Resumo
Javier Auyero é professor da cátedra Joe R. e Teresa Lozano Long em Latin American Sociology na Universidade do Texas em Austin. Seus interesses de pesquisa incluem etnografia urbana, pobreza, marginalidade urbana e desigualdade social, sociologia política, ação e violência coletiva. Nesta entrevista ele fala de sua trajetória acadêmica e sugere rumos para uma prática sociológica mais colaborativa e comunicativa.
Palavras-chave etnografia; pobreza; marginalidade urbana; sociologia política; estudos latino-americanos
Abstract
Javier Auyero is the Joe R. and Teresa Lozano Long Professor in Latin American Sociology at the University of Texas at Austin. His research interests include urban ethnography, poverty, urban marginality and social inequality, political sociology, collective action and violence. In this interview, he talks about his academic career and suggests directions for a more collaborative and communicative sociological practice.
Keywords ethnography; poverty; urban marginality; political sociology; Latin American studies
Auyero nasceu na Argentina onde viveu até concluir sua graduação em Sociologia na Universidade de Buenos Aires, em 1991. Depois disso, mudou-se para os Estados Unidos onde concluiu seu mestrado (1995) e doutorado (1997) na New School for Social Research, em Nova York. Em 2008, Auyero fixou-se na Universidade do Texas onde leciona e conduz pesquisas atualmente.
Na Universidade do Texas em Austin, Auyero foi Diretor do Urban Ethnography Lab, entre 2015 e 2020, e Diretor Interino do LLILAS Benson Latin American Studies and Collections. Também foi editor do periódico Qualitative Sociology, entre 2005 e 2010. Atualmente é editor do Global and Comparative Ethnography Series pela Oxford University Press e lidera o projeto Portraits of Latin America: Thirteen Stories of Hardship and Hope.
Ao longo de sua carreira, Auyero realizou pesquisas sobre clientelismo, brokers, ação coletiva, violência urbana, sofrimento ambiental, protestos populares e as relações entre Estado e sociedade. Em seus vários trabalhos, buscou compreender a forma como vivem as populações marginalizadas e subalternas (Auyero, 2001), suas estratégias de sobrevivência (Auyero, 2001; Deckard; Auyero, 2022), sua política cotidiana (Auyero, 2011) e suas formas de interação com o Estado (Auyero; Sobering, 2019). Nos três encontros realizados para essa entrevista,1 conversamos sobre teoria e método em Ciências Sociais, seus temas de pesquisa como a pobreza, o clientelismo, a violência e o sofrimento ambiental, e sobre os desafios atualmente enfrentados pelos cientistas sociais para intervirem no debate público e afirmarem sua relevância em um contexto dominado pelas mídias sociais.
Pelo volume impressionante da obra de Auyero e pela natureza dos temas abordados por ele – centrais nas Ciências Sociais e para pensar os problemas mais prementes de nosso tempo – é surpreendente que nenhum de seus livros e apenas dois artigos tenham sido traduzidos para o português.2
Auyero identifica como suas principais referências teóricas os trabalhos de Pierre Bourdieu e de Charlles Tilly (Auyero, 2014), este último seu orientador durante o doutorado. De Tilly o autor traz o interesse no conflito como elemento central da vida social, aspecto que explorou em seus estudos sobre episódios de conflito e rotinas sociais na Argentina. Nesses trabalhos e nas pesquisas sobre as estratégias de sobrevivência das populações pobres e marginalizadas, Auyero buscou explorar a relação entre repertório e interação social (Alonso, 2012). A relevância de Bourdieu, por sua vez, fica evidente na forma como Auyero define o centro de seu projeto de investigação como o interesse em compreender como a dominação opera. Daí a centralidade atribuída pelo autor à dominação simbólica e à relação habitat-habitus em seus estudos sobre as populações marginalizadas. Seu estudo sobre a espera, tomada como uma forma de experimentar os efeitos do poder e um elemento crucial da dominação (Auyero, 2012), é um exemplo claro da importância de Bourdieu no conjunto de sua obra.
Assim, o autor se insere na melhor tradição da Sociologia Política ao mesmo tempo que dialoga com outras áreas das Ciências Sociais. Alguns de seus trabalhos tornaram-se referência também para cientistas políticos com destaque para Poor People’s Politics (2001) e Patients of the State (2012). Da mesma forma, Auyero mantém uma forte interlocução com a Antropologia, como fica evidente em suas parcerias com antropólogos e pelo fato de ter elegido a etnografia como “seu modo de compreensão e explicação”.3
O autor também não se furta de intervir no debate público como evidenciam as entrevistas concedidas por ele e sua colaboração para veículos de imprensa. Outro aspecto notável de sua atuação é sua dedicação ao ensino, à formação de novos pesquisadores e ao trabalho colaborativo.
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Marta Mendes Rocha: Você realizou pesquisas e publicou livros sobre vários temas, incluindo clientelismo, pobreza, violência urbana, sofrimento ambiental, protestos populares. Qual você diria que é o elemento que unifica as suas pesquisas, o aspecto comum, algo que nós poderíamos considerar como o núcleo do seu projeto de investigação?
Javier Auyero: Na verdade, eu não sou muito bom em encontrar uma espécie de fio comum, qualquer que seja ele. Pode ser uma espécie de reconstrução post-facto de um tipo de tinta invisível que amarra todo o meu trabalho. Mas eu, realmente, sempre encontro problemas para falar sobre isso. Estou fazendo algo agora e, depois, vamos ver o que vem a seguir. Mas, se eu fosse obrigado a pensar, voltaria a algo que é muito básico, desde Poor People’s Politics, que é o interesse em dar visibilidade para a vida e o sofrimento dos mais pobres e marginalizados, tentando desafiar uma espécie de senso comum sobre o que eles enfrentam. Mas, para mim, o elemento que é de fato o centro das minhas preocupações diz respeito a como a dominação opera. Simples assim. Como a dominação simbólica funciona? Por que as pessoas, na maioria das vezes, não estão protestando, se rebelando, lutando contra as estruturas sociais? Eu não tenho uma resposta para isso. Se há um fio unificador do meu trabalho é este, é uma questão. A maior parte do meu trabalho etnográfico tem sido, de certa forma, ativado por questões teóricas, preocupações teóricas. E isso talvez seja minha releitura obsessiva e uma tentativa de descobrir o que Bourdieu estava dizendo quando abordou essas questões. Se você quer uma resposta substantiva, mais prática e metodológica, eu diria que o fio unificador é que eu estou sempre perguntando “e se...?”. E se o clientelismo não é o que os cientistas políticos dizem que é? E se a agressão ambiental não é exatamente o que nos dizem que é? E se a espera não é o que achamos que é? Então, é isso. Todo projeto começa para mim com uma espécie de pergunta, e se não for assim?
