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Práticas mistas e desigualdade de gênero no alisamento de cabelos entre mulheres e homens na França e em Camarões

Resumo

Este artigo oferece uma análise crítica da prática de alisamento de cabelos entre mulheres e homens em Camarões e na França. A pesquisa de campo, realizada entre 2011 e 2014 nos dois países, com uma amostra que incluiu uma centena de mulheres e homens, demonstra, por um lado, uso comum dessa prática ente mulheres e homens; por outro lado, diferenças de métodos e de apreciação em função do sexo. Finalmente, os resultados revelam uma desigualdade em prejuízo das mulheres e confirmam a teoria dos opostos (Synnott, 1987) que contrapõe, por exemplo, a questão de pelos nos corpos masculino e feminino. O peso do estigma dos “cabelos crespos” recai mais sobre as mulheres do que sobre os homens, por razões de gênero.

Palavras-chave:
alisamento; identidade; teoria dos opostos; pilosidades; ritual

Résumé

Cet article propose une analyse critique de la pratique du défrisage chez les femmes et les hommes au Cameroun et en France. L’enquête de terrain menée entre 2011 et 2014 en France et au Cameroun auprès d’une centaine de femmes et d’hommes démontre d’une part la mixité de cette pratique, d’autre part des différences dans son traitement et son appréciation en fonction du sexe. Enfin, les résultats révèlent une inégalité en défaveur des femmes et confortent la théorie des contraires (Synnott, 1987) qui opposent notamment pilosités masculine et féminine. Le poids du stigmate « cheveu crépu » pèse plus lourdement sur elles que les hommes en raison même de leur sexe.

Mots-clés :
défrisage; identité; théorie des contraires; pilosité; rituel

Abstract

This article provides a critical analysis of the practice of hair straightening among women and men in Cameroon and France. The field survey, carried out between 2011 and 2014 in both countries, which included a sample of one hundred women and men, demonstrates, on the one hand, a sex balance in this practice; on the other hand, it shows some differences based on sex in its processing and appraisal. Finally, the results reveal some inequality detrimental to women and confirm the theory of opposites that confront, for example, male and female body hair (Synnott, 1987). The weight of the “frizzy hair” stigma bears more heavily on women than on men just because of gender differences.

Keywords :
hair straightening; identity; opposition; body hair; ritual

Introdução

As modificações no corpo, e em particular nos cabelos, inscrevem-se em vários campos da sociologia e da antropologia social e cultural. Seleciono aqui dois que se mostram relevantes no contexto deste artigo22 22 Ao focar estritamente o alisamento, tem-se uma terceira categoria, a dos estudos sobre a negritude. Mas voltarei a esse ponto na conclusão. Interessam-me aqui os dois sexos, razão pela qual excluo temporariamente o feminismo negro, para não me desviar de meus propósitos. . Por um lado, as técnicas corporais - ou, mais precisamente, as práticas estéticas - conforme estabelecidas por Mauss ((1950) 2013)MAUSS, Marcel. Les techniques du corps. In: MAUSS, Marcel. Sociologie et anthropologie. Paris: PUF , (1950) 2013.. Nessa perspectiva, o corpo é nosso primeiro instrumento (Mauss (1950) 2013MAUSS, Marcel. Les techniques du corps. In: MAUSS, Marcel. Sociologie et anthropologie. Paris: PUF , (1950) 2013.). Ele é, ao mesmo tempo, “objeto e instrumento de uma cultura” (Saliba, 1999SALIBA, Jacques. Le corps et les constructions symboliques . Socio-anthropologie (online), n. 5, 1999. URL: https://journals.openedition.org/socio-anthropologie/47.
https://journals.openedition.org/socio-a...
, p. 4), para cuja construção simbólica. O corpo produz e reproduz a cultura. Ele a materializa e atualiza no espaço e no tempo. O corpo atualiza a cultura ao modificá-la, reafirma partes dela, abandonando outras. “Essas técnicas são, portanto, as normas humanas do adestramento humano” (Mauss (1950) 2013MAUSS, Marcel. Les techniques du corps. In: MAUSS, Marcel. Sociologie et anthropologie. Paris: PUF , (1950) 2013., p. 374). Sendo assim, elas participam da socialização e da integração da pessoa em certo(s) grupo(s). Modificações corporais, incluindo-se as dos cabelos, situam a pessoa nos contextos estético, sociológico, cultural, histórico, econômico, político etc.

Ademais, as modificações corporais, neste caso as dos cabelos, inserem-se no campo dos estudos de gênero. Um mesmo fenômeno - em nosso caso, o alisamento - é concebido, percebido, analisado de forma diferente, conforme o gênero da pessoa praticante. O sexo é um aspecto primordial no processo de socialização e integração da pessoa à sua sociedade, pois possibilita uma diferenciação entre duas categorias sexuais. Trata-se da primeira das divisões, de caráter quase ontológico, uma vez que essa distinção homem-mulher perpassa todas as sociedades e impregna tanto nosso imaginário coletivo quanto o individual. Os tratamentos de cabelos, embora sejam mistos - praticados tanto por homens quanto por mulheres -, fazem parte dessa socialização diferenciada e da dominação masculina. Eles são um resultado evidente e um instrumento de dominação masculina em relação às mulheres.

Com base em uma etnografia conduzida na França e em Camarões (2011-2014), este artigo examina a prática de alisamento dos cabelos enquanto prática estética que ilustra a oposição homem/mulher de acordo com a teoria dos opostos proposta por Synnott (1987SYNNOTT, Anthony. Shame and glory: a sociology of hair. The British Journal of Sociology, v. 38, n. 3, p. 381-413, 1987.). Com efeito, o exame de certos elementos dessa prática regular revela diferenças em função do sexo que ilustram a desigualdade de gênero diante do estigma dos cabelos crespos. Primeiramente, o artigo apresenta uma etnografia do alisamento como prática mista, porém diferenciada. Para isso, examinam-se alguns elementos relacionados a essa prática, tais como a idade em que ocorreu o primeiro alisamento e sua frequência. Em seguida, consideram-se os problemas relatados e as opiniões de mulheres e de homens que alisam seus cabelos sobre o cabelo crespo. Assim, buscar-se-á determinar em que medida isso contribui, juntamente com os elementos anteriores, entre outros, para manter um tratamento desigual de acordo com o sexo.

Cabelos crespos podem ser relaxados ou alisados, graças a várias técnicas, como a de escova (brushing). O alisamento a frio continua sendo o mais difundido, segundo dados do setor de estética dos cabelos. Esta técnica envolve o uso de um tipo de creme relaxante que modifica de forma permanente a estrutura do cabelo. Seu uso contribui para a estigmatização dos cabelos crespos (Sméralda, 2004SMÉRALDA, Juliette. Peau noire, cheveu crépu: l’histoire d’une aliénation. Pointe-à-Pitre: Éditions Jasor, 2004.; 2012).

Os afro-americanos, seguidos por outras populações negras, nos anos 1950-1960, durante a Luta pelos Direitos Civis, rejeitavam o alisamento. Criticando a prática, eles a abandonaram por algum tempo em favor do corte afro23 23 Os rastafaris optam pelos dreadlocks. . Este passa a simbolizar seu anseio pela africanidade, por uma identidade negra valorizada (Eyene, 2008EYENE, Christine. L’afro dans le registre identitaire diasporique. Africultures, v. 1, n. 72, p. 118-125, 2008.). No entanto, a partir da década de 1970, o afro perde seu apelo e o alisamento se populariza e dissemina (Sméralda, 2004SMÉRALDA, Juliette. Peau noire, cheveu crépu: l’histoire d’une aliénation. Pointe-à-Pitre: Éditions Jasor, 2004.), embora, desde os anos 2000, o movimento nappy24 24 Movimento nappy ou movimento de retorno ao cabelo natural. A palavra inglesa nappy significa, particularmente, “crespo”. venha exortando as mulheres negras a abandonarem a prática e a reapropriarem-se de seus cabelos crespos (Herron; Cepeda, 1998HERRON, Carolivia ; CEPEDA, Joe. Nappy hair. Toronto : CNIB, 1998. ; Wilkerson, 2017WILKERSON, Kamina. The natural hair movement. Continuum: The Spelman Undergraduate Research Journal, v. 1, n. 1, p. 56-63, 2017.), para impô-los no espaço público onde ainda é indesejável (Sméralda, 2012). Esse movimento revela a estigmatização dos cabelos crespos, da qual as mulheres são as principais vítimas, mas também a pressão social que as incita ao alisamento.

