “Passing and the Managed Achievement of Sex Status in an Intersexed Person” realizado por Harold Garfinkel em 1967GARFINKEL, Harold. 1967. Studies in ethnomethodology. New Jersey: Prentice Hall. contribui para uma discussão de gênero atual. A visão de Garfinkel rompe com o seu tempo ao trazer uma interpretação do sexo e do gênero como uma atividade rotinizada, gerenciada pelos indivíduos no cotidiano, sendo vista como natural através de um processo social que continuamente repete atribuições aos sexos. Mesmo assim, não há como negar, que seus conceitos são limitados se aplicados atualmente. A conceituação de Garfinkel limita o gênero ao binarismo, pontos que o trabalho de Butler (2008)BUTLER, Judith. 2008. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. rompe e percebe inscrições múltiplas aos corpos. Além disso, Butler (2008)BUTLER, Judith. 2008. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. rompe com a ontologia do sujeito que marcou o pensamento moderno, caminhando, através de teorias da linguagem e do pós-estruturalismo, para uma compreensão mais complexa do “fazer-se” sujeito e, especificamente, da construção do gênero, do corpo e da sexualidade.

Ainda assim, apesar das eventuais limitações da análise etnometodológica do status sexual, o trabalho de Garfinkel e a história de Agnes são importantíssimos para a construção de um cenário favorável aos estudos de gênero. Trata-se de um estudo que se contrapôs aos trabalhos funcionalistas hegemônicos na sociologia de sua época e abriu uma porta para os estudos de gênero desvinculados de um essencialismo biológico, sendo um dos primeiros a abordar a transexualidade fora dos saberes médicos e psi. Também pode ser compreendido enquanto um clássico da literatura sociológica (Alexander, 1999)ALEXANDER, Jeffrey C. 1999. “A Importância dos Clássicos”. In Giddens, A.; Turner, J. (Org.) Teoria Social Hoje. São Paulo: UNESP., dessa forma o texto ainda mantém interesse em uma discussão contemporânea pelos diálogos que podem ser feitos com teorias e fenômenos sociais da atualidade, como tentamos realizar aqui ao apresentarmos em diálogo com a análise butleriana, corroborando com a visão de Irvine (2003)IRVINE, Janice M. 2003. ““The Sociologist as Voyeur”: Social Theory and Sexuality Research, 1910-1978”. Qualitative Sociology, v. 26, n.4, jan./mar. 2003. de que a sociologia traz estudos de gênero e sexualidade relevantes em tempos anteriores aos estudos atuais e nem por isso menos relevantes.

Os questionamentos aos aspectos limitados da teoria etnometodológica são fundamentais para o crescimento acadêmico. Isso, contudo, não nega o pioneirismo do trabalho; pelo contrário, como visto por Hines (2004)HINES, Sally. 2004. Transgender Identities, Intimate Relationships and Practices of Care. United Kingdom: The University of Leeds, School of Sociology and Social Policy., a etnometodologia teve impacto na desconstrução pós-estruturalista, na teoria queer, nos estudos transgêneros, entre outros, o que fica hoje é o ato de reflexão propiciado pela releitura. A releitura de um clássico, como o trazido aqui neste trabalho, suscita diversas questões sobre a sua própria construção narrativa e as formas que remanesce em outros estudos.

Agnes não pôde teorizar a sua própria vivência. No seu tempo, o interesse da ciência era apenas em vê-la enquanto objeto. Atualmente, temos teóricos transgêneros que falam sobre suas vivências e teorizam a partir dos seus olhares. A transexualidade não é apenas analisada pela sociologia, como a modifica. Os Estudos Transgêneros trouxeram outros olhares, assim como a teoria queer, o feminismo, entre outros movimentos que mesclam política, ação social, sujeição e formas de produção do conhecimento.

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  • HINES, Sally. 2004. Transgender Identities, Intimate Relationships and Practices of Care United Kingdom: The University of Leeds, School of Sociology and Social Policy.
