Resumo
O presente trabalho discute as possibilidades da política participativa de planejamento urbano, com a alteração do equilíbrio de forças sociais consolidadas em matéria urbana. A análise recupera a experiência dos dois governos do PT em Santos, no período 1989-96, identificando as estratégias que orientaram as relações entre o Executivo municipal e os grupos sociais ligados à produção imobiliária urbana. O governo Telma de Souza priorizou a questão fundiária, e as relações com esses grupos, pautadas pelo confronto, evoluíram para o impasse, interrompendo-se o processo da política. O governo David Capistrano Filho priorizou o fomento das vocações econômicas locais, e as articulações com o setor da construção urbana permitiram formular uma alternativa negociada de política.
plano diretor; planejamento urbano; participação; governo municipal; Brasil pós-1988
PLANO DIRETOR EM SANTOS
política negociada
SONIA NAHAS DE CARVALHO
Socióloga, Analista da Fundação Seade
Resumo: O presente trabalho discute as possibilidades da política participativa de planejamento urbano, com a alteração do equilíbrio de forças sociais consolidadas em matéria urbana. A análise recupera a experiência dos dois governos do PT em Santos, no período 1989-96, identificando as estratégias que orientaram as relações entre o Executivo municipal e os grupos sociais ligados à produção imobiliária urbana. O governo Telma de Souza priorizou a questão fundiária, e as relações com esses grupos, pautadas pelo confronto, evoluíram para o impasse, interrompendo-se o processo da política. O governo David Capistrano Filho priorizou o fomento das vocações econômicas locais, e as articulações com o setor da construção urbana permitiram formular uma alternativa negociada de política.
Palavras-chave: plano diretor; planejamento urbano; participação; governo municipal; Brasil pós-1988.
A cidade de Santos, fundada logo após a descoberta do Brasil, expandiu-se somente a partir da segunda metade do século XIX, em processo integrado ao desenvolvimento da cultura cafeeira no Estado de São Paulo. Essa expansão associou Santos ao crescimento econômico do Estado de São Paulo e, desde então, o município vem se firmando como pólo regional que favoreceu o aparecimento e a consolidação das cidades do entorno.
Nos anos 50 do século XX, a cidade sofreu profundas transformações, que alteraram seu perfil socioeconômico e redefiniram suas relações com os municípios da Baixada Santista. Para tanto, foram decisivos os investimentos públicos que resultaram na abertura da ligação rodoviária entre o planalto e a baixada, com a inauguração da via Anchieta, em 1947, iniciativa que contribuiu para acentuar a vocação turística da cidade e dos demais municípios da região; e, na década de 50, na instalação do pólo industrial em Cubatão,1 1 . Até sua emancipação, em 1948, Cubatão integrava-se ao município de Santos. complexo industrial voltado para o fornecimento de insumos para a indústria de bens duráveis que se desenvolvia no planalto e que passaria a constituir o principal foco dos movimentos migratórios para a baixada. Nos anos 60 e 70, o crescimento desse pólo industrial intensificou-se, bem como se expandiram e diversificaram as atividades portuárias e aumentaram os fluxos turísticos, pari passu ao desenvolvimento econômico do planalto, com a implantação da indústria automobilística e a abertura de novas ligações viárias: a Rodovia dos Imigrantes e a Ponte do Mar Pequeno.
Em Santos, foram introduzidas novas atividades econômicas, em especial comerciais e de serviços, e a cidade, que tinha na função portuária sua principal tendência, viu estimulada sua vocação turística, elevando-se acentuadamente o fluxo de visitantes provenientes do planalto e interior do Estado. O caráter regional das novas atividades econômicas contribuiu para a redefinição das relações entre os municípios da baixada e confirmou a posição de liderança ocupada por Santos ¾ uma liderança que a reforça como centro regional de comércio e serviços.
As transformações urbanas que se identificam na cidade associam-se à especificidade do turismo implementado ¾ caracterizado pela opção de compra de imóveis para o lazer ¾, aos novos fluxos migratórios e às opções de local de residência da população. Esses fluxos, provenientes, em sua maioria, de outras regiões brasileiras, compõem-se basicamente de trabalhadores atraídos pelas oportunidades de emprego geradas pela dinamização da construção civil e das obras públicas.
A intensidade dos deslocamentos resultou em taxas de crescimento populacional mais elevadas para a região do que propriamente para o município de Santos,2 2 . As taxas de crescimento demográfico da Região de Governo de Santos foram, nos períodos 1950-60 e 1960-70, de, respectivamente, 4,67% e 4,47% ao ano (Baeninger e Souza, 1994:9), mais elevadas que as observadas para o total do Estado, que foram de 3,57% e 3,20%. No município de Santos, nos mesmos períodos, as taxas foram de 2,55% e 2,77% (dados da Fundação Seade). pois as características físicas de seu território restringem as opções de instalação desses contingentes de população. De um lado, a área urbanizada do município está restrita à sua porção insular ¾ correspondendo a somente 39,4 km2 de uma área total de 474 km2.3 3 . A população santista residente na porção insular do território municipal era da ordem de 99% de sua população total. Na sua parte continental, somente no antigo distrito de Bertioga havia alguma concentração populacional, mesmo assim de baixa proporção.4 4 . O distrito de Bertioga foi emancipado na década de 90. De outro lado, a oferta reduzida de áreas livres e as condições de habitabilidade satisfatórias existentes na ilha ¾ dadas as elevadas coberturas dos serviços de infra-estrutura e de equipamentos sociais ¾ elevam os custos de moradia.
Dentro desse quadro, na porção insular do território santista, as únicas opções para os segmentos populacionais de baixa renda têm sido a ocupação de áreas nos morros, que se adensam e passam a assumir nítidas feições de favela; o deslocamento para a Zona Noroeste, o que leva inclusive à favelização de áreas de mangues e restingas; e a ocupação das áreas residenciais deterioradas do centro da cidade, acelerando o processo de encortiçamento. Porém, essa população instala-se também em áreas de pior oferta de infra-estrutura dos municípios de Cubatão (Jardim Casqueiro), São Vicente (Humaitá e Samaritá), Guarujá (Vicente de Carvalho) e Praia Grande, e, dessa forma, ultrapassa os limites municipais de Santos. Os empregados de salários mais elevados das indústrias instaladas em Cubatão optam por residir em Santos, um município que, além de uma rede instalada de serviços de infra-estrutura e de equipamentos sociais, oferece outros serviços urbanos e comerciais mais sofisticados.
O impacto sobre a configuração urbana de Santos é percebido, à primeira vista, no paredão de edifícios residenciais construídos ao longo da orla marítima. Um documento da prefeitura municipal identifica-o também na redistribuição espacial de sua população: "As famílias residentes de maior renda passaram a ocupar um novo espaço ¾ na área denominada Vila Rica, entre as avenidas Ana Costa e Conselheiro Nébias; a classe de renda média transferiu-se para bairros mais centrais; e as famílias de menor renda começaram a transferir-se para áreas menos valorizadas como a zona noroeste e os morros, além das margens dos rios e canais naturais onde surgem as favelas de palafitas" (Sedam, 1992:4). As atividades comerciais e de serviços no território de Santos localizam-se predominantemente nos bairros pertencentes à área central e nos bairros do Gonzaga e Boqueirão, na faixa da orla. Os demais caracterizam-se por uma ocupação predominantemente residencial, à exceção dos bairros da entrada da cidade, cuja ocupação está associada às atividades portuárias e retroportuárias ligadas ao transporte e à armazenagem de carga.
