Resumos
O artigo explora algumas das fundações metateóricas das ciências sociais. Contra e para além das abordagens estruturais, estruturalistas e situacionistas que acentuam a causação descendente das estruturas sobre a agência, ele traz o poder causal da cultura ao primeiro plano e forja uma articulação compreensiva entre cultura e ação. Baseando-se no realismo crítico, na hermenêutica e no antiutilitarismo, o artigo argumenta sistematicamente em favor de uma "visão a partir de dentro" que possa desvelar como símbolos, normas e expressões regulam ações sociais que podem transformar estruturas sociais. Nesse sentido, a exploração da conexão interna entre cultura e agência vincula a ação social não tanto à ordem social quanto à mudança social.
Metateoria; Teoria social; Clássicos da sociologia; Cultura; Hermenêutica; Realismo crítico; Antiutilitarismo; Mudança social
This article explores some of the metatheoretical foundations of the social sciences. Over and against structural, structuralist and situationist approaches that stress the downwards causation of structures on agency, it brings the causal power of culture to the fore and forges a comprehensive articulation between culture and action. Drawing on critical realism, hermeneutics and anti-utilitarianism, the article systematically argues for a "view from within" that can disclose how symbols, norms and expressions regulate social actions that can transform social structures. In this sense, the exploration of the internal connection between culture and social agency links social action not so much to social order as to social change.
Metatheory; Social theory; Classics of sociology; Culture; Hermeneutics; Critical realism; Anti-utilitarianism; Social change
Como preâmbulo a uma transição da desconstrução para a reconstrução na teoria social, este artigo delineia uma crítica da teoria crítica. A ladainha de denúncias da dominação e da opressão que é a marca da teoria crítica, de Adorno a Bourdieu, de Horkheimer a Honneth e de Foucault a Judith Butler, tornou-se, em minha opinião, ritualística e repetitiva. Não quero mais praticar a hipercrítica. Procuro uma saída. Não que eu queira negar que o estado atual do mundo é bastante preocupante e deprimente, mas pintar cinza sobre cinza também não ajuda. O mundo tecnocapitalista tornou-se, de fato, uma "gaiola de ferro", como Max Weber sugeriu nas páginas finais d'A ética protestante e o espírito do capitalismo; porém, precisamente porque estamos novamente atravessando "tempos sombrios", necessitamos desesperadamente abrir uma pequena janela para o mundo e deixar entrar algumas luzes e cores para iluminar nossa existência enclausurada. Também não contesto que a revolta moral seja uma precondição da ação coletiva ou que a indignação moral possa alimentar a mudança social, mas as agitações da direita no Brasil e alhures deveriam nos tornar receosos quanto às celebrações da multidão. Em vez de mobilizar as passions tristes (raiva, ressentimento e medo), por que não mobilizar as passions joyeuses (encanto, empatia e generosidade)? Por que não tentar teorizar a partir do coração (em vez do estômago) e filosofar com a mão aberta (em vez do punho fechado)?
O presente artigo desenvolve um projeto de metacrítica da teoria social calcado em algumas conexões conceituais entre o realismo crítico, a hermenêutica e a teoria antiutilitarista da ação. Baseada em uma antropologia humanista que concebe o ser humano como um animal simbolicum reciprocum, essa metacrítica respeita experiências religiosas e espirituais, mas busca reformulá-las em um idioma secular que "linguistifique o sagrado" sistematicamente2 2 Para um exercício dessa forma de tradução profana, encaminho o leitor para minha tentativa de reformular sistematicamente a teologia da doação como uma antropologia da dádiva (Vandenberghe, 2008a). . De qualquer forma, por metacrítica, pretendo me referir a uma crítica "habermaussiana" (!) das pressuposições metateóricas da teoria crítica de estilo frankfurtiano. Aquela crítica encontra suas deixas e inspirações em uma teoria transformada da prática transformativa que insiste na importância do simbolismo para a revelação da realidade como uma realidade humana, bem como para a conceituação da ação social. O voluntarismo, expresso sob a forma de um leve exagero do poder transformador da agência humana, constitui uma contraofensiva voltada à superação da unidimensionalidade de uma teoria crítica da sociedade fixada na denúncia das estruturas alienantes de dominação e opressão. Este poder transformador do agente (poder (1), entendido, com Giddens, como a "capacidade de agir de outro modo" que os agentes possuem em virtude de serem humanos) é pressuposto e, no entanto, ao mesmo tempo negado por uma teoria hipercrítica da sociedade que acentua sobretudo os poderes de dominação e opressão (poder (2), compreendido, com Bhaskar, como "relações senhor-escravo generalizadas").
Para romper o círculo infernal da reprodução social e passar de uma teoria da dominação para uma teoria da emancipação, o essencial é não reduzir a cultura à "ideologia" ou à "violência simbólica". Em vez disso, a cultura deve ser concebida, ela própria, como um poder causal. Composta de representações simbólicas da realidade e invocações normativas de princípios e valores, bem como de expressões artísticas que transfiguram a realidade, a cultura é a totalidade de formas simbólicas que revelam o mundo como significativo e regulam as ações de indivíduos e coletividades "a partir de dentro", ao pré-estruturarem seu universo e pré-selecionarem cursos possíveis de ação3 3 A distinção entre a regulação interna por significados, normas e valores, de um lado, e o controle externo pela força, de outro, é essencial para uma sociologia interpretativa. Enquanto Durkheim recomendava que os fatos sociais fossem tratados "do exterior" como coisas, Weber pensava que os significados só podiam revelados desde dentro. Weber frequentemente usa tal distinção, embora raramente a teorize explicitamente (vide, no entanto, Weber, 1971: 681-682). Na sua filosofia integral, Wilber (1995) a teoriza, mas sem qualquer interesse pela sociologia. Clarifiquei a distinção mais adiante nesse texto. . A insistência sobre a cultura como a totalidade de formas simbólicas que, sempre e inevitavelmente, mediam a relação entre os seres humanos e seu Unwelt, revelando a natureza, a sociedade e a personalidade como um ambiente humano, é essencial a qualquer teoria da ação que se recuse a reduzi-la à conduta instrumental e estratégica determinada "a partir de fora" pelas coações alienantes de um mundo (quase) desumano. Se a mediação pelas formas simbólicas for descontada, a ação humana torna-se apenas mera reação a condições materiais. Supondo-se que o fim esteja dado - e, no seu mais básico, ele coincide com a mera sobrevivência e conservação -, os meios podem ser racionalmente determinados por um simples cálculo de otimização. Na ausência de deliberação racional sobre os próprios fins, pouca escolha resta. No limite, há apenas um caminho correto para o fim. Sem referência à cultura como uma precondição formativa que o guie desde dentro, o comportamento, não importa o quão inteligente ou instrumentalmente racional, não é ação de modo algum; ele constitui uma adaptação ao ambiente material diretamente determinada por este.
A cultura não apenas fabrica mundos; em virtude do fato de que transpõe o ator a um mundo diferente daquele existente, ela também rompe com mundos e torna os atores conscientes quanto a alternativas. É verdade que a hermenêutica, com sua ênfase sobre transmissão e tradição culturais, é uma força bastante conservadora. Porém, do mesmo modo que não se deve assumir a priori que a cultura sempre funciona como uma forma de violência simbólica, não se deve afirmar muito rapidamente que ela é sempre reprodutora. De modo a evitar a reprodução e reivindicar a hermenêutica para uma teoria humanista da mudança cultural, social e pessoal, busquei realizar, em outro contexto (Vandenberghe, 201327. VANDENBERGHE, F. Une histoire critique de la sociologie allemande. Aliénation et réification. 2 vols. Paris: La Découverte, 1997-1998.: 100-153), um "enxerto" hermenêutico no pragmatismo e no interacionismo simbólico, mas o mesmo argumento pode ser avançado via Habermas: como uma mediação entre atores, a linguagem é estruturada de modo tal que o sistema de pronomes pessoais permite que os atores se transponham para a posição do outro. O intercâmbio simbolicamente mediado de perspectivas força os atores a se "descentrarem" e a observarem o mesmo mundo segundo uma perspectiva diferente. Mesmo que não se aceite necessariamente o atalho entre logos e razão estabelecido pela pragmática universal, a conexão interna entre cultura, linguagem e reflexividade é, creio eu, consensual.
