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Ode ao humanismo

An ode to humanism

INTERFACES

Ode ao humanismo

An ode to humanism

Emir Sader

Professor doutor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenador do Laboratório de Políticas Públicas e Secretário Executivo do "Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales". Brasil

RESUMO

O texto estabelece um debate entre religião e humanismo, abordando o tema da alienação, dos valores éticos e da emancipação integral de homens e mulheres.

Palavras-chave: Humanismo, religião, emancipação.

ABSTRACT

The text establishes a debate between religion and humanism, approaching alienation, ethical values, and full emancipation of men and women.

Key words: humanism, religion, emancipation

Agora que o Papa se foi, é boa hora para nos perguntarmos de novo o que significa ser religioso. Quando nos dirigem a pergunta, do ponto de vista de alguma religião – Você crê em Deus? – e respondemos que não, automaticamente procuram caracterizar-nos como "ateus", com uma conotação negativa, como a do que "não crê", a do "não-crente": uma ausência, quase um defeito, uma carência. Opondo o religioso ao "descrente". Quase nos olham com pena, com lástima, com piedade, como se olhassem para alguém condenado ao pecado, ao limbo, como alguém que não conhecesse Deus – ou deus –, que duvidasse de sua inquestionável existência, alguém incapaz de conhecer e gozar das maravilhas da fé, incapaz de ter fé – de onde se pode deduzir: um infiel.

Mas é disso que se trata? O oposto do crente é o sem fé? Crer é somente crer em algum deus? Ser fiel é ser fiel a um deus? Ou, ao contrário, ser religioso, crer em deus – qualquer que ele seja – é não crer no homem (e na mulher), é descrer do homem, é ter deus e não o homem como centro do mundo? Em outras palavras, religioso se opõe a humanista e não a infiel, porque significa deslocar o centro do mundo para um outro plano ou ser, que nos criaria e definiria nosso destino e o sentido mesmo das coisas. Daí a interpretação também de qualquer forma de escritura, de texto bíblico, ser revelado ao homem por um ente superior e não ser construído pelo homem.

O que se deixa de lado, ao identificar crença com fidelidade, é o caráter alienado das visões religiosas do mundo e do próprio ato de crer em algum deus. É negar o princípio fundamental do humanismo, que dá sentido à história dos homens e das mulheres: o de que os homens fazem sua própria história, mesmo quando não têm consciência disso.

Necessitado de transcendência, o homem cria e recria a religião e seus deuses, seres perfeitos, imortais, referências de valores, extraindo isso de si mesmo, para depois inverter a relação e passar, de criador a criatura, tornando-se dependente e alienado. Este é o mecanismo pelo qual o humanismo explica a religião.

O homem livre, emancipado, não precisa de deuses, de religião, de fetiches. Ele sabe que a história é feita pelos homens conscientes, desalienados, por meio do seu trabalho. Sabe que a religião é a uma falsa consciência, que aliena o homem, ao invés de dar-lhe consciência.

Um religioso – por exemplo, católico – imputa a Deus o que é produto da ação dos homens. Se fosse coerente, um católico deveria ser contra o divórcio, o aborto, os contraceptivos (inclusive os preservativos), ser a favor do celibato, do direito de apenas homens serem sacerdotes, da infalibilidade papal, da proibição dos experimentos científicos com células-tronco etc. Deveria, além disso, obedecer rigidamente a disciplina de uma instituição retrógrada, medieval, obscurantista, como a Igreja Católica. Felizmente não o faz, mas isto demonstra que as teses humanistas se chocam com a religião católica. Quem é a Igreja Católica, instituição totalmente hierárquica e antidemocrática, para dizer qual governo é democrático, ditatorial ou autoritário? O que essa igreja e os seus fiéis têm a dizer da sua própria instituição?

É muito positivo que tantos religiosos extraiam valores humanistas da religião para criticar o capitalismo, a exploração, a opressão. Mas isso não permite elevar a religião a cânone de interpretação da realidade dos homens, de sua história, de suas identidades. Isso só é possível com a crítica radical de toda forma de alienação da qual as distintas formas de religião são as principais expressões.

O respeito pela religião dos outros não deve impedir a crítica das visões religiosas do mundo, do deslocamento, que elas produzem, do homem como centro do mundo para deuses e outras formas de fetiches.

O humanista se rege por valores éticos, por uma interpretação histórica da vida dos homens e das mulheres, faz a crítica de toda forma de alienação, luta pela emancipação integral dos homens e das mulheres, luta por um presente e um futuro nos quais não se necessite de entidades supraterrestres para explicar o mundo, mas nos quais o mundo seja construído transparentemente pelos homens. Que seja, portanto, inteligível para todos, pleno de sentido humano.

Recebido: 18/05/07

Aceite final: 16/06/07

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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