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Educação e psicologia social: uma perspectiva crítica

Resumo

O presente artigo analisa a relação da psicologia com a educação a partir da perspectiva da psicologia social. Procura evidenciar que a exigência de uma ciência psicológica, na configuração do campo educativo, é desenvolvida, desde o início do século XX, como psicologia social, tais como: John Dewey e George Mead, em contraposição à psicologia intelectualista.

psicologia educacional; educação e sociedade; teorias da educação


uma perspectiva crítica

ODAIR SASS

Psicólogo, Professor de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo: O presente artigo analisa a relação da psicologia com a educação a partir da perspectiva da psicologia social. Procura evidenciar que a exigência de uma ciência psicológica, na configuração do campo educativo, é desenvolvida, desde o início do século XX, como psicologia social, tais como: John Dewey e George Mead, em contraposição à psicologia intelectualista.

Palavras-chave: psicologia educacional; educação e sociedade; teorias da educação.

Uma visão de conjunto das influências da psicologia, presentes e pretéritas, sobre o pensamento e a prática educacionais indica regularidades importantes:

- a concentração acentuada na psicologia da criança e da aprendizagem, seguida à distância de estudos e pesquisas em torno de jovens e adolescentes no contexto escolar;

- a primazia de estudos, pesquisas e orientadores legais acerca do desenvolvimento cognitivo (estágios ou fases do desenvolvimento psicológico) e/ou afetivo;

- em conseqüência, a subordinação dos fins da educação, outrora estabelecidos em termos políticos, éticos e culturais, aos estágios pretensamente universais do desenvolvimento psicológico, especialmente de acordo com a seqüência estipulada pela psicologia genética de Jean Piaget e seus seguidores.

Às vezes identificadas em balanços da produção científica em educação, outras vezes explicitamente postuladas por seus proponentes, outras, ainda, implicitamente assumidas, tais tendências marcam os vínculos da psicologia com a educação.

A concentrada preocupação com o desenvolvimento da inteligência e da cognição não significa, é certo, que outras dimensões da vida do indivíduo em sociedade sejam simplesmente ignoradas. É pouco provável que atualmente alguém deixe de incluir como finalidade da educação, em discursos ou em escritos, o desenvolvimento do pensamento crítico e a formação para o exercício da cidadania.

Isso posto, este artigo tem duas finalidades: apresentar dados e informações acerca das tendências anteriormente apontadas, que permitam extrair as conseqüências, nem sempre positivas, da intromissão da Psicologia no campo educativo; e indicar, sob a ótica da psicologia social, uma perspectiva crítica da relação entre a psicologia e a educação.

De distintas maneiras, levantamentos sobre a pesquisa em educação, realizados em anos recentes, trazem à tona informações importantes a respeito da relação entre a psicologia e a educação. Assim, a análise da produção discente (dissertações e teses defendidas) na pós-graduação em Educação do país, entre 1982 e 1991, revelou, segundo a autora do estudo (Warde, 1993:53-81), um montante de 3.533 dissertações e teses distribuídas em 15 grupos temáticos. Um desses grupos, denominado Temas de Psicologia, concentrou 334, ou 9,5% do total. Cada grupo temático foi, por sua vez, subdividido em temas específicos de estudo. Adotando a denominação apresentada pela autora do referido estudo e agrupando em qüinqüênios os dados referentes ao grupo Temas de Psicologia, verifica-se, através da Tabela 1, que o desenvolvimento cognitivo é acentuadamente preferido como tema de pesquisa, atingindo 120 do total de 334 dissertações e teses, ou seja, abrangendo 36% da produção discente no período. Além disso, observa-se o interesse crescente pelo tema, que passou de 35 dissertações e teses, no período 1982-86, o que equivale a cerca de 25% da produção, para 85 no período 1987-91, ou 43% da produção. Este crescimento é denominado pela autora do estudo de vertiginoso (Warde, 1993:63).