Minha pesquisa apontou que as mulheres tenderiam a identificar-se mais com seus cabelos do que os homens (ver também Synnott, 1987SYNNOTT, Anthony. Shame and glory: a sociology of hair. The British Journal of Sociology, v. 38, n. 3, p. 381-413, 1987.), o que confere ao estigma dos cabelos crespos um peso maior para elas. A beleza seria o que constitui e define as mulheres (Sant'Anna, 1995SANT’ANNA, Denise B. de. Être belle au Brésil. Communications, n. 60, p. 95-10, 1995. DOI : 10.3406/comm.1995.1912
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; Le Breton, 2011). Por acumular feminilidade e cabelos crespos, as mulheres negras com cachos miúdos enfrentam um duplo imperativo: ser femininas e ter cabelos longos e lisos, ou seja, ser bonitas de acordo com os critérios ocidentais.

A mulher negra bonita é a que consegue ter uma pele bem mais clara que a dos homens e cabelos longos e macios (Bromberger, 2010BROMBERGER, Christian. Trichologiques : une anthropologie des cheveux et des poils. Montrouge : Bayard, 2010.). No entanto, enquanto o alisamento feminino é tanto valorizado quanto estigmatizado, o alisamento masculino é ignorado ou subestimado, marginalizado. Isso é consistente com a teoria dos opostos, segundo a qual sexos opostos têm pilosidades opostas - cabelos e pelos do corpo são vistos de modo distinto conforme o sexo, ideologias opostas supõem diferentes atributos em relação a cabelos e pelos (Synnott, 1987SYNNOTT, Anthony. Shame and glory: a sociology of hair. The British Journal of Sociology, v. 38, n. 3, p. 381-413, 1987.). Os tratamentos capilares e seu significado envolvem atributos de gênero e ideologias, o que confere aos cabelos “uma riqueza e poder peculiares, quiçá únicos, como símbolo público e físico da individualidade; pois nas três zonas25 25 NT: A citação de Synnot faz referência às três zonas de diferentes pilosidades do corpo humano: o couro cabeludo, os pelos faciais (barba, bigode) e os pelos corporais (peito, braços, pernas, pelos púbicos etc.) e a quatro formas básicas de modificação - no comprimento, na cor, no estilo e na quantidade. e nos quatro modos de modificação capilar, as normas para homens e mulheres se opõem” (Synnott, 1987, p. 382-383). A prática do alisamento ilustra essa teoria: os cabelos da cabeça são alisados, diferentemente de outras pilosidades. No entanto, o homem e a mulher têm práticas diferentes de alisamento - diferentes ideologias (rastafari, nappy etc.) consideram diversamente o alisamento.

Metodologia

Interessava-me, no contexto de minha pesquisa de doutorado, analisar os tratamentos dos cabelos crespos no âmbito dos processos de socialização e integração. Para isso, realizei três etnografias, uma das quais sobre a prática de alisamento, entre 2011 e 2014. Grande parte da investigação foi realizada na França, nas cidades de Estrasburgo e Marselha, onde hospedei-me na casa de uma de minhas irmãs em Noailles, um bairro africano com muitos salões de estética e lojas africanas26 26 Também utilizo os dados quantitativos e qualitativos de um etnografia sobre cabelos crespos que realizei na França (em Estrasburgo, Lion e Marselha) em 2010-2011. . Fiz dois trabalhos de campo a Camarões, às cidades de Yaoundé e Douala. O primeiro, em agosto de 2012, durante duas semanas, o segundo em junho-julho de 2014. Nos dois casos, hospedei-me com familiares e vivi em completa imersão.

Utilizei métodos qualitativos e quantitativos. Os dados qualitativos são provenientes de cadernos de campo, 43 entrevistas semiestruturadas (37 mulheres e 6 homens, com idades de 19 a 57 anos) e entrevistas informais, observações participantes e flutuantes (Pétonnet, 1982 PÉTONNET, Colette. L'Observation flottante. L'exemple d'un cimetière parisien. L'Homme, v. 22, n. 4, p. 37-47, 1982.), fotografias de lugares, penteados, sessões de cabeleireiro, equipamentos e produtos para o cabelo etc. e vídeos de entrevistas e observações.

Para dados quantitativos, utilizei o software Sphinx© para desenvolver um questionário anônimo27 27 Salvo indicação em contrário, os prenomes foram modificados. Alguns entrevistados insistiram em que seus nomes verdadeiros e fotos fossem utilizados. sobre o tratamento de cabelos alisados e as representações em torno dos cabelos crespos. Ao todo, 152 pessoas responderam: 111 com idades entre 17 e 48 anos, em Camarões, e 41 na França, com idades entre 18 e 46 anos. As pessoas respondentes são principalmente jovens e mulheres. Embora socialmente heterogênea, essa população é relativamente homogênea - cerca de dois terços dos entrevistados são camaroneses ou originários dos Camarões e um terço é originário de outros países subsaarianos e da França ultramarina.

Nasci em Camarões e, como meus entrevistados, tenho cabelos crespos que, alguma vez, cheguei a alisar. Para esta pesquisa, adotei uma abordagem êmica (Sardan, 1998SARDAN, Jean-Pierre O. de. Émique L'Homme , v. 38, n. 147, p. 151-166, 1998.), buscando entender a partir da experiência de meus informantes, para ver através de seus pontos de vista. Com base em suas experiências, pude refletir sobre seus discursos e categorias, o que me permitiu confrontar suas realidades com pesquisas anteriores. Para a análise, além dos meus dados de campo, apoiei-me no trabalho de meus predecessores, especialmente na teoria dos contrários ou opostos (Synnott, 1987SYNNOTT, Anthony. Shame and glory: a sociology of hair. The British Journal of Sociology, v. 38, n. 3, p. 381-413, 1987.). As três oposições definidas por esse autor - corpo/cabeça, homem/mulher, ideologias - permitem conceber conjuntamente as práticas e as representações, mas também deslocar os cabelos crespos de seu gueto étnico para integrá-los a outros tipos de cabelo. O indivíduo e a sociedade, por meio de ideologias articuladas com as oposições, tornam as identidades padronizadas, fictícias, mas efetivas.

O alisamento, prática mista

Por meio do exame e análise das práticas relacionadas aos cabelos entre pessoas negras, especialmente o alisamento, alguns autores questionam e definem a identidade negra (Thompson, 2009THOMPSON, Cheryl. Black women and identity: what’s hair got to do with it? Michigan Feminist Studies, v. 22, n. 1, p. 78-90, 2009.; Lester, 1999LESTER, Neal A. Roots that go behind big hair and bad hair day: nappy hair pieces. Children’s Literature in Education, v. 30, n. 3, p. 171-183, 1999.; Patton, 2006PATTON, Tracey O. Hey girl, am I more than my hair? African american women and their struggles with beauty, body image, and hair. NWSA Journal, v. 18, n. 2, p. 24-51, 2006.). Existe uma espécie de tensão nessa prática relativa aos cabelos que, para alguns, cristaliza a vergonha, a raiva, a negação e a rejeição da condição negra, principalmente nos territórios pós-escravidão. Questões identitárias se aglutinam em torno desse fenômeno (como no caso da despigmentação voluntária) desde seu questionamento, nos anos 1950-1960, pelos afro-americanos.