O padrão socioespacial de Santos, se pouco se distingue do verificado na maioria das cidades brasileiras, é também fruto das características do desenvolvimento da região que lhe atribuiu a liderança sobre os municípios do entorno, sem, contudo, privá-la dos mesmos problemas que os afetam. Solucioná-los, porém, pressupõe instrumentos urbanos que dependem prioritariamente de decisões afetas à esfera municipal de governo, em face das regras institucionais brasileiras, reforçadas com o restabelecimento do município como ente federado, conforme determinou a carta constitucional de 1988. Quanto à política urbana, a Constituição dedicou um capítulo ao tema, em que recolocou o planejamento urbano na pauta das políticas urbanas e elegeu o plano diretor ¾ de responsabilidade do poder público municipal, elaborado e executado pelo Executivo e transformado em lei pelo Legislativo ¾ como instrumento básico à ordenação da cidade.
Em Santos, o plano diretor, elaborado nos anos 90, fundava-se em um diagnóstico do processo de ocupação urbana que enfatizava os efeitos indutores do desenvolvimento das principais atividades econômicas e definia o papel do município no contexto regional. Para os governos do Partido dos Trabalhadores ¾ Telma de Souza (1989-92) e David Capistrano Filho (1993-96) ¾, tratar os problemas urbanos implicava também seguir duas diretrizes gerais. A primeira era, claramente, a orientação mais geral do partido aos seus membros em cargos eletivos, cunhada na expressão inversão de prioridades. Inverter prioridades na alocação de recursos públicos era o mecanismo adotado para minimizar as desigualdades sociais. O padrão esperado de intervenção pública seria o de buscar alcançar a cidade homogênea, intensificando ações e investimentos públicos nas porções da cidade mais mal-atendidas por serviços e equipamentos urbanos. Não se tratava mais de buscar a cidade equilibrada e ordenada preconizada pelas soluções urbanas dominantes nos anos 60 e 70 e que se encontravam em vigor na cidade desde 1968, com o Plano Diretor Físico então aprovado.
A segunda diretriz era implantar e consolidar um projeto democrático de governo, com o apoio e estímulo à participação popular no processo das políticas públicas. Para tanto, seria necessário fomentar a organização popular e criar instâncias para sua representação, como os conselhos municipais.5 5 . Além disso, o projeto democrático de governo buscou garantir o acesso generalizado às informações públicas. Os dois governos priorizaram o desbloqueio do acesso aos dados municipais e a comunicação com a população em geral, por meio da publicação diária do jornal D.O. Urgente, distribuído gratuitamente. No caso do planejamento urbano, a implantação dessa diretriz significava, inclusive, alterar a composição de forças sociais representada no Conselho Consultivo do Plano Diretor (Coplan), instituído em 1968, de forte presença dos setores ligados à produção imobiliária urbana.
A política de planejamento urbano a ser executada com o plano diretor era, assim, a proposta de uma política pública participativa que, esperava-se, alterasse o equilíbrio de forças sociais historicamente representadas em políticas dessa natureza, pois manter o mesmo perfil de participação social significava dar continuidade à tendência de definição dos grupos sociais com os quais a política urbana historicamente dialoga.
Assim, não é de surpreender que o perfil social representado no conselho do plano diretor fosse fortemente marcado por aqueles setores, assim como o campo mais geral que tradicionalmente delimita quais são os problemas urbanos e de que modo são normalmente tratados. Nessa linha de interpretação, Margareth Weir (1992:191) afirma que é a forma como as políticas existentes se desenvolvem que define alguns grupos como vozes autoritativas em um campo particular de política e, simultaneamente, torna outras vozes de menos credibilidade. As políticas já desenvolvidas, além disso, influenciam o leque de soluções possíveis e fornecem analogias das quais políticos e policy-makers utilizam-se para julgar futuras opções.
Diferentemente desse quadro geral e histórico, a natureza participativa da política de planejamento urbano em Santos significava mudar o padrão de definição dos instrumentos reguladores da produção do espaço urbano fundado na interlocução ¾ e, muitas vezes, parceria ¾ com os grupos ligados ao setor de produção imobiliária urbana, sejam seus segmentos empresariais, sejam os profissionais que lhes dão suporte.
Cada uma das administrações do período comportou-se de forma distinta nessa interlocução. Sem que tivesse adquirido os contornos formais de um programa de governo, a gestão Telma de Souza valeu-se da obrigatoriedade de elaboração dos planos diretores imposta pela Constituição de 1988 para discutir a questão fundiária e a regulação pública do solo urbano. Essa foi a questão política prioritária de seu governo, e as possibilidades de proposição foram oferecidas pelas condições políticas que, consagradas pela Constituição de 1988, atribuíram maior autonomia à esfera municipal de governo para formular e implementar políticas.
Em face dessas condições, o plano diretor foi visto como instrumento que propunha realizar a reforma urbana discutida nos anos 80, por intermédio do governo municipal. Assim, ele abriu caminho para a discussão da questão fundiária e a proposição de instrumentos reguladores do solo urbano que contivessem mecanismos de separação entre o direito de propriedade e o de construir.
O governo David Capistrano Filho, já mais distante das teses da reforma urbana dos anos 80 e com a experiência de governo acumulada pelo PT, atribuiu outra prioridade ao plano diretor, abandonando as metas de realização de uma reforma urbana. O conteúdo atribuído ao plano diretor expressou o esforço da liderança do Executivo de integrar as diversas iniciativas públicas para o fomento das vocações econômicas locais, de cidade portuária e turística e de centro comercial e de serviços. A diretriz de estimular as vocações da cidade fixou metas e alinhou programas considerados mais adequados ao contexto dos anos 90, e o plano diretor, além de plano de uso do solo, foi também plano de governo e de desenvolvimento.
No governo Telma de Souza as relações com os setores sociais ligados ao mercado imobiliário urbano evoluíram para o impasse, comprometendo a continuidade da política, pelo menos no que dizia respeito à estruturação dos instrumentos básicos de regulação da produção urbana do município em sua porção insular. No governo David Capistrano Filho, o deslocamento do eixo central da política favoreceu a conciliação, negociando-se, com esses mesmos setores, a proposta de plano diretor que, transformada em projeto de lei, alcançou a esfera legislativa. Vejamos com mais vagar esse processo.
CONFRONTO E NEGOCIAÇÃO POLÍTICA
A política de planejamento urbano do governo Telma de Souza não continha a clareza necessária quanto aos passos a serem percorridos e aos instrumentos técnicos a serem adotados. Em seu lugar, tinha-se a certeza da modalidade de planejamento que não se queria desenvolver, e que se apoiava na crítica às experiências brasileiras anteriores de planejamento urbano. Era claro também que o desenvolvimento da política teria, por condição básica, a integração dos mais amplos setores sociais ao seu processo. Perseguir essa meta era atender às diretrizes de governo, que continham, entre os princípios fundamentais de ação, a democratização da gestão pública, com a disseminação do acesso às informações e a incorporação da participação popular no processo de formação das decisões.