A afinidade existente entre uma teoria hermenêutica da cultura e uma teoria fenomenológica da ação intencional está fundada sobre o círculo hermenêutico que relaciona cultura e significados - e o coletivo e o pessoal - como um todo a uma parte. O poder causal das formas simbólicas é, no entanto, paradoxal. A própria mediação por símbolos que revela o mundo tem o efeito de fazê-los desaparecer. Quando o poder formativo da cultura é ativado, a mediação torna-se translúcida e transparente: o mundo é revelado tal como é. Eis é, sem dúvida, o que significa o altissonante chamado da fenomenologia para um "retorno às coisas mesmas". Zu den Sachen selbst!4 4 "Von den bloβen Worten . . . zu den Sachen selbst! De meras palavras...às coisas mesmas!". O slogan pode ser de Husserl (1993, II/1: 7), mas, como ele jamais chegou ao concreto e permaneceu emperrado até o fim no solipsismo de suas meditações transcendentais, a referência adequada é a reapropriação hermenêutico-realista que Heidegger (1993: 27ff.) fez da frase de efeito de seu mentor. . Dado que as mediações simbólicas apontam todas para um mundo autoidêntico, quando, em algum momento, as mediações forem elas próprias mediadas e colocadas em comunicação pela conversação, os horizontes de comunicação se "fundirão" e teremos acesso a um mundo para além dos símbolos: o próprio mundo. Note-se que o acesso não ocorre a despeito das mediações, mas graças a elas. Este é, suspeito, o significado profundo da verdade como Aletheia5 5 Heidegger escreveu sobre a aletheia em diferentes estágios de sua carreira. Ele já menciona o tema no famoso parágrafo 44 que conclui a primeira parte de Sein und Zeit, elaborando-o posteriormente em "Aletheia" (Heidegger, 1954: 263-288), um texto bastante difícil sobre um obscuro fragmento de Heráclito. Prefiro, de longe, seu extraordinário ensaio sobre a origem da obra de arte (Heidegger, 1994: 1-74). Bhaskar, por sua feita, introduziu a aletheia no realismo crítico dialético para referir-se às razões, fundamentos ou causas reais das coisas (dimensão intransitiva), tomadas como diferentes e talvez até opostas à verdade de proposições (dimensão transitiva), possíveis em virtude da estratificação ontológica do mundo e alcançáveis em virtude do caráter dinâmico da ciência (Bhaskar, 1993: 394; 1994: 241; ver também Groff, 2000). . Os véus do esquecimento são levantados e, graças aos símbolos e através deles, estamos na verdade in/transitiva. A verdade não é algo que os símbolos trazem ao mundo, mas algo que pertence ao mundo. Não devemos, portanto, dizer que os símbolos revelam a verdade, mas que a verdade se revela a nós graças ao poder revelador da linguagem e através dele.
Quando o sentido profundo do Ser é, assim, revelado a nós, a distinção entre o transitivo e o intransitivo entra em colapso6 6 A distinção entre as dimensões "transitiva" e "intransitiva" do conhecimento vem de Roy Bhaskar (1979: 26-27), o fundador do realismo crítico. Enquanto a dimensão transitiva refere-se a teorias historicamente variáveis - a sucessão de "paradigmas" - que buscam capturar o real, a dimensão intransitiva refere-se à realidade que existe independentemente dessas teorias, mas que estas pressupõem como sua referência, fundamento e condição de possibilidade. . Isto não significa que o real seja reduzido ao ideal ou que não haja nada fora da linguagem. Como uma versão idealista do realismo, a hermenêutica não nega a existência do real. Ao contrário, se ela insiste no mistério do Ser que sempre resplandece na linguagem, o Ser que tal linguagem sempre pressupõe como seu fundamento último, mas que dificilmente pode captar, é precisamente para afirmar os limites da linguagem. A linguagem não se refere a si própria, mas ao mundo. Ao apontar para algo essencial além da linguagem, a hermenêutica confirma, portanto, nossa finitude. Ainda que a hermenêutica dissolva a distinção entre as dimensões transitiva e intransitiva do conhecimento, ela é, sim, compatível com o realismo crítico. Diferentemente deste, no entanto, aquela tem uma concepção mais ampla e poética do conhecimento (incluindo-se aí o conhecimento da natureza), a qual permanece ancorada no senso comum e transcende a ciência de modo a retornar às coisas mesmas: o cheiro da grama molhada, o som das ondas quebrando, a bicicleta que desaparece no horizonte, as lágrimas desarmadoras na face dela...
O espaço da teoria social
Principiei a discussão pela cultura, em vez da ação, porque estou convencido de que a sociologia só é possível em bases holistas, coletivistas e emergentistas. As sociedades modernas podem ser individualistas, mas, se não se assume que os indivíduos compartilham significados, normas e valores básicos, não se pode propriamente responder à questão das questões que todo teórico social que se respeite tem de resolver: como a sociedade é possível? Como um monte de indivíduos atomizados se transforma em um todo organizado? Como os indivíduos podem coordenar suas ações e agirem conjuntamente? Com Hegel, Durkheim, Parsons e vários outros, assumo que Tocqueville (196126. TOCQUEVILLE, A. De la démocratie en Amérique. Paris: Gallimard, 1961., II, 20) estava basicamente certo: "Sem ideias comuns, não há ação comum, e, na ausência de ação comum, os homens ainda existem, mas não em um corpo social". Embora as sociedades modernas neguem ideologicamente princípios holistas, estes permanecem ativos na prática e continuam a regular e motivar indivíduos que estabelecem, eles mesmos, a síntese social. Ao dizer que os indivíduos estão conectados uns aos outros pela mediação da cultura (o espírito objetivo de Hegel, a conscience collective de Durkheim, as normas gerais e valores vinculantes de Parsons), não pretendo afirmar, como a feliz garota Poliana, que estruturas materiais não impingem sobre o comportamento ou que os indivíduos jamais sejam movidos por interesses, poder e sexo. Ao contrário, é precisamente porque o utilitarismo forma o horizonte axiológico do presente que se torna tão importante descortinar novas paisagens e afirmar, apesar de tudo, a presença do Espírito como um terceiro elemento (para além do material e do indivíduo) que interconecta os indivíduos em um koinon kosmon, tornando possível a ação em comum.
Com sua noção de sociedade como um arranjo bem ordenado de indivíduos socializados, a sociologia implica um projeto normativo. De fato, a sociologia não é apenas uma ciência. Ela dá continuidade à tradição da filosofia moral e política mediante a pesquisa empírica (Chanial, 20119. CHANIAL, P. La sociologie comme philosophie pholitique, et réciproquement. Paris: La Découverte, 2011.). A sociedade não é apenas um objeto de conhecimento; desde o início, ela também é concebida como um projeto moral e político, projeto que busca demonstrar empiricamente que a integração de indivíduos em um todo é trabalho e realização dos próprios indivíduos7 7 Questionando a própria noção de sociedade como uma interconexão funcional entre indivíduos socializados em uma ordem normativa, François Dubet (2009: 7-47) não hesita em qualificar a sociologia como uma filosofia social liberal-comunitarista, para não dizer uma teologia da sociedade. Com a invenção da sociedade, os sociólogos tornam-se não apenas os fundadores de uma disciplina, mas também os sacerdotes de uma sociedade na qual acreditam e que querem trazer à existência. . "Eles fazem a sociedade", como Marx disse celebremente em O Dezoito Brumário, "mas não em condições de sua livre escolha". O projeto científico-normativo da sociologia é duplo: apesar de tudo, tornar os indivíduos conscientes daquilo que os mantêm juntos; e, através da conscientização, contribuir para o advento e realização da sociedade de indivíduos. Não obstante a ocasional nostalgia pelas comunidades tradicionais, a sociologia não se opõe, de modo algum, ao projeto da modernidade. Como Hegel, ela inscreve o projeto da autonomia individual no seu objeto, subscrevendo o valor da liberdade, mas apenas na medida em que a "liberdade de cada um" seja uma condição para a "autorrealização de todos" em um projeto comum (Bhaskar, 19934. BHASKAR, R. A Realist Theory of Science. Hemel Hempstead: Harvester Press, 1979.: 141-160)8 8 Em sua reconstrução normativa de uma teoria da justiça sob a forma de uma teoria da sociedade, Axel Honneth (2011) rastreia o emprego da ideia de liberdade na filosofia moderna (da liberdade negativa de Hobbes e Locke, passando pela liberdade reflexiva de Kant, Rawls e Habermas, até a liberdade social de Hegel e Marx). O que ele diz sobre a teoria crítica também vale para a sociologia: "Nenhuma ética social, nenhuma crítica da sociedade pode atualmente transcender o horizonte intelectual que veio à luz, há duzentos anos, pelo acoplamento de uma representação da justiça à ideia de autonomia" (Honneth, 2011: 37). . Seu individualismo é, portanto, condicional e dirigido ao outro; trata-se de um individualismo moral que concebe o indivíduo não como um átomo, mas como parte e parcela de algo mais abrangente que transcende os interesses individuais e os integra através da ação coletiva em um projeto comum.