Amparado nas evidências28 28 Nas Antilhas, os homens raramente alisam seus cabelos, prática que é associada a uma feminização (entrevista informal com Corine Mencé-Caster, durante Simpósio franco-japonês, Estrasburgo, 26 de setembro de 2019). , o alisamento se mostra uma prática feminina. Pesquisadores geralmente omitem os homens de suas pesquisas e trabalhos (Sméralda, 2004SMÉRALDA, Juliette. Peau noire, cheveu crépu: l’histoire d’une aliénation. Pointe-à-Pitre: Éditions Jasor, 2004.; 2012; Patton, 2006PATTON, Tracey O. Hey girl, am I more than my hair? African american women and their struggles with beauty, body image, and hair. NWSA Journal, v. 18, n. 2, p. 24-51, 2006.; Eyene, 2008EYENE, Christine. L’afro dans le registre identitaire diasporique. Africultures, v. 1, n. 72, p. 118-125, 2008.; Thomas, 2013THOMAS, Tiffany. Hair they are: the ideologies of black hair. The York Review, v. 9, n. 1, p. 1-10, 2013.). Os trabalhos abordam cabelos crespos ou alisados, mas seu foco, em geral, são as mulheres negras. Os homens estão ausentes ou pouco representados nessas investigações, desde o final do Movimento de Luta pelos Direitos Civis (1950-1960), como se tivessem desistido de alisar. O alisamento masculino é invisibilizado, enquanto o feminino é criticado, principalmente pelos nappys. O Movimento de retorno ao cabelo natural ou Movimento nappy rejeita o alisamento e incentiva as mulheres a recuperar os seus cabelos crespos, mas não os homens. O movimento tenta reverter o estigma que afeta mulheres negras com cabelos crespos, afirmando sua beleza e sua feminilidade (Sméralda, 2004; Wilkerson, 2017WILKERSON, Kamina. The natural hair movement. Continuum: The Spelman Undergraduate Research Journal, v. 1, n. 1, p. 56-63, 2017.).

É difícil identificar homens negros com cabelos alisados (Foto 9). Como outros autores, no princípio, eu os negligenciei. No entanto, observações em salões de cabeleireiros na França e em Camarões revelaram o caráter misto e regular do alisamento. Na França, apenas três homens responderam ao questionário sobre alisamento: dois indicam que têm um “corte degradé com uma crista” (Foto 10), o terceiro tem um “degradé” (Foto 9). Nos três casos, o pescoço e as orelhas são limpos. Os dados coletados em Camarões, bem como muitas observações em salões afro na França e em Camarões, compensam os poucos entrevistados franceses e confirmam o caráter misto do alisamento.

Foto 9:
Ludovic penteia seu colega Ali, alisado um dia antes, Tropicoiff, 28 outubro 2010 29 Prenome verdadeiro.

Em Estrasburgo, tive a chance de trabalhar com Kevin, que abriu um salão de estética masculina logo após o início de minha pesquisa de doutorado, quando eu estava pesquisando penteados femininos30 30 Por isso, só disponho de dados detalhados sobre três homens, no caso da França. . Observei uma clientela principalmente masculina, ao contrário do salão misto em que pesquisava antes. Havia muito mais homens com cabelos alisados do que a observação direta ou as publicações permitiam prever. Exceto pelos jovens que exibem cortes moicano e punk como seus ídolos - em geral, jogadores de futebol como Neymar e Balotelli - poucos homens negros exibem cabelos visivelmente alisados. Eles usam cortes alisados curtos ou muito curtos (Foto 9). Por isso, passam despercebidos. Depois de observar e compreender isso, foi fácil identificar homens com cabelos alisados em Camarões.

Foto 10:
Corte alisado moicano

Em Camarões, a maioria deles (43 em 56) tem cabelos relativamente longos (mais de dez centímetros), geralmente alisados (com corte moicano ou punk). O contexto “futebolístico” 31 31 Copa do Mundo de 2014, quando da minha segunda pesquisa de campo em Camarões. e a juventude dos homens consultados explicam a frequência desse tipo de corte. Uma dúzia de homens tem a cabeça raspada e apenas um exibe um corte curto. Contudo, a observação tende a mostrar que homens com cabelos alisados usam mais cortes curtos do que longos.

Photo 11
Rinçage du produit défrisant

As mulheres, por sua vez, tendem a manter cabelos relativamente longos. Devido ao comprimento dos cabelos e aos penteados escolhidos (alongamento, entrelaçamento e trançado com mechas), o alisamento feminino, ao contrário do masculino, costuma ser evidente. Alguns penteados escondem um pouco o alisamento. É o comprimento que revela o alisamento. Mas, o comprimento está associado ao feminino, em oposição ao masculino, de modo simbólico. Cabelo comprido = feminino. Cabelo curto = masculino. Uma vez estabelecido seu caráter misto, comparei diferentes aspectos do alisamento para determinar em que medida essa prática difere de acordo com o sexo.

Ritual de passagem versus moda

Na França, a idade do primeiro alisamento varia entre três e 37 anos. Para os três homens entrevistados, foi, respectivamente, de 15, 18 e 25 anos. A situação é diferente para as mulheres. A puberdade é o período em que a maioria delas experimenta seu primeiro alisamento. Assim, quase nove em cada dez mulheres começam a alisar os cabelos a partir dos dez anos, com cerca de dois terços tendo iniciado aos 14 anos.

Ah, eu diria que começou, hum... tipo na adolescência, quer dizer, talvez na 7ª série (...) Na sétima; então, com 12, 13 anos (Danielle32 32 Prenome verdadeiro. , 26 anos, Estrasburgo).

Bem, acho que o primeiro alisamento que fiz foi quando tinha, hum..., quando tinha, sim, talvez 12, 13 (...) então; tenho trinta agora (Vênus, 30 anos, Lion).

Ah, espera... 15 anos de idade! (Paola, 30, Estrasburgo).

Além disso, menos de um terço das mulheres começa a alisar após os vinte anos. É o caso de Victoire, 28, que alisa os cabelos desde os 23 anos. Por outro lado, poucas mulheres experimentam alisamento antes dos dez anos, como Nadège, 38 anos, que alisou pela primeira vez aos oito anos. O alisamento raramente ocorre, tanto para meninas como meninos, antes do ingresso no secundário, antes da puberdade. Em Camarões, a idade do primeiro alisamento varia entre cinco e 43 anos. Poucas mulheres experimentam alisamento antes dos dez anos, a exemplo de Mami, de 23 anos, que alisa os cabelos desde os oito anos de idade.

Em Camarões, quase todas as mulheres começam após 14 anos. Cerca de dois terços delas o fizeram entre os 14 e 20 anos. É o caso de Lydia, que começou a alisar aos 14 anos. Uma dezena das mulheres pesquisadas experimentou o alisamento após os vinte anos, como Véronique33 33 Prenome verdadeiro. , que começou aos 40 anos: “(c)omecei a alisar, faz três meses, na verdade, seis meses, que comecei. (...) Porque, muitas vezes, é difícil pentear!” (Véronique, 40 anos, Yaoundé). Quanto aos homens, Igor, um estudante de 23 anos, é o único a experimentar o alisamento antes de completar dez anos. A maioria dos homens começa a alisar depois dos 14 anos de idade, metade deles depois dos vinte anos, como Serge (um lojista de trinta anos, Yaoundé), que começou com 29 anos.

Nas duas pesquisas de campo, as mulheres geralmente começaram a alisar antes que os homens. Ao contrário destes, seu primeiro alisamento ocorreu quase sempre na puberdade. Os homens tendem a testar o alisamento dos cabelos na fase que se estende da adolescência à idade adulta, sem relação específica com a puberdade. Essa é uma diferença significativa no que concerne à função do alisamento. Por um lado, o primeiro alisamento representa um ritual de passagem para meninas e adolescentes (Herron; Cepeda, 1998HERRON, Carolivia ; CEPEDA, Joe. Nappy hair. Toronto : CNIB, 1998. ; Sméralda, 2012SMÉRALDA, Juliette. Du cheveu défrisé au cheveu crépu: de la désidentification à la revendication. Paris: Publibook, 2012.), o ingresso no mundo das mulheres. Por outro lado, é um momento entre outros para os homens.