Assim, a política de planejamento urbano pressupunha a incorporação prioritária da participação dos setores sociais que, em geral, são excluídos do processo de decisão de políticas e dos benefícios decorrentes das ações dos agentes públicos e privados sobre a cidade; pressupunha, ainda, o rompimento com as soluções tradicionalmente adotadas no Brasil de disciplinamento do uso e ocupação do solo urbano, propondo-se, em seu lugar, instrumentos públicos de caráter redistributivo. Ampliar a participação no processo de formação da política significou enfrentar problemas de diferentes ordens. Do mesmo modo, os esforços por romper o padrão dominante de política trouxeram as dificuldades próprias de propostas de mudança. Tais problemas e dificuldades, que eram previsíveis, surgiram das ações e reações dos principais atores envolvidos e desenharam a política no governo Telma de Souza.
A alternativa politicamente possível conformou um modelo de política que foi por nós denominado de segmentação por projeto ¾ expressão do resultado da interação entre os principais atores envolvidos em um processo marcado por dois eixos distintos: tratamento integral da porção insular do território santista e tratamento de temáticas urbanas específicas. Em outras palavras, uma política que se caracterizou, em seu primeiro eixo, pelos obstáculos que impediram o avanço das discussões em face da oposição dos setores sociais ligados ao mercado imobiliário, e, no segundo, pela interação entre os atores envolvidos, conduzindo à aprovação dos instrumentos de regulação urbanística referentes à questão ambiental e à de habitação de interesse social. Este último caso permitiu ao governo atender a algumas prioridades, como a de integrar à cidade "legal" os setores sociais excluídos dos benefícios urbanos, com a instituição de mecanismos de regulação do uso e ocupação do solo em áreas de favelas, de cortiços e em vazios urbanos, destinados à habitação de interesse social.
Como decorrência, à natureza redistributiva, originalmente proposta, associou-se um sentido compensatório, pois a abrangência do zoneamento especial de interesse social ficou restrita às porções do território santista já ocupadas pela população de baixa renda. Simultaneamente, o caráter redistributivo da política foi redefinido, visto que a própria segmentação da política expressou a maneira como os conflitos locais foram administrados, conduzindo-a para uma arena distributiva, ao restringir as articulações entre o Executivo e os segmentos populares nas definições relativas aos problemas habitacionais de interesse social e entre este poder e os setores sociais ligados ao mercado imobiliário nas questões sobre regulamentos básicos do uso e ocupação da cidade.
Desenvolver uma política que apostasse na ampliação da participação como mecanismo para alterar o equilíbrio de forças preexistentes colocou, para o governo, um duplo desafio. Em primeiro lugar, houve dificuldades de mobilização popular em um quadro local marcado pelo baixo nível de organização dos setores de menor renda, em especial aqueles de base urbana. Essas dificuldades, não superadas, incluíram, de um lado, a não-mobilização de novos segmentos sociais e, de outro, as críticas formuladas dentro da própria máquina de governo ao processo de condução da política. Além dessas, houve outras, localizadas no único espaço institucional de articulação entre o poder público e a sociedade santista, o Conselho Consultivo do Plano Diretor (Coplan), e que foram estratégicas para os resultados da política.
O segundo desafio situou-se no âmbito desse mesmo conselho. Para uma política que pressupunha instituir mecanismos de participação social, a condição institucional era dada com a existência do Coplan. Porém, esse conselho era um espaço cuja composição remontava à época de sua criação em 1968 e que privilegiava alguns setores sociais. Formalmente, era a instância de competência para articular, representar e expressar as forças sociais locais em matéria de plano diretor. Mesmo para o governo do PT, a existência desse conselho não estava em questão, o que é atestado pela própria regularidade de funcionamento e sistemática de convocação das reuniões pelo governo. De novembro de 1989 ¾ data da primeira convocação ¾ a novembro de 1992 ¾ final do governo ¾, o conselho reuniu-se 40 vezes, o que representou uma média anual superior a 12 reuniões. Para o governo, não se questionavam também as atribuições legais de órgão consultivo. Ao contrário, entendia-se a função do conselho como complementar à função legislativa da Câmara.
O que, de fato, o governo questionava era o perfil de forte acento dos grupos dominantes ali representados, pois o conselho expressava apenas uma parcela da ampla gama social, sendo os segmentos populares sub-representados. Não obstante questionar seu perfil, o governo santista de Telma de Souza não empreendeu nenhuma ação no sentido de alterá-lo. As iniciativas foram localizadas e se restringiram às solicitações da subprefeitura de Bertioga6 6 . Bertioga era, ainda, distrito de Santos e, dentro do projeto de descentralização administrativa do governo Telma de Souza, criou-se uma unidade administrativa descentralizada. e do Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural e Artístico do Município de Santos, que tiveram encaminhamentos distintos, e à incorporação dos representantes da Câmara municipal, porém respaldada pela lei de criação do conselho.
Incorporar novos membros ao Coplan implicava alterar a lei de 1968 que havia criado esse conselho. A orientação geral adotada foi a de se aguardar a revisão global do plano diretor, em curso, para incluir as mudanças de composição. Indagada sobre a ausência de mudança de composição do conselho, a então secretária de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente afirmou que os esforços de mudança ou ampliação não foram empreendidos "até para não criar mais atritos" com os membros conselheiros.7 7 . Entrevista concedida à autora por Lenimar Rios, secretária de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do governo Telma de Souza, em 27/07/98.
Como conseqüência, o Coplan manteve-se como fórum de representação majoritária dos interesses produtores da cidade, e as dificuldades à incorporação de novos segmentos sociais e ao rompimento com a concepção anterior de plano diretor inviabilizaram a proposta original do Executivo municipal. Como a composição de forças sociais representadas nesse conselho impossibilitou as iniciativas para alterar sua composição, o governo precisou buscar novos espaços, ainda que pouco formalizados, de participação popular para a discussão e elaboração de suas propostas. O desenho segmentado da política foi, assim, consolidando-se nesse processo, e as alternativas de tratamento da questão fundiária e de incorporação da participação popular foram realizadas, com maior intensidade, na discussão do problema habitacional e, menor, na questão ambiental para a área continental do município. Por sua vez, o Conselho Consultivo do Plano Diretor permaneceu inalterado em sua composição e consolidou-se como o espaço institucional dos conflitos em torno dos instrumentos centrais da política, quais sejam, os instrumentos relativos à regulação do uso e ocupação do espaço urbano da porção insular do município.8 8 . Desde a concepção original, as porções insular e continental do território municipal mereceram tratamento distinto, destinando-se, à primeira, instrumentos ao adensamento urbano, e, à segunda, de preservação.