  • IRVINE, Janice M. 2003. ““The Sociologist as Voyeur”: Social Theory and Sexuality Research, 1910-1978”. Qualitative Sociology, v. 26, n.4, jan./mar. 2003.
  • PIRES, Barbara. 2015. Distinções do Desenvolvimento Sexual: percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Rio de Janeiro.
  • RABY, Rebecca. 2000. “Re-configuring Agnes: The telling of a transexual`s story”. Torquere: Journal of the Canadian Lesbian and Gay Studies Association, vol. 2, 2000, p. 18-35.
  • ROGERS, M. 1992. “They all were passing: Agnes, Garfinkel, and company”. Gender and Society, v.6, pp. 169-191.1992.
  • RUBIN, Henry. 1999. “Trans Studies: Between a Metaphysics of Presence and Absence”. In: MORE, Kate; WHITTLE, Stephen (org.) Reclaiming Genders: Transsexual Grammars at the Fin de Siècle. New York: Cassel. pp. 173-192.
  • SALEIRO, Sandra Palma. 2013. Trans Géneros: Uma abordagem sociológica da diversidade de género. 2013. 335f. Tese (Doutorado) pela ISCTE - Instituto -Universitário de Lisboa, Lisboa.
  • SPEER, Susan. 2005. Gender Talk: Feminism, Discourse and Conversation Analysis. New York: Routledge Taylor & Francis Group.
  • STOLLER, Robert. 2006. “Selection from Biological Substrates of Sexual Behavior”. In: STRYKER, Susan; WHITTLE, Stephen (org.). The transgender studies reader New York: Routledge Taylor & Francis Group . pp.53-57.
  • STOLLER, Robert. 1968. Sex and Gender: The Development of Masculinity and Femininity. London: Karnac Books.
  • VASCONCELLOS, Débora Araújo de. 2018. O processo transexualizador: de uma identidade medicalizada à luta social pela despatologização. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

Notas

  • 1
    O livro foi recentemente traduzido para o português com publicação da editora Vozes em 2018.
  • 2
    Optamos por utilizar a terminologia adotada pela tradução da obra de Garfinkel referenciada na nota anterior.
  • 3
    Robert Stoller possui uma grande influência na criação da transexualidade enquanto objeto das ciências psi. Sua etiologia da transexualidade adquiriu uma rápida repercussão nos anos de 1960 nos Estados Unidos com a publicação do seu artigo em parceria com Garfinkel na Archives of General Psychiatry. Em seguida lançou sua obra “Sex and Gender: The Development of Masculinity and Femininity” em 1968STOLLER, Robert. 2006. “Selection from Biological Substrates of Sexual Behavior”. In: STRYKER, Susan; WHITTLE, Stephen (org.). The transgender studies reader. New York: Routledge Taylor & Francis Group . pp.53-57., posteriormente lançou uma continuação “Sex and Gender: The Transsexual Expiriment”, o segundo volume de sua obra. Suas ideias reforçaram preconceitos e a própria patologização das identidades trans, tendo suas pesquisas servido como base para a construção nosográfica da transexualidade no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) na década de 1980. Entretanto, devemos pontuar que o mesmo foi responsável pela popularização de conceitos como o de identidade de gênero que viriam a ser posteriormente incorporado por teóricas feministas e por movimentos sociais.
  • 4
    Nos textos originais, tanto de Harold Garfinkel quanto nos de Robert Stoller, a terminologia adotada seria a de “intersexed”, segundo o próprio Stoller “While the term intersexed has occasionally been used in the past to refer to people with gender problems without genetic or anatomical defects, everyone today, I believe, uses it to mean only those with pronounced biological defects.” (Stoller, In: Stryker, Whittle, 2006:56STOLLER, Robert. 1968. Sex and Gender: The Development of Masculinity and Femininity. London: Karnac Books.) No Brasil, a terminologia mais utilizada na mesma época seria o de hermafrodita sendo substituído posteriormente para intersexual (Corrêa, 2004CORRÊA, Mariza. 2008. “Não se nasce homem”. In: Joaquim, T. (org.) Encontros Arrábida. Masculino/Feminino. Lisboa: Afrontamento.). Atualmente, em língua inglesa se utiliza a nomenclatura intersex (tendo caído o uso do sufixo ed), sua tradução para o português pode ser assimilada pela palavra intersexo. Para maior compreensão sobre o processo de construção nosográfica da intersexualidade, sugerimos a leitura da dissertação “Distinções do Desenvolvimento Sexual: percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade” de Barbara Pires (2015).
