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América Latina na encruzilhada: uma nova agenda social no alvorecer do século XXI?

Latin America at the crossroads: a new social agenda at the dawn of the 21st century?

RESENHA

América Latina na encruzilhada: uma nova agenda social no alvorecer do século XXI?

Latin America at the crossroads: a new social agenda at the dawn of the 21st century?

Márcio Barcelos

Doutorando em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO

Neste início de século XXI, a América Latina passa por um momento de redefinição das agendas governamentais no que tange às políticas sociais e aos sistemas de proteção social. Em um quadro geral marcado pelas vitórias eleitorais de lideranças de esquerda e de centro-esquerda, é possível observar a busca por novas estratégias e modelos de crescimento econômico e de inserção no cenário internacional, bem como a definição de uma nova agenda social. Esta é a tese central discutida por Sônia Draibe e Manuel Riesco em El Estado de bienestar social en América Latina: Una nueva estrategia de desarrollo. Para os autores, a região encontra-se em meio a uma trajetória em direção à construção de um novo modelo de Estado que articula proteção social com crescimento econômico. Esta nova estratégia de desenvolvimento que parece estar emergindo traz consigo legados tanto das políticas desenvolvimentistas quanto das políticas neoliberais que estiveram em voga na região ao longo do século XX.

Palavras-chave: Estado de Bem-Estar Social. América Latina. Sônia Draibe. Manuel Riesco. Estratégias de desenvolvimento.

ABSTRACT

In this beginning of the 21st century, Latin America is experiencing a moment of redefinition of governmental policies, in regard to social policies and social protection systems. Within a context marked by electoral victories scored by leftist and center-left leaders, one can perceive the search for new strategies and models of economic growth and integration into the international arena, as well as the definition of a new social agenda. This is the central thesis discussed by Sônia Draibe and Manuel Riesco in El Estado de bienestar social en América Latina: Uma nueva estratégia de desarrollo (The state of social welfare in Latin America: a new development strategy). According to the authors, the region is in the midst of a trend toward the construction of a new state model that combines social protection with economic growth. This new development strategy that seems to be emerging brings together the legacies of both the development policies and the neoliberal policies that were in vogue in the region throughout the 20th century.

Keywords: Welfare State. Latin America. Sônia Draibe. Manuel Riesco. Development strategies.

DRAIBE, Sônia M.; RIESCO, Manuel. El Estado de bienestar social en América Latina: una nueva estrategia de desarrollo. Madrid, España: Fundación Carolina, CeALCI, 2009.

Review: DRAIBE, Sônia M.; RIESCO, Manuel. El Estado de bienestar social en América Latina: una nueva estrategia de desarrollo. Madrid, España: Fundación Carolina, CeALCI, 2009.

Um dos livros mais importantes da área de pesquisa sociológica em políticas sociais é o de T.H. Marshall, "Cidadania, Classe Social e Status". Neste livro, são reunidos vários artigos do autor, dentre eles o capítulo clássico (que dá título ao livro) em que Marshall discute e descreve o surgimento e a consolidação da idéia de cidadania e sua conexão com as políticas sociais na Europa dos séculos XIX e XX. Há duas razões para começar a resenha do livro de Sônia Draibe e Manuel Riesco, dedicado ao exame dos sistemas de proteção social na América Latina, com um comentário a respeito de T. H. Marshall. Em primeiro lugar, a temática é comum - gira em torno de temas centrais para a pesquisa sociológica, como cidadania, direitos, papel do Estado e criação de políticas públicas destinadas à proteção do indivíduo frente às incertezas e riscos engendrados na sociedade capitalista. Mas há outro ponto interessante a ser destacado. O livro de Marshall é aberto por um capítulo intitulado "A Sociologia na Encruzilhada", escrito em 1946, no qual se discutem os rumos, o papel e a contribuição desta ciência social para a análise e a busca por soluções para os problemas sociais que afetavam a Europa do pós-guerra. A idéia de "encruzilhada" também é um ponto de partida para o livro de Draibe e Riesco, de imensa valia para sociólogos preocupados em refletir sobre problemas sociais e políticas públicas. Porém, aqui, se está falando de uma "América Latina na encruzilhada". Para os autores, neste alvorecer de século XXI, a região passa por um momento de redefinição das agendas governamentais no que tange às políticas sociais e, mais profundamente, aos próprios sistemas de proteção social. Em um quadro geral marcado pelas vitórias eleitorais de lideranças de esquerda e de centro-esquerda, é possível observar a busca por novas estratégias e modelos de crescimento econômico e de inserção no cenário internacional, bem como a definição de uma nova agenda social. Trata-se, portanto, de um momento crucial de escolhas e decisões que poderão formatar o desenho de um novo modelo de desenvolvimento, que articule crescimento econômico, progresso social e democracia. Este é o ponto de partida da análise desenvolvida por Draibe e Riesco em El Estado de bienestar social en América Latina: Una nueva estrategia de desarollo.