Uma teoria crítica não pode contentar-se com a denúncia do utilitarismo. Ela deve não somente investigar estruturas de dominação, mas também indicar possibilidades de emancipação. Se tiver de ser mais do que uma lamentação continuamente ensaiada sobre a alienação e a reificação, ela deve passar de um "antiutilitarismo negativo a um positivo" (Caillé, 2000: 41-44), elaborando uma axiologia alternativa que mostre que os indivíduos continuam a orientar-se por fins superiores e a moldar a sociedade de acordo com eles. O antiutilitarismo positivo oferece essencialmente uma alternativa a visões da vida social que privilegiam a axiomática dos interesses econômicos ("comerciar, barganhar e trocar"), da luta política (a "vontade de poder") e da conquista sexual (a "sobrevivência do mais apto") sobre qualquer outra motivação irredutível ao autointeresse. Diferentemente da economia neoclássica e de seus aliados reducionistas (psicologia evolucionária, sociobiologia e neurologia cognitiva), o antiutilitarismo positivo descobre as fundações antropológicas da vida social na abertura para o outro e na transcendência de si pela reciprocidade. Na dádiva ou em quaisquer outras atividades similarmente orientadas para o outro e animadas pelo espírito da generosidade que mantém a sociedade em movimento, como o diálogo, a comunicação e o reconhecimento, o antiutilitarismo positivo descobre um dos principais motivos e motores da vida social - "uma das rochas humanas sobre as quais são construídas nossas sociedades" (Mauss, 195021. MAUSS, M. Essai sur le don. In: MAUSS, M. Sociologie et anthropologie. Paris: Les Presses Universitaire de France, 1950, pp. 143-279.: 148), para citar o sobrinho de Durkheim mais uma vez. O antiutilitarismo positivo não ignora, de modo algum, a predominância dos interesses na vida contemporânea; em vez disso, tal como os pais fundadores da antropologia e da sociologia, ele combate e transcende os limites estreitos da utilidade marginal para investigar o que mantém a sociedade unida e o que a separa.
Em uma tentativa de juntar a hermenêutica crítica à antropologia humanista, quero defender a primazia da prática simbólica, normativa e expressiva, bem como argumentar que, na teoria social, tudo depende do conceito de ação. Contradizendo as afirmações mais pessimistas da teoria crítica, de acordo com as quais, nas sociedades industrial-capitalistas, as estruturas materiais de dominação sobrepujam e reprimem o poder causal das estruturas ideais, gostaria de propor que a teoria crítica só chega a essa conclusão desolada porque se abstém de conectar apropriadamente a agência à cultura. Isto vale tanto para a tradição germânica (weberiano-marxista) da Escola de Frankfurt quanto para a tradição francesa (durkheimiano-marxista) do estruturalismo e do pós-estruturalismo. De um ponto de vista metateórico que analise as pressuposições últimas da teoria social e investigue o modo como questões de ação estão sistematicamente interconectadas a questões de ordem e mudança social, aquela tese sobre o predomínio das estruturas materiais sobre as estruturas ideais se inverte: se a teoria crítica desemboca em um universo reificado no qual estruturas materiais determinam a ação a partir do exterior, é porque ela concebeu a ação de modo excessivamente restrito, reduzindo-a à ação instrumental ou estratégica e excluindo os ideais, normas e valores que orientam e dão significado à ação.
Para defender minha tese, basear-me-ei no "espaço transcendental de possibilidades" nas ciências sociais que é pressuposto por qualquer teoria social. Se uma teoria da sociedade aspira a ser geral e a dar uma resposta coerente às questões centrais das ciências sociais - nomeadamente, a essência e as formas da ação social, suas relações com a ordem social e a possibilidade de mudança social -, ela deve idealmente levar em conta todas as suas possibilidades e permutações. Por meio do diálogo e da comunicação entre posições e contraposições, ela deve navegar sistematicamente ao longo daquele espaço, transcender suas próprias limitações e procurar a generalidade e a síntese (Alexander, 19821. ALEXANDER, J.C. Theoretical Logic in Sociology, 4 vols. Berkeley, CA: University of California Press, 1982-1983.-1983).
O espaço de possibilidades é obtido pelo simples cruzamento entre o que considero os dois principais eixos de oposição que dividem e unem as ciências sociais. Enquanto o primeiro eixo opõe o materialismo ao idealismo, o segundo opõe o individualismo ao holismo.
Como visões de mundo inclusivas, o materialismo e o idealismo estão em tensão entre si. Cada um se pretende capaz de incorporar o outro parcial ou totalmente. De modo similar, o individualismo (atomismo) e o holismo (emergentismo) não são simplesmente teorias, mas opções fundamentais para a abordagem do mundo social: uma acentua que apenas os indivíduos são reais; outra, ao contrário, insiste que as interações entre indivíduos levam à emergência da sociedade como um estrato complexo e irredutível da realidade. Ao chamá-lo de um espaço de possibilidades, quero sugerir que a sociologia é, em última instância, uma ars combinatoria, um modo complexo de combinar elementos simples em um número de associações, permutações e compleições sempre novas, mas estruturalmente limitadas. Nas ciências sociais, tudo se passa como se fosse necessário reformular posições filosóficas bem testadas (materialismo + atomismo = empiricismo; idealismo + racionalismo etc.) em linguagem sociológica, associando cada uma ao nome de uma "figura fundadora", de modo a submetê-las assim à investigação empírica.
Interessantemente, os dois eixos parecem coincidir com as oposições básicas que estruturaram a antropologia e a sociologia desde os seus primórdios. De fato, com Lévi-Strauss, pode-se considerar toda a antropologia como uma contínua reflexão sobre a distinção entre natureza e cultura. Como uma antropologia do mundo moderno, a sociologia, por sua vez, baseou-se na oposição entre indivíduo e sociedade. Proponho que as ciências sociais estão unificadas pelas duas antinomias (natureza/cultura e indivíduo/sociedade), e que qualquer teoria social geral deve encontrar seu caminho em meio às duas oposições. Se as ciências sociais são unificadas por suas oposições, elas se dividem, todavia, pelo modo como resolvem o dilema metateórico (Viveiros de Castro, 200232. VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002.: 295-316): a sociedade e a cultura são concebidas seja como contínuas aos seus antípodas conceituais (solução reducionista), seja como descontínuas em relação a eles (solução emergentista). A conexão indivíduo-sociedade só pode ser resolvida com sucesso se a cultura for introduzida como o mediador simbólico que regula por dentro as ações individuais e coletivas, permitindo, assim, a reprodução e a transformação da sociedade. Se a cultura for reduzida a um epifenômeno das estruturas materiais nos indivíduos (psicologia cognitiva) ou na sociedade (materialismo histórico), a dimensão simbólica da ação - graças à qual, indivíduos e grupos são integrados à sociedade - desaparece, e a ação é reduzida ao comportamento instrumental-estratégico.
A eliminação da cultura na análise social tem um resultado paradoxal: enquanto reduz a sociedade a um agregado de indivíduos e grupos estrategizantes lutando por interesses materiais, o utilitarismo não leva à liberdade, no entanto, mas ao seu exato oposto. Como diz um dos principais teóricos de sistemas com referência a Pink Floyd: A pessoa torna-se 'apenas mais um tijolo na parede'. O indivíduo tem de se comportar racionalmente com respeito ao seu autointeresse, mas, se ele o faz, segue uma lógica sistêmica que não é a sua e não pode levar em conta danos colaterais (Wilke, 200135. WILKE, H. Atopia: Studien zur atopischen Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001.: 13).
A sociedade retorna vingativamente como uma "segunda natureza" que impõe sua ordem a partir do exterior, seja como "mão invisível" coordenando as ações individuais através do mecanismo de preços (mercado), seja como um "punho visível" que faz o mesmo ao ameaçar os indivíduos com a força da lei (governo). Coagidos pelas circunstâncias materiais, os atores têm apenas uma escolha, o que significa escolha nenhuma: adaptar-se ao seu ambiente. Para agir racionalmente, eles têm de se concentrar nos meios e abstrair seus fins, valores e normas. A não ser que a cultura seja explicitamente inserida na análise como meio e mediador, o indivíduo e a sociedade eventualmente confrontam-se não como parte e todo, mas sob a forma alienada de res cogitans e res extensa.