  • 5
    Esse evento teve implicações diferentes para Stoller e Garfinkel, enquanto Garfinkel mantêm sua ideia e texto original, ganhando até um reforço da sua perspectiva; Stoller se sente traído e em suas obras posteriores podemos encontrar o caso de Agnes (ele não utiliza seu nome, mas é possível identificá-la pelo contexto) sendo utilizado para um reforço de suas ideias de que pessoas transexuais são “enganadoras”. Não temos evidências sobre o impacto disso na relação entre os dois autores, mas o trabalho que se é prometido para uma futura parceria nunca foi realizado. Para melhor compreensão sobre os impactos da atribuição de uma personalidade “enganadora” às pessoas transexuais e na construção de diagnósticos enviesados e estigmatizantes por parte da medicina, ler “A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual” de Berenice Bento (2006)BENTO, Berenice. 2006. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond..
  • 6
    Como apontado na introdução, a tese de doutoramento de Garfinkel consiste em um estudo para análise da ordem social. Entretanto, enquanto a ordem social para Parsons estaria vinculada a um sistema de valores pré-existente aos sujeitos que precisa ser seguido fortemente para que haja integridade social, Garfinkel entende que é preciso enxergar a ordem nas práticas dos sujeitos, essas práticas é que levariam a percepção integrativa da sociedade. As práticas rotineirizadas que proporcionariam o senso de estrutura social e não o contrário.
  • 7
    Um ano antes da realização desse estudo, em 1957, o conceito de gênero surge, através do pedopsiquiatra John Money que realizava estudos com crianças intersexos (estudos inclusive de uma ética completamente duvidosa), para ele o sexo se referia aos atributos físicos e é anatômica e fisiologicamente determinado. Enquanto isso, o gênero conceituaria as transformações psicológicas do eu, a convicção adquirida subjetivamente sobre o pertencimento à diferença sexual. Durante a década de 1980, o conceito de gênero é apropriado pelos estudos feministas e passa a adquirir o entendimento teórico que apreendemos atualmente.
  • 8
    Como, por exemplo, no Carnaval brasileiro, onde temporariamente é permitido o trânsito nas performances de gênero, principalmente homens vestindo-se com adereços tipicamente atribuídos às mulheres.
  • 9
    Este termo pode ser traduzido como trânsito, morte, passagem, ou literalmente passando, porém será utilizado o termo original devido a limitação que a tradução exerce na aplicação do conceito.
  • 10
    O autor descreve Agnes da seguinte forma: “A aparência de Agnes era convincentemente feminina. Ela era alta, magra, com uma silhueta muito feminina. Suas medidas eram de 38-25-38 (polegadas). Tinha cabelo louro escuro, longo e fino e um rosto jovem com feições bonitas, pele clara e rosada, tom de pêssego, nenhum pelo facial, sobrancelhas sutilmente cuidadas, e nenhuma maquiagem, exceto batom” (Garfinkel, 2018:194GARFINKEL, Harold. 2018. Estudos em Etnometodologia. Vários tradutores. Petrópolis: Vozes .).
  • 11
    Esse é o título do subtópico do texto localizado em Garfinkel, 2006:140GARFINKEL, Harold. 2006. Estudios en Etnometodología. Tradução por: Hugo Antonio Pérez Hernáiz. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; México: UNAM. Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades; Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.
  • 12
    Texto original: Agnes no sólo expresó directa e insistentemente que siempre había sido una mujer, sino que construyó una biografía notablemente idealizada (...)” (Garfinkel, 2006:148GARFINKEL, Harold. 2006. Estudios en Etnometodología. Tradução por: Hugo Antonio Pérez Hernáiz. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; México: UNAM. Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades; Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.).