Duas breves inferências merecem ser destacadas em decorrência dos dados apresentados. A primeira refere-se ao significado das informações coligidas. Não somente porque se trata de um estudo de natureza censitária, mas porque é plausível supor que as dissertações e teses refletem as perspectivas dos programas de pós-graduação que as produziram, é razoável afirmar que as informações sistematizadas revelam uma boa "fotografia" do que é produzido, no período, pela psicologia no campo da educação. A segunda inferência é relativa ao período posterior ao estudo, isto é, de 1992 em diante. Mesmo sem recorrer a atualizações do levantamento citado, para cotejar com dados empíricos, é bastante razoável admitir que o interesse pelo desenvolvimento cognitivo continuou o mesmo, se é que não aumentou, no decorrer dos anos 90, em virtude da forte influência dos construtivismos por estas paragens, que permanece pelo menos até a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais11. A leitura atenciosa dos PCN para o ensino fundamental indica problemas diversos de ordem pedagógica (a própria noção de parâmetro em detrimento do conceito de currículo, a organização dos conteúdos em áreas em vez de disciplinas, a inserção de valores sociais ¾ há muito considerados universais e, a um só tempo, condição e fim da educação ¾ sob a forma de temas transversais, dentre outros) e de ordem psicológica (a permanência do vezo psicologista que, ao fim e ao cabo, quer fazer repousar sobre o próprio aluno a possibilidade de realizar a "escola-cidadã) (PCN, 1999). .

A forte influência das teorias cognitivistas e da psicologia do desenvolvimento sobre a Educação, ao longo deste século, não deve ocultar outra perspectiva que, no mesmo período, de maneira mais tímida, menos evidente e menos elaborada, propugnava uma visão nada intelectualista da psicologia no campo educativo. A título de exemplo, as referências transcritas a seguir de autores que difundiam idéias bastantes distintas sobre a educação, tais como os pragmatistas norte-americanos John Dewey (1859-1952) e George Herbert Mead (1863-1931) e o materialista francês Henri Wallon (1873-1962), extraídas de momentos diferentes, são suficientes para evidenciar a pretensão de uma psicologia social voltada à educação, de preferência a uma psicologia da inteligência ou cognitiva.

Em um breve texto, publicado pela primeira vez em 1901 (terceira reimpressão em 1916), intitulado Psychology and social practice, Dewey (1916:7), depois de argumentar a favor da relacão entre a psicologia e a educação, admitindo que esta, por ser primariamente de natureza social, implica aceitar que a ciência educacional é antes de tudo uma ciência social, desenvolve a tese de que a psicologia pode ser uma importante auxiliar da educação, à medida que contribuir para identificar as condições que potencializem as aquisições intelectuais e ético-morais, desde que não pretenda ela mesma fornecer tais conteúdos; isto é, Dewey (1916:11 e ss.) já criticava o psicologismo que ameaçava impregnar a educação, ao pretender impor a aquisição dos próprios mecanismos psicológicos como os fins da educação.

Insistindo sobre o papel específico da escola, conclui o autor: "A escola é um lugar especialmente favorável para estudar a eficácia da psicologia na prática social; porque na escola a formação de um certo tipo de personalidade social, com certas atitudes e capacidades mentais produtivas, é o objetivo expresso. Idealmente, pelo menos, nenhum outro propósito deve restringir ou comprometer a predominância do propósito único [single purpose]. Tal não é o caso dos negócios, da política e das profissões. Todos eles têm sobre sua superfície, tomada diretamente, outros fins que devem servir. Em muitos exemplos essas outras finalidades têm, de longe, a mais imediata importância; o resultado ético é subordinado ou mesmo casual" (Dewey, 1916:35).

Desnecessário é comentar o evidente entendimento da psicologia como ciência social por parte de Dewey, há cerca de um século atrás. Apenas vale frisar que o autor ainda denomina a ciência psicológica simplesmente de Psicologia e não de Psicologia Social; denominação que será adotada somente anos mais tarde (Mc Dougall, 1912:228 e ss.).

De George Mead, observe-se o excerto extraído de um artigo, publicado em 1910, sob o título "Psychology of social consciouness implied in instruction": Se nos voltamos para o nosso sistema de educação verificamos que os componentes do currículo têm sido apresentados como perceptos [percepts] capazes de ser assimilados, pela natureza de seu conteúdo, por outros conteúdos da consciência, e o método indicado tem sido aquele que esses componentes podem ser mais favoravelmente preparados para tal assimilação. Este tipo de tratamento psicológico do material e da aula é imediatamente reconhecido como Herbartiano. É um tipo de psicologia associacionista. Seus críticos acrescentam que é intelectualista. Em todo caso não é uma psicologia social, visto que a criança não é considerada originalmente como uma personalidade [self] entre outras personalidades [selves]; é considerada como uma massa aperceptiva [apperceptions masse]. As relações da criança com os outros membros do grupo a que pertence nem encontram sustentação imediata no material, nem com o aprendizado dele. O banimento pela escola tradicional das atividades de jogos e de quaisquer atividades adultas em que a criança poderia tomar parte como uma criança, isto é, o banimento do processo em que a criança pode ter consciência de si mesma a partir das relações com os outros, significa que o processo de aprendizagem tem tão pouco conteúdo social quanto possível (Mead, 1910:689, grifo nosso).