Uma vez que é possível observar uma redefinição profunda da agenda social em praticamente toda a América Latina, se coloca a questão: Estaria surgindo algo novo? Estaria em vias de construção um novo modelo de proteção social, ou ainda, um novo modelo de Welfare State, nesta região marcada historicamente pela desigualdade social, pelo baixo crescimento econômico e pela incapacidade demonstrada até então de uma redução significativa e duradoura da pobreza? Se, de fato, está surgindo algo novo, qual a influência e o legado do desenvolvimentismo e do neoliberalismo nas dinâmicas que dão origem às novas estratégias de proteção social levadas a cabo na América Latina deste início de século XXI? Mais do que encontrar e apresentar respostas acabadas, é certamente de grande importância para pesquisas atuais e futuras o esforço dos autores em formular novas questões sobre a problemática. Estaria em curso uma nova "onda" de políticas desenvolvimentistas, capitaneadas por um Estado revitalizado após a avalanche neoliberal dos anos noventa? Em caso de resposta afirmativa, qual o papel das políticas sociais nesta nova eta-pa? Como se articularão com as demandas por crescimento econômico e com a estruturação democrática em sociedades marcadas por legados históricos de autoritarismo? Qual o papel das políticas sociais e como estas seriam afetadas em um contexto de maior crescimento econômico, que acaba por acentuar os esforços por integração regional e articulações internacionais mais amplas? A partir deste conjunto de questões, Draibe e Riesco montam um panorama desse novo momento, marcado pela convergência entre economia e políticas sociais.

Os autores são experts na área de políticas sociais e análise de sistemas de proteção social. Sônia Draibe é professora de Ciência Política do Instituto de Economia da UNICAMP e investigadora sênior do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas desta universidade (NEPP-UNICAMP). Manuel Riesco é economista e vice-diretor do Centro de Estudios Nacionales de Desarollo Alternativo (CENDA) no Chile, além de consultor internacional de várias instituições, dentre elas a United Nations Research Institute for Social Development (UNRISD), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU). Esta publicação é editada pela Fundação Carolina, instituição espanhola voltada à cooperação entre os países ibéricos em questões relacionadas a desenvolvimento social e econômico. A análise é desenvolvida em cinco capítulos, além da introdução.