Como uma reflexão científica das sociedades modernas sobre si mesmas, a sociologia oferece uma autodescrição reflexiva da modernidade. Como tal, ela é o equivalente a uma psicanálise em escala coletiva. A chegada tardia da sociologia ao sistema das ciências se reflete em suas teorias, conceitos e semântica9 9 A análise sócio-histórica da semântica da Velha Europa é parte e parcela da abrangente teoria sistêmica de Luhmann. Os quatro volumes de sua Gesellschaftsstruktur und Semantik, subintitulados Estudos na Sociologia do Conhecimento das Sociedades Modernas (Luhmann, 1993-1999), são o complemento sociológico à história dos conceitos de Koselleck (Begriffsgeschichte). Para uma impressionante análise do desenvolvimento histórico dos principais conceitos das ciências sociais, ver Luhmann (1993-1999, II: 195-268 (ordem social); III: 149-259 (indivíduo); IV: 9-30 (natureza), 31-54 (cultura)). . Inseparável do avento da modernidade, a autodescrição das sociedades modernas é parte da autoconcepção da sociologia. Não surpreende, portanto, que o projeto moderno se inscreva no seu objeto. Dado que a sociologia define as sociedades modernas (e, portanto, a si própria!) por contraste com as sociedades primitivas, tradicionais e transicionais, certo grau de evolucionismo lhe é inevitável. Este viés é mais evidente quando a sociologia reflete sobre a natureza, a cultura e a cosmologia das sociedades pré-modernas. O que os antropólogos denominam cosmologia é, na verdade, o mundo da vida de povos que não perderam a conexão com seus ambientes naturais e supranaturais. Para eles, a natureza não é inerte, mas viva e flamejando com espíritos e vozes. Suas relações com plantas, animais e deuses não são instrumentais, mas sensuais, expressivas e comunicativas. Conceitos antropológicos como animismo, totemismo e fetichismo estão longe de serem neutros. Graças à sua imersão no campo, antropólogos contemporâneos como Tim Ingold, Philippe Descola ou Eduardo Viveiros de Castro ainda são capazes de evocar e transmitir, não importa o quão vicariamente, as experiências vividas dos nativos com o natural e o sobrenatural. Como uma filha de seu tempo, a sociologia considera difícil, senão impossível, descrever experiências pré-modernas da natureza sem localizá-las temporalmente no passado. A "negação da coetaneidade" está como que inscrita na sua gramática10 10 Em sua crítica do discurso assincrônico na antropologia, Johannes Fabian (2002: 31) define a "negação da coetaneidade" (coevalness) como uma "tendência persistente e sistemática para situar o(s) referente(s) da antropologia em um Tempo outro que não o presente do produtor do discurso antropológico". . Ao contrário deles, nós, modernos, não nos comunicamos com espíritos. Para nós, a natureza é coisa material, inanimada, que subsiste disponível. Para melhor compreender a cosmologia dos nativos, os antropólogos propuseram uma suspensão metodológica de "nossa" visão de mundo científica. Apesar do pós-colonialismo, jamais me deparei com qualquer coisa similar a uma "antropologia reversa" na sociologia. Se suspendêssemos nossos julgamentos quanto a outras visões do mundo natural, não chegaríamos à conclusão de que o naturalismo é nosso totemismo e o cientificismo, nosso fetichismo? Mesmo quando sociólogos como Ulrich Beck ou Donna Haraway, por exemplo, buscam politizar as ciências, eles não questionam a compreensão científica da natureza ou propõem a substituição de experimentos com a natureza por visões pré-científicas dela. Eu, aliás, também não proponho nenhuma dessas coisas. Se opus a antropologia à sociologia, foi apenas para apontar que a sociologia dificilmente tem acesso a experiências alternativas da natureza, e não pode evocá-las sem incorrer nos vieses seja da descrença científica, seja da credulidade New Age. Eu poderia ter avançado o mesmo argumento contra o realismo crítico através da poética da natureza de Heidegger.
Realismo crítico e sociologia clássica
A análise metateórica não é um fim em si mesma. Como uma propedêutica à construção teórica geral, ele conclama a teórica ou o teórico a comparar e contrastar sistematicamente as posições teóricas no interior do campo enquanto ela/e trilha seu caminho da ação à ordem e à mudança. O espírito da comparação metateórica não é agonístico, mas dialógico. O propósito da metateoria não é o de evidenciar posições antagônicas no campo, mas o de abraçar seus pontos de vista e construir uma teoria de modo tal que suas próprias limitações sejam superadas em um quadro de referência mais abrangente e dialético. Com as devidas desculpas pelas simplificações didáticas, considerarei os pais fundadores da sociologia como "relações públicas", porta-vozes ou personificações de complexas tradições de pesquisa.
Preenchendo devidamente os quadrantes no espaço da teoria social (cf. supra Figura 1.1), podemos associar Weber à tradição subjetivista (idealismo mais individualismo), Durkheim à vertente idealista da tradição coletivista e Marx à vertente materialista dessa última. A despeito de suas complexidades internas, que respondem pelas hesitações, deslizes e tensões em seus trabalhos, é impressionante que todas as nossas figuras clássicas tenham atacado diretamente o grosseiro utilitarismo (conjunção de materialismo e individualismo) que se tornou a marca registrada da economia clássica e neoclássica, de Adam Smith e Hayek aos banqueiros contemporâneos de Wall Street. Do mesmo modo que as principais figuras da sociologia neoclássica (Bourdieu, Giddens, Habermas e Luhmann) criticam o positivismo como filosofia da ciência, os sociólogos clássicos desenvolvem suas posições em confronto direto com o utilitarismo, propondo suas próprias visões como uma correção e uma alternativa sistemáticas à axiomática da "escolha racional" (Shilling e Mellor, 2001; Laval, 200219. LAVAL, C. L'ambition sociologique: Saint-Simon, Comte, Tocqueville, Marx, Durkheim, Weber. Paris: La Découverte, 2002.). Em sua luta contra a visão econômica da vida social, cada um deles insistiu, a seu modo, na dimensão simbólica da vida social: como um jovem hegeliano, Marx desenvolveu uma filosofia dialética da práxis; como um neokantiano, Weber propôs sua sociologia interpretativa como uma ciência da cultura; enquanto Durkheim, que sempre deve ser lido em conjunção com Marcel Mauss, jamais se cansou de insistir que os fatos sociais são fatos morais. Se introduzíssemos Talcott Parsons e Pierre Bourdieu como figuras genuinamente clássicas, como aposto que gerações futuras farão, chegaríamos às mesmas conclusões, ou seja, de que seus trabalhos são batalhas contínuas contra (Parsons) e com (Bourdieu) a escolha racional.
Cada uma das figuras clássicas representa e personifica uma estratégia possível para conter a hegemonia do utilitarismo. A despeito de sua oposição à teoria da escolha racional, tanto Marx como Weber compartilham uma das suas pressuposições. Esta cumplicidade torna-os vulneráveis à cooptação pelos teóricos da ação racional. Como Durkheim recusa tanto o individualismo quanto o materialismo, ele é o campeão do antiutilitarismo e, portanto, nossa figura de escolha. Para torná-lo mais simpático e progressista, deve-se, entretanto, lê-lo através de Mauss, que frequentemente corrige seus excessos e apara suas arestas sem ser explícito a respeito do que faz (Caillé, 2000: 27-44). Para fortalecer sua posição, o ideal seria também reforçar suas defesas por meio de uma exploração sistemática das posições rivais, argumentando com Weber e Marx contra Durkheim e Mauss. Isto não para torná-los mais fracos, mas para descobrir seus ângulos ocultos pela triangulação e, assim, fortificá-los.
O leitor se lembrará que construí o espaço metateórico de possibilidades ao combinar os pares conceituais natureza/cultura (antropologia) e indivíduo/sociedade (sociologia) em um quadrante bidimensional que integra a antropologia e a sociologia em um único universo de discurso. Para colocar as figuras fundadoras da sociologia em diálogo com o realismo crítico, bem como o último em diálogo com a hermenêutica, lançarei mão, agora, da oposição entre sujeito e objeto (filosofia) como uma terceira polaridade na figura. A introdução de uma terceira polaridade transforma o espaço das possibilidades num cubo em 3D (cf. figura 2). A questão relativa a como é possível a um sujeito obter conhecimento de um objeto que lhe é exterior pode ser respondida ao se procurar as condições do conhecimento no domínio do objeto (realismo/nominalismo) e no domínio do sujeito (racionalismo/empiricismo). De um modo ou de outro, a filosofia tem de juntar os dois pólos do espectro e trilhar seu caminho através das oposições básicas que a unificam e dividem. Tais oposições são básicas porque a filosofia é a disciplina básica que funda as demais, e também porque elas subjazem às oposições da antropologia e da sociologia. Com efeito, os pares contrastantes da antropologia e da sociologia são estruturalmente homólogos ao par duplo que estrutura a filosofia. O modo como são resolvidas as antinomias da filosofia decide, em última instância, o modo como são resolvidas as demais antinomias.