Duas considerações sobre o texto anterior. Uma de caráter geral: como se vê, faz tempo que os próprios psicólogos encetam críticas sobre o intelectualismo da psicologia que invade a educação, bem como sobre a conseqüência nefasta de subtrair, tanto quanto possível, a experiência social do aluno, em seu processo de formação; as posições dos autores clara e consistentemente sustentadas, no início do século, fazem parecer vazias expressões hodiernas do tipo "a criança como um todo", "desenvolver o pensamento crítico", "formar para o exercício da cidadania", entre outras.

A outra consideração de natureza específica, pode ser assim apresentada: é de se notar que a crítica de Mead, a respeito da cisão-intelecto e personalidade, é dirigida contra a psicologia herbartiniana; se a cisão entre o desenvolvimento intelectual/cognitivo e a formação do indivíduo permanece nas teorias cognitivas contemporâneas, é uma questão que deve ser tratada concretamente.22. A obra mais importante de Mead, publicada pela primeira vez em 1934, até hoje inacessível em português, é Mind, self and society (Mead, 1972). Um esforço de atualização e crítica ao autor pode ser encontrado em Sass (1992). Uma análise importante das disputas teóricas entre a sociologia e a psicologia como expressão da cisão real entre indivíduo e sociedade foi efetuada, em 1955, por Adorno (1986).

Ainda, acerca da cisão entre o intelecto e a pessoa, vale mencionar um outro autor, Henri Wallon, que em "As etapas da sociabilidade na criança", publicado em 1952, argumentava, a propósito da indispensável ligação entre a psicologia e a pedagogia, o que se segue: "Julgo que é sobretudo indispensável para o psicólogo, porque a psicologia só se alimentaria de abstrações e de simples verbalismo se não se encontrasse campos de aplicação dos seus princípios, campos de controle, campos de observação.

Ora, a escola é um desses campos, um campo privilegiado, porque se trata da obra mais fundamental na sociedade dos nossos dias: a educação das crianças. Pela gravidade das responsabilidades que assume, pela complexidade dos interesses que representa, faz contrapeso às perfeições por vezes bizantinas do laboratório" (Wallon, 1975: 201-202).

A defesa da especificidade da escola, considerada pelo autor a obra mais fundamental da sociedade moderna, soa como um vaticínio contra certos artifícios e normatizações que a psicologia quer impor à educação. Por isso arremata ainda o autor: "Até agora os educadores e psicólogos interessaram-se sobretudo pelo desenvolvimento intelectual da criança. Considerou-se que a instrução prevalecia sobre a educação propriamente dita e os psicólogos interessaram-se sobretudo pelo estudo das capacidades intelectuais inerentes à infância.

Foi assim que, em França, Binet estabeleceu uma escala de desenvolvimento segundo a idade (...) Outros autores, e em particular nos países de língua francesa, psicólogos como Piaget tentaram determinar, de um modo que se diria qualitativo, os progressos sucessivos feitos pela inteligência da criança.

Mas tornar este problema sob o aspecto unicamente intelectual é fazer necessariamente uma obra um pouco abstrata e um pouco superficial. O desenvolvimento da inteligência está ligado na criança ao desenvolvimento de sua personalidade total. Para falar de sua personalidade não podemos ignorar as suas condições de existência. Estas variam com a idade. Com a idade variam as relações da criança com o seu meio. De idade para idade torna-se diferente o meio da criança" (Wallon, 1975:202).

Vale registrar que as posições de Walon, como essas aqui transcritas, são sustentadas em vastas pesquisas empíricas, relatadas ao longo de toda a sua obra; aliás, mais acessível hoje no Brasil, mais ainda pouco relevada pelos educadores e psicólogos.

Em diversos de seus escritos e conferências, Wallon, sem ironia, dizia que o desvio intelectualista da psicologia levava certos psicólogos a enxergarem a criança efetuando operações de reversibilidade, ao manipular material flexível (massa, argila, etc.), ou quando aprende a somar e a subtrair, mas estes profissionais têm enorme dificuldade em visualizar operações de reversibilidade nas relações de reciprocidade que a criança estabelece com outras crianças ou com o adulto; por exemplo, quando se exclui de um grupo para ser incluída em outro, e assim por diante.