A parte introdutória do documento é central, pois é nela que são apresentados os argumentos teóricos e analíticos que fundamentarão a discussão subsequente. O ponto de partida é a análise das dinâmicas de interação entre as duas macro-políticas que influenciaram de maneira decisiva no desenho dos sistemas de proteção social na América Latina ao longo do século XX: o modelo desenvolvimentista e o neoliberal. O passo seguinte é a análise do legado das políticas desenvolvimentistas e neoliberais na conformação das novas estratégias de desenvolvimento. Destacase aqui o argumento dos autores de que algumas características chave do desenvolvimentismo permaneceram, em uma espécie de trajetória dependente (no sentido de path dependence), "por dentro" da estratégia neoliberal, ainda que a ênfase principal desta fosse o desmanche do Estado desenvolvimentista. Seguindo em uma senda teórica que remete ao institucionalismo histórico, os autores afirmam que certas tendências que já haviam sido impulsionadas no período desenvolvimentista seguiram presentes ao longo do período neoliberal: a aceleração da urbanização e da transição demográfica, a consolidação de elites empresariais modernas, o crescimento das massas assalariadas urbanas, a elevação do nível de escolaridade da população, a melhoria das condições de saúde, dentre outras. Contudo, Draibe e Riesco ressaltam que o último período deixou suas marcas nas sociedades latino-americanas: ambiente altamente favorável a empresas e investimentos estrangeiros, dependência dos fluxos financeiros externos, padrões modernos de vida e de serviços sociais destinados às classes média e alta, além de, no plano dos valores e das idéias, a emergência de novas visões referentes ao Estado, à economia, à liberdade, e às relações entre Estado e sociedade. No plano político, a "terceira onda de democratização" impulsionou a estabilização dos regimes democráticos e a criação de canais possibilitando a participação da sociedade nas discussões sobre políticas públicas.

A questão chave, a partir dessas considerações, passa a ser relativa ao que aconteceu com os sistemas de proteção social latino-americanos a partir da experiência neoliberal. Dois pontos são destacados: se, por um lado, houve efeitos negativos no que tange à provisão social, por outro, houve significativa melhora em matéria de eficiência e efetividade dos serviços sociais públicos, além do aumento da cobertura e da qualidade em áreas como educação e saúde. Porém os autores deixam muito claro que, mais do que procurar aspectos positivos ou negativos, é importante ressaltar a relativa incapacidade dos sistemas de proteção social latinoamericanos em oferecer efetiva proteção contra os riscos sociais que mais fortemente ameaçam as pessoas atualmente.

Neste ainda incipiente "terceiro momento histórico", quando desenvolvimentismo e neoliberalismo dão lugar a algo diferente, é possível observar três mudanças importantes relativas aos sistemas de proteção social: 1) uma alteração ainda embrionária, mas já perceptível, dos entendimentos estreitos e limitados de pobreza e inclusão social, para conceitos mais amplos de solidariedade e coesão social; 2) em relação às estratégias de luta contra a pobreza, a centralidade dos programas de transferência de renda, como mecanismos suplementares aos programas universais de educação e saúde e 3) os impactos da descentralização e o maior protagonismo, autonomia e capacidade institucional das cidades na gestão das políticas sociais. Para os autores, essas mudanças podem ser consideradas indicadores importantes da nova agenda social emergente, na qual os programas sociais funcionam como estimuladores do crescimento econômico, com destaque para programas ativos de expansão do mercado de trabalho, bem como o papel central desempenhado pelos fundos de pensão. Além disso, destacam a conformação de uma agenda social do MERCOSUL, na qual a noção de integração regional ganha importância crescente e se articula com as políticas sociais, principalmente no aspecto da cooperação entre cidades. É a partir destas considerações analíticas básicas que os autores vão apresentar cinco estudos que compõem o livro.