Proposta de Plano Diretor: Impasse nas Negociações
As premissas básicas que fundaram a proposta urbana para a porção insular de Santos enfatizaram as conseqüências sobre as demandas de equipamentos sociais e de infra-estrutura urbana produzidas pelos adensamentos tópicos característicos do processo de crescimento urbano santista. Além disso, o plano diretor foi concebido como instrumento de orientação do crescimento urbano com qualidade de vida, de incorporação das áreas precárias do território urbano que crescem e se estruturam à margem dos regulamentos urbanos e de democratização da cidade.
Com base nessas premissas, os objetivos da proposta do governoforam: distribuição justa dos ônus e benefícios decorrentes das melhorias da infra-estrutura urbana; racionalização do uso dessa infra-estrutura; incorporação da cidade informal à cidade real; otimização da correlação entre as funções urbanas; preservação, proteção e recuperação do ambiente natural e urbano; e democratização da gestão urbana.9 9 . A recuperação dos elementos estruturadores da proposta de uso e ocupação do solo foi extraída do projeto de lei elaborado pela Sedam, do texto que o introduzia e da ata da reunião do Coplan, realizada em 05/12/90. Foram também elaboradas propostas para a zona especial de interesse cultural e imóveis de interesse cultural; as Zonas Especiais de Interesse Ambiental; o Fundo de Desenvolvimento Urbano de Santos, e o Conselho de Desenvolvimento Urbano de Santos. Na análise acima, ativemo-nos aos aspectos estruturadores que orientaram a concepção básica de intervenção no uso e ocupação do solo.
A concepção de intervenção, que realizaria esses objetivos, tinha como prioridade disciplinar o adensamento urbano de forma a atender às necessidades sociais não-satisfeitas, geradas pelo próprio processo histórico de ocupação da cidade. Tal concepção fundamentava-se na constatação de que os instrumentos legais existentes, em particular os índices urbanísticos estabelecidos pela lei do Plano Diretor Físico de 1968, haviam sido insuficientes para atender a essas necessidades, e, em seu lugar, propunha a divisão territorial da Santos-ilha em zonas de disciplinamento do adensamento urbano e a adoção de um índice padrão de ocupação e aproveitamento do lote. Para cada zona de adensamento, delimitada em conformidade com as características da ocupação existente, foram fixados os valores máximos de aproveitamento e ocupação.
Fundada nessa concepção, a proposta elaborada distinguia-se da definição de zonas de usos urbanos preferenciais, características do zoneamento funcional, pois não segregava atividades urbanas "cuja incompatibilidade entre si fosse passível de medidas de controle, objetivando, com isso, democratizar o espaço". A incompatibilidade entre atividades seria avaliada "pelo desconforto e risco a que possa estar submetida, num determinado momento, parcela da população, ou pelo comprometimento da integridade dos patrimônios público e privado. As atividades, cujas medidas mitigadoras não permitam sua convivência com as demais, ficaram restritas a uma zona ao longo das bordas leste e norte da ilha".10 10 . Essas atividades correspondem àquelas portuárias e retroportuárias.
O modelo proposto completava-se com a adoção de um índice padrão que corresponderia a uma taxa de ocupação de 50% e um coeficiente de aproveitamento de duas vezes a área do lote, ressalvando-se os índices específicos na região dos morros. Com a possibilidade de exploração do potencial construtivo do lote, o índice de aproveitamento poderia chegar até seis vezes a sua área, desde que a ocupação máxima fosse igual a 25% do lote. Nesses casos, com base no conceito de que vertilicalizar é parcelar verticalmente o lote, pressupunha-se a contrapartida ao poder público correspondente a 25% da área do lote a ser atendida pelo empreendedor e destinada a suprir a carência de logradouros e equipamentos públicos, bem como a adequação do sistema viário.11 11 . A contrapartida, por ordem de prioridade, seria quitada em terreno, obras e serviços ou moeda. Nesse último caso, os recursos seriam transferidos para um fundo municipal a ser criado, e sua aplicação seria fiscalizada por um conselho composto por representação do poder público e da sociedade civil. A instituição desse índice padrão seria o instrumento central da reforma urbana, requerida para se alcançar a igualdade no acesso aos benefícios coletivos gerados na cidade e, dessa maneira, imprimir conteúdo redistributivo à política de planejamento urbano.12 12 . Além desse índice, foi proposta a instituição do mecanismo de transferência de potencial construtivo para imóveis classificados como de interesse cultural ou social, admitida exclusivamente para imóveis integrantes de corredores de atividades econômicas e para lotes contidos nas Zonas Especiais de Interesse Social 3 (Zeis 3), que correspondem às intervenções em cortiços. Esses mecanismos, apesar de propostos, não chegaram a ser tema de discussão nessa fase da política. Outros instrumentos foram definidos, mas eram de natureza complementar ao eixo estrutural da proposta formulada.
A proposta baseada no zoneamento por adensamento e na adoção de um índice padrão contrariava, em particular, os interesses ligados ao mercado imobiliário urbano. Esse setor, não obstante reconhecer a inadequação dos instrumentos urbanísticos vigentes desde 1968 à realidade dos anos 90, opôs-se sistematicamente à proposta do Executivo, marcando sua presença na maioria absoluta das reuniões do Coplan realizadas. Das 40 reuniões realizadas, a Associação dos Empresários da Construção Civil da Baixada Santista (Assecob), principal entidade de representação dos interesses do mercado imobiliário local, compareceu a 37 reuniões. Ao seu lado, alinharam-se os representantes do Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais de São Paulo (Secovi) e do Sindicato da Indústria da Construção Civil de Grandes Estruturas do Estado de São Paulo (Sinduscon), com comparecimento superior à metade das reuniões.
As diferenças conceituais entre as propostas dos representantes do setor da construção civil e do Executivo municipal, bem como as relações conflituosas entre ambos, rapidamente evoluíram para o impasse, com a Assecob apresentando uma contraproposta ao projeto do governo, que considerava o "fator custo" ¾ entendido como a viabilidade de mercado para a definição dos índices urbanísticos a serem utilizados ¾ elemento estruturador central. De forma sintética, essa proposta explicitou a posição dos empresários do setor da construção civil, partidários da adoção de índices de aproveitamento e ocupação diferenciados segundo porções do território urbano do município, bem como da manutenção do zoneamento por zonas de usos urbanos predominantes.
Afinal, o que estava em jogo? A proposta do governo, especialmente através do solo criado, era a de instituir novo padrão de relacionamento entre os setores público e privado que rompesse com a perspectiva tão somente regulatória dos instrumentos urbanísticos tradicionalmente utilizados. Ao propor a separação praticamente universal e generalizada entre os direitos de propriedade e de construir, alteravam-se as relações entre aqueles setores, submetendo-se as ações do setor privado às decisões públicas. Por essa perspectiva, a proposta apresentada pela Assecob colidia frontalmente com a do Executivo.
A crítica central à instituição de um índice padrão fundamentava-se no único e mesmo tratamento dispensado para toda a cidade, não se negando, em contrapartida, a possibilidade de sua utilização em áreas específicas e delimitadas da cidade. Entre os argumentos da Assecob, a questão não seria mais a de instrumentos para intervenção urbana, pois, ao se generalizar o instituto do solo criado para todo o território urbano, a proposta seria de reforma tributária.13 13 . Segundo o presidente da Assecob, a oposição não era contra a "idéia" do solo criado e declarava-se a favor, desde que fosse diferenciado por regiões da cidade ou até por atividade urbana. Entrevista concedida à autora por José Marcelo Ferreira Marques, em 21/07/94.