A esta altura, consideram-se suficiente o rol de autores e a amostra de suas posições sobre a relação entre a psicologia e a educação, ainda que tanto o rol de autores quanto suas elaborações pudessem ser bastante ampliados.

Do que foi até aqui exposto, espera-se ter evidenciado que a tendência atual, na área da educação, de privilegiar estudos sobre o desenvolvimento cognitivo, repousa na separação que as próprias teorias psicológicas, especialmente aquelas de vocação cognitivista, promovem entre o desenvolvimento intelectual e a formação do sujeito. Apesar da supremacia da visão intelectualista, ao longo deste século, há o esforço de uma crítica a essa tendência por autores que reivindicam uma relação mais profícua se estabelecida em termos de uma psicologia social. Tal contraponto é sustentado, como visto, por autores tão distintos quanto John Dewey, George Mead e Henri Wallon.

Essas evidências, contudo, provocam outras indagações que precisam ser respondidas: por que autores de posições teóricas tão distintas quanto, por exemplo, George Mead e Henri Wallon, além de cada um estar em seu lugar em seu tempo, convergem no que se refere à crítica da função ideológica exercida pelas teorias psicológicas que, aplicadas à educação, fomentam a cisão entre o plano intelectual e a personalidade individual? É tal cisão produzida por desvio de óptica dos autores que elaboram tais teorias?

A título de antecipação do que é discutido em detalhes no próximo tópico, a posição aqui assumida é a de que se trata de uma cisão real entre indivíduo, sociedade e cultura; entre sujeito e objeto; portanto, não se trata de uma simples falha teórico-conceitual dos teorizadores, contornável pelos artifícios engenhosos dos arranjos e rearranjos de conceitos.

Constatar que a cisão entre indivíduo e sociedade, entre inteligência e personalidade, é real implica admitir que as teorias psicológicas nada mais fazem do que refletir aquela cisão. Porém, nesse caso restam duas outras questões que imediatamente emergem: tal entendimento não traz como conseqüência o descarte da teoria, qualquer que seja? Se as teorias refletem o que está na realidade cindido, por que reivindicar que a relação da psicologia com a educação seja estabelecida em termos de psicologia social, que também é teoria, não?

A primeira pergunta contém apenas a aparência de uma radicalidade lógica; a rigor é destituída de todo o conteúdo histórico que a ciência moderna carrega, pois, se há teorias sociais que tão somente reproduzem as estruturas sociais que as fundamentam, cumprindo apenas o desígnio ideológico de deixar intocadas tais estruturas, é exatamente porque estão esvaziadas do componente decisivo que está na origem da acepção moderna da teoria: a crítica ao objeto da teoria. Como teoria social, a crítica deve ser voltada para a sociedade, caso contrário, serve apenas à reprodução. Na história moderna das ciências, encontra-se essa perspectiva crítica, a partir das obras de Marx e Freud, dentre outros, na teoria da sociedade elaborada pelos autores da Escola de Frankfurt.

Em conseqüência da resposta à primeira pergunta, depreende-se que reivindicar a perspectiva da psicologia social no campo educativo é uma condição necessária, mas não suficiente. Em suma, defende-se que a teoria crítica da sociedade é condição indispensável para o desenvolvimento de uma psicologia social, crítica; ambas são destinguíveis tanto quanto indissociáveis.

Para corrigir possíveis ambigüidades de entendimento quanto às questões ou posições assumidas ao início deste tópico, julga-se conveniente tratá-las uma por vez.

Primeiro o problema da cisão real entre indivíduo e sociedade em lugar da suposição de mero erro cognitivo dos teóricos. A respeito desse assunto, Theodor Adorno (1986:39) contrapõe-se tanto à independência perniciosa que prospera entre as ciências sociais e as ciências da psique quanto à fusão conceitual entre tais ciências ¾ proposição derivada mais da vontade de seus elaboradores do que extraída das reais possibilidades de algum wholistic approach. Especificamente, sobre a tentativa de Talcolt Parsons de unificar a sociologia e a psicanálise, o autor pondera: "As ciências da sociedade e da psique, enquanto correm desunidas e paralelas, sucumbem por regra geral à sugestão de projetar sobre seu substrato a divisão de trabalho do conhecimento. A separação da sociedade e psique é falsa consciência; eterniza categorialmente a cisão entre o sujeito vivente e a objetividade que governa os sujeitos, mas provém, todavia, deles mesmos. Contudo, desta falsa consciência não se pode retirar, por decreto metodológico, o solo em que pisa. Os homens não conseguem reconhecer a si mesmo na sociedade, nem esta tampouco neles, porque encontram-se alienados entre si e frente ao todo (...) A falsa consciência tem, ao mesmo tempo, razão: a vida interior e a exterior estão desgarradas entre si. Somente em virtude da determinação da diferença, não mediante conceitos ampliados, se expressa adequadamente sua relação. A verdade do todo descansa na unilateralidade, não em uma síntese pluralista" (Adorno, 1986:38-39).