O primeiro capítulo trata das estratégias de desenvolvimento ao longo de um século de transformações sociais na América Latina. A idéia básica, aqui, é de que a nova agenda social latino-americana é mais bem compreendida quando enquadrada no quadro mais amplo de desenvolvimento social e econômico que parece estar sendo implementado na região. A América Latina encontrar-se-ia em um processo de transformação sócio-econômica, deixando para trás uma estrutura agrária e assumindo uma face moderna e urbana. Possui dois dos maiores centros urbanos do mundo (São Paulo e Cidade do México), e a transição demográfica continua a pleno vapor. Porém, como os autores deixam bem claro, esse processo de transformação é caracterizado por "diferentes tempos ao longo da mesma falha tectônica". Em torno de 10% da população estaria vivendo em países com nível baixo ou moderado de transição demográfica (Bolívia, Haiti, El Salvador, Honduras, por exemplo), a maior parte (75%) em países em plena transição (Brasil, México, Colômbia, Costa Rica e Suriname) e, por volta de 15%, em países que se encontram em uma etapa já avançada do processo (Uruguai, Argentina, Cuba, Chile, dentre outros). Os países do último grupo apresentam níveis de gasto público social entre cinco e quatorze vezes maior que os observados no primeiro grupo. Contudo, o argumento dos autores é que "todos os caminhos levam a Roma". Ou seja, os países latino-americanos percorreram diversas rotas, cada uma delas conduzindo às "diferentes modernidades atuais", conforme o termo que tomam emprestado de Goran Therborn, (1995).

Comum à grande diversidade de caminhos percorridos pelos diferentes países é o fato de que os Estados encabeçaram a marcha, e o fizeram por meio de duas estratégias que se sucederam. Por volta dos anos vinte e trinta do século passado, principalmente após os efeitos da Grande Depressão, a maioria dos Estados assume o desafio de levar progresso econômico e social às suas sociedades. Burocracias estatais (muitas vezes militares), apoiadas nas emergentes classes médias urbanas, formaram um bloco de poder que confrontou as elites agrárias tradicionais. Isso afetou de maneira significativa e, em muitos casos, praticamente destruiu as velhas relações agrárias. Ao final desse período, novas instituições haviam emergido, bem como mudanças na própria estrutura social, principalmente a partir de iniciativas como a alfabetização de milhões de camponeses e a criação de novos serviços sociais. São as bases do que os autores denominam o "desenvolvimentismo de bem-estar social latino-americano". No campo econômico, foi construída toda uma infra-estrutura e uma indústria que formaram a base do desenvolvimento subsequente. As últimas décadas do século XX são marcadas pelo esgotamento do modelo desenvolvimentista e pela adoção, por praticamente todos os Estados da região, das políticas que mais tarde seriam denominadas neoliberais, fundamentadas no que ficou conhecido como consenso de Washington. Dois "tipos" de neoliberalismo foram adotados: ao longo dos anos setenta e oitenta, em vários países (o caso mais emblemático é o do Chile), governos militares apoiados por "jovens elites cheias de ódio contra o Estado" promoveram o desmantelamento de várias instituições estatais, principalmente as concernentes às políticas sociais. Foi o período do "neoliberalismo fanático", que afetou menos o Brasil. Já os anos noventa foram marcados por um "neoliberalismo moderado": governos democráticos efetuaram algum desmonte de instituições estatais (destaque-se aqui o papel da Terceira Via), porém aumentaram o gasto público social, que cresceu 40% na década de acordo com relatório das Nações Unidas publicado em 2002. O ponto chave a destacar, a partir da análise das dinâmicas entre desenvolvimentismo e neoliberalismo, é o fato de que as transformações sociais iniciadas no primeiro período continuaram aceleradas no momento seguinte. No início dos anos 2000, os Estados novamente emergem como os atores principais, e a sociedade civil passa a ter papel importante.