É para isso que fazemos Sociologia, fazemos Sociologia para desvendar mecanismos de dominação. Decidi estudar Sociologia porque eu era um ativista e era crítico da sociedade. Mas você tem que ir para a universidade, como meu pai me disse. Então, pensei, vou estudar Sociologia. Sempre foi um impulso crítico, mas um pouco mais que isso, como uma desconfiança, uma suspeita de que as coisas não são exatamente o que parecem. Como no projeto sobre o conluio da polícia com o tráfico de drogas (Auyero; Sobering, 2019), eu queria saber como exatamente aquilo estava funcionando. Porque todo mundo dizia que isso acontecia. Mas como? Eu então tentei ir aos bastidores e descobrir.
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MMR: Qualquer pessoa familiarizada com o seu trabalho sabe que a etnografia é muito central para você. Mas você também já realizou pesquisas combinando diferentes métodos e abordagens. Como você enxerga o emprego de desenhos de investigação multimétodos nas Ciências Sociais? Você acha que esse diálogo entre abordagens e métodos é possível e desejável?
JA: Há duas respostas curtas para isso. Sim, claro, podemos combinar métodos. Mas com a devida vigilância epistemológica, porque, por vezes, os métodos vêm com muitos pressupostos sobre como o mundo funciona e sobre como as pessoas transmitem significados. A segunda resposta é que hoje em dia todos parecem estar interessados em ser multimétodo. Mas o quanto isso é relevante depende. Depende do objeto que você está tentando construir. Portanto, às vezes, a etnografia sozinha, observação participante mais entrevistas é suficiente. Mas, às vezes, se você quiser descobrir, por exemplo, os significados da violência coletiva em relação aos padrões de violência coletiva, a etnografia não é suficiente. Estou pensando no trabalho que fiz sobre as revoltas por comida na Argentina, no qual empreguei análise estatística (Auyero, 2007). Pude contar com a ajuda de alguém que conhecia esse método. Nós tivemos muitas conversas, e acabamos produzindo o que produzimos. Mas eu considero que um método é uma teoria e também uma ferramenta. Eu vejo estudantes dizendo “quero desenvolver um projeto de pesquisa multimétodo”. A minha pergunta para eles é por quê? É porque é isso que o campo está dizendo que você deve fazer? Isso vai depender do tipo de pergunta e do tipo de objeto sociológico que você está tentando construir. Para mim, como na análise de Bourdieu, o vetor epistemológico vai da teoria para o mundo empírico e isso vai ditar o tipo de ferramenta que você vai usar. Em Esboço de uma Teoria da Prática, Bourdieu (1977) usa etnografia, mas em Distinção (1986) ele usa entrevistas e análises quantitativas, porque ele não poderia estabelecer padrões de gosto somente com a etnografia. Matthew Desmond (2017), em sua análise sobre os despejos, usou etnografia baseada em padrões que ele descobriu usando pesquisa de survey. Acho que não devemos nos conduzir por tendências e usar as mesmas ferramentas, o mesmo martelo, porque, se você tem um martelo, tudo se parece com um prego. E nem tudo é um prego e nem tudo pode ser construído como um prego lá fora.
MMR: Mas nem sempre o método e a ferramenta são uma questão de escolha, porque os acadêmicos são educados e treinados em determinados paradigmas...
JA: Sim, é verdade que somos educados e socializados e nossas sensibilidades são reflexivas. Eu tenho tendência a gravitar em torno da pesquisa etnográfica, não só porque fui treinado para isso, mas porque é o que eu gosto de fazer. Eu gosto de trabalhar com observações, com entrevistas. Intuitivamente, eu não confio no tipo de dado que é produzido em pesquisas quantitativas. Quando eu estava trabalhando com questões relacionadas ao clientelismo, eu via como aquele fenômeno no qual eu estava interessado era abordado com pesquisas de survey, por exemplo. E eu não confiava nessas abordagens. Mas não porque eu não confie em qualquer pesquisa baseada em surveys. Mas é verdade que parte da resposta tem a ver com nossas próprias limitações. Há muito poucas pessoas que sabem como fazer ambas as coisas muito bem. Dito isso, a melhor literatura que eu conheço é aquela que combina criativamente ambas as abordagens. Na Antropologia, Nancy Scheper-Hughes (1993) usou estatística em seu famoso trabalho sobre mortalidade infantil no Brasil.
Mas é verdade que temos um hábito intelectual, tendemos a gravitar em torno das coisas de que gostamos mais e que sabemos fazer melhor. A etnografia não é apenas uma técnica, é uma sensibilidade, certo? E eu gravito em direção a essa sensibilidade. Por isso, prefiro fazer isso. Eu tento me reciclar, pesquisar, eu me aventuro com pesquisa de survey e arquivos e é divertido, mas não é tão divertido assim.
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3. MMR: Gostaria de recuperar uma declaração que você fez em seu livro de 2001, Poor People's politics sobre o clientelismo. Você afirma que um dos objetivos da pesquisa era “problematizar e testar o potencial e as limitações da noção de clientelismo político” que normalmente “obscurecem mais do que esclarecem nossa compreensão das práticas e representações dos grupos populares” (2001, p. 22, tradução nossa). Nas últimas décadas tivemos um revival nos estudos sobre clientelismo e, apesar de muito investimento em pesquisa, muitas ambiguidades persistem na forma como os estudiosos usam o termo clientelismo e patronagem. Eles são frequentemente usados como categorias de acusação contra políticos ou partidos políticos, ou são usados de forma muito imprecisa para designar um amplo conjunto de práticas e de relações. De que maneira você lida com isso? Seria um caso de simplesmente abandonar estas categorias, clientelismo e patronagem, como alguns propõem que devemos fazer com o conceito de populismo, por exemplo?