Da incisiva análise de Adorno, parece plausível extrair a seguinte conseqüência: uma teoria crítica da sociedade não pode prescindir de uma ciência da psique, por ele denominada de psicologia social analiticamente orientada (Adorno, 1986:36), o que equivale a dizer que aquela teoria há de se desenvolver em estreita conexão com o desenvolvimento das disciplinas particulares, por exemplo, a psicologia social.

Há de se evitar a independência da teoria crítica e as demais ciências sociais, posto que isso significaria desvinculá-la dos objetos particulares em que se realiza o todo, na mesma medida em que há de se evitar entendê-la seja como uma filosofia "guardadora de lugar", para usar uma expressão de Habermas, seja como uma pretensa teoria integradora de teorias particulares, o que implicaria, no mínimo, cometer erro semelhante ao de Parsons, ou aderir à palavra de ordem da integração das ciências que é, ainda segundo Adorno (1986:44), "expressão de desamparo, não de progresso".

É importante, em segundo lugar, argumentar sobre os nexos entre a teoria crítica e a psicologia social.

Se, como visto anteriormente, a admissão da psicologia social representa um importante passo para superar a separação entre a inteligência de tudo ou mais que constitui o indivíduo, considera-se, aqui, que resta dar mais um passo decisivo, capaz de lhe proporcionar a dimensão imprescindível e ausente: relacioná-la com uma teoria da sociedade, que seja crítica.

Em outras palavras, voltar-se para o indivíduo, dando as costas à sociedade, não pode levar a psicologia social a prescindir de uma teoria crítica da sociedade, que contribua para estabelecer seus princípios, formular seus problemas de investigação, delinear seus métodos subordinando-os às exigências dos objetos de estudo, proporcionando-lhe estrutura conceitual que potencialize a interpretação crítica de seus resultados. Dar as costas à sociedade sob a óptica da psicologia social significa encontrá-la no indivíduo, não como um reflexo mas reflexivamente.

Aliás não é outro o entendimento, sustentado com todas as letras, de Max Horkheimer, em seu clássico ensaio "Teoria tradicional e teoria crítica", de 1937, ao discutir as relações entre a teoria crítica e as ciências especializadas: "Se a teoria crítica se restringisse essencialmente a formular respectivamente sentimentos e representações próprias de uma classe, não nos traria diferença estrutural em relação à ciência especializada; nesse caso haveria uma descrição de conteúdos psíquicos, típicos para um grupo determinado da sociedade, ou seja, tratar-se-ia de psicologia social. A relação entre ser e consciência é diferente nas diversas classes da sociedade" (Horkheimer, 1980a:135).

Em virtude da importância do argumento, vale a pena procurar o sentido preciso que o autor quis dar à expressão "diferença estrutural entre a teoria crítica e as ciências especializadas". Dentre as diversas passagens do referido texto que esclarecem a posição do autor, destaca-se aquela em que, ao circunscrever o pensamento crítico, ele assim se expressa: "A meta que este quer alcançar, isto é, a realização do estado racional, sem dúvida tem suas raízes na miséria do presente. Contudo, o modo de ser dessa miséria não oferece a imagem de sua superação. A teoria que projeta essa imagem não trabalha a serviço da realidade existente; ela exprime apenas o seu segredo. Por mais exatamente que os equívocos e confusões possam a qualquer momento ser mostrados, por mais desastrosas que possam ser as conseqüências de erros a direção do empreendimento, o próprio labor intelectual, por mais repleto de êxito que prometa ser, não sofre sanção do senso comum nem pode se apoiar nos hábitos" (Horkheimer, 1980a:137).