No segundo capítulo, é analisada a questão da privatização dos serviços públicos sociais no Chile, exemplo mais paradigmático do "neoliberalismo radical" colocado em prática na América Latina a partir dos anos setenta. Os autores focalizam sua análise sobre dois setores: o previdenciário e educacional. O sistema de aposentadorias e pensões chileno foi privatizado, e tal medida foi apresentada, ao longo dos anos oitenta e noventa, como um modelo a ser seguido por outros países. Pela reforma de 1982, imposta por Pinochet, todos os trabalhadores foram obrigados a contratar planos de previdência privada. A única categoria que continuou no sistema de previdência pública foram os militares. Contudo, a principal consequência desta política foi o fato de que, em finais dos anos noventa, dois terços dos trabalhadores não tinham acesso ao sistema previdenciário que fora privatizado. A partir da segunda metade dos anos noventa, construiu-se um consenso em torno da urgência de reformar esse sistema. Na área das aposentadorias e pensões, segundo Draibe e Riesco, a privatização do sistema resultou em uma gigantesca transferência de recursos que beneficiaram as AFPs (Administradoras de Fundos de Pensão). Os maiores beneficiados pelo sistema acabaram sendo os homens detentores de altos salários, com condições de pagar prêmios suplementares. Já a imensa maioria de aposentados e pensionistas, especialmente as mulheres, foi muito prejudicada. De acordo com as estimativas oficiais, quase metade dos pensionistas jamais acumulariam os fundos necessários para financiar sequer uma pensão mínima (150 dólares mensais).

Na mesma época, os estudantes exigiam a reforma do sistema educacional, que também fora privatizado durante o período Pinochet. Grandes avanços educacionais tiveram origem no sistema educacional público de abrangência nacional, ampliado de maneira extraordinária ao longo dos anos sessenta até 1973. Porém a ditadura de Pinochet levou a cabo um violento desmantelamento daquele sistema. A educação privada foi estimulada e os investimentos públicos em educação foram reduzidos a um mínimo. Os indicadores educacionais de matrícula e gasto por aluno, que vinham melhorando a cada ano até 1973, retrocederam bruscamente ao longo do restante dos anos setenta até meados dos oitenta. A legislação privatizante de Pinochet se mantém até hoje, em ambas as áreas. Para Draibe e Riesco, no entanto, existem indícios da construção de um consenso que destaca a importância do Estado como regulador do mercado e na provisão de direitos sociais. Este consenso emergiu a partir do restabelecimento da democracia no Chile.

O terceiro capítulo é destinado a analisar os alcances e os limites de uma das grandes inovações dos sistemas de proteção social a partir dos anos noventa: os Programas de Transferências Condicionadas (PTCs). Os autores argumentam que tais políticas inovam em uma série de aspectos. Expressam uma preferência por transferências monetárias (cash benefits) em uma região onde historicamente havia se firmado a opção por oferta de serviços. Além disso, exigem contrapartidas por parte dos beneficiários, principalmente no que diz respeito às premissas de frequência escolar e cuidados de saúde dos membros jovens das famílias. Isso leva a outra inovação, relativa às possibilidades de fortalecimento dos serviços básicos de saúde e educação, uma vez que há um fator institucional que induz as pessoas a utilizarem estes serviços e exigirem seus direitos sociais básicos. São analisados mais detidamente três dos principais e mais consolidados PTCs da América Latina: Programa Bolsa Família (Brasil), Programa Oportunidades (México) e o Puente/Chile Solidário (Chile). Em que pesem as diferenças de formato e desenho de cada um, os autores chamam atenção para os resultados significativos em termos de melhora no consumo das famílias e de acesso aos serviços sociais fixados como requisitos. Porém os estudos e análises mais recentes ainda não são conclusivos no que diz respeito (1) à efetiva redução da pobreza e (2) ao aumento do capital humano das gerações mais jovens. Os PTCs focalizam os pobres, são implementados através de programas descentralizados e enfatizam a participação de organizações não governamentais.

Inicialmente, esse tipo de programa foi muito criticado, principalmente no que dizia respeito às possibilidades de governos explorarem seu funcionamento de maneira clientelista, reforçando velhos (maus) hábitos políticos há muito estabelecidos na região. Contudo, com o passar do tempo, firmou-se uma visão que reconhece que tais programas constituem uma inovadora tecnologia social, que contribui para introduzir agilidade, busca por padrões de gestão e eficiência e o início de uma cultura de avaliação dos resultados em políticas sociais. A conclusão geral da análise é que os PTCs parecem ter "chegado para ficar", e se inscrito como componentes fundamentais das novas estratégias de desenvolvimento econômico e social na América Latina. Além disso, possuem uma característica também inovadora de induzir a uma maior articulação entre as diversas áreas de políticas sociais. No limite, os PTCs constituiriam o que os autores definem como "políticas integrais", orientadas pelos princípios de multidimensionalidade, focalização, participação e centralidade da família. Pode-se indagar, em pesquisas futuras, em que medida e em que condições os PTCs poderão integrar, de forma permanente, a nova agenda social que parece emergir na América Latina.