Uma prática contínua

O alisamento tem o efeito de soltar os cabelos, mas os que crescem são crespos, o que requer uma renovação do tratamento de tempos em tempos. Portanto, é uma prática duradoura, especialmente para mulheres que costumam manter os cabelos longos, diferentemente dos homens. Como, em geral, elas começam a alisar mais cedo do que os homens, o período de tempo a que se submetem ao alisamento costuma ser maior do que o dos homens. Qual a implicação disso?

Na França, a duração da prática de alisamento dos cabelos varia de menos de um ano a trinta anos. Cerca de um quarto das mulheres respondentes alisavam os cabelos há menos de cinco anos na época do trabalho de campo, a exemplo de Marinella e Netty, que alisavam há um ano. Por outro lado, três quartos das mulheres já alisavam há pelo menos cinco anos e metade delas há pelo menos dez anos. Nicole alisa há 25 anos com um produto específico para crianças, Just for me®, três vezes por ano, “quando a raiz já cresceu um tanto”. Entre os três homens, um alisa há oito anos e os outros dois há um ano.

Em Camarões, para dois terços dos homens e mulheres consultados, a prática de alisar os cabelos é relativamente recente, tem no máximo quatro anos. Para três quartos dos homens, o alisamento é uma prática recente. Franck, um estudante, alisa há dois anos e Samuel, que dirige um mototáxi, há um ano. Por outro lado, para um quarto deles, o alisamento se estende por um período mais longo, de pelo menos cinco anos. É o caso de Lionel, um estudante de 21 anos que alisa há sete anos. Quanto às mulheres, pouco mais da metade tem feito alisamento duante os últimos quatro anos. Para as outras, a prática do alisamento é mais antiga, como no caso de Bibiche, uma comerciante de 38 anos que alisa os cabelos há 18 anos.

Na França, o alisamento se inscreve em um período relativamente longo, de mais de cinco anos, enquanto em Camarões, para a maioria dos entrevistados, é uma prática mais recente, de no máximo quatro anos. Uma das razões para essa diferença é que, na maioria das escolas camaronesas, meninos e meninas devem cumprir um regulamento que proíbe a maioria dos tratamentos capilares, incluindo o alisamento. Sob essas condições, durante o período escolar, os alunos de ambos os sexos devem respeitar as regras relativas aos cabelos. Cabeça raspada para os meninos, algumas tranças para as meninas. Assim, há diferença entre homens e mulheres, mas também entre os campos de pesquisa francês e camaronês. E a frequência do tratamento?

Frequência

O alisamento requer regularidade. As recomendações indicam alisar as raízes crespas a cada seis semanas. Algumas pessoas, como Vénus, seguem as recomendações: “(m)as, se eu usar os cabelos sem as tranças, eu os aliso, digamos, a cada seis ou sete semanas”. No entanto, em Camarões, como na França, elas costumam espaçar mais o alisamento:

Eu aliso a cada três meses (...) Mas, agora, já faz quatro meses; eu disse a mim mesma que devia deixar o couro cabeludo descansar (...) E então, com a estação, quando está frio, eu fazia rastas (Cecile34 34 Prenome verdadeiro. , 45 anos, Yaoundé).

Eu aliso (...) uma vez a cada seis meses (...). Não tenho cabelos crespos (...) cacheados, sim (Leslie, 30 anos, Estrasburgo).

Um mês eu faço tranças, um mês, eu as desfaço, espero duas semanas, depois eu aliso (Armand35 35 Prenome verdadeiro. , 30, Estrasburgo).

Ou então aproximam muito os alisamentos, como Nanou, auxiliar de creche, de 35 anos, que diz alisar “a cada duas semanas”. No geral, portanto, as pessoas pesquisadas não seguem à risca as recomendações dos fabricantes dos produtos utilizados. Os homens tendem a renovar o alisamento de cabelo com mais frequência do que as mulheres. Por exemplo, Serge alisa o cabelo uma vez por semana. Em conversa com Kevin, cabeleireiro em Estrasburgo, descubro que esse procedimento é comum: ele corta a parte alisada e alisa o cabelo novo.

O alisamento muito frequente ou muito espaçado danifica o cabelo. Com frequência, afeta e causa queda dos cabelos e/ou queima o couro cabeludo. Quando muito espaçado, enfraquece os cabelos: a diferença de textura entre as partes crespas e as alisadas enfraquece o cabelo e o torna quebradiço, principalmente durante o penteado e a escovação. Daí a necessidade de seguir as recomendações. Os cabeleireiros profissionais deveriam seguir essas recomendações, mas geralmente seguem o desejo dos clientes ou insistem na necessidade de alisamento. O cabelo alisado seria mais fácil de pentear do que os crespos. Uma pessoa pode alisar os próprios cabelos ou pedir ajuda a outra pessoa. Surge, então, a questão do cabeleireiro. Quem está executando este tratamento que de qualquer modo envolve riscos?

O cabeleireiro

Na França, entre os três homens consultados, um alisa ele mesmo, outro paga um cabeleireiro e o último pede ajuda a outra pessoa. As observações de campo seguem na mesma direção. Poucos são os homens que alisam sozinhos. Em geral, preferem confiar essa tarefa a terceiros, geralmente uma mulher de sua família ou a um cabeleireiro. Ao contrário dos homens, metade das mulheres faz o alisamento por sua própria conta: “Eu mesma faço (...) isso para economizar dinheiro (...). Como sei como fazer, por que ir ao cabeleireiro? (Leslie, 30, Estrasburgo). A outra metade confia a uma terceira pessoa, geralmente uma mulher de sua família:

Acho que minha mãe me alisou o cabelo várias vezes e - hum, uma madrinha - minha madrinha, minha tia (Danielle, 26 anos, Estrasburgo).

Foi minha mãe quem alisou meu cabelo pela primeira vez, porque minha mãe não tem muita paciência com cabeleireiros (Nell, 19 anos, Estrasburgo).

Outros preferem um cabeleireiro profissional. Isso é menos comum e muitas vezes relacionado a outro penteado, como alongamento por entrelaçamento (Foto 12) ou tratamentos pós-alisamento:

Photo 12
: Charlène 35 Prenome verdadeiro. , défrisage et tissage partiel, Yaoundé, 24 juin 2014

Então, em geral, aqui em Lyon, quando vou ao cabeleireiro, é no Ivoire et Ébène e eles usam Revlon® (Vénus, 30 anos, Lyon).

No salão, porque depois do alisamento, tenho que enrolar, colocar bobs, voltar para o secador e depois tirar tudo, só que eu não consigo fazer (Paola, 30 anos, Estrasburgo).

Em Camarões, a situação é diferente. Por um lado, a maioria dos homens e das mulheres confia o alisamento a terceiros, geralmente a cabeleireira. A família e os amigos às vezes estão envolvidos, mas com menos frequência do que na França. Uma pequena parte dos homens e mulheres pesquisados se encarrega de alisar o próprio cabelo. A visita ao cabeleireiro ou à cabeleireira (profissional ou amador) é, portanto, uma atividade regular, obrigatória mesmo para crianças em idade escolar. Além disso, cabeleireiros e produtos para alisar os cabelos são mais acessíveis em Camarões do que na França, resultando no uso mais frequente dos salões e de cabeleireiros informais (Fotos 13, 14, 15, e 16).

Foto 13:
Iris 37 Prenomes verdadeiros de Iris, Rachel e Anna. sendo trançada, entre duas casas, no bairro Mvog Ada, Yaoundé, 11 junho 2014.

Foto 14:
Rachel trança uma cliente com cabelo alisado, em seu salão, Yaoundé, 3 julho 2014

Foto 15:
Uma vizinha penteia os cabelos alisados de Iris em casa de sua tia-avó Anna, no pátio, Douala, 18 junho 2014

Foto 16:
Iris, tranças rasteiras, Douala, 18 junho 2014.