A avaliação da proposta desse setor pelo Executivo municipal ressaltou que a diferença básica situava-se na preocupação com o urbano contida na proposta da prefeitura. "O poder público vê questões da ocupação de forma mais abrangente porque é sobre ele que recaem as demandas coletivas suscitadas pelo adensamento. Ao se propor índices menores pensa-se não somente em melhorar o padrão de adensamento como também criar mais áreas livres, ainda que a nível privado, reduzindo a pressão social que essa questão representa."14 14 . Conforme ata de reunião do Conselho Consultivo do Plano Diretor (Coplan). O reverso dessas palavras expressaria a estreiteza dos objetivos de que se reveste a ação de um grupo privado, preocupado unicamente com a consecução imediata de seus interesses. Assim interpretada, a visão de intervenção pública do Executivo opunha-se, por princípio, à visão do setor empresarial da construção civil. Uma postura inflexível que comprometeu a continuidade da política quanto à definição dos instrumentos de regulação do uso e ocupação do solo.
Por meio das ações da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, o governo adotou uma postura maniqueísta em relação aos empresários do setor da construção civil em geral, situando-os entre os principais responsáveis pela produção de um espaço urbano socialmente desigual, tendo sido duramente criticados por suas resistências às propostas apresentadas sobre o solo criado.
"O pessoal está acostumado com um determinado padrão de trabalho, de apropriação do solo e o solo criado acaba colocando uma coisa totalmente nova, que o pessoal tem dificuldade de enfrentar. É claro que quem constrói não quer perder, ele quer ter mais vantagem para poder utilizar, potencializar mais o uso, o lucro, etc. A hora que você coloca um custo para ele, mesmo que você depois demonstre que este custo não existe em determinados casos ou é extremamente residual, realmente não é fácil. Houve uma resistência muito grande."15 15 . Entrevista concedida à autora por Lenimar Rios, em 27/08/94.
A reação dos empresários da construção civil foi dura: "Estas pessoas têm as idéias fundamentadas na questão ideológica, na questão profissional de cada um, mas são idéias que não têm nada a ver com a sociedade. Você não pode fazer uma legislação que você não leve em consideração a sociedade, você tem que conhecer a sociedade para saber quais são os problemas dela para poder propor uma legislação para ela. Afinal de contas para quem é a legislação? É para regular o setor empresarial da construção civil? Isto é uma coisa. O setor da construção civil existe para resolver um problema da sociedade, ou seja, moradia. Alguém tem que fazer para alguém comprar. Se você faz legislação você tem que levar isto em consideração até porque o setor empresarial da construção civil não é um bicho-papão, vai gerar empregos, impostos para a cidade... Então se você tem como adversário o setor da construção civil... ".16 16 . Entrevista concedida à autora por José Marcelo Ferreira Marques, em 21/07/94.
Em suma, as duas propostas vieram acompanhadas de atitudes inflexíveis, apoiadas em noções preconcebidas. Para o Executivo municipal, as influências das orientações do PT eram fortes. Além disso, ser governo significava a oportunidade de ver implementadas muitas das propostas gestadas em outros fóruns. Para o setor da construção civil, identificado com outra linha política, a resistência ao diálogo estabeleceu-se a priori, até por diferenças ideológicas. O resultado já era previsível, pois, se "o empresariado não vem junto", conforme a expressão do secretário de Obras e Serviços Públicos, a discussão sobre essa dimensão da política de planejamento urbano "era uma discussão que não saía muito do lugar", segundo as palavras da secretária de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente.
Recorrer ao confronto na negociação de políticas foi a principal estratégia utilizada pelo governo Telma de Souza. Tal como também identificada por Frey (1996), esta estratégia mostrou-se positiva ao se decidir pela intervenção na empresa privada de transportes coletivos, bem como ao se pautar em regime de urgência o projeto de lei do zoneamento especial de interesse social. Porém, recorrer ao confronto não solucionou o impasse nas relações com o setor da construção civil. Nesse caso, as ações do governo ¾ sem os aliados esperados ¾ e do setor imobiliário urbano levaram à interrupção da política, pelo menos no que diz respeito aos instrumentos gerais de regulação do uso e ocupação do solo.
A decisão por interromper o processo mostrou que esse setor foi o interlocutor privilegiado na discussão dos instrumentos de regulação do solo urbano, pois a impossibilidade da negociação impediu a continuidade da política e, ao Executivo, a conclusão e o encaminhamento de um projeto de lei de plano diretor à Câmara, não obstante haver-se empenhado para tanto. A quantidade de reuniões realizadas e a apresentação e discussão das propostas do Executivo e da Assecob na esfera do Conselho Consultivo do Plano Diretor confirmaram-na como a instância institucional com poder de veto na política de planejamento urbano em Santos. Apesar de, formalmente, não ter caráter deliberativo, o conselho reuniu a competência política capaz de suspender o andamento da política, uma vez que a proposta do Executivo não atendia aos interesses majoritários ali representados. Os grupos ligados à construção civil, por seu turno, fizeram uso e se beneficiaram desse canal de representação social junto à política de planejamento urbano.
O problema urbano "em partes" expressou, assim, a permeabilidade da política aos diferentes valores e interesses sociais existentes na cidade, atribuindo-lhe, conseqüentemente, objetivos múltiplos. Entre estes, os grupos ligados à construção civil, pela capacidade de fazer valer seus interesses, constituíram-se em interlocutores privilegiados da política. Uma política permeável aos diferentes interesses e específica no tratamento da heterogeneidade do problema urbano contém, entre seus objetivos, aqueles que correspondem aos interesses desses grupos.
CONCILIAÇÃO E PLANEJAMENTO URBANO
De forma distinta do governo Telma de Souza, o governo David Capistrano Filho concluiu a proposta de política de planejamento urbano com o encaminhamento do projeto de lei do plano diretor ao Legislativo. A conclusão desse projeto envolveu atividades que se desenrolaram em 1995, em um processo iniciado com a divulgação dos trabalhos técnicos em andamento e o cumprimento de uma agenda de debates públicos, encerrando-se com o envio do projeto de lei à Câmara municipal. Contudo, a conclusão de uma proposta no âmbito do Executivo não garantiu sua aprovação pelo Legislativo, pois, ao final do governo, após 13 meses de permanência na Câmara, o projeto de lei sobre o plano diretor não chegou a ser votado.
Dado que as condições político-institucionais gerais permaneceram inalteradas ¾ inclusive mantendo-se à frente do Executivo municipal um representante do mesmo partido do período anterior ¾, a questão que se levanta é a seguinte: que fatores possibilitaram ultrapassar a etapa de formulação da política na esfera executiva?