A questão dos "novos atores" do desenvolvimento social é o tema geral do quarto capítulo. Nesta análise, o conceito de cooperação descentralizada tem importância central e é destacado o papel dos governos locais como agentes fundamentais no contexto dos sistemas de proteção social. As cidades assumem maior protagonismo e autonomia nos processos de tomada de decisão relativos a políticas sociais, e passam a integrar redes internacionais articuladas em torno do tema da redução da pobreza. Para os autores, isso constitui uma novidade digna de nota. Outra novidade é a própria reconceituação do conceito "pobreza", que passa a ser compreendido a partir de um enfoque mais amplo, que vai muito além da simples avaliação do nível de renda e da distinção tradicional entre pobreza relativa e pobreza absoluta. A pobreza passa a ser percebida a partir de um enfoque baseado nos direitos, em cujo núcleo estão os conceitos de igualdade e equidade, assim como a noção de igualdade de oportunidades.

Nos contextos democráticos que emergem a partir dos anos oitenta e noventa, a luta contra a pobreza passa a se inscrever no marco dos direitos sociais e humanos, que são garantidos, em última instância, pelo Estado. A orientação teórica por trás dessa nova orientação remete à abordagem das capacidades e do desenvolvimento humano de Amartya Sen, onde é introduzida uma visão positiva sobre as possibilidades de desenvolvimento dos pobres e de expansão de suas liberdades. Outro enfoque teórico complementar é o relativo à noção de capital social, conforme desenvolvido por Robert Putnam. O objetivo final passa a ser, para além da simples erradicação da pobreza, a busca pela coesão social. Nesse senti-do, vão surgindo novas institucionalidades em que a cooperação descentralizada e o novo papel das cidades são fatores fundamentais. Programas orientados pelo protagonismo de coletividades locais, pela ação em rede e pela mobilização para o desenvolvimento passam a ser implementados e incentivados por instâncias supranacionais como BID, Banco Mundial e União Europeia. Os autores descrevem e analisam vários programas baseados nessa nova concepção de desenvolvimento local e de coesão social, em países como Argentina, México, Chile, dentre outros. No Brasil, o caso analisado é o do Programa Favela-Bairro, no Rio de Janeiro, descrito como "um mega-programa de intervenção multisetorial". No que diz respeito à possibilidade de criação de coesão social, é citado um exemplo de fora da América Latina: a experiência do L'Hopitalet de Llobregat, na região metropolitana de Barcelona. O interessante desta experiência é o fato de ela constituir "um exercício de participação compartilhada dentro do município e entre instituições locais", e de estar obtendo relativo sucesso no que diz respeito à integração de grupos de migrantes como nuevos cidadanos, através de programas de participação cidadã e de busca pela melhora da qualidade dos serviços públicos.

Finalmente, o capítulo cinco analisa os novos espaços de desenvolvimento social e destaca que estes são baseados nas noções de desenvolvimento econômico, proteção social e integração regional. O ponto de partida e fio condutor da análise é sintetizado na frase que abre o capítulo: "Um novo modelo de Estado desenvolvimentista parece estar nascendo na América Latina." O que acontece atualmente na região guardaria forte similitude com o que Estados Unidos, Europa ocidental e outras nações desenvolvidas experimentaram ao longo da "era dourada" que sucedeu ao fim da II Guerra Mundial. Partindo dessas observações, e fundamentados em amplas investigações empíricas, os autores se dedicam a realizar algumas projeções e traçar alguns cenários possíveis para o próximo período.