Entre problemas e rejeição

“Mas, na verdade, eles estão quebradiços”

Como outros produtos químicos, cremes alisantes têm contraindicações e efeitos colaterais. O alisamento fragiliza os cabelos, deixando-os ressecados, assim como ao couro cabeludo. O manuseio de um creme para alisamento requer, portanto, algumas precauções entre as quais: testar em uma pequena parte do cabelo 24 horas antes, não usar material metálico, não utilizar juntamente com a hena etc. Na ausência desses cuidados, o alisamento pode se tornar desastroso: “Claro! Um alisamento contínuo, danifica, rebenta o cabelo” (Paola, 30 anos, Estrasburgo).

Na França, um terço dos respondentes enfrentou algum problema após o alisamento, geralmente queima do cabelo ou do couro cabeludo, quedas ou cabelos quebradiços:

Porque eu constatei que os alisantes, fica muito bonito quando se alisa, mas depois disso o cabelo fica ressecado (...) Porque esses alisantes, afinal, queimam a pele! (Erica, 39 anos, Estrasburgo).

Já queimei a cabeça, o couro cabeludo queimou quando lavei meu cabelo. Depois, com as crostas, criou caspa (Gigi, 25 anos, Estrasburgo).

Couro cabeludo sensível queima até com o produto para bebê. Cada vez, o couro cabeludo fica sensível (Ramona, 45, Estrasburgo).

Tive o cabelo queimado por uma cabeleireira, por isso, eu mesma faço. Já há 4-5 anos (Mandy, 40 anos, Estrasburgo).

Depois de algumas queimaduras, a cabeça ficou sensível na parte de cima (Annabella, 26 anos, Estrasburgo).

Mas, na verdade, eles estão quebradiços (Soraya, 19 anos, Estrasburgo).

Em Camarões, a situação é similar. Um terço dos respondentes, homens e mulheres, sofreu algum incidente após um alisamento, com as mesmas consequências:

Queda de cabelo (Jamar, 27 anos, Yaoundé).

Os cabelos ficaram partidos (Fabien, 20, Yaounde).

Meus cabelos ficaram frágeis (Gabriel, 25 anos, Yaoundé).

O cabelo fica muito frágil e cai com facilidade (Léona, 18 anos, Yaoundé).

Minha pele queimou, o que me deixou horrível (Forrest, 20 anos, Yaoundé).

Ao contrário do esperado, embora o alisamento seja realizado, na maioria dos casos, por terceiros, a proporção entre os pesquisados de pessoas que sofrem danos com o alisamento é similar à que ocorre na França. Essas falhas são, em geral, a causa direta da interrupção da prática, para além de qualquer outra consideração. Mas para muitos, é difícil parar:

E quando eu os aliso, na verdade o problema é que, bem, eu não cuido muito. Na hora de dormir, sei lá!, não gosto de colocar algo na minha cabeça para dormir, de repente o cabelo enrosca e se danifica; ou quando cresce e eu não aliso, então ele quebra. Na verdade, quando eu aliso, tenho a impressão de que, em longo prazo, eu os estou destruindo, porque não cuido bem. E, e se não aliso, não consigo ajeitá-los. Mas, idealmente, eu gostaria de poder ter, sim, cabelos naturais, mas que eu conseguisse modelar como eu quero (Venus, 30, Estrasburgo).

Apesar dos riscos, apesar das tentativas de desistir do alisamento e manter o cabelo “natural”, essa prática continua frequente, tanto nos salões quanto em outros lugares. Parece inevitável.

“Se alisa”

Tabela 2:
Percepções sobre o cabelo crespo (França e Camarões)

Na França, como em Camarões, um terço dos respondentes experimentou um efeito indesejável após um alisamento: ressecamento e quebra, queda, queima. No entanto, a maioria continua a alisar os cabelos crespos. As causas disso são a estigmatização e desvalorização dos cabelos crespos como resultado da escravidão e da colonização (Sméralda, 2004SMÉRALDA, Juliette. Peau noire, cheveu crépu: l’histoire d’une aliénation. Pointe-à-Pitre: Éditions Jasor, 2004.; 2012). No entanto, até que ponto as pessoas em questão, aquelas que alisam os cabelos, depreciam seus cabelos crespos? A desvalorização do cabelo crespo é sistemática? É comum entre todos os que alisam os cabelos? Se algumas pessoas realmente não gostam de seus cabelos crespos, nem todas compartilham essa opinião, como indica a etnografia (ver Tabela 2).

Na França, 35 dos 41 consultados expressaram uma opinião sobre cabelos crespos. Essas opiniões podem ser distribuídas em quatro categorias, em ordem decrescente: “duro, difícil de cuidar, de pentear”, “bom, ótimo”, “não é bom” e “bonito, maneiro”. Quase metade das pessoas sente que o cabelo crespo é “difícil de cuidar, de pentear”. Por um lado, o foco está na dificuldade de pentear cabelos crespos. Para Marinella, “é uma coisa boa, exceto por não se poder fazer todos os tipos de penteado com ele”. Para Brian, “o cabelo não incomoda quando há vento”, mas ele tem “dificuldade em fazer um penteado”. Dina é da mesma opinião, o cabelo crespo é “muito difícil de pentear”, embora seja “interessante”.

Assim, as mulheres usam o alisamento para desembaraçar seus cabelos considerados muito difíceis de pentear. Eles os “arejam” ou “amaciam”. Este último termo enfatiza a suposta dureza dos cabelos crespos, adotando, portanto, a terminologia das marcas de produtos para alisamento. O cabelo crespo seria duro, ele deve ser amaciado/suavizado para poder ser penteado. Quando pergunto a Erica se seus cabelos estão alisados, não espero que ela me responda negativamente, pois para mim eles estão visivelmente alisados e eu já percebi:

Ele não é alisado, ele é arejado (...) Arejado quer dizer, eu penteio de vez em quando com um pente quente, não muito quente! (...) Então, para, para hum..., desenbaraçá-lo (...) Porque ele é sempre espesso (...) E machuca quando você penteia (Erica, 39, Estrasburgo).

Por outro lado, quem alisa insiste na dificuldade de manter um cabelo crespo, justificando assim o alisamento:

Acho muito difícil de cuidar. É legal voltar ao natural, mas os cabelos crespos ficam logo desalinhados, se não cuidamos. É por isso que a gente se obriga a fazer penteados protetores (Maya, 26 anos, Estrasburgo).

Em menor medida, alguns entrevistados na pesquisa de campo consideram que cabelos crespos são “bons, ótimos”. Florence diz: “Volto ao crespo a cada dois anos. Eu gosto de mudar.” O alisamento não é feito particularmente por pessoas que odeiam seus cabelos crespos ou que têm vergonha dele. Na verdade, uma pequena parcela dos entrevistados na França acha que cabelos crespos “não são bons”. Nicoletta exclama: “Ah! cabelo crespo não é nada bom, nada bom. Não é apresentável. Nem um pouco.” Aqui, novamente, um aspecto importante é enfatizado. Para ela, o cabelo crespo não seria “apresentável”. Seria desalinhado, ao contrário do cabelo caucasiano, inevitavelmente ordenado, símbolo da ordem e da beleza.

Em Estrasburgo, Nicole me diz: “Não é bom. Quando o cabelo é liso, é ótimo, é fácil de pentear, é por isso que alisamos.” Nerys tem uma opinião categórica: cabelo crespo “se alisa”. Por outro lado, apenas duas entrevistadas, Mariama e Marianne, acham que o cabelo crespo é “bonito”, “maneiro”. Marianne também acha que “é lindo!” No entanto, ela acrescenta que o alisamento “é bom para os cabelos, para melhorá-los, mesmo se perdemos um pouco deles de vez em quando”. Isso ilustra a posição de muitos que consideram que o alisamento melhora os cabelos crespos, apesar dos danos ocasionais. Um terço dos respondentes experimentou algum episódio “doloroso” após o alisamento: quebra, queda, queimaduras. Apesar disso, as pessoas continuam a alisar os cabelos, mesmo quando estes estão visivelmente danificados.