Graças à terceira dimensão, podemos trazer o realismo crítico de volta à discussão (cf. Archer et al., 19982. ARCHER, M. et al. Critical Realism. Essential Readings. London: Routledge, 1998.; Vandenberghe, 2009b). O realismo crítico é um movimento filosófico nas ciências humanas. Inspirado pelos trabalhos de Roy Bhaskar e Margaret Archer, ele acentua a dimensão ontológica do conhecimento e se recusa a reduzir questões ontológicas a questões epistemológicas. O conhecimento da realidade não depende somente do aparato teórico-conceitual - os paradigmas de Kuhn - que usamos para apreender a realidade, mas também, e antes, da estrutura da própria realidade. Nas ciências naturais, o realismo crítico contesta o modelo nomológico-dedutivo de Popper e Hempel. As ciências não buscam tanto subsumir fenômenos particulares a leis gerais quanto demonstrar a existência e a função de mecanismos gerativos que explicam as conexões entre eventos como necessárias. Nas ciências sociais, o realismo crítico atua como um representante do marxismo. Numa rara síntese entre sociologia e socialismo, o materialismo histórico propõe-se a ser científico e utópico, bem como estrutural e histórico. Tipicamente, como uma análise científica da dinâmica das relações estruturais entre capital e trabalho que definem uma formação social, ele funde uma compreensão materialista das estruturas sociais, concebidas como relações antagônicas entre posições sociais, com uma análise praxiológica, motivada por ideais normativos, da produção social e da mudança social. Embora o marxismo supere com sucesso a oposição entre materialismo e idealismo em uma teoria dialética das práticas, ele permanece de pé ou cai juntamente com seu materialismo.
Se Marx é um pensador dialético e materialista, Durkheim é idealista e racionalista. Durkheim ainda é, com demasiada frequência, compreendido como positivista. Esta compreensão é, no entanto, uma incompreensão (compartilhada, incidentalmente, pelo próprio Durkheim). Graças ao realismo crítico, podemos agora apreciar o fato de que Durkheim era, em primeiro lugar e antes de tudo, um realista e um racionalista. Enquanto sua insistência de que os fatos sociais são sui generis - emergentes dos fatos psicológicos, mas irredutíveis a eles - faz dele um realista, sua afirmação de que a sociologia deve romper com o senso comum e construir um conceito científico dos fatos o define como um racionalista. A combinação entre realismo e racionalismo desemboca no estruturalismo, que considero uma versão idealista do realismo crítico. Mas não havia eu dito antes que a hermenêutica representa uma versão idealista do realismo crítico? Sim, eu disse, e, na verdade, tanto a hermenêutica quanto o estruturalismo são compatíveis com o realismo crítico na minha opinião. O que distingue o estruturalismo da hermenêutica não é nem seu realismo (estruturas profundas) nem seu idealismo (cultura), mas a posição de exterioridade do analista: quando os fatos sociais, os quais são essencialmente, como sabemos, fatos morais compostos de representações coletivas, são analisados a partir do exterior, isto é, do ponto de vista de um observador externo, eles se tornam como que coisas; quando são analisados a partir do interior, isto é, do ponto de vista do participante, eles se tornam símbolos.11 11 A introdução da distinção entre as perspectivas externa/ética e interna/êmica serve como uma correção do espaço metateórico que apresentei e utilizei, em Uma história filosófica da sociologia alemã (2012), para reconstruir a teoria crítica, de Marx a Habermas. Ou os fatos sociais são tratados como coisas cuja regularidade tem de ser explicada pela referência a estruturas causais ou eles são tratados como símbolos cujo significado tem de ser interpretado de modo a revelar as realidades às quais eles se referem.
Como um estruturalista, Durkheim optou pela primeira posição; com o seu chamado à sociologia interpretativa, Weber escolheu a segunda posição, enquanto Marcel Mauss, que passou da análise das representações sociais à análise das representações simbólicas da realidade, permanece no meio. Graças ao seu simbolismo, podemos conectar Durkheim a Weber e ir além das sínteses weberiano-marxistas e durkheimiano-marxistas da teoria crítica. Como um neokantiano, Max Weber concebe a sociologia como uma Kulturwissenschaft que é parte das humanidades e pratica o método do Verstehen para ter acesso aos significados culturais que informam a ação social intencional; como um nietzschiano desencantado, ele é um nominalista e um defensor do individualismo ontológico. Se enfraquecermos seu neonietzschianismo e fortalecermos seu neokantianismo, podemos talvez ensaiar uma articulação entre o coletivismo de Durkheim e o interpretativismo de Weber, orientando ambos na direção do "neokantianismo pós-hegeliano" que define a reconstrução hermenêutica, feita por Dilthey (1958)10. DILTHEY, W. Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geisteswissenschaften, in Gesammelte Schriften. Vol. VII. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1958., das ciências sociais e históricas como Geisteswissenschaften12 12 A bizarra, porém esplêndida, categoria do "neokantianismo pós-hegeliano" é de Ricoeur (1986: 279). . Com Weber e os neokantianos, podemos insistir que a cultura só pode ser acessada por dentro, através da participação nas suas formas simbólicas. Graças à ativação espontânea da cultura, o mundo torna-se um mundo significativo em que os atores podem proceder e agir juntos; com Durkheim, podemos sublinhar que os significados da ação não são individuais. A ação social sempre pressupõe, de saída, estruturas culturais coletivas que imbuem os atores com pré-interpretações do mundo, as quais esquematizam sua representação da realidade.13 13 Como um corolário metodológico à discussão metateórica, eu argumentaria que as categorias sociocientíficas não são analíticas, mas sintéticas. Com Hegel, Dilthey e Peirce, deve-se casar sistematicamente a formação de conceitos nas ciências sociais às representações simbólicas da realidade e às construções de senso comum, concebendo-se os primeiros como sistematizações das últimas. Esta posição não vai apenas contra a nominalista concepção weberiana dos tipos ideais como construções analíticas que o cientista impõe arbitrariamente à realidade, mas também contra a justificação durkheimiana de uma ruptura epistemológica com as pré-noções do senso comum. Com sua insistência hegeliana na sócio-lógica do conceito, Marx corrige tanto o cientificismo de Durkheim quanto o relativismo de Weber através da crítica imanente.
Nesse ponto, podemos trazer Marx de volta à discussão e reformular sua noção de ideologia como uma representação simbólica errônea da realidade que é socialmente necessária e historicamente variável. Ao atar o conceito mais atentamente às representações simbólicas, a concepção da ideologia como reflexo e refração passivos da infraestrutura material pode ser superada. Assim como utopias, ideologias são forças ativas de construção de mundos. O poder causal da cultura como uma "estrutura estruturante" que representa (correta ou incorretamente) a realidade pressupõe, para ser ativado, a ação intencional de atores individuais ou coletivos. Entretanto, a conexão interna entre cultura e agência não transforma os atores em meros condutores do coletivo. Mesmo quando a cultura funciona como um fator que legitima a realidade através de uma distorção sistemática de sua representação e, assim, contribui para a reprodução da sociedade, ela forma e transforma os atores ao torná-los conscientes e reflexivos.
Pelo mero fato de que o simbolismo transfigura o dado, há sempre uma fenda entre a realidade e a sua representação. Ao oferecer concepções alternativas da realidade ou projetar nova luz sobre aquelas existentes, a cultura abre novas possibilidades entre as quais os atores podem, em princípio, escolher. Na prática, é claro, tal escolha não é sempre possível. Interesses materiais podem restringir a margem de ação, seja diretamente, ao tornar a ação demasiado custosa, seja indiretamente, por meio da pré-seleção cultural. Similarmente, os indivíduos podem ter a vontade, mas não a capacidade, para agir; podem ter a capacidade, mas não a vontade; ou ainda nem a capacidade nem a vontade para tanto. Em qualquer caso, os interesses materiais nunca determinam diretamente as práticas individuais ou coletivas.
A relação entre estrutura social e ação intencional é sempre, necessária e inevitavelmente, mediada pela cultura (Kögler, 1997). Situada entre a estrutura social e as práticas sociais, a cultura constitui uma mediação moldada pelas condições sociais (que impõem certa estrutura à cultura como forma simbólica que representa, bem ou mal, a realidade) e moldadora das práticas sociais (ao prover representações simbólicas da realidade nas quais os atores se baseiam para dar sentido a ela). Aventuro-me a dizer que a diferença entre as concepções da cultura como reflexo e refração da estrutura social (tal como em Marx e Durkheim), de um lado, e como totalidade de representações simbólicas da realidade que tornam a ação intencional e significativa possível (como em Dilthey e Weber), de outro, é determinada, em última instância, por distintas antropologias filosóficas. Humanistas se voltam à ação e à cultura, e observam como se pode fazer com que as estruturas se movam; anti-humanistas começam com a estrutura e trilham um caminho descendente para a cultura e as práticas, de modo a observar como as últimas são movidas pela primeira.