  • 13
    Importante destacar a cisgeneridade do autor, ou seja, que ele não seria uma pessoa trans ou intersexo. A nomenclatura “cis” surge: “Em 1994, quase um século depois do surgimento da terminologia transexual, em um fórum na Universidade de Minnesota, a professora de biologia Dana Leland Defosse apresenta o termo “cis” como uma necessidade linguística/discursiva de se ter um termo que pudesse se opor ao prefixo “trans”, até então as pessoas “não trans” eram lidas como “normais”.” (Vasconcellos, 2018:19VASCONCELLOS, Débora Araújo de. 2018. O processo transexualizador: de uma identidade medicalizada à luta social pela despatologização. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.). Para uma maior compreensão sobre o assunto recomendamos a dissertação “Cisnorma: acordos societários sobre o sexo binário e cisgênero.” de Brune Bonassi (2017)BONASSI, Brune. 2017. Cisnorma: acordos societários sobre o sexo binário e cisgênero. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis..
  • 14
    Podemos encontrar tal aspecto no segmento: “Se Agnes estava fazendo o passing conosco, deve ser declarado com toda a franqueza que houve muitos momentos, de fato, quando eu estive fazendo o passing com ela. Houve muitas ocasiões nas trocas de ideias entre Agnes e eu, nas quais foi necessário para mim deixar de lado seus pedidos por informações, de forma a evitar qualquer mostra de incompetência, e para manter o relacionamento com Agnes” (Garfinkel, 2018:229GARFINKEL, Harold. 2018. Estudos em Etnometodologia. Vários tradutores. Petrópolis: Vozes .).
  • 15
    Suzanne Kessler e Wendy McKenna são psicólogas sociais que desenvolveram um trabalho pioneiro sobre gênero na década de 1978 com a obra “Gender: An Ethnomethodological Approach”. Foram orientadas por Harold Garfinkel e ressurgem com um tema deixado de lado pela etnometodologia desde o caso Agnes (1967GARFINKEL, Harold. 1967. Studies in ethnomethodology. New Jersey: Prentice Hall.). A obra traz uma importante visão desbiologizante das diferenças sexuais e se propõe a analisar gênero enquanto uma categoria construída socialmente. As autoras também trazem o corpo para o campo interpretativo e destacam como as vivências de gênero se materializam e ganham conotações diferentes a depender do corpo que o performa. Para maior compreensão do impacto da obra para a teoria feminista, recomendamos o artigo “Confounding Gender” da Mary Hawkesworth (1997)HAWKESWORTH, Mary. 1997. “Confounding Gender”. Signs, v. 22, n.3, pp.649-685..
  • 16
    Texto original: Su preocupación por escapar a la detección tenía la más alta prioridad. Casi todas las situaciones tenían por tanto las características de una potencial o real “prueba de carácter y de aptitud física”. No sería, por lo tanto, exacto decir que ella había realizado el tránsito, sino más bien que ella estaba continuamente implicada en la tarea de realizar ese tránsito. (…) El tránsito no era un asunto del agrado de Agnes. Era algo necesario. Agnes tenía que ser una mujer. Le gustara o no, tenía que realizar el tránsito. Disfrutaba de los éxitos, pero temía y odiaba los fracasos. (Garfinkel, 2006:156GARFINKEL, Harold. 2006. Estudios en Etnometodología. Tradução por: Hugo Antonio Pérez Hernáiz. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; México: UNAM. Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades; Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.)
  • 17
    Texto original: Su situación característica durante el tránsito consistía en que ella estaba preparada para escoger, y con frecuencia escogía, entre asegurar su identidad femenina y lograr sus metas ordinarias. (Garfinkel, 2006:159GARFINKEL, Harold. 2006. Estudios en Etnometodología. Tradução por: Hugo Antonio Pérez Hernáiz. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; México: UNAM. Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades; Bogotá: Universidad Nacional de Colombia.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2020
  • Aceito
    17 Maio 2021
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