Ao separar as diferentes opiniões expressas em duas categorias, “imagem positiva” e “imagem negativa” dos cabelos crespos, observo que, na França, cerca de um quarto dos entrevistados tem uma “imagem positiva” dos cabelos crespos. A maioria, seis em cada dez respondentes, tem uma “imagem negativa”. Ao desconsiderar os três homens, pois seu número não é significativo, observa-se que são as mulheres que tendem a ter uma opinião mais negativa sobre cabelos crespos. Eles seriam difíceis de cuidar e de pentear.

Essa opinião é menos difundida em Camarões, onde duas novas categorias surgem a partir dos dados: “feio, horrível ...” e “ruim”. Um terço dos respondentes de Camarões acha que o cabelo crespo é “bom”. É o caso de Flora, uma estudante de 18 anos. Para Darren, cabelos crespos são “formidáveis”. Menos de um quarto dos participantes acha que o cabelo crespo é “feio, horrível”. Eles expressam aversão, como para Serge, para quem o cabelo crespo é “detestável”. Por sua vez, Giovanni, Nanie e Fatimatou (25) acham que ele é “feio”. Magelan, um médico de 30 anos, diz que é “medonho”. Na mesma linha, Marcello acha “pavoroso”. Para Dexter, o cabelo crespo “é horrível”.

Ao contrário, para uma pequena parte dos respondentes, o cabelo crespo é “bonito, maneiro”. Para Ojim, ele é “bonito”, assim como para Ferdinand que o considera “bonito de ver”. Alguns respondentes apenas pensam que os cabelos crespos são “difíceis de cuidar, de pentear”. Para Harry, o cabelo crespo “dá muita manutenção”. Para Zoe, “é muito duro”. Silvane diz que “você tem que tratá-los o tempo todo”. Para Magnolia, “é penoso penteá-lo”. Samira e Emmanuel acham que cabelos crespos “não é simples penteá-los”.

O cabelo tratado se mantém! Agora, cabelo natural, você não consegue pentear! (...) você não trança! Você não divide. Porque muitas vezes é difícil pentear! (...) Difícil de pentear! Você penteia, vai trabalhar, amanhã você é obrigada a mudar o penteado (...) Eu, aliso, faz três meses, seis meses, na verdade (...) Porque muitas vezes é difícil pentear! (...) Mas eu consigo alisar meu cabelo, eu controlo, é um, dois meses, ainda está bem! Eu não faço transplante (...) Você alisa porque é difícil pentear! Você não consegue cuidar sem (...) Por isso, falei que manter os cabelos naturais, muitas vezes é difícil! (Véronique, 40 anos, Yaoundé).

Cécile38 38 Prenome verdadeiro. alisa os cabelos a cada três meses porque, segundo ela, “eles ficam mais fáceis de manter”. Ela mantém seu alisamento em um salão de estética. Para ela, o cabelo crespo é muito difícil de manter em sua forma original. Sua filha, Inès39 39 Prenome verdadeiro. , compartilha dessa opinião. Como outras mulheres, ela aplica o alisante para “amaciar” o cabelo e não para torná-lo totalmente liso. Além disso, a maioria dos penteados de que ela gosta escondem o cabelo. Embora seu cabelo não esteja alisado no dia da entrevista, ela me diz que costuma alisá-lo porque seu “cabelo natural é muito duro”. Mesmo com creme, o pente “não passa”.

O alisamento, ajuda, é bom para os cabelos, mas só se for mantido. (...) quer dizer, quando a gente alisa o cabelo, bem, precisa tratá-lo, não pode deixar de cuidar, senão ele quebra. (...) Bem, eu tranço, eu ainda faço tranças (...) para o cabelo parar, primeiro (...) Mas depois, bom, depois de uma semana, eu tranço (...) como se eu tivesse rastas, mas ... sim, rastas (...) Ainda assim, ele muda: não está mais de pé, não está mais crespo. (...) se fosse mais fácil, realmente, eu deixaria assim, porque o alisamento, ah! o tempo todo, a cada três meses, você precisa alisar. Não assim. Eu acho que vou deixá-los assim (Inès, 19).

Uma pequena parte dos respondentes pensa, como Bess, que o cabelo crespo “não é bom”. Para Kilian (19), “não é nada bom sem cuidado”. Para Elen, o cabelo crespo “é melhor quando está alisado”. Sacha compartilha a mesma opinião: “é bom quando está alisado”. O alisamento ajudaria o penteado e a manutenção dos cabelos crespos.

Uma minoria dos respondentes que alisam acha que o cabelo crespo é “ruim”, como Sonny, um engenheiro de 32 anos, para quem ele “é muito ruim”. Fabien diz: “(n)ão é bom, porque parece sujo”. Embora poucos respondentes afirmem isso no questionário, observo que essa é uma opinião amplamente compartilhada em Camarões e na França. Esses respondentes expressam uma opinião comum, entre africanos e afrodescendentes, de que cabelos crespos são uma fonte de desleixo e desasseio. Tratar o cabelo, inclusive alisando, eliminaria temporariamente o desasseio e a desordem.

Além disso, um dos significados de nappy designa uma “fralda” que contém as fezes dos bebês, comparando assim os cabelos crespos a essa fralda. Encontramos a mesma ideia na expressão “cocô de cabra”, que designa cabelos crespos em Camarões. Torcer ou trançar sem mechas os cabelos crespos de uma mulher parece insuficiente. É necessário alisar ou juntar em mechas os cabelos para que pareçam “asseados”. Assim, para Charlene (Foto 11), mulheres com cabelos crespos simplesmente torcidos ou trançados são desleixadas: “Talvez seja uma escolha! Então, bem, elas querem ser desleixadas. Eles não querem se cuidar” (Charlène, 28 anos, cantora, 24 de junho de 2014, Yaoundé).

Thérèse 40 40 Prenome verdadeiro. tem cabelos crespos e um corte afro. Ela se gosta assim, embora isso fosse de início uma obrigação, o diretor de sua escola exigia que as meninas tivessem cabelos curtos como os meninos. No entanto, ela observa que “outras pessoas consideram isso um desleixo” e que não é apresentável. Sua família a censura por não arrumar adequadamente seus cabelos crespos. Eles seriam muito longos. Ela deveria arrumá-los, fazer tranças. Aqui, novamente, crespo é sinônimo de desleixo e desordem. Anna, tia-avó de Thérèse, explica que os cabelos crespos ficam sujos quando são longos demais:

Um rapaz de respeito deve ter o cabelo rente! Bem cortado (...) Mas uma mulher africana, é o cabelo crespo, mas rente (...) não desse estilo. Ou você faz as tranças com os fios ou torce as mechas (...) É muito longo. Hum, hum... E como você vê, por mais que você cuide, ainda é vista como desleixada” (Anna, 60 anos, Douala).

Ao agrupar as respostas nas duas categorias “imagem positiva” e “imagem negativa”, observo que quase metade dos respondentes em Camarões tem uma “imagem positiva” dos cabelos crespos. A outra metade tem uma “imagem negativa”.

Considerando os respondentes da França e em Camarões, quase um terço deles considera os cabelos crespos “bons”. Um quinto pensa que esses são “difíceis de cuidar, de pentear”. Um em cada dez acha que ele é “bonito, maneiro”, e uma parcela igual pensa que cabelos crespos “não são bons". No geral, menos da metade dos respondentes tem uma “imagem positiva” de cabelos crespos, enquanto mais da metade tem uma imagem negativa.

Mulheres com uma “imagem negativa” dos cabelos crespos os consideram “difíceis de cuidar, de pentear”, que o cabelo “não é bom”. Em Camarões, elas declaram que ele é “feio, horrível etc.”, que ele é “ruim”. Homens de Camarões, que têm uma “imagem negativa” dos cabelos crespos acham que eles são “feios, horríveis, toscos etc.” e “ruim”. Em ambas as pesquisa de campo, as percepções apontaram que o cabelo crespo “não é bom” e é “difícil de cuidar, de pentear”. Sem dúvida, deve-se em parte ao estilo e ao comprimento dos cabelos, geralmente mais longos que os dos homens, o fato de as mulheres considerarem com mais frequência do que eles que os cabelos crespos são “difíceis de manter, de modelar”. Elas também têm uma imagem relativamente mais negativa dos cabelos crespos do que os homens.