Toda teoria social geral tem de encontrar sua própria articulação entre a estrutura social, a cultura e a agência. Com Marx, Bourdieu e Bhaskar, concebo a estrutura social, genericamente, como o sistema material de relações internas entre posições sociais que definem uma formação societária; seguindo Durkheim, Mauss e Dilthey, defino a cultura não tanto como um sistema de relações entre ideias, mas como a totalidade de formas simbólicas que transformam o mundo em um mundo significativo, constituindo o difuso pano de fundo da ação intencional; com Habermas, Mauss e toda a tradição antiutilitarista, penso a ação humana não como um modo estratégico-instrumental de intervir sobre o mundo para modificá-lo ou adaptar-se a ele, mas, em primeiro lugar e antes de tudo, como um modo simbólico, comunicativo e cooperativo de ser-no-mundo com e para os outros - modo de ser inspirado por ideias e ideais humanistas, movido por sentimentos morais, dirigido por entusiasmo, generosidade e sociabilidade.
Preciso repetir aqui que meu sentimentalismo é, sobretudo, reflexivo, que estou plenamente consciente de que a sociedade como um todo não é um ashram e que o mundo está cada vez pior? Em vez de qualificar meu antiutilitarismo, prefiro retomar meu projeto de uma hermenêutica crítica e indicar como as estruturas sociais impactam a cultura e inibem a liberação das energias positivas e paixões alegres que dirigiriam normas e valores para sua realização. A dominância do utilitarismo na vida cotidia na interfere nas estruturas do mundo da vida por meio de uma pré-estruturação do ambiente cultural da ação, a qual acaba pervertendo as intenções dos atores. Tal pré-estruturação insidiosa das possibilidades de ação pode, inclusive, acontecer sem o conhecimento dos próprios atores que perseguem intencional e conscientemente seus cursos de vida nas situações práticas da vida cotidiana. Penso em toda a gama de ações sociais que, superficialmente, parecem ser atos de generoso e genuíno altruísmo, mas são, na verdade, simuladas ou mal compreendidas pelos próprios atores como instâncias reais de comunicação, cooperação e doação.
Em um polo de pseudocomunicação, pseudocooperação e pseudodoação, encontramos as performances hábeis de administradores da impressão que fornecem seus serviços espirituais enquanto pretendem estar genuinamente preocupados com o bem-estar de outros. O comercialismo grosseiro de gurus sem escrúpulos da Nova Era, como Bhagwan Shree Rajneesh (vulgo Osho) e Da Free John (vulgo Adi Da), ou de revolucionários da Nova Esquerda que insistem em voar de primeira classe (como Marcuse, supostamente por conta do tamanho de suas pernas), são apenas os exemplos mais crus de má fé. No outro pólo de comunicação, cooperação e doação sistematicamente deformadas, deparamos com o autoengano de pessoas de boa fé que julgam estar realmente se comunicando, cooperando e doando quando, na verdade, são incapazes de fazê-lo. Em vez de ouvirem, elas falam; em vez de cooperarem com os outros, elas ordenam e comandam; em vez de darem, receberem e retribuírem a dádiva, elas tomam, recusam e rompem o círculo de reciprocidade que anima a sociabilidade e mantém a sociedade viva.
Com essa referência àqueles que, conscientemente ou não, vão contra o espírito da dádiva e sempre retém mais do que contribuem, já reformulo a teoria da exploração de Marx em termos de uma teoria que funde a teoria da dádiva de Mauss com a teoria da comunicação sistematicamente distorcida de Habermas (1971). Do ponto de vista de uma teoria maussiana que acentua a "troca justa", enquanto passa ao largo da obsoleta teoria da mais-valia de Marx, a exploração não é nada além de uma situação social na qual a dádiva é sistematicamente distorcida em detrimento de uma dada classe e em benefício de outra: uma classe dominante sempre toma mais do que merece sem reciprocidade, enquanto a classe dominada dá mais sem obter retorno. Para justificar o desvio diante da famosa máxima - tal como formulada pelo lindo provérbio Maori: "Dá tanto quanto tomas, tudo estará muito bem" (Mauss, 1950: 265) -, a norma da reciprocidade pode ser refuncionalizada e transformada em uma ideologia que esconde e justifica a desigualdade da transação sob o véu benevolente da pseudodádiva, da pseudogenerosidade e da pseudocooperação. Para evitar a armadilha do moralismo, no entanto, uma teoria antiutilitária da dádiva não pode se permitir recair em uma "fisionômica social" (Adorno) que engrandeça casos particulares para encontrar a totalidade nos detalhes. Para melhor compreender determinados casos de exploração, deve-se explicá-los pela referência sistemática à lógica social de dominação que caracteriza as sociedades de controle contemporâneas. Talvez uma nova visita à teoria do "trabalho imaterial" de Negri possa avançar alguns passos em mostrar como o poder e o dinheiro, de modo sistemático, porém insidioso, colonizam as várias esferas da vida, subvertendo a lógica da reciprocidade em uma simulação de comunidade (como acontece em workshops espirituais, no treinamento profissional, no aconselhamento pastoral, na psicanálise clínica e, por último, mas não menos importante, nos reality shows da TV).
O "novo consenso ortodoxo"
A articulação que proponho entre Marx, Durkheim e Weber busca fundir o realismo crítico e a hermenêutica crítica em uma teoria social antiutilitarista e antipositivista. Como tal, ela vai contra a corrente do "novo consenso ortodoxo" que passou a dominar as ciências sociais desde os anos 1990. Na medida em que tal consenso é inseparável da invasão dos "Estudos" nas ciências sociais e de sua denúncia generalizada da cumplicidade acadêmica com os poderes da dominação e da exclusão, eu poderia igualmente, na verdade, tê-lo chamado de "consenso heterodoxo". Inspirada em Foucault, Derrida e Lacan, entre outros que propuseram um "descentramento" e uma "desconstrução" radicais do sujeito, a chamada "Teoria Francesa" (um amálgama e artefato da importação estadunidense) investiga, tipicamente, a inter-relação entre poder, discurso e identidade. Ainda que seu tema seja, em última instância, a identidade, sua versão mais radical dispensa o sujeito e o analisa como objeto, efeito e consequência dos poderes/discursos que o produzem. Tudo considerado, o sujeito real de suas investigações é o poder, não a pessoa na, através da e contra a qual tal poder é exercido. Ao mostrar como as operações do poder articulam os discursos a partir de dentro e moldam os sujeitos a partir de fora por meio de uma série de "representações" que propõem e projetam as posições de sujeito produtoras das identidades, o consenso heterodoxo integra poder e discursos em uma teoria crítica das práticas discursivas.
A contínua invocação de práticas discursivas não deve esconder, no entanto, que a integração pós-estruturalista entre uma teoria genealógica do poder, uma teoria estruturalista dos discursos e uma análise psicanalítica da formação do sujeito é tudo menos uma teoria da ação14 14 Em um influente artigo, Reckwitz (2002) opõe teorias das práticas às sociologias da cultura. Sua investigação de Bourdieu, Giddens, Foucault et al. mostra que as guinadas destes na direção da prática envolvem um afastamento da ação. Para uma brilhante reconstrução das teorias praxiológicas de Bourdieu e Giddens, ver Peters (2015). . Uma teoria da ação pressupõe um sujeito reflexivo, não um agente submetido a um infindo circuito de poder/discurso. Dado que elas não adotam a perspectiva do participante, mas analisam sistematicamente os discursos a partir do exterior, as teorias pós-estruturalistas das práticas discursivas carecem da ênfase fenomenológica sobre a subjetividade, a reflexividade e a intencionalidade que define a teoria da ação. A despeito do fato de que os "Estudos" se recusam a ser atrelados a qualquer disciplina, muito menos à sociologia, penso que sua posição básica constitui essencialmente um amálgama de Durkheim, Marx e Nietzsche: discursos (representações da realidade na linguagem) produzem práticas que reproduzem e/ou subvertem as estruturas de poder e dominação. Nessa fórmula, o racionalismo de Durkheim é, entretanto, largamente substituído e minado por uma militante desconstrução da metafísica inspirada em Nietzsche, enquanto o determinismo daquele não é temperado por uma teoria weberiana da ação, mas, ao contrário, reforçado por uma desconfiança generalizada quanto às estruturas de poder e dominação que oprimem manifestações vindas das margens ao torná-las impensáveis através da "foraclusão". Com efeito, são os discursos que produzem as práticas, não os agentes. Estes não são causas eficientes. Eles são produzidos no discurso como uma consequência das práticas discursivas.