Uma teoria que mereça de fato receber tal denominação, isto é, uma teoria que seja crítica, tem o compromisso de exprimir os segredos da realidade existente sem que isso signifique trabalhar a favor dessa realidade. Ao contrário, sua pretensão de transcender ao que está disposto, projetando a sociedade futura, impulsiona-a à negação das condições sociais vigentes. Para escapar do idealismo e do materialismo vulgar, no entanto, a teoria não pode simplesmente pautar-se na "liberdade sem freios do pensamento", para usar uma expressão de Horkheimer e Adorno. A rigidez da sociedade atual exige o rigor dos métodos e procedimentos desenvolvidos até agora pelas ciências especializadas.

Em suma, a teoria crítica não é uma filosofia, embora seja indissociável da Filosofia clássica (cf. Horkheimer, 1980b), não se confunde com a sociologia, a psicologia ou a história, ao mesmo tempo em que se aproximaria de qualquer teoria tradicional caso não incorporasse em si os resultados dessas disciplinas. A essa perspectiva de desenvolvimento da teoria crítica em consonância com aquela das disciplinas especializadas deveriam prestar mais atenção, inclusive, aqueles que a defendem.

A terceira questão que exige comentários é aquela relativa aos nexos que se pretende estabelecer entre a educação, a psicologia social e a teoria crítica da sociedade.

Mesmo que tenha ficado claro o que até aqui se expôs, vale recapitular os seguintes pontos: a escola, admitida como uma complexa instituição social moderna, é determinada pela sociedade em que se inscreve e, por isso mesmo, retém contradições, ambigüidades, problemas e perspectivas específicas; em decorrência, para se enfrentar os problemas da educação escolar, especialmente aqueles relacionados com a formação do aluno, do professor e de todos que direta ou indiretamente da escola fazem parte, é necessária ciência ¾ se se tratar não apenas de reproduzir exigências da sociedade atual, mas, ao contrário, de a ela resistir e apontar para a sua transformação que garanta a liberdade, a igualdade, a fraternidade e a autonomia do indivíduo, então, uma teoria crítica inexoravelmente se impõe a par das ciências especializadas. Por isso, a psicologia social é aquela que melhor possibilita o enfrentamento dos grandes problemas que atingem a educação, bem como potencializa o desenvolvimento da própria teoria crítica da sociedade.

Este não é um texto pragmático. Ainda assim, considera-se imprescindível mencionar alguns daqueles problemas julgados aqui cruciais da educação atual.

O primeiro é relativo à recente reorganização das escolas dos ensinos fundamental e médio em São Paulo, que resultou na separação dos alunos das primeiras quatro séries de todos os outros alunos da educação básica sob os argumentos de racionalização dos recursos e de benefícios psicológicos que tal separação propiciaria às crianças menores. As posições contrárias à reorganização incluíram desde exigências dos organismos financeiros internacionais e intenções políticas de desmobilizar os trabalhadores da educação, até os prejuízos reais causados às crianças e às famílias, visto que a separação de escolas separou também irmãos e colegas, dificultando ainda mais o deslocamento das crianças. O que poucos educadores e quase nenhum psicólogo disseram refere-se ao caráter duplamente regressivo da reorganização nos termos em que foi efetivada; regressivo em relação à estrutura escolar, porque põe em risco a escolaridade fundamental de oito anos ¾ risco que a organização das oito séries em dois ciclos não atenua ¾ devido à terminalidade implícita que admite após as quatro primeiras séries; regressivo em relação pedagógica, porque a separação das crianças mais novas das mais velhas é justificada, apesar de não ser nomeada, pela conhecida noção de contágio, noção a que tanto Gustave Le Bon recorreu, entre fins do século XIX e início do século XX, para explicar a conduta das massas. A idéia é simples: indivíduos de caráter fraco, em situações coletivas, são conduzidos pelos líderes de acordo com os seus desejos em decorrência da disponibilidade presente naqueles de espírito fraco que, pelo mecanismo do contágio, deixam-se levar.

É desconhecida qualquer teoria psicológica que recomendasse seriamente a separação, nos termos propostos, de crianças mais novas das mais velhas. Obviamente não se quer aqui tornar indiferentes as necessidades, os interesses, as vontades e as possibilidades reais de uma criança de sete anos daqueles de um adolescente de 15 anos. A ponderação que aqui se apresenta incide sobre o seguinte ponto: não há justificativa razoável para tomar o convívio de crianças de diferentes faixas etárias como um mal ou um bem em si. Essa convivência pode propiciar o exercício do poder dos mais fortes sobre os mais fracos, dos maiores sobre os menores, dos grupos sobre os indivíduos, mas pode também favorecer o respeito mútuo, o desenvolvimento da solidariedade entre os mais velhos com os mais jovens, a redução da frieza. Não é necessário relembrar exemplos extraídos da história da pedagogia, recente e pretérita, para corroborar que essa possibilidade é real.