JA: Acho essa questão interessante, porque o termo clientelismo como uma forma de acusação e desqualificação migrou agora para o discurso público, certo? Antes era propriedade dos acadêmicos e agora os políticos o utilizam. O caso que eu mais conheço é o da Argentina, e lá o termo clientelismo não era uma palavra usada no discurso público. Existe um uso específico do termo, uma forma como os acadêmicos usam a palavra. E há também a forma como o público mais geral utiliza. Isso geralmente acontece. Acontece com termos como subclasse, raça... Isso pode ser particularmente problemático quando estes termos são aplicados a populações marginalizadas e subordinadas. Eu não tenho uma resposta fácil no sentido de que no final de Poor People's politics pensei que talvez devêssemos abandonar o conceito, da mesma forma como ainda acredito que deveríamos abandonar o populismo. Porque, se populismo pode ser usado para nomear um Trump, Obama, Bolsonaro, Kirchner e Putin... é um conceito tão guarda-chuva... Diferentemente, o clientelismo tem sido utilizado pelos acadêmicos de forma mais restrita. Talvez eu não esteja pronto para abrir mão, tendo definições apropriadas, porque acho que ele denota algo de importante, uma forma de conduzir a política, certamente não só entre pobres, certo? Mas é um conceito que serve para entender um tipo de relação social. Portanto, não tenho certeza se estou disposto a dizer, ok, vamos desistir disso. O que eu acho que acontece comigo é que, quando olho para as interações e arranjos clientelistas, quando olho para a relação que liga brokers a clientes, eu costumava ser mais empático, eu não via os elementos exploratórios e predatórios, tanto quanto vejo agora, no comportamento dos brokers.
Atualmente estou seguindo um broker na Argentina. Pancho é um broker que foi acusado de traficar drogas, ele cumpriu algum tempo na cadeia e agora está livre. Minha colaboradora vive ao lado do assentamento. Ela conversou com muitas pessoas, entrevistou alguns parentes e amigos. E algumas pessoas não gostam dele. Dizem que ele usa as pessoas, que ele manipula. Ouvimos mulheres, mais de uma, que dizem que ele extrai favores sexuais. Outros pensam que ele é ótimo, que ele faz coisas pelo bairro. Mas há outros que pensam as duas coisas ao mesmo tempo. “Bem, você sabe, sim, ele rouba, mas os outros também”. Há vinte anos, na minha tentativa de dar sentido ao clientelismo, eu não estava realmente prestando atenção a esse elemento de exploração, às formas de tirar vantagem e de se aproveitar dos clientes, porque eu estava tentando olhar o clientelismo do ponto de vista dos clientes e menos sobre o que os brokers estavam fazendo. E agora estou vendo um pouco mais de comportamento predatório. Um exemplo: um broker dá a um cliente acesso a uma política de assistência social dizendo “aqui estão as informações, vá até aquele escritório, e eles lhe darão o benefício. Mas, na próxima semana, eu quero 10%”. Eu agora presto mais atenção a esse elemento. Ainda assim, a avaliação do comportamento dos brokers, do ponto de vista do cliente, é um pouco ambivalente. O que eu estou chamando de comportamento predatório, do ponto de vista do cliente não é um corte tão claro. E não importa como chamamos isso, a ambivalência permanecerá. De um ponto de vista sociológico, acho isso superinteressante. Eu não estou aqui para colocar Pancho em julgamento. Mas a questão aqui é que o clientelismo é usado para levar as pessoas a julgamento, e não apenas as pessoas pobres, para levar os políticos a julgamento.
MMR: Um dos elementos mais estabelecidos a respeito do clientelismo é a sua associação com a pobreza. A ideia básica é de que as pessoas pobres são mais propensas ao clientelismo e que o clientelismo é mais difundido nos países em desenvolvimento e nos países pobres. Seu livro é uma referência essencial para muitos estudiosos e o título – Poor People’s Politics – dá a impressão de que você apoia este argumento. Entretanto, alguns estudos desafiam esta associação vendo-a como uma simplificação do comportamento político dos eleitores pobres. Em um artigo muito recente (Deckard; Auyero, 2022), você defendeu um conceito multidimensional de pobreza. Gostaria que você falasse um pouco sobre esta associação entre clientelismo e pobreza e as principais lições que você aprendeu sobre o comportamento político dos pobres a partir de suas pesquisas sobre populações pobres e marginalizadas.
JA: O título do livro não é apenas enganoso na associação entre pobreza e clientelismo. É também enganoso no sentido de que eu nunca disse que a única forma de política entre os pobres é o clientelismo. Existem muitas formas de relacionamento político entre os mais marginalizados e nós precisamos de uma compreensão multidimensional da marginalidade e da pobreza, e de uma compreensão multidimensional de sua forma de fazer política. Para ir ao cerne de sua pergunta, não creio que precisemos abordar a pobreza ou a marginalidade só pelo que falta. A ideia central do artigo que você mencionou é focalizar as estratégias das pessoas pobres, focalizar não só as carências, mas também os esforços que fazem não só para sobreviver, essa é a questão, mas para progredir na vida. Entre as coisas que fazem é estabelecer relações políticas de todos os tipos, com brokers inclusive, mas também há esforços coletivos. Eu estava lendo sua compatriota, Teresa Caldeira, e também James Holston,4 há uma enorme literatura sobre as estratégias das pessoas pobres para adquirirem moradia, terra. Algumas delas se cruzam com o clientelismo e outras não. E algumas delas, as que eu acho sociologicamente interessantes, envolvem ambas as estratégias.
Se eu tivesse que caracterizar a política dos pobres, na verdade, todos os tipos de política, diria que são bricoleurs como em Lévi Strauss. Tentamos isso, não funciona, tentamos aquilo para obter eletricidade, tentamos outra coisa para conseguir moradia... É pragmático, é política. Agora, qualificando o que eu disse, algumas formas de política são mais uma reprodução de formas de dominação e outras são, para usar um termo freudiano, mais libertadoras. Se você me perguntar o que eu gosto, eu gostaria que todas as formas de política fossem mais libertadoras. Infelizmente, elas não são. Mas isso não cabe a mim decidir, certo? O que eu acho que acontece, quando nos aproximamos da política dos pobres, é o que Grignon e Passeron (1992) costumavam dizer, que estamos presos entre esta armadilha de miserabilismo e populismo. Sob miserabilismo, tudo o que os pobres fazem é reproduzir a dominação. Na leitura do populismo, tudo o que eles fazem é resistir. Penso que, na maioria das vezes, as pessoas pobres não são totalmente dominadas, nem estão resistindo o tempo todo. Talvez isso tenha a ver com os lugares onde tenho feito pesquisa, mas, na maioria das vezes, é de longe muito mais complicado. Eles não estão sempre se organizando para resistir, tampouco são totalmente oprimidos e subjugados. Novamente, alguém lendo isto pode dizer, bem, mas você escreveu Patients of the State, o que parece sugerir que eles são apenas pacientes do Estado. Não, eu estava tentando isolar uma relação e disse: “Certo, o que está acontecendo quando eles esperam?”