Os primeiros trabalhos de Judith Butler, "a mestra da suspeita", são sintomáticos a esse respeito. Para ela, o sujeito pressuposto pela ação é entendido como um efeito da submissão ao poder157. BUTLER, J. The Psychic Life of Power: Theories in Subjection. Stanford, CA: Stanford University Press, 1997.. A formação do sujeito e a sujeição ao poder são uma só e mesma coisa. "O poder não apenas age em um sujeito", diz Butler (1997: 13), "mas, em um sentido transitivo, traz o sujeito à existência". Isto acontece porque o poder ao qual o sujeito é submetido também é, de acordo com Butler, inconscientemente desejado pelo sujeito. Na afirmação de que o indivíduo é o sujeito do poder, o genitivo tem de ser entendido tanto no seu sentido objetivo quanto subjetivo. Como em Adorno, no entanto, o objetivo tem clara prioridade sobre o subjetivo. O poder não apenas produz o sujeito, mas também a ilusão da subjetividade. Como em Nietzsche e Foucault, é exatamente quando o sujeito afirma sua subjetividade contra o poder que este se encontra em sua modalidade ao mesmo tempo mais sutil e mais eficaz. A interioridade, a reflexividade e a autonomia do sujeito não pertencem de fato ao sujeito, mas, em um sentido transitivo, ao poder: "Em algum momento, uma reversão e ocultação ocorrem, e o poder emerge como aquilo que pertence exclusivamente ao sujeito (fazendo com que o sujeito apareça como se não pertencesse a nenhuma operação prévia do poder)" (Butler, 19976. BUTLER, J. Bodies That Matter: on the Discursive Limits of 'Sex'. London: Routledge, 1993.: 15). Mas se não há sujeito real além do poder - se não há "nenhum ser por trás do fazer", "nenhum fazedor por trás do feito", como ela diz em outro lugar em uma referência a Nietzsche (Butler, 1993: 34, 195) -, então não pode haver também ação real. Há agência, sem dúvida, mas ela chega à cena como uma consequência não intencional do poder, como uma falha na reprodução. Do mesmo modo que toda repetição é uma tentativa de mudança que falha, toda mudança é uma tentativa falhada de reprodução. Preso entre a repetição e a mudança, o agente emerge sempre como uma consequência do poder, enquanto o ator que tal agência pressupõe é performativamente produzido pelo poder e pelo discurso como uma causa.
Embora o circuito de poder, discursos e práticas pareça reminiscente ao muito ensaiado debate agência-estrutura na sociologia, os praticantes dos "Estudos" estão pouco preocupados com um esquadrinho cuidadoso das conexões entre indivíduo e sociedade, agência e estrutura ou práticas e cultura. Na realidade, pós-modernistas e pós-estruturalistas dispensaram, em larga medida, a problemática da conexão micro/macro. Em vez de se aferrarem à polaridade indivíduo/sociedade, eles privilegiam o debate natureza/cultura dos antropólogos; mas, na medida em que o tratam filosoficamente em termos de uma rejeição generalizada do fundacionismo (humanismo em todos os seus matizes: racionalismo, logocentrismo, essencialismo etc.), a oposição entre realismo e construtivismo (ou humanismo e relativismo) assume o centro do palco. Como resultado, uma série de novos temas e tópicos da moda - como identidade, gênero, etnicidade, reconhecimento, diferença, multiplicidade, intersecção, performance e resistência - ganharam destaque. O que une o amontoado de "Estudos" culturais, de gênero, pós-coloniais e outros é a grande recusa de uma estrutura ou sistema hegemônico subjacente ou inclusivo que encontra sua base e sua unidade em uma estável fundação extradiscursiva. O que interessa a eles não é tanto a identidade que cimenta a estrutura inteira, mas as diferenças que a ela escapam e subvertem seu fechamento.
Atualmente, tornou-se uma fixação das introduções à sociologia apresentar a história recente da disciplina em termos da antinomia entre agência e estrutura ou ação e ordem - como se os sociólogos tivessem tido de esperar por Jeffrey Alexander, Pierre Bourdieu ou Tony Giddens para procurar uma teoria dialética das práticas sociais que resolvesse o enigma. Esta história canônica não é apenas pouco inspiradora e repetitiva; ela é também enganadora. Quem quer que estude a "microrrevolução" dos anos 1960 sem os antolhos do debate agência/estrutura notará que Goffman, Garfinkel e Harvey Sacks, os campeões da análise situacional, estavam obcecados com a questão da ordem. Para eles, o desafio consistia em demonstrar a natureza ordenada da vida cotidiana. Esperar pelo ônibus, dirigir pela autoestrada, observar pelo microscópio, todas essas atividades ordinárias são ordenadas - isto é, observáveis e relatáveis, analisáveis e previsíveis ou, em suma, "accountable" (Lynch, 1993: 14-15) como atividades concertadas em situações concretas. De modo similar, eles não opuseram a agência à estrutura, mas encontraram a estrutura em todo e qualquer nível da sociedade e, mais particularmente, no nível nano da agência.
Na verdade, em vez opor a agência à estrutura, pode-se muito bem opor a ação à prática e distinguir entre as várias microssociologias de acordo com as diferenças entre o olhar interno e o olhar externo sobre o ator, a adoção da perspectiva de primeira pessoa do participante ou da perspectiva de terceira pessoa do observador, bem como entre as tentativas de interpretar o comportamento social ou apenas de descrevê-lo. Enquanto a sociologia da ação é uma sociologia interpretativa que pode legitimamente retornar ao parágrafo de abertura de Economia e Sociedade16 16 "Sociologia...significa: uma ciência que pretende compreender interpretativamente a ação social e assim explicá-la causalmente em seu curso e seus efeitos" (Weber, 1972: 1). , a sociologia das práticas é uma sociologia descritiva que encontra sua principal inspiração não em Weber ou Marx, mas em Durkheim. Oriundos da fenomenologia e do pragmatismo, os teóricos da prática leram Durkheim criativamente (ou o "desleram", como Garfinkel instruiu os membros da sua gangue a fazer) e projetaram sua análise estruturalista dos fatos sociais no nível micro.
Entre uma sociologia fenomenológica da ação que investiga os motivos, significados e tipificações dos atores e acentua a intencionalidade e a reflexividade, de um lado, e uma sociologia microestruturalista das práticas que descreve sequências ordenadas de fazeres situados por agentes anônimos que, rotineiramente, fazem o que fazem sem pensar muito, de outro lado, há uma sociologia da interação que analisa como os atores definem as situações em que se acham de modo a coordenarem suas ações com outros que se encontram na mesma situação. Esta sociologia interacionista da ação, passível de ser retraçada a Georg Simmel, Marcel Mauss ou G.H. Mead, pode caminhar em ambos os sentidos. Quando ela acentua a conexão entre agência e cultura, concebendo a linguagem como o meio simbólico que permite com que Ego e Alter coordenem suas ações conjuntamente, ela reata com a teoria hermenêutica da ação de Weber, Schutz e Parsons. No entanto, quando ela enfoca predominantemente a situação de ação mais do que os próprios atores, analisando como os agentes se deparam com coações situacionais que formam um microssistema rigorosamente condicionante de suas práticas, ela se junta à teoria das práticas de Goffman, Garfinkel e Wittgenstein.
Dado que os "Estudos" e as sociologias situacionais compartilham o ponto de vista do observador externo, não surpreende que aproximações entre ambas as vertentes de análise tenham sido tentadas por algumas das principais estrelas no firmamento intelectual. A despeito de alguma confusão inicial entre "performatividade" e "performance", Butler terminou por incorporar plenamente a histriônica de Goffman em sua teoria queer da resistência. Como um desdobramento rizomático dos Estudos da Ciência, Latour fundiu a insistência pós-estruturalista sobre a disseminação de textos com o hiperempirismo de Garfinkel em uma narração pós-materialista da expansão de redes sociotécnicas através do mundo, enquanto Laclau integrou Wittgenstein a sua teoria das articulações hegemônicas, argumentando, por exemplo, que a construção de uma casa também é uma espécie de prática discursiva. Apenas menciono essas "fusões" entre o estrutural e o situacional para sublinhar que não é suficiente invocar discursos e práticas para se ter uma teoria da ação. O que importa não é escala ou tamanho, mas as concepções de ator, significado e cultura, bem como a conexão de tais concepções à mudança pessoal, cultural e social. Nenhuma teoria social geral é possível se não pensarmos, de algum modo, ao longo de todo o campo de possibilidades, trabalhando na direção de uma posição sintética que supere o unilateralismo de Marx, Weber e Durkheim ao inserir todos eles - e seus seguidores - em um diálogo.
Referências
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21MAUSS, M. Essai sur le don. In: MAUSS, M. Sociologie et anthropologie. Paris: Les Presses Universitaire de France, 1950, pp. 143-279.
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22PETERS, G. Percursos na teoria das práticas sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu. São Paulo: Annablume, 2015.
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23RECKWITZ, A. Toward a theory of social practices. A development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory, 5, 2, 2002, pp.243-263.