A mulher com cabelo alisado: estigma e sexismo

Autores como Lester (1998), Sméralda (2004) SMÉRALDA, Juliette. Peau noire, cheveu crépu: l’histoire d’une aliénation. Pointe-à-Pitre: Éditions Jasor, 2004., Rosado (2007ROSADO, Sybil D. Nappy hair in the diaspora: exploring the cultural politics of hair among women of African descent. Thèse (doctorat en Philosophie), Universidade da Flórida, Flórida, EUA, 2007.), Eyene (2008)EYENE, Christine. L’afro dans le registre identitaire diasporique. Africultures, v. 1, n. 72, p. 118-125, 2008. e Wilkerson (2017WILKERSON, Kamina. The natural hair movement. Continuum: The Spelman Undergraduate Research Journal, v. 1, n. 1, p. 56-63, 2017.) costumam examinar a prática de alisamento de cabelo para uma análise crítica da identidade negra. No entanto, sua atenção é frequentemente focada em mulheres negras, particularmente, afro-americanas. Eles ignoram ou subestimam essa prática entre os homens. Contudo, notamos que o alisamento, como outros tratamentos capilares, é misto. Certamente, a prática difere um pouco de acordo com o sexo, mas homens com cabelos alisados não são exceção. Contudo, a pressão social pela beleza recai principalmente sobre as mulheres (Sant'Anna, 1995SANT’ANNA, Denise B. de. Être belle au Brésil. Communications, n. 60, p. 95-10, 1995. DOI : 10.3406/comm.1995.1912
https://doi.org/10.3406/comm.1995.1912...
; Le Breton, 2011) e, por isso, as mulheres negras atraem mais a atenção tanto de pesquisadores como de ativistas anti-alisamento como os nappy. A elas, admite-se menos que aos homens negligenciar de sua aparência:

A mulher é impiedosamente julgada por sua aparência, sua sedução, sua juventude, e não encontra salvação no além. Ela vale o que seu corpo vale no negócio da sedução. Ao modo de um presente grego, só há um “belo sexo”, mas ele tem um limite de tempo, e o preço a pagar por esse modesto privilégio é alto (Le Breton 2011LE BRETON, David. Anthropologie du corps et de la modernité. Paris: PUF, 2011., p. 233).

Então, antes de serem negras, elas são mulheres. E tentam conformar-se a um ideal feminino sempre cambiante, mas ocidental há vários séculos. A escravidão e a colonização possibilitaram a dominação por parte da cultura ocidental e de sua estética. Nos meios de comunicação, cinema, literatura, moda e até esportes, a mulher feminina é a que possui cabelos longos, lisos e flexíveis (Bromberger, 2010BROMBERGER, Christian. Trichologiques : une anthropologie des cheveux et des poils. Montrouge : Bayard, 2010.). Sob tais critérios, o cabelo ideal situa-se no extremo oposto do cabelo crespo.

A técnica de alisamento permite alongar os cabelos crespos. Seu comprimento real, assim, se torna visível. Desse modo, resolve duas questões: responde aos desejos de um cabelo (mais) longo e liso. Com o alisamento, as mulheres negras têm a oportunidade de adequar seus cabelos aos critérios de beleza ocidentais, os quais como outras mulheres elas incorporaram relativamente. Porque, embora o cabelo seja alisado, os penteados escolhidos geralmente são os mesmos de quando o cabelo não é alisado. O alisamento seria então uma solução para a dificuldade de manter e modelar cabelos crespos.

No entanto, por um lado, os africanos negros vêm desembaraçando, penteando e modelando seus cabelos com facilidade por milhares de anos. Por outro lado, a escravidão e a colonização não erradicaram os penteados tradicionais, como as tranças usadas em algumas regiões. Como explicar, então, esse argumento recorrente em favor do alisamento que contradiz a experiência? Além disso, o dano causado pelo alisamento pouco reduz essa opinião compartilhada até por cabeleireiros. Fabricantes de cremes relaxantes, alisantes de cabelos e de outros aparelhos para alisamento, assim como fabricantes de produtos para o cabelo em geral transmitem a mesma mensagem. Você tem que controlar os cachos rebeldes, tornar o desembaraço mais suave. Essas mensagens visam principalmente uma clientela feminina, embora os homens também usem esses produtos. Beleza e feminilidade andam de mãos dadas.

Enquanto os homens adquirem uma imagem de responsabilidade com os cabelos curtos, as mulheres ganham a da beleza com cabelos longos e macios. Esse comprimento se revela com o cabelo alisado. A questão do alisamento é, portanto, mais crucial para as mulheres do que para os homens. Seus cabelos alisados são mais visíveis do que os dos homens, nas ruas e na mídia. Esse tratamento desigual do alisamento capilar tanto por pesquisadores quanto pela mídia e pela indústria estética confirma a oposição masculino/feminino exposta pela teoria dos opostos (Synnott, 1987SYNNOTT, Anthony. Shame and glory: a sociology of hair. The British Journal of Sociology, v. 38, n. 3, p. 381-413, 1987.). Por um lado, trata-se de se conformar ou não ao modelo dominante; por outro, trata-se de um estilo entre outros. Dependendo do sexo, a prática e sua representação diferem. Mesmo o preço desse serviço por um profissional varia de acordo com o comprimento do cabelo: as mulheres geralmente pagam duas a três vezes mais que os homens.

Conclusão

Homens e mulheres não são iguais em relação ao alisamento. Alisar ou não o cabelo não coloca em questão a masculinidade dos primeiros, do mesmo modo como questiona a feminilidade das segundas. Além disso, a questão da identidade frente ao alisamento geralmente é pautada em relação para as mulheres negras, enquanto os homens ficam isentos (Weitz, 2001WEITZ, Rose. Women and their hair: seeking power through resistance and accommodation. Gender & Society, v. 15, n. 5, p. 667-686, 2001.; Sméralda, 2004SMÉRALDA, Juliette. Peau noire, cheveu crépu: l’histoire d’une aliénation. Pointe-à-Pitre: Éditions Jasor, 2004.; 2012; Chapman, 2007CHAPMAN, Yolanda M. “I am not my hair! Or am I?”: black women’s transformative experience in their self perceptions of abroad and at home. Thèse (doctorat en Anthropologie) - Georgia State University, Georgie, 2007.; Eyene, 2008EYENE, Christine. L’afro dans le registre identitaire diasporique. Africultures, v. 1, n. 72, p. 118-125, 2008.; Wilkerson, 2017WILKERSON, Kamina. The natural hair movement. Continuum: The Spelman Undergraduate Research Journal, v. 1, n. 1, p. 56-63, 2017.). A idade quando do primeiro alisamento, a duração da prática, sua frequência e as percepções em torno dela diferem ligeiramente de um sexo para outro, enquanto os danos capilares afetam um e outro nas mesmas proporções. Em resumo, o alisamento é uma prática mista, mas seu uso e sua percepção diferem de acordo com o sexo da pessoa que alisa.

Nas sociedades ocidentais e ocidentalizadas, escusado será dizer que cabelos longos são tidos como femininos, enquanto cabelos curtos são considerados masculinos. Evidentemente, trata-se de uma posição ideológica em que o homem ocupa o primeiro lugar. De fato, o que importa não é o aspecto liso dos cabelos, mas sim seu comprimento, porque, em um contexto ocidentalizado, cabelos longos estão hoje associados à feminilidade. A prática de alisar certamente questiona a identidade negra, mas, ao que parece, apenas a das mulheres negras. A mulher negra está sujeita a um duplo imperativo. O primeiro, ser autêntica, preservando seus cabelos crespos, como defendem os nappy; o oposto do segundo, o de ser bonita, o que para muitas implica o alisamento para ajustar seus cabelos aos das mulheres não negras, especialmente as brancas.