Mas parte da questão não é apenas sobre as pessoas pobres. Eu acho que se definirmos as relações com os clientes de uma certa maneira, tão objetivamente quanto se possa, sem considerar como as pessoas pensam e sentem sobre essas relações, nós podemos realmente usar esse arsenal conceitual para olhar o que acontece dentro de nossas universidades, a relação entre professores e alunos de graduação tem semelhanças com essa relação clientelista, as relações dentro das corporações também. Se definirmos essas relações como um intercâmbio de bens materiais e simbólicos de apoio, esse relacionamento acontece em toda a estrutura social. Acontece que estamos olhando para os espaços mais marginais, mas nada nos impede de pensar o clientelismo em outros contextos.
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MMR: Gostaria de discutir um pouco mais a categoria de “pessoas pobres”, considerando a sua centralidade em seu trabalho. No Brasil, há uma crítica de que um dos erros do Partido dos Trabalhadores enquanto esteve à frente da Presidência, especialmente na administração Lula, foi a centralidade dada à categoria de “pessoas pobres” como os principais destinatários das mensagens e políticas do governo. Esta estratégia teria sido um erro para alguns analistas5 porque, ao contrário da palavra “trabalhadores” que desencadeia solidariedade e identidade, mobiliza e ativa as pessoas para a luta política, “pessoas pobres” refere-se a uma massa de mão-de-obra relativamente amorfa com um caráter inorgânico. Qual é a sua opinião sobre isso? À luz de suas pesquisas e reflexões sobre a ação coletiva das pessoas pobres, como você vê essa questão?
JA: Quando eu era um estudante universitário em Buenos Aires, toda a conversa era sobre a necessidade de nos afastarmos de um tipo de definição de classe trabalhadora, em um momento em que a classe trabalhadora estava se tonando informal, ou desaparecendo. Dizia-se que precisávamos nos mover para uma definição dos grupos populares. Eu olho para as relações, processos e mecanismos. Sou, na maior parte das vezes, a favor da ideia de marginalização que fala de um processo de empurrar para as margens, empurrar para as margens do mercado de trabalho, desempregados ou subempregados, empurrar para as margens da infraestrutura. São pessoas sem pavimentação, sem luz elétrica, empurradas para as margens do sistema educacional, pessoas com altas taxas de evasão escolar. Eu sou neutro no que concerne a usar “pessoas pobres”, “classe trabalhadora”, “marginalizados”. Concordo, como você disse antes, que a condição de privação é multidimensional, não podemos falar apenas de renda, não podemos falar apenas de educação, condições ambientais terríveis. Ao falar de pobreza na América Latina estamos falando de trabalho, estamos falando de educação, estamos falando de política. A propósito, essas pessoas também são inundadas, bebem água contaminada... Portanto, eu acho que, ao abordarmos isso, precisamos ser mais abertos.
MMR: Mas a questão aqui é que as palavras têm poder e quando um partido, um governante, escolhe operar com uma determinada categoria, ele tem o poder de forjar identidades, de propor enquadramentos e isso tem consequências políticas.
JA: Sim, claro, você está falando da política e do poder de nomear e criar. Acontece que eu abraço mais a ideia de marginalidade urbana do que de simples pobreza baseada em um recorte de renda e certos atributos e condições estruturais. Eu estou bem com as definições padrão, o problema para mim é o que você faz com elas, como um sociólogo. Agora, para a política, eu acho que há mais ou menos apelo dependendo do clima político cultural, porque, às vezes, chamar as pessoas de pobres e atribuir uma valência a essa palavra pode ser libertador. Como a teologia da libertação, certo? Pode ser mobilizador ou desmobilizador, tudo depende de como você usa o poder de nomear, do que as pessoas fazem com isso.
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MMR: Um elemento recorrente em seu trabalho é a tentativa de desconstruir certas dicotomias que parecem simplificar as dinâmicas de interação social e as relações entre o Estado e a sociedade. Além disso, a tendência de trabalhar com conceitos que trazem mais nuances e camadas para a análise das relações sociais e políticas, tais como conexões clandestinas, zona cinzenta, ambivalência. Gostaria que você falasse um pouco sobre seus estudos sobre violência urbana e marginalidade e como você mobiliza essas categorias que eu mencionei.
JA: A ideia de zona cinzenta não é minha. Eu estava trabalhando neste projeto sobre violência coletiva. E comecei a ver limites nas categorias muito informadas pelo que ocorre nos Estados Unidos e na Europa, onde parece haver uma separação mais clara entre Estado e sociedade. Na verdade, quando você vê a violência coletiva, aquilo que se supunha ser preto e branco na relação entre atores estatais e atores sociais é mais uma zona cinzenta. E eu comecei a pensar, esta era a dinâmica dos campos de concentração. Os trabalhos sobre paramilitares são todos sobre isso. Portanto, esses estudos informaram meu trabalho.
Em relação às questões sobre violência urbana, não tanto sobre violência coletiva, mas sobre violência interpessoal, foi muito mais ditado pelo que eu estava vendo no campo. Eu estava iniciando um projeto e nós começamos a ver uma espécie de explosão ou taxas crescentes de violência urbana, de criminalidade. E a literatura parece operar com uma definição que coloca em lugares diferentes a violência pública de rua relacionada às drogas e a violência doméstica, por exemplo. Há o tiroteio entre traficantes de drogas e o espancamento de uma esposa pelo marido. Um eu chamo de violência de rua e o outro de violência doméstica. E o que Fernanda6 e eu estávamos vendo no campo era que estas duas formas estavam, na verdade, concatenadas. O que às vezes parecia como uma disputa doméstica era o resultado de algo que aconteceu na rua. A rua migra para dentro dos lares. Então comecei a pensar, espere um minuto, esta distinção entre Estado e sociedade, entre violência privada e pública parece não ser o que dizem que é. E assim comecei a pensar em cenários mais complicados. Não porque eu pense que tudo deve ser complicado. Então, minha contribuição foi para compreender como isso funcionava. Isso aponta para a zona cinzenta como área de conexões clandestinas. Portanto, sempre que você tem conexões clandestinas entre os agentes da lei e os agentes que o Estado define como criminosos, e eles estão trabalhando juntos, nós temos uma zona cinzenta. O que acontece lá? Essa é uma pergunta empírica.
MMR: Este conceito foi mais importante em seu trabalho sobre as revoltas por comida na Argentina, certo?