Inicialmente, devem ser consideradas as mudanças processadas ainda na fase de campanha para as eleições municipais, em 1992. Nessa ocasião, eliminou-se o principal foco de conflito entre o setor da construção civil e o governo anterior, reduzindo as tensões que marcaram essas relações. O então candidato David Capistrano Filho, em debate promovido na sede da Associação dos Empresários da Construção Civil da Baixada Santista, declarou sua disposição de suspender a discussão relativa ao solo criado, dada a conjuntura econômica que o país atravessava. Mais do que a intenção de postergar a discussão para uma data futura, a declaração do candidato expressou o seu propósito de dispensar novo tratamento à questão relativa ao uso e ocupação do solo urbano.17 17 . Contribuíram também, para o entendimento dessas mudanças, as diferenças de personalidade entre Telma de Souza e David Capistrano Filho, observadas por vários de seus assessores diretos. À Telma de Souza, via de regra, atribuem-se traços de uma personalidade mais sensível e comunicativa, comprometida com questões de longo prazo. David Capistrano Filho, em geral, é associado a uma personalidade mais fechada, econômico em suas palavras, racional e pragmático, com preocupações mais de curto que de longo prazo. Além disso, salientam o fato de Telma de Souza ser nascida em Santos e fazer parte da sua história, e David Capistrano Filho ser uma pessoa de fora. Tal disposição foi interpretada como o anúncio do deslocamento da questão relativa à propriedade urbana para o âmbito circunscrito ao seu uso, com o conseqüente distanciamento das propostas que pressupunham separar o direito de propriedade e o direito de construir. Em outras palavras, o anúncio expressou a intenção em trazer "de volta" para a arena regulatória a questão relativa ao uso e ocupação do solo, afastando a política de planejamento urbano, pelo menos nessa temática que lhe é central, da arena redistributiva, como se pretendia com a ênfase atribuída à questão fundiária no governo Telma de Souza.
Além disso, essa decisão significou aceitar os produtores da cidade como interlocutores privilegiados e força social co-responsável pelo estabelecimento dos instrumentos reguladores do uso e ocupação do solo, e do mesmo modo aceitar os agentes do mercado que, como parte do processo de produção da cidade, podem criar obstáculos ao andamento da política caso não se atenda a suas demandas. Se essa decisão expressou a disposição ao diálogo e à negociação, por conseqüência, alterou-se a natureza e as condições das relações entre os interesses do setor imobiliário e a chefia do Executivo, o que permitiu criar as bases para novas estratégias, agora de conciliação e negociação.
Razões políticas sustentaram essas estratégias, definidas desde as eleições municipais. No primeiro turno, a composição partidária à candidatura David Capistrano Filho era basicamente a mesma de 1988, denominada Unidade Democrática Popular (PT, PSB, PC do B e PV), acrescida do Partido de Mobilização Nacional (PMN) ¾ que reunia parcela dissidente do PSDB ¾, ao qual coube a indicação do vice. No segundo turno, o candidato da UDP contou com o apoio formal do PSDB e com a declaração de apoio, ainda que tímida, de Beto Mansur, atual prefeito e à época candidato derrotado no primeiro turno.18 18 . Segundo David Capistrano Filho. Entrevista concedida à autora, em 15/12/97. Empossado no cargo, o novo prefeito buscou constituir uma base política mais ampla e formar um governo representativo das forças que ganharam a eleição, de tal forma que, na composição de seu secretariado, duas pastas foram entregues ao PSDB.19 19 . As demais secretarias foram ocupadas pelo PT e pelo PSB.
A ampliação da base de sustentação do governo, por si só, era a disposição de nova composição política. Além disso, a participação do PSDB no governo facilitou as negociações com o setor imobiliário da construção civil, já que algumas de suas lideranças pertenciam a esse partido, como o então presidente da Assecob e seu antecessor. Esses fatos, portanto, corroboram a disposição à negociação e à conciliação, contribuindo para quebrar as resistências ao diálogo que marcaram as relações entre o Executivo e o setor da construção civil no governo anterior.
Ao seu lado, os objetivos da política foram alargados, alterando-se seu escopo em relação ao governo Telma de Souza. A política elaborada compreendeu a dimensão mais específica relativa aos instrumentos de regulação urbana, mantendo-se os fundamentos estabelecidos no governo anterior. Mas a política caracterizou-se especialmente como plano de desenvolvimento, ao incluir as diretrizes de ação à promoção das vocações econômicas da cidade, e como plano de governo, ao reunir os programas públicos existentes e previstos de forma articulada e integrados às diretrizes de desenvolvimento. As novas dimensões incorporadas expressaram as prioridades do governo David Capistrano Filho, que, ao propor o papel de indutor do desenvolvimento local à prefeitura, deslocou para um outro plano a dimensão de regulador do uso e ocupação do solo contida na política de planejamento urbano. Com isso, a política de planejamento urbano do governo Capistrano revestiu-se de caráter abrangente e integrado, distinto daquele que marcou essa política no governo Telma de Souza, restrita aos instrumentos de regulação urbanística.
O novo conteúdo atribuído ao plano diretor visou integrar as diversas iniciativas públicas na direção do fomento das vocações econômicas historicamente reconhecidas como tal: porto, turismo e comércio e prestação de serviços. A diretriz de estimular as vocações da cidade fixou metas e alinhou programas considerados mais adequados ao contexto ¾ cujos contornos se tornaram mais claros nos anos 90 ¾, que cobrava a redefinição do papel das cidades em um mundo globalizado. As metas do governo anterior de realização de uma reforma urbana foram abandonadas. A nova prioridade era o incentivo às atividades econômicas, gerando riqueza de modo a garantir a melhoria da qualidade de vida da população santista.
Deslocado o eixo central de preocupações da política, portanto, quebrou-se a percepção anterior que identificava o setor imobiliário da construção civil e, por extensão, os segmentos sociais dominantes como "inimigos". A realização das novas metas pressupunha uma composição pluriclassista, pois dependia-se do concurso de diversas forças sociais, incluindo aquelas que lideram a promoção das atividades econômicas. No campo político, essas condições foram favorecidas pela presença do PSDB entre as forças políticas que compuseram o governo municipal.
Sob a ótica do governo David Capistrano Filho, a relevância dos novos objetivos suplantaria os objetivos originais do plano diretor, tal como definidos no governo anterior, ou seja, relacionados estritamente aos instrumentos de regulação do solo urbano. O novo plano passou a assumir também, e principalmente, as características de plano de desenvolvimento e de plano de governo.
Além de constituir tema inovador,20 20 . Azevedo (1994) identifica esse caráter inovador como uma das dimensões a serem pensadas na definição do papel de agências de planejamento municipal em cidades de médio e grande porte no momento presente. Para ele, essa dimensão tem relação com a capacidade do governo municipal de possibilitar à cidade desenvolver plenamente suas potencialidades, estimulando suas vocações econômicas. em particular como iniciativa do Executivo municipal, a nova dimensão atribuída à política foi prioritária, contudo, somente para o governo, não chegando a sensibilizar segmentos sociais. O debate que se sucedeu à divulgação do projeto do Executivo centralizou-se nos elementos conceituais e nos instrumentos propostos à regulação do uso e ocupação do solo. Na proposta elaborada, à exceção da exclusão do mecanismo do solo criado, foi-se fiel aos parâmetros estabelecidos pelo governo anterior, segundo os quais destinava-se tratamento diferenciado às porções continental e insular do território santista, permanecendo as diretrizes de preservação para o continente, consoante a lei da Área de Proteção Ambiental, aprovada em 1992. Para o território insular, a proposta mantinha a diretriz de zoneamento por áreas de disciplinamento do adensamento urbano, desde que controlado o impacto de eventual incompatibilidade entre atividades urbanas, e o tratamento diferenciado e a correspondente delimitação de zonas especiais para o tratamento de temáticas urbanas específicas.21 21 . Mesmo com o alargamento de seus objetivos, a política não perdeu a característica de segmentação por projeto, definida desde o governo anterior, seja pela continuidade das intervenções, a partir das propostas de zoneamento especial de interesse cultural, ambiental, de desenvolvimento econômico, etc., seja pela decisão de implementar os instrumentos aprovados no governo Telma de Souza relativos à habitação de interesse social, base para a política habitacional desenvolvida pelo governo David Capistrano Filho.