Outro problema que deve ser mencionado refere-se ao preconceito e à violência que se manifestam na escola. Infelizmente, a famosa expressão de Adorno quanto à necessidade de que toda a educação deveria, como exigência primeira, trabalhar para que Auschwitz não se repita ressoa hoje provavelmente de maneira tão aguda quanto a que foi proferida há quase 40 anos (Adorno, 1995:119). As transformações do Estado e as relações deste com a sociedade, e o crescente progresso tecnológico ¾ pai do incremento dos mecanismos de exclusão social e da miséria ¾ têm levado populações inteiras, grupos sociais e indivíduos à desesperança e à regressão. Vive-se uma nova farsa: sob a ilusão de que finalmente as decisões são livres e democráticas, o Estado mínimo impõe-se como Estado forte, eliminando regras sociais estabelecidas, se necessário for, com um grau de autoritarismo que não deixa nada a dever aos regimes militares. Os homens podem escolher aquilo que o mercado livre lhe impuser; o apelo ao consumo desenfreado é seguido pela impossibilidade de consumir e de desfrutar dos bens sociais e culturais produzidos em larga escala.

A persistência com que é difundida a regra de que sobrevivem o mais forte e o mais ousado tem levado, especialmente, crianças e jovens a agirem, regressivamente, como um adulto franco-atirador, que está sempre pronto para eliminar a caça. Tudo isso leva-nos a repetir: trata-se não de um possível retorno à barbárie, mas sim da intensificação da barbárie existente e que expressa a irracionalidade do todo.

Afirmar que problemas cruciais como esses não são estritamente psicológicos e, portanto, seria inútil a psicologia querer resolvê-los isoladamente, não equivale dizer que a psicologia social pode omitir-se de investigá-los, com todo o rigor que dispuser, se pretende ser uma psicologia social crítica. Sem que seja preciso aqui delinear projetos de investigação sobre esses problemas ou indicar pesquisas importantes já realizadas, vale registrar que tanto a produção do preconceito no âmbito escolar, desde o período da educação infantil, quanto a reprodução da violência na escola não são temas inéditos nas pesquisas da psicologia social.33. Uma importante atualização sobre o tema do preconceito, sob a ótica da teoria crítica, incluindo, ao final, um conjunto de ponderações e sugestões do autor voltadas para a resistência ao preconceito, foi elaborada por Crochik (1997).

Por certo, poder-se-ia arrolar um elenco de temas específicos que mereceriam maior atenção dos educadores e que poderiam receber importante contribuição da psicologia social: desde as conseqüências para os alunos das atividades de grupo ou individuais às interações sociais entre a extraclasse, até as funções que podem ser exercidas pela arte, ciência e esportes individuais e coletivos.44. Várias sugestões temáticas, ainda que pontuais, podem ser encontradas, por exemplo, em Adorno (1995). Contudo, tal empreendimento desviaria dos objetivos estabelecidos neste artigo.

Considera-se que tenha ficado suficientemente esclarecido o ponto principal: a possibilidade de uma contribuição crítica da psicologia com a educação escolar, sob a perspectiva da psicologia social, voltada para a formação do indivíduo autoconsciente e autônomo.

Há duas implicações importantes das posições aqui assumidas que merecem ser explicitadas, de sorte a cumprir integralmente os propósitos mencionados no início, e que incidem novamente sobre a relação psicologia social, teoria crítica e educação.

É certo que propugnar a perspectiva da psicologia social na educação resolve apenas uma parte do problema formulado inicialmente. Contudo, esse problema não fica completamente resolvido pela vinculação dessa ciência especializada com a teoria crítica da sociedade, tal como foi apresentado anteriormente, quando as perguntas são: qual psicologia social? Toda e qualquer produção dessa ciência independente de corrente teórica? Deve-se privilegiar a produção de uma dessas correntes teóricas?