JA: Sim, foi a primeira vez que ele apareceu em meu trabalho. Na verdade, não é minha invenção. Eu peguei emprestado de Primo Levy, que fala sobre a zona cinzenta nos campos de concentração. A ideia de violência concatenada me veio de forma mais indutiva. Se você isolar este episódio, você vê violência pública. Se você traçar a história desse episódio, você vê que ele teve origem em outro evento. Por exemplo, um linchamento, ele pode ter tido origem em um estupro. Tendemos a pensar que estas duas coisas são separadas, quando na verdade, na vida do bairro, são concatenadas. Agora, não estou dizendo que toda forma de violência é concatenada. Estou dizendo que isso nos escapou. Temos que prestar atenção a essas formas, a essas conexões. Caso contrário, estamos perdendo a totalidade deste fato social que chamamos violência.
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MMR: Também gostaria de te ouvir a respeito da etnografia com Débora Swistun sobre o sofrimento ambiental dos residentes de Flammable em Buenos Aires e sobre esta dimensão específica da pobreza e da desigualdade. Quando o livro foi publicado, você chamou a atenção para a ausência deste tema nos estudos sobre a pobreza urbana e a marginalidade na América Latina. Você acha que este quadro mudou e que hoje há um maior interesse pelo tema?
JA: Eu acho que mudou, não necessariamente por causa do nosso trabalho. Acho que nosso trabalho pode ter tido alguma influência. Penso que há excelentes trabalhos sobre a contaminação por chumbo no Uruguai, por exemplo; sobre o sofrimento ambiental no Equador. Acho que isso mudou, em parte, porque nós provocamos essa conversa, mas também porque a mudança climática está colocando o meio ambiente à nossa frente, portanto não se pode mais ignorar a questão. Na época em que estávamos escrevendo, a questão estava praticamente ausente. Voltando a Carolina,7 relendo seu diário, eu vi que era algo que nos escapara, mas não para algumas pessoas. E ela estava realmente prestando atenção às coisas e nós não estávamos. Fiquei chocado ao vê-la retratar sua própria vida. Porque nós cientistas sociais sanitizamos as condições, literalmente sanitizamos, e ela usa os termos que nós não podemos usar. Se usássemos, seríamos acusados de coisas terríveis. Ela diz sobre seu próprio ambiente que era um chiqueiro, horrível.
Eu acho que as coisas mudaram muito e agora até mesmo a pesquisa quantitativa sobre a pobreza na América Latina dá muito mais atenção a esse elemento, acesso a esgoto, saneamento, que tipo de água as pessoas bebem. Eu acho que a pesquisa sobre a pobreza e a marginalidade mudou. Não acho que tenha mudado muito aqui nos Estados Unidos. Mas há excelentes trabalhos, no Uruguai, no Equador, no Chile.
MMR: Você poderia falar um pouco mais sobre como foi a pesquisa... Flammable é um bairro em Buenos Aires, certo?
JA: Sim, nós não inventamos o nome. Está nos arredores da segunda maior empresa petroquímica da Argentina, mas também com empresas petrolíferas, incineradoras, rios altamente poluídos. Assim, da última vez que fizeram o estudo, metade das crianças tinha altos níveis de chumbo no sangue. Todos nós sabemos que as coisas terríveis que eles fazem levam à contaminação. Nós abordamos a questão não tanto no sentido de documentar a contaminação, mas a partir da clássica questão antropológica: como as pessoas compreendem esta contaminação?
Nós abordamos isso, não como a literatura faz nos Estados Unidos, onde você encontra aquela sequência clássica das comunidades contaminadas: em algum momento as pessoas descobrem que estão contaminadas, se organizam coletivamente, no melhor cenário, elas processam e ganham. Mas aqui foi diferente. Depois de um tempo percebemos que não é que eles não soubessem, mas há muito mais confusão e incertezas. E assim, teorizamos sobre como a incerteza sobre o ambiente é politicamente reproduzida. Mobilizamos conceitos da psicologia cognitiva, mas também da sociologia de Bourdieu para tentar entender isso. Porque, às vezes, havia uma ação coletiva e em outras vezes não havia. Não foi um projeto fácil, porque minha colaboradora, Débora,8 que era moradora do local, também estava passando pelos mesmos processos que nós estávamos descobrindo. Então, enquanto eu tentava me aproximar do fenômeno, para entendê-lo do ponto de vista deles, ela estava fazendo o contrário. Ela estava tentando desnormalizar sua relação com o meio ambiente. Então, em termos de desafio intelectual, isso foi muito difícil. Naquela época eu tinha filhos pequenos, e eu andava com crianças que estavam envenenadas. De vez em quando eu fico muito zangado com as coisas e isso me impulsiona a fazer pesquisas. Neste projeto eu tive problemas para controlar essa raiva, pela loucura que era e ainda é lá.
MMR: Como exatamente funciona esse trabalho com sua colaboradora? É um tipo de trabalho que você faz com frequência?
JA: Meus três primeiros livros, eu fiz sem colaboração. Depois que passei a ter estabilidade, pensei que poderia ler e pesquisar sobre outros temas. Comecei a ler sobre sociologia do meio ambiente, sofrimento ambiental. E então encontrei um local para realizar uma pesquisa de campo e, na minha primeira semana de trabalho etnográfico na favela em Villa Inflamable, eu estava fazendo entrevistas preliminares, e alguém me perguntou se eu conhecia Débora, uma antropóloga que vivia lá. Minha primeira reação foi pensar que era outra pessoa fazendo pesquisa lá, mas não. Ela vivia lá, nasceu e foi criada lá. Como eu tinha recursos, propus a ela que trabalhássemos juntos. Eu poderia ter pedido a ela que fosse minha principal informante, para fazer entrevistas para mim, observar por mim. Em vez disso, eu decidi, essa é a minha política, vamos ser coautores. E começamos uma relação de coautoria, que levou mais tempo porque ela não tinha treinamento suficiente. E assim ela foi treinada enquanto estávamos trabalhando, por isso demorou mais tempo. Mas eu tinha tempo.
No livro sobre violência, In Harm’s Way, (Auyero; Berti, 2015), eu colaborei com uma professora do ensino fundamental. De novo, ofereci uma espécie de treinamento básico. Nós tomamos por certo que as pessoas sabem como escrever uma nota de campo, ou como entrevistar. Mas elas não sabem e isso toma tempo. Agora estou colaborando com alguém que também é estudante de Antropologia e o acordo é que qualquer coisa que escrevermos, vamos fazer juntos. Às vezes eu assumo mais responsabilidade porque tenho o treinamento, tenho as leituras, tenho as habilidades.