Projeto de Lei do Plano Diretor: Conciliação nas Negociações
A discussão em torno da proposta do Executivo desenvolveu-se, inicialmente, por meio de consulta popular e, na seqüência, no âmbito do Conselho Consultivo do Plano Diretor. A consulta popular foi estruturada em uma seqüência organizada de eventos, previamente divulgados, segundo agenda estabelecida por um grupo de trabalho constituído no gabinete do prefeito. A convocação da sociedade para discutir o projeto do Executivo perdia o caráter "assembleísta" que adquirira na gestão de Telma de Souza. No governo David Capistrano Filho, os objetivos dessa consulta foram claramente definidos, assim como obedeceram a um calendário organizado para a realização dos eventos, que foram precedidos da distribuição ampla e gratuita de exemplares do projeto do Executivo.22 22 . A consulta popular foi feita através de um congresso municipal, estruturado em três sessões temáticas, e que foi precedido de reuniões setoriais e regionais. Além disso, no âmbito da máquina administrativa, as decisões quanto à condução do processo de discussão pública e também quanto ao conteúdo da política foram tomadas a partir do arranjo político-administrativo centralizado no gabinete do prefeito ¾ expressão da centralidade adquirida pela política. Ao modelo mais descentralizado que marcara a condução da política no governo anterior, no governo David Capistrano Filho correspondeu um modelo político-administrativo centralizado, com decisões tomadas no âmbito de seu próprio gabinete.
Com a consulta popular buscou-se, da mesma forma que no governo Telma de Souza, cumprir a diretriz de governo de democratizar a gestão pública, ampliando o acesso da população às informações e estimulando a prática da consulta popular. Com a abertura do debate público, o objetivo foi não só divulgar a política, mas também obter apoio para o projeto de lei elaborado, sem o compromisso de incorporar as sugestões apresentadas durante o debate. A disseminação da política e os debates realizados coexistiram com o Conselho Consultivo do Plano Diretor, preservando-se suas competências específicas como canais distintos de encaminhamento e de articulação da política na esfera executiva. Mantidas suas atribuições legais, o conselho continuou desempenhando um papel politicamente decisivo nesse processo ¾ o de emitir o parecer final sobre o projeto de lei enviado à Câmara. O mesmo não ocorreu com a consulta popular, cujo maior objetivo foi mobilizar a sociedade em apoio ao projeto do Executivo em sua fase posterior e decisiva, no âmbito legislativo ¾ apoio que os formuladores da política consideravam necessário para a aprovação da lei pela Câmara municipal.
No processo de preparação e execução da consulta popular, a parceria com o Conselho Consultivo do Plano Diretor não ocorreu, malgrado a intenção dos membros do governo. Ao contrário, sendo órgão colegiado com atribuições específicas em relação ao plano diretor, esse conselho limitou-se a aprovar a agenda das reuniões preparatórias ao congresso municipal. Assim, manteve-se a distinção entre os debates públicos e o Coplan como canais de interlocução entre o poder público e a sociedade, com funções e objetivos distintos.
As entidades membros do Coplan participaram das discussões das sessões do congresso, encaminhando sugestões como atores individuais interessados na temática, no debate que então se iniciou e que teve continuidade nas reuniões do conselho que se seguiram. Foi o que mostrou o registro do congresso municipal, pelo que se verificou que a Delegacia da Baixada Santista do Sindicato dos Arquitetos e a Assecob apresentaram suas propostas na plenária que sucedeu a última sessão temática. No caso da Assecob, o seu representante, alegando o adiantado da hora de realização da sessão, propôs transferir a discussão das sugestões formuladas para o âmbito do Coplan, o que foi aceito pela plenária do congresso. Assim, deslocou-se para um fórum restrito, constituído legalmente, o debate acerca de questões tão caras ao setor da produção imobiliária ¾ em particular à Assecob, entidade líder na condução das negociações.
Nas reuniões do Coplan, os aspectos contidos no plano que mais diretamente afetavam os setores ligados à produção imobiliária foram efetivamente debatidos e, por fim, deliberados. Em face do equilíbrio de forças aí existente, as mudanças introduzidas no projeto do Executivo que foram estruturais ¾ visto terem alterado substancialmente os fundamentos estabelecidos pelo governo ¾ localizaram-se no capítulo sobre as restrições urbanísticas.
Se as negociações desenvolvidas no âmbito do Coplan mantiveram inalterada a proposta do Executivo para a área continental do município, o mesmo não ocorreu em relação à sua porção insular. Sem alterar sua posição anterior, explicitada durante o governo Telma de Souza, os representantes do setor da produção imobiliária discordaram dos fundamentos do zoneamento por adensamento e recolocaram a proposta do zoneamento fundado na separação de usos urbanos, sustentados por uma cultura urbana historicamente cristalizada de leitura de cidade. A manutenção do zoneamento por função urbana vinha ao encontro das necessidades e dos interesses do setor produtor da cidade, pois, a este, mais diretamente que a outros grupos, convém separar usos urbanos, que é a condição para o exercício de sua atividade econômica com potencialização de ganhos.23 23 . A proposta apresentada pela Assecob baseou-se no exame, artigo por artigo, do projeto de lei do Executivo.
Politicamente, a natureza do conflito era a mesma daquela presente no governo Telma de Souza, expressando-se, de um lado, em uma política que, sem perder sua natureza regulatória, propunha-se também redistributiva, no sentido de visar ao acesso mais igualitário à cidade e aos benefícios coletivos nela produzidos em face das oportunidades permitidas pela mistura de usos urbanos. Com essa perspectiva, a proposta do Executivo santista seria a resposta pública para a reversão do processo histórico de ocupação das cidades brasileiras de grande e médio portes, marcado pelo fenômeno da segmentação do espaço urbano entre excluídos e incluídos. Sem desconsiderar a contribuição de uma política macroeconômica, os defensores dessa proposta consideravam que os instrumentos urbanísticos implantados, ao provocar a valorização desigual do custo da terra, também teriam concorrido para a emergência desse fenômeno. De outro lado, manter a diretriz do zoneamento funcional significaria dar continuidade ao processo de ocupação da cidade segundo moldes anteriores, isto é, com segmentação e segregação socioespaciais.24 24 . Dentro da tendência das análises urbanísticas que se sustentam na crítica ao planejamento urbano tecnocrático e que defendem formas mais democráticas de planejamento, situam-se Rolnik (1997) e Villaça (1998).