As questões não comportam respostas simples, mas o entendimento, ainda que provisório, aqui adotado pode ser assim resumido: parece precipitado recusar ou aceitar de antemão uma ou outra teoria da psicologia social, até porque há uma diversidade acentuada de objetos de estudo. Daí, como foi admitido, a cisão real entre indivíduo e sociedade; diferentes teorias acentuam momentos ou aspectos distintos que falam, de ângulos diferenciados, sobre a verdade da relação entre sujeito e objeto.

Entretanto, evitar a recusa não quer dizer aceitar toda a produção, teórica e empírica, dessa ciência. Assim, não há como simplesmente absorver, da perspectiva apontada, produções teóricas originadas de uma psicologia social entendida como um disciplina autônoma com princípios e métodos, que descobre leis próprias e cujos resultados podem ser aplicados indistintamente a qualquer instituição social.

Para não estender a multiplicidade de referências, mencionam-se apenas, na seqüência temporal de publicação das obras, os seguintes autores: Fleming (1966); Asch (1977:519 e ss.); Backman e Secord (1971) e Rodrigues (1983:63-77). Esses autores, cada um à sua maneira, entendem a educação e a escola como um local de aplicação das leis científicas obtidas pela psicologia social, concebida como ciência experimental. Entendimento, ressalve-se, bastante distinto daquele manifestado por autores mencionados anteriormente (Dewey, Mead e Wallon), para os quais a escola e a educação implicam práticas sociais específicas que exigem conhecimentos específicos e, por isso, não podem ser entendidas apenas como lugar de aplicação de conhecimento abstratamente adquirido.

Por último, é importante elucidar a relação entre a teoria crítica da sociedade e a educação. Sem dúvidas, os autores da Escola de Frankfurt analisaram os temas da cultura, da formação e da educação. Entretanto, não por acaso, recusaram-se a elaborar uma teoria crítica da educação; nem por isso deixaram de tomar posições sobre problemas, diría-se, estritamente pedagógicos, especialmente Theodor Adorno (1995), para não mencionar Walter Benjamin (1993).

Esse aspecto é importante de ser ressaltado porque uma educação contrária à barbárie, uma educação para a emancipação do indivíduo, uma educação voltada para resistência do sujeito àquilo que o impede de se realizar, expressões utilizadas por Adorno (1995), em suas incisivas análises, não é tarefa, stricto sensu, de uma teoria crítica da sociedade aplicada à educação ou transportada para a educação. Tal empreendimento carrega uma positivização capaz de aplacar as tensões entre a teoria crítica e as ciências especializadas, em particular aquelas com a psicologia social.

Se foram razoavelmente entendidas as teses centrais da teoria crítica, vale concluir que não se trata de querer realizá-la no campo da educação ou em qualquer outro. A tarefa prática a que ela impõe é a de persistir, com todo o rigor científico e reflexivo que a rigidez atual da sociedade e dos homens exige, na negação determinada dessa sociedade, visando a sua transformação em uma sociedade que promova de fato a democracia, a liberdade e a emancipação do indivíduo.

NOTAS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • __________ . Mind, self and society 18a ed. Chicago, The University of Chicago Press, 1972.
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  • 1
    . A leitura atenciosa dos PCN para o ensino fundamental indica problemas diversos de ordem pedagógica (a própria noção de parâmetro em detrimento do conceito de currículo, a organização dos conteúdos em áreas em vez de disciplinas, a inserção de valores sociais ¾ há muito considerados universais e, a um só tempo, condição e fim da educação ¾ sob a forma de temas transversais, dentre outros) e de ordem psicológica (a permanência do vezo psicologista que, ao fim e ao cabo, quer fazer repousar sobre o próprio aluno a possibilidade de realizar a "escola-cidadã) (PCN, 1999).
  • 2
    . A obra mais importante de Mead, publicada pela primeira vez em 1934, até hoje inacessível em português, é
    Mind, self and society (Mead, 1972). Um esforço de atualização e crítica ao autor pode ser encontrado em Sass (1992). Uma análise importante das disputas teóricas entre a sociologia e a psicologia como expressão da cisão real entre indivíduo e sociedade foi efetuada, em 1955, por Adorno (1986).
  • 3
    . Uma importante atualização sobre o tema do preconceito, sob a ótica da teoria crítica, incluindo, ao final, um conjunto de ponderações e sugestões do autor voltadas para a resistência ao preconceito, foi elaborada por Crochik (1997).
  • 4
    . Várias sugestões temáticas, ainda que pontuais, podem ser encontradas, por exemplo, em Adorno (1995).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2003
    • Data do Fascículo
      Jun 2000
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