Irei, nesta semana, à Argentina e vou me reunir com Pancho9 e ver se vejo as mesmas coisas que ela10 viu. Em dezembro, ela estava fazendo a observação participante na sopa dos pobres, eu fui e visitei, passei um dia lá, continuo indo, mas fico menos tempo.
Não é uma situação ideal, mas funciona. Por outro lado, eu me tornei um defensor dessa forma de trabalhar. A produção acadêmica é muito individualizada e não deveria ser. Acadêmicos não devem ser como estrelas. Eu realmente acredito nesse trabalho intelectual coletivo. É o nosso modelo aqui no laboratório. Nós acabamos de escrever este artigo chamado “We will never walk alone”, nome da música que os fãs do Liverpool cantam. Nós usamos a expressão homines aperti, a pessoa aberta, e não o homo clausus. Não o intelectual que está fechado em si mesmo, mas o intelectual que é aberto com os outros. A ideia de que nunca caminhamos sozinhos é que, como intelectuais, como estudiosos, estamos sempre trabalhando com os outros, e devemos nos apoiar uns aos outros. Louic Wacquant colocou de modo muito mais bonito, mas o projeto de Bourdieu em The weight of the world (1999) – o livro em espanhol foi chamado La miseria del mundo, este livro verde grosso que está bem ali – é um esforço coletivo de estudiosos tentando entender o sofrimento social na França neoliberal. Eu acredito nisso, que a produção intelectual deve ser coletiva.
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MMR: Em 2015, você editou um livro, Invisible in Austin: life and labor in an American city, que resultou de um projeto coletivo com estudantes de pós-graduação, uma experiência muito interessante e inspiradora. Este projeto serviu como modelo para outro no qual você está trabalhando atualmente, Portraits of Latin America: Thirteen stories of hardship and hope. Gostaria de ouvi-lo falar sobre os dois projetos nos quais você parece combinar ensino, pesquisa e extensão, algo que tentamos fazer nas universidades brasileiras e que é sempre muito desafiador.
JA: Sabe, posso tentar justificar ou racionalizar o que fizemos. Ou posso dizer como acho que isso aconteceu. Aconteceu de uma maneira muito feliz e intuitiva. Eu estava dando uma aula sobre pobreza e marginalidade nas Américas, com a ideia de que os estudantes norte-americanos precisam ler coisas da América Latina e vice-versa. E os estudantes começaram a reclamar sobre os textos, dizendo que os textos reificavam ou estereotipavam a pobreza e o sofrimento. Todos foram muito críticos sobre cada texto. Certa semana, começamos a ler The weight of the world. Eu estava prestes a ir para a aula, repassando minhas anotações, registrando todas as reclamações. E disse aos alunos: vocês têm reclamado durante todo o semestre. Vocês acham que podem fazer melhor? Acham que ninguém escreve bem sobre as pessoas pobres? Certo, vamos tentar escrever bem. Vocês acham que eles não os conhecem bem? Vamos tentar conhecê-los bem. Não sabíamos o que estávamos fazendo, mas foi a maior diversão que eu já tive como professor. Foi uma experiência realmente coletiva, o mais horizontal possível.
O livro tem doze capítulos, cada capítulo é focado em uma pessoa (como um imigrante sem documentos e uma mulher que perdeu a casa). As pessoas são como janelas para questões estruturais. Cada capítulo foi escrito por um autor ou autora. E todos eles eram estudantes de pós-graduação, mestrandos e doutorandos, em sua maioria, em Sociologia. Temos a vantagem de que a maioria deles veio de faculdades muito boas e sabiam como escrever bem. Mas foi uma oportunidade para treiná-los sobre como fazer entrevistas, como fazer sombra, como observar, como perguntar sobre motivos, como perguntar sobre causas, como perguntar sobre experiência, e depois como escrever.
Não sabíamos o que estávamos fazendo e, afinal, começamos a falar de um livro. Quando li os primeiros textos, pensei “uau, isso é poderoso”. Quando mostramos à editora ela disse “precisamos publicá-lo”. Então, todos ficaram entusiasmados. E eu percebi que existia uma espécie de modelo de trabalho intelectual ali que tem muito potencial.
Eu publiquei vários livros. Quando lançamos Invisible in Austin em uma livraria no centro de Austin, havia 250 pessoas. Eu nunca tinha visto nada parecido em minha vida. Todos os personagens do livro que puderam vieram ao lançamento, com suas famílias, nós tiramos fotos com eles. Foi incrível. E, por isso, foi muito gratificante para mim pessoalmente, porque eu vi os estudantes crescerem em seu trabalho. E, então, fomos convidados para reuniões comunitárias, reuniões na biblioteca pública, fomos às igrejas com o livro. No ensino médio, eles usam o livro nas escolas secundárias. Nós fomos dar palestras nas escolas secundárias. Algo que, você sabe, no campo da Sociologia não é o que se espera que façamos. Eu também costumava pensar assim. Eu costumava pensar que nosso papel era restrito à produção acadêmica e que ir além disso significava que você não está fazendo ciência social de verdade. Eu mudei de ideia a esse respeito.
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MMR: Na entrevista que você deu em 2014, quando perguntado sobre por que desenvolvia trabalho de campo na Argentina, você disse que via seu trabalho como uma forma de intervir nos debates públicos do país e que o trabalho acadêmico por si só não era para você um empreendimento excitante.11 Gostaria que falasse um pouco sobre qual você acha que deveria ser o papel do cientista social hoje em dia, num momento em que enfrentamos transformações tão intensas e rápidas, em que há tantas questões urgentes. Há um sentimento entre os acadêmicos no Brasil de que não conseguimos nos comunicar com o público em geral, que não conseguimos mostrar a relevância do conhecimento produzido na universidade. E muitos pesquisadores, hoje, estão aderindo a novas estratégias de comunicação e divulgação científica, adaptando a linguagem para a comunicação na Internet... Você acredita que existe um sentimento semelhante entre os cientistas sociais nos Estados Unidos? Como você acha que devemos reagir a isso?
JA: Acho que há uma sensação semelhante aqui. Sabe, agora as pessoas estão muito mais ativas no Twitter ou postando coisas, escrevendo artigos de opinião. As coisas estão realmente se modificando. As coisas já não são como eram há 20 anos quando estávamos realmente enclausurados. E a ideia de escrever um livro que venderia muitas cópias despertava certo desdém. A ideia era de que a literatura mais séria era a menos popular. Mas as coisas mudaram. Agora temos Matt Desmond que ganhou um prêmio Pulitzer com um livro que é muito boa Sociologia. O truque é que ele está muito bem escrito. E assim você realmente vê pessoas lendo-o, vê o livro informando políticas públicas, acadêmicos sendo chamados para falar no Congresso. Portanto, acho que está mudando a maneira como operamos como um campo.