A beleza tem hoje os atributos ocidentais, na ausência desses, dos mestiços, mas certamente não dos africanos. A mulher negra com cabelos crespos é a mais distante dos atuais padrões de beleza. Sua pele? Não é clara o suficiente. Seus cabelos? Não são macios o suficiente. Aprisionada entre o racismo e o sexismo, a mulher que alisa os cabelos tenta com isso não só corresponder os padrões de beleza e sucesso, mas também reverter o estigma associado aos cabelos crespos. A sociedade exige dela que endosse uma identidade fictícia, discriminadora, mas eficaz.

De um ponto de vista sociológico, com o tema do alisamento, adentramos os estudos sobre negritude - os black studies41 41 Sobre esse tema, ver Caroline Rolland-Diamond (2012). - desenvolvidos no final da década de 1960, que emergiram do Movimento pelos Direitos Civis. O tema tratado aqui destaca a relação desigual entre brancos e negros. Essa prática resulta do tratamento desigual de populações negras e afrodescendentes nos EUA. O alisamento tem como objetivo fazer com que o cabelo crespo se adapte a um ideal de beleza dos cabelos que é ocidental. Desse modo, a questão lança luz sobre a maleabilidade do corpo, nesse caso dos pelos, sua relativa plasticidade. Enquanto técnica corporal, o alisamento é, simultaneamente, produto e instrumento de uma cultura específica, a afro-americana. Ele expressa essa cultura específica, com suas vivências, seus traumas, suas estratégias. Mostra, no sentido visual, a condição negra nessa cultura específica. Num mesmo movimento, ele informa sobre a interdependência entre as identidades negra e branca, resultante da escravidão e do colonialismo, e mesmo do neocolonialismo. Do ponto de vista dos afrodescendentes, as condições de negros e brancos estão intrinsecamente ligadas.

O alisamento, hoje, faz parte de uma identidade negra que recusa o estigma dos cabelos crespos.42 42 Os nappy têm a mesma posição, mas rejeitam o alisamento. O alisamento incide sobre esse estigma. Ele o apaga temporariamente, até que brote o cabelo novo. Para além de sua função de ritual de passagem para as mulheres, torna-se um ritual da vida cotidiana, pela reiteração necessária do tratamento para quem deseja manter o cabelo liso. Por meio da prática de alisamento, há uma recriação de si própria valorizada e recompensadora, que possibilita a alguns superar a baixa autoestima, para se afirmar-se de maneira positiva. O alisamento nos conta a história de uma socialização e de uma tentativa de integração (econômica, política, sexual etc.) por meio da eliminação do estigma. No que diz respeito às mulheres negras, capturadas em uma interseccionalidade depreciativa (sexo, raça e classe), o alisamento põe em evidência sua condição, a qual elas tentam superar, especialmente, por esse meio. A prática do alisamento permite a transcendência da condição da mulher negra, acrescentando aquele toque de beleza e feminilidade que lhe faltava, segundo os critérios ocidentais. Por outro lado, o alisamento não traz, particularmente, beleza ou virilidade aos homens negros. Não aporta nem remove nada de seu status de homem.

Nosso corpo é um reflexo de nossa cultura, nossa sociedade e nosso tempo. Mas também é o espelho de nossas representações do ser homem e ser mulher. A distinção sexual faz parte da construção de nossa identidade e nossa alteridade. Tanto uma como a outra são cambiantes, flutuantes e altamente subjetivas. Por sua plasticidade, a pilosidade é propícia aos símbolos e à transcrição simbólica da cultura. No entanto, resta uma constante: a distinção sexual. As diferenças em relação aos pelos e cabelos de acordo com o sexo são largamente evidentes. Essa é uma das consequências e um dos objetivos do processo de socialização, formar homens e mulheres. O alisamento é um fenômeno que interessa estudar, por ser transversal e envolver vários aspectos da vida humana. Como técnica corporal, ele é produto e instrumento de uma determinada cultura, a “cultura negra”. Ele se inscreve em uma história racial, cultural, mas também sexual. O alisamento, seja praticado ou rejeitado, faz parte da criação de uma identidade negra fictícia, mas eficaz, de uma identidade dependente da dualidade homem/mulher.

A identidade negra, seja com cabelos crespos ou alisados, é uma construção mental dinâmica e efetiva. Ela segue sendo tributária da experiência de cada pessoa negra e do seu contexto espacial, temporal e social. Ela se alimenta de experiências relacionadas à condição negra. Nesse sentido, a identidade feminina também é fictícia, dinâmica e efetiva, dependente de cada mulher e do seu contexto. A meu ver, para além da questão racial, o alisamento questiona, por um lado, o gênero como elemento discriminador, por outro, a pressão social que incide sobre as mulheres negras para que se adaptem a um modelo de beleza exótica, e, finalmente, o lugar de referente que os homens mantêm apesar de tudo, porque afinal, em matéria capilar, os homens devem “apenas” evitar parecer femininos.

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  • WEITZ, Rose. Women and their hair: seeking power through resistance and accommodation. Gender & Society, v. 15, n. 5, p. 667-686, 2001.
  • WILKERSON, Kamina. The natural hair movement. Continuum: The Spelman Undergraduate Research Journal, v. 1, n. 1, p. 56-63, 2017.
  • 22
    Ao focar estritamente o alisamento, tem-se uma terceira categoria, a dos estudos sobre a negritude. Mas voltarei a esse ponto na conclusão. Interessam-me aqui os dois sexos, razão pela qual excluo temporariamente o feminismo negro, para não me desviar de meus propósitos.
  • 23
    Os rastafaris optam pelos dreadlocks.
  • 24
    Movimento nappy ou movimento de retorno ao cabelo natural. A palavra inglesa nappy significa, particularmente, “crespo”.
  • 25
    NT: A citação de Synnot faz referência às três zonas de diferentes pilosidades do corpo humano: o couro cabeludo, os pelos faciais (barba, bigode) e os pelos corporais (peito, braços, pernas, pelos púbicos etc.) e a quatro formas básicas de modificação - no comprimento, na cor, no estilo e na quantidade.
  • 26
    Também utilizo os dados quantitativos e qualitativos de um etnografia sobre cabelos crespos que realizei na França (em Estrasburgo, Lion e Marselha) em 2010-2011.
  • 27
    Salvo indicação em contrário, os prenomes foram modificados. Alguns entrevistados insistiram em que seus nomes verdadeiros e fotos fossem utilizados.
  • 28
    Nas Antilhas, os homens raramente alisam seus cabelos, prática que é associada a uma feminização (entrevista informal com Corine Mencé-Caster, durante Simpósio franco-japonês, Estrasburgo, 26 de setembro de 2019).
  • 29
    Prenome verdadeiro.
  • 30
    Por isso, só disponho de dados detalhados sobre três homens, no caso da França.
  • 31
    Copa do Mundo de 2014, quando da minha segunda pesquisa de campo em Camarões.
  • 32
    Prenome verdadeiro.
  • 33
    Prenome verdadeiro.
  • 34
    Prenome verdadeiro.
  • 35
    Prenome verdadeiro.
  • 37
    Prenomes verdadeiros de Iris, Rachel e Anna.
  • 38
    Prenome verdadeiro.
  • 39
    Prenome verdadeiro.
  • 40
    Prenome verdadeiro.
  • 41
    Sobre esse tema, ver Caroline Rolland-Diamond (2012)ROLLAND-DIAMOND, Caroline. Sociohistoire des Black Studies Departments, IdeAs (En ligne), n. 2, 2012. URL: http://journals.openedition.org/ideas/266.
    http://journals.openedition.org/ideas/26...
    .
  • 42
    Os nappy têm a mesma posição, mas rejeitam o alisamento.
  • 36
    Prenome verdadeiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    9 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2019
  • Aceito
    23 Out 2019
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