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24RICOEUR, P. Du texte à l'action: Essais d'herméneutique II. Paris: Seuil, 1986.
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25SHILLING, C.; MELLOR, P. The Sociological Ambition: Elementary Forms of Social and Moral Life. London: Sage, 2001.
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26TOCQUEVILLE, A. De la démocratie en Amérique. Paris: Gallimard, 1961.
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27VANDENBERGHE, F. Une histoire critique de la sociologie allemande. Aliénation et réification. 2 vols. Paris: La Découverte, 1997-1998.
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28VANDENBERGHE, F. Uma história filosófica da sociologia alemã. São Paulo, Annablume, 2009a.
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29VANDENBERGHE, F. Teoria social realista: um diálogo franco-britânico. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
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30VANDENBERGHE, F. What's critical about critical realism? Essays in reconstructive social theory. London: Routledge, 2013.
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31VANDENBERGHE, F. A sociologia como filosofia prática e moral (e vice-versa). Sociologias, 17, 39, 2015. pp. 60-109.
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32VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
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33WEBER, M. Wirtschaft und Gesellschaft. Tübingen: Mohr, 1972.
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34WILBER, K. Sex, Ecology, Spirituality. Boston: Shambala, 1995.
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35WILKE, H. Atopia: Studien zur atopischen Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001.
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Frédéric Vandenberghe - Doutor em Sociologia pela Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris, França). Atualmente é professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Politicos (IESP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. / frederic@iesp.uerj.br
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1
Este artigo é, essencialmente, uma tradução de partes da longa introdução a What's critical about critical realism? (Vandenberghe, 2013: 43-57), na qual reviso a metateoria que desenvolvi e empreguei em minha tese de doutorado. Peço desculpas pelas autorreferências, mas já faz mais de vinte anos que tenho pensado sobre o assunto. Uma vez mais, agradeço a Gabriel Peters pela excelência da tradução e pela qualidade das suas sugestões.
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Para um exercício dessa forma de tradução profana, encaminho o leitor para minha tentativa de reformular sistematicamente a teologia da doação como uma antropologia da dádiva (Vandenberghe, 2008a).
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3
A distinção entre a regulação interna por significados, normas e valores, de um lado, e o controle externo pela força, de outro, é essencial para uma sociologia interpretativa. Enquanto Durkheim recomendava que os fatos sociais fossem tratados "do exterior" como coisas, Weber pensava que os significados só podiam revelados desde dentro. Weber frequentemente usa tal distinção, embora raramente a teorize explicitamente (vide, no entanto, Weber, 1971: 681-682). Na sua filosofia integral, Wilber (1995) a teoriza, mas sem qualquer interesse pela sociologia. Clarifiquei a distinção mais adiante nesse texto.
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4
"Von den bloβen Worten . . . zu den Sachen selbst! De meras palavras...às coisas mesmas!". O slogan pode ser de Husserl (1993, II/1: 7), mas, como ele jamais chegou ao concreto e permaneceu emperrado até o fim no solipsismo de suas meditações transcendentais, a referência adequada é a reapropriação hermenêutico-realista que Heidegger (1993: 27ff.) fez da frase de efeito de seu mentor.
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5
Heidegger escreveu sobre a aletheia em diferentes estágios de sua carreira. Ele já menciona o tema no famoso parágrafo 44 que conclui a primeira parte de Sein und Zeit, elaborando-o posteriormente em "Aletheia" (Heidegger, 1954: 263-288), um texto bastante difícil sobre um obscuro fragmento de Heráclito. Prefiro, de longe, seu extraordinário ensaio sobre a origem da obra de arte (Heidegger, 1994: 1-74). Bhaskar, por sua feita, introduziu a aletheia no realismo crítico dialético para referir-se às razões, fundamentos ou causas reais das coisas (dimensão intransitiva), tomadas como diferentes e talvez até opostas à verdade de proposições (dimensão transitiva), possíveis em virtude da estratificação ontológica do mundo e alcançáveis em virtude do caráter dinâmico da ciência (Bhaskar, 1993: 394; 1994: 241; ver também Groff, 2000).
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6
A distinção entre as dimensões "transitiva" e "intransitiva" do conhecimento vem de Roy Bhaskar (1979: 26-27), o fundador do realismo crítico. Enquanto a dimensão transitiva refere-se a teorias historicamente variáveis - a sucessão de "paradigmas" - que buscam capturar o real, a dimensão intransitiva refere-se à realidade que existe independentemente dessas teorias, mas que estas pressupõem como sua referência, fundamento e condição de possibilidade.
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7
Questionando a própria noção de sociedade como uma interconexão funcional entre indivíduos socializados em uma ordem normativa, François Dubet (2009: 7-47) não hesita em qualificar a sociologia como uma filosofia social liberal-comunitarista, para não dizer uma teologia da sociedade. Com a invenção da sociedade, os sociólogos tornam-se não apenas os fundadores de uma disciplina, mas também os sacerdotes de uma sociedade na qual acreditam e que querem trazer à existência.
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8
Em sua reconstrução normativa de uma teoria da justiça sob a forma de uma teoria da sociedade, Axel Honneth (2011) rastreia o emprego da ideia de liberdade na filosofia moderna (da liberdade negativa de Hobbes e Locke, passando pela liberdade reflexiva de Kant, Rawls e Habermas, até a liberdade social de Hegel e Marx). O que ele diz sobre a teoria crítica também vale para a sociologia: "Nenhuma ética social, nenhuma crítica da sociedade pode atualmente transcender o horizonte intelectual que veio à luz, há duzentos anos, pelo acoplamento de uma representação da justiça à ideia de autonomia" (Honneth, 2011: 37).
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9
A análise sócio-histórica da semântica da Velha Europa é parte e parcela da abrangente teoria sistêmica de Luhmann. Os quatro volumes de sua Gesellschaftsstruktur und Semantik, subintitulados Estudos na Sociologia do Conhecimento das Sociedades Modernas (Luhmann, 1993-1999), são o complemento sociológico à história dos conceitos de Koselleck (Begriffsgeschichte). Para uma impressionante análise do desenvolvimento histórico dos principais conceitos das ciências sociais, ver Luhmann (1993-1999, II: 195-268 (ordem social); III: 149-259 (indivíduo); IV: 9-30 (natureza), 31-54 (cultura)).
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10
Em sua crítica do discurso assincrônico na antropologia, Johannes Fabian (2002: 31) define a "negação da coetaneidade" (coevalness) como uma "tendência persistente e sistemática para situar o(s) referente(s) da antropologia em um Tempo outro que não o presente do produtor do discurso antropológico".
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11
A introdução da distinção entre as perspectivas externa/ética e interna/êmica serve como uma correção do espaço metateórico que apresentei e utilizei, em Uma história filosófica da sociologia alemã (2012), para reconstruir a teoria crítica, de Marx a Habermas.
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12
A bizarra, porém esplêndida, categoria do "neokantianismo pós-hegeliano" é de Ricoeur (1986: 279).
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Como um corolário metodológico à discussão metateórica, eu argumentaria que as categorias sociocientíficas não são analíticas, mas sintéticas. Com Hegel, Dilthey e Peirce, deve-se casar sistematicamente a formação de conceitos nas ciências sociais às representações simbólicas da realidade e às construções de senso comum, concebendo-se os primeiros como sistematizações das últimas. Esta posição não vai apenas contra a nominalista concepção weberiana dos tipos ideais como construções analíticas que o cientista impõe arbitrariamente à realidade, mas também contra a justificação durkheimiana de uma ruptura epistemológica com as pré-noções do senso comum. Com sua insistência hegeliana na sócio-lógica do conceito, Marx corrige tanto o cientificismo de Durkheim quanto o relativismo de Weber através da crítica imanente.
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14
Em um influente artigo, Reckwitz (2002) opõe teorias das práticas às sociologias da cultura. Sua investigação de Bourdieu, Giddens, Foucault et al. mostra que as guinadas destes na direção da prática envolvem um afastamento da ação. Para uma brilhante reconstrução das teorias praxiológicas de Bourdieu e Giddens, ver Peters (2015).
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15
Para um interessante debate filosófico entre Judith Butler, Seyla Benhabib, Drucilla Cornell e Nancy Fraser sobre o papel da subjetividade no feminismo e na teoria crítica, ver Benhabib et al. (1995). Ver também a tentativa fascinante, porém frustrada, de Stuart Hall (2000) em encontrar o sujeito que se identifica in persona com as identificações que a cultura provê.
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16
"Sociologia...significa: uma ciência que pretende compreender interpretativamente a ação social e assim explicá-la causalmente em seu curso e seus efeitos" (Weber, 1972: 1).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2016
Histórico
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Recebido
10 Dez 2015 -
Aceito
22 Jan 2016