E depende também do que você chama de público e de intervenções junto ao público. Eu tenho um público duas vezes por semana na minha frente. E isso é uma sala de aula. Essa é a nossa intervenção. Quero dizer, penso em mim mesmo como fazendo principalmente uma intervenção entre estudantes com idade entre 18 e 21 anos que não sabem nada de Sociologia. E eu tenho a atenção deles, posso persuadi-los a verem o mundo de forma diferente. Essa é a minha oportunidade de incutir o que chamamos de imaginação sociológica. Toda vez que vou à Argentina eles me convidam para um programa de TV, eu participo, mas não me iludo. Ninguém muda de ideia por causa disso. Mas ter um público cativo de estudantes de graduação? Essa é uma oportunidade incrível. Mas nem sempre indico os meus livros ou dos meus colegas para os meus alunos porque eles são escritos de uma maneira que os estudantes não vão se engajar. Então, com quem estamos brincando? Se nossos alunos de graduação não conseguem entender o que estamos escrevendo, para quem estamos escrevendo?
Eu escolhi a Sociologia, como disse antes, porque eu era um ativista. Eu estava na faculdade de Direito e estava entediado. Eu me lembro de minha mãe, quando decidi mudar de carreira, o primeiro livro que ela me deu, como uma espécie de apoio, foi Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. E você pode dizer, isso não é Sociologia. Mas eu escolhi esse caminho porque eu queria fazer algo com as palavras, como diria Austin.12 Agora, como fazemos isso é uma questão. Quanto queremos investir em debates acadêmicos, disputas internas dentro de nosso departamento e fora da universidade? Eu não vejo muita possibilidade de intervir na esfera do Twitter, por exemplo.
Eu vejo outras formas. Por exemplo, escrevendo livros mais curtos, tipos diferentes de livros, intervindo em outras mídias, colaborando com jornalistas. Eles sabem melhor do que nós como se comunicar, mas nós temos alguns conhecimentos específicos que eles não têm, porque eles operam sobre pressões muito imediatas. Nós temos tempo, eles têm a mídia e a maneira de se comunicar. Há uma revista na Argentina que foi fundada por um jornalista. Chama-se Anfíbia. A ideia é que você é anfíbio, você pode estar na água e na terra. E, assim, a ideia original dessa publicação era criar equipes com um cientista social e um jornalista para escrever sobre tópicos específicos. Eu escrevi sobre violência policial com um jornalista. Precisamos experimentar e ver o que funciona, mas sem esquecer que nosso público são as centenas de estudantes que temos a cada semestre. Se eu conseguir convencê-los sobre uma maneira diferente de ver as coisas, uma sensibilidade diferente, estou satisfeito.
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MMR: Na sua página pessoal na Internet13 consta que você é professor de Latin American Sociology. Na Universidade do Texas, você é filiado ao Teresa Lozano Long Institute of Latin American Studies (Llilas). Gostaria de saber como você vê este campo de estudo que chamamos de “Latin American studies” ou, se preferir, de “Latin American Sociology”. Do que exatamente nós estamos falando? Trata-se de um recorte geográfico ou temático, ou é mais do que isso?
JA: Vou me meter em apuros por dizer isso. Eu acho que é uma pergunta muito importante e difícil, para ser honesto, porque eu não acho que os Latin American Studies sejam um campo de estudo. Eu participo da Latin American Studies Association (LASA), vou às reuniões. E, por um ano, dirigi o Llilas, mas nunca pensei em mim como um latino-americanista. Acontece que sou da Argentina, conduzo minhas pesquisas na Argentina, e a maior parte do que leio é sobre os países latino-americanos e os Estados Unidos. A maior parte do meu tempo eu passo lendo sobre as Américas. Eu faço pesquisas na Argentina, mas poderia estar trabalhando em outras áreas do mundo com as ferramentas, sejam teóricas, analíticas ou metodológicas, da minha área que é a Sociologia. Mesmo que esteja no meu título que sou professor de Sociologia latino-americana, eu não sei o que é isso. Creio que os estudiosos latino-americanos fizeram contribuições surpreendentes no campo da Sociologia, coisas incríveis, pensando nas transições para a democracia, pensando na marginalidade, em como estudar o protesto e a ação coletiva. Mas não acho que seja um campo de estudo por si só. Eu entendo que as pessoas investem nisso para que esta seja uma área de estudo. Mas, como Geertz costumava dizer, não estudamos aldeias, nós estudamos em aldeias.
Às vezes, para publicar, é preciso enfatizar as preocupações disciplinares, mais do que as preocupações geográficas. Mas, se você tentar publicar em uma revista de estudos de área, como o Journal of Latin American Studies ou a Latin American Research Review, você enfatizará mais os casos do que as questões disciplinares. É um equilíbrio, algo com o que me debato por 25 anos. Parte disso também tem a ver com o modo como incorporo o trabalho dos meus pares na Argentina. Passo muito tempo lendo estudiosos brasileiros, argentinos, e tento incorporá-los em meu trabalho. O que tentamos fazer aqui é incentivar e fomentar o maior número possível de trocas. Assim, eles vêm como pesquisadores visitantes ao laboratório, nós organizamos conferências com os recursos que temos.
MMR: Você acha que existe de fato um diálogo, uma troca entre pesquisadores daqui dos Estados Unidos e pesquisadores latino-americanos?
JA: Eu acho que poderíamos e deveríamos fazer muito mais, não apenas em termos de uma espécie de troca intelectual, mas também ter um apoio material real. Então, você sabe, no Llilas temos uma quantia limitada de dinheiro para apoiar os estudiosos que visitam a biblioteca. Porque, eu não sei como é no Brasil, mas os estudiosos argentinos têm um acesso mais fácil a livros e artigos se eles estão aqui. Para eles é uma pausa, uma oportunidade de finalmente se dedicar ao trabalho sem nenhuma outra preocupação.
Eu tento o tempo todo incentivar estudiosos sediados nos Estados Unidos a ler coisas produzidas fora dos nossos limites. É muito difícil. Como toda comunidade acadêmica nacional, os Estados Unidos são paroquiais. Eles só gostam de ler estudiosos sediados aqui. E, você sabe, podemos pensar em debates sobre informalidade e marginalidade. Há uma longa tradição de estudos na América Latina sobre isso, mas os pesquisadores nos Estados Unidos não se engajam com ela. Por outro lado, eu me imagino escrevendo aqui sobre a marginalidade não mobilizando a literatura produzida nos Estados Unidos. Não vou ser publicado de forma alguma.