A América Latina apresenta uma população de aproximadamente 600 milhões de pessoas, podendo chegar a um bilhão em meados do século XXI. As populações se encontram em plena transição demográfica, sendo que, em duas ou três décadas, a grande maioria terá adquirido a condição de plena cidadania, com padrões de serviços de saúde melhores que os atuais, educação básica de qualidade aceitável e boa parte das populações tendo acesso à educação superior. Nesse contexto, a região poderá experimentar uma nova condição de soberania. Uma vez tendo alcançado tal nível de desenvolvimento, as demandas por integração regional serão cada vez mais intensas.

O ponto chave destacado pelos autores é que os desafios enfrentados por uma América Latina em rápida modernização excedem em muito as dimensões de suas repúblicas atuais. O sonho de "libertadores da América" como Bolívar e San Martin, de uma América Latina mais integrada, poderá enfim realizar-se. Porém existem grandes desafios, dentre eles, a "atração gravitacional exercida pela gigantesca massa ao norte". O PIB atual da América Latina fica em torno de 40% do PIB estadunidense. A força do poderoso vizinho do norte é um fator constante de ameaça a iniciativas que visem ao reforço do MERCOSUL ou de outras bases de integração como a UNASUL, proposta pela Venezuela. Mas, apesar dos desafios, o caminho "longo e sinuoso" parece conduzir a uma maior integração. Nesse sentido, a questão que se coloca é relativa à agenda social do MERCOSUL, que é o acordo que mais avançou, em que pesem os acordos bi-laterais com os Estados Unidos, como o do Chile, e a cobertura midiática, que parece preferir noticiar as dificuldades da integração e não os avanços. A superação dos obstáculos requer, segundo os autores, a ação coordenada de "padrinhos poderosos", comprometidos com a idéia de integração. Dentre estes, são destacados como potenciais aliados as burocracias estatais latinoamericanas, as grandes cidades europeias, em especial as capitais, com seus programas de cooperação, o empresariado "moderno" latino-americano, intelectuais e artistas e, por último, mas não menos importante, trabalhadores assalariados, pobres urbanos e camponeses.

Uma das conclusões gerais a que se chega a partir da leitura do livro é o fato de a América Latina encontrar-se em meio a uma trajetória em direção à construção de um novo modelo de Estado, que articule proteção social com crescimento econômico, em um ambiente democrático no qual a participação da sociedade nos processos de tomada de decisão seja incentivada. As políticas sociais, que foram parte integral do projeto desenvolvimentista, neste momento voltam a ter relevância, mas carregando uma espécie de "legado positivo" do período neoliberal. O paradigma emergente, por óbvio, se afasta radicalmente dos preceitos do Consenso de Washington. Contudo, noções de responsabilidade fiscal, tecnologias de avaliação, relações entre atores públicos e privados, dentre outras, permanecem como componentes importantes das novas estratégias de desenvolvimento econômico e social. Este ponto é discutido de maneira muito mais aprofundada em um outro livro de Draibe e Riesco, publicado no contexto de uma série editada pela UNRISD. Tal série, denominada Social Policy in a Developmental Context, ainda não tem tradução para o português, infelizmente. O livro em questão é Latin America: A New Developmental Welfare State Model in the Making? (2007). Nele são lançadas as bases analíticas para o conceito de "Estado de Bem-estar Social Neodesenvolvimentista." A América Latina encontra-se em uma encruzilhada e, para os autores, este parece ser o caminho para onde ela se encaminha.

Recebido em: 05/04/2011

Aceite final: 12/05/2011

  • RIESCO, Manuel (Ed.). Latin America: a new developmental welfare model in the making? London: UNRISD/Palgrave-Macmillan, 2007.
  • THERBORN, Goran. European Modernity and Beyond. The Trajectory of European Societies, 1945-2000. Londres: SAGE, 1995.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2011
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