Portanto, parte do meu projeto intelectual é tentar fazer com que essas conversas aconteçam. Por outro lado, para ser totalmente franco, eu não vejo isso acontecendo. Assim como também não dialogamos com as outras disciplinas. Por mais que todos digam que nós devemos ser interdisciplinares, isso não está acontecendo tanto assim. Poderia acontecer? Possivelmente. Mas o problema para nós aqui tem a ver com, sabe, a dinâmica dentro do campo, as pressões sobre nós para trabalhar para a nossa disciplina. É aí que estão as recompensas. Os periódicos são especializados, os estudantes precisam intervir em uma disciplina. Portanto, é muito, muito difícil. Isso exigiria uma mudança na forma de funcionamento das instituições e nas recompensas que as instituições oferecem para atingir a posição de tenure e adquirir estabilidade, as bolsas de estudo, entre outras coisas. Tudo isso precisaria mudar.
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Esta entrevista foi realizada no período em que permaneci como Fulbright visiting scholar na Universidade do Texas, em Austin, entre janeiro e maio de 2022. Agradeço à Fundação Fulbright, ao professor Auyero por ter gentilmente aceitado conceder a entrevista e aos colegas Felipe Maia, Cristina Dias e Caroline Mendonça, cuja leitura e sugestões contribuíram para aperfeiçoar o texto.
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Um deles, “Vidas e Política das Pessoas Pobres: as coisas que um etnógrafo político sabe (e não sabe) após 15 anos de trabalho de campo”, foi publicado nesta Sociologias (Auyero, 2011).
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Disponível em: https://web.archive.org/web/20220707144143/http://essays.ssrc.org/tilly/auyero. Acessado em 26/06/2022.
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Teresa Caldeira é uma antropóloga brasileira, professora na Universidade da Califórnia, Berkeley. James Holston é um antropólogo norte-americano, professor na Universidade da Califórnia, Berkeley.
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Sobre a transformação da pobreza em categoria política pelas administrações do PT, ver Singer (2018).
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María Fernanda Berti. Co-autora de In Harm’s Way: The Dynamics of Urban Violence (2015).
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Auyero faz menção aqui à Carolina de Jesus. Na página 18 do livro os autores fazem referência a Quarto de Despejo da escritora brasileira Maria Carolina de Jesus para ilustrar, a partir do relato da própria Carolina, as condições ambientais das pessoas pobres e marginalizadas nas grandes cidades.
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Débora Swistun, antropóloga, coautora de Flammable (2009), nascida e criada no bairro onde foi feita a pesquisa.
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Pancho é um mediador político que atua em um assentamento informal localizado no subúrbio do sul de Buenos Aires, personagem central da etnografia à qual Auyero se dedicava no momento de realização da entrevista.
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10
Auyero refere-se a Sofía Servian com quem atualmente trabalha na etnografia sobre Pancho.
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Entrevista concedida em novembro de 2014 a Shana Harris (Auyero, 2014).
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12
Auyero refere-se aqui ao filósofo da linguagem britânico John Langshaw Austin.
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13
javierauyero.com
Referências
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1ALONSO, Angela. Repertório, segundo Charles Tilly: história de um conceito. Sociologia & Antropologia, v. 2, p. 21-41, jun. 2012. https://doi.org/10.1590/2238-38752012v232
» https://doi.org/10.1590/2238-38752012v232 - 2 AUYERO, Javier (ed.). Invisible in Austin: life and labor in an American city. Austin: University of Texas Press, 2015.
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3 AUYERO, Javier. Interview with Javier Auyero. [Entrevista concedida a] Shana Harris. Figure / Ground [online], 7 nov. 2014. https://figureground.org/interview-with-javier-auyero/
» https://figureground.org/interview-with-javier-auyero/ - 4 AUYERO, Javier. Patients of the state: the politics of waiting in Argentina. Durham: Duke University Press, 2012.
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5 AUYERO, Javier. Vidas e política das pessoas pobres: as coisas que um etnógrafo político sabe (e não sabe) após 15 anos de trabalho de campo. Sociologias, v. 13, p. 126-164, 2011. https://doi.org/10.1590/S1517-45222011000300006
» https://doi.org/10.1590/S1517-45222011000300006 - 6 AUYERO, Javier. Routine politics and violence in Argentina: the gray zone of state power. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
- 7 AUYERO, Javier. Poor people’s politics: Peronist survival networks and the legacy of Evita. Durham: Duke University Press, 2001.
- 8 AUYERO, Javier; BERTI, Maria Fernanda. In harm’s way: the dynamics of urban violence. Princeton: Princeton University Press, 2015.
- 9 AUYERO, Javier; SOBERING, Katherine. The ambivalent state: police-criminal collusion at the urban margins. Oxford: Oxford University Press, 2019.
- 10 AUYERO, Javier; SWISTUN, Débora A. Flammable: environmental suffering in an Argentine shantytown. Oxford: Oxford University Press, 2009.
- 11 BOURDIEU, Pierre et al The weight of the world: social suffering in contemporary society Stanford, Calif: Stanford University Press, 1999.
- 12 BOURDIEU, Pierre. Distinction A social critique of the judgment of taste. Nova York: Routledge, 1986.
- 13 BOURDIEU, Pierre. Outline of the Theory of Practice Cambridge: Cambridge University Press, 1977.
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14 DECKARD, Faith M.; AUYERO, Javier. Poor people’s survival strategies: two decades of research in the Americas. Annual Review of Sociology, v. 48, n. 1, p. 373–395, 2022. http://dx.doi.org/10.1146/annurev-soc-031021-034449
» https://doi.org/10.1146/annurev-soc-031021-034449 - 15 DESMOND, Matthew. Evicted: poverty and profit in the American city. 1. ed. Nova York: Crown Publishers, 2016.
- 16 GRIGNON, Claude; PASSERON, Jean-Claude. Lo culto y lo popular: miserabilismo y populismo en sociologia y en literatura. Translated from French to Spanish by Fernando Alvarez-Uria y Julia Varela. Madrid: Las Ediciones de La Piqueta, 1992.
- 17 SCHEPER-HUGHES, N. Death without weeping: the violence of everyday life in Brazil. Berkeley: University of California Press, 2009.
- 18 SINGER, André. O lulismo em crise: Um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Abr 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
07 Out 2022 -
Aceito
28 Fev 2023