Não obstante tais críticas e a própria fundamentação que sustentava o modelo de zoneamento proposto pelo Executivo, as mudanças sugeridas pela Assecob, incorporadas ao texto final do projeto de lei, reintroduziram alguns dos parâmetros norteadores do zoneamento funcional, em particular a redefinição do uso exclusivo para algumas áreas urbanas e a diferenciação de índices de aproveitamento e taxas de ocupação do lote segundo zonas urbanas. Ainda por sugestão da Assecob, foram estipuladas as áreas do território da Santos-ilha consideradas prioritárias aos seus interesses, para as quais propuseram-se alterações de perímetro, de usos urbanos permitidos e de índices de aproveitamento e ocupação dos lotes. À exceção dessas, a contraproposta do setor não conteve nenhuma modificação urbanística a ser introduzida nas demais áreas.
A atenção diferenciada da Assecob entre áreas do território insular de Santos foi a principal evidência das prioridades dos interesses imobiliários representados. No contexto urbano da cidade, as áreas com modificações correspondem àquelas com melhor potencial de mercado: os bairros em direção à orla, por suas características de região de residência da população santista de poder aquisitivo mais elevado, além de veraneio; e a área central, que, em face da cobertura existente de equipamentos e serviços urbanos, guarda, em si mesma, potencial para a realização de novos investimentos imobiliários.
Como indicador que reforça o caráter conciliatório das negociações entre o Executivo e o setor imobiliário da construção civil classifica-se também a aprovação da Lei Complementar no 213, de 17/4/96,25 25 . A Lei n o 213/96 foi regulamentada ainda durante o governo David Capistrano Filho, por meio do Decreto n o 2.778, de 07/08/96. Contudo, não há registro de nenhum empreendimento imobiliário executado em consonância a essa lei. de criação das Zonas Especiais de Desenvolvimento Econômico (Zede).26 26 . Note-se que essa modalidade de zoneamento especial estava relacionada também entre as zonas especiais discutidas durante o governo Telma de Souza. Integrada ao projeto como instrumento de zoneamento especial, a lei das Zede é um instrumento de regulação pública do uso do solo que isola porções do território municipal para adensamento urbano diferenciado, adapta o instrumento do solo criado para a intervenção urbana, restringindo-o a situações urbanas específicas, e estabelece as bases para novas parcerias entre os setores público e privado. O novo arranjo entre tais setores, instituído por esse instrumento legal, permite negociar caso a caso, potencializar ganhos imobiliários para o setor empresarial privado e gerar recursos novos para intervenção pública na solução de problemas de habitação dos segmentos carentes da população.
A instituição das Zede viabilizou-se em contexto de evolução nas discussões sobre o processo de produção da cidade, que incluiu, nas palavras de David Capistrano Filho, a "aceitação por parte dos empresários da construção civil da idéia do solo criado até como um bom negócio",27 27 . Entrevista concedida à autora por David Capistrano Filho, em 15/12/97. com aumento de potencial construtivo, bem como de alteração de usos urbanos em áreas delimitadas da cidade que suportam maior adensamento. Em contrapartida, o empreendedor imobiliário arcaria com recursos que poderiam ser destinados à habitação de interesse social.28 28 . Entrevista concedida à autora por José Marques Carriço, coordenador técnico do plano diretor no governo David Capistrano Filho, em 17/04/96.
Para o então presidente da Assecob, a visão do governo David Capistrano Filho distinguia-se daquela do governo Telma de Souza, pois reconhecia a ampla gama de agentes sociais que interferem no desenvolvimento das cidades, dentre os quais o próprio setor empresarial de produção imobiliária. Para essa entidade, o governo tinha outra compreensão da cidade, mais voltado para a problemática do desenvolvimento de Santos, como a questão dos negócios, "até porque entende que, se a atividade empresarial parar, isto é ruim para a cidade".29 29 . Entrevista concedida à autora por José Marcelo Ferreira Marques, em 21/07/94.
Essa opinião fundamenta-se na mudança das relações que passaram a se estabelecer com o setor produtor imobiliário urbano e que, na seqüência das declarações de David Capistrano Filho, ainda em campanha, foram reforçadas por suas próprias ações. A proposição das Zede, como alternativa "mitigada" do mecanismo do solo criado, não contrariava a visão daquele setor, pois, de acordo com o presidente da Assecob, "não se opunha à idéia de solo criado", já que sua utilização "não pode ser para tudo", uma vez que "o solo criado é um incentivo, uma troca".30 30 . Entrevista concedida à autora por José Marcelo Ferreira Marques, em 21/07/94. Em outro depoimento, reafirmando essa posição, ressaltou o ponto de vista diferenciado quanto ao solo criado em termos da "visão das operações interligadas", dado dever-se dispor de instrumentos que permitam alterar o espaço urbano com contrapartida, porém, "não de forma generalizada".31 31 . Entrevista concedida à autora por José Marcelo Ferreira Marques, em 16/04/96.
A evolução das discussões sobre a produção da cidade, com a aprovação das Zede, e as alterações referentes aos instrumentos urbanísticos introduzidas no projeto de lei do plano diretor explicitaram a alternativa negociada. Como resultado, superou-se a etapa da discussão da política na esfera executiva, com o que supunha-se poder garantir o apoio necessário à aprovação do projeto pela Câmara. Pelo menos no que se refere a esses instrumentos, prevaleceu a concepção de cidade que não é igual, para a qual o mercado demanda tratamento diferenciado. A alternativa final de política consistiu, de um lado, na aplicação restrita do instrumento do solo criado a determinadas áreas do território urbano e, de outro, na fixação de índices de aproveitamento e taxas de ocupação diferenciados segundo áreas do território urbano, às quais é passível a reserva de exclusividade a determinados usos urbanos.
É nesta perspectiva que adquirem sentido as palavras do presidente da Assecob, para quem "o plano diretor foi discutido, foi por consenso arrumada uma redação única..." no âmbito do Conselho Consultivo do Plano Diretor. Para o Executivo, negociar alguns pontos tornou-se o mecanismo possível para se conseguir aprovar o plano no conselho, dada sua característica de instituição de representação social majoritariamente formada pelos segmentos ligados ao setor produtor imobiliário urbano, pois, mesmo com o "retrocesso" havido, "valeria a pena enviar o plano do jeito que estava para a Câmara, porque teríamos muitos outros avanços...".32 32 . Entrevista concedida à autora por José Marques Carriço, em 17/04/96.
Tais avanços localizaram-se nas suas dimensões de plano de desenvolvimento, com o reforço do papel do Executivo como "indutor" das vocações econômicas locais e regionais. Para que pudesse se realizar, a composição de sua base de sustentação social adquiriu, de fato, caráter pluriclassista, com particular apoio dos segmentos economicamente dominantes localizados no setor imobiliário da construção civil. Em compensação, deslocou-se a discussão sobre os instrumentos de uso e ocupação do solo para a dimensão regulatória da produção urbana.
Se, por um lado, a proposta final do plano diretor contrariou os princípios originais que a fundaram nos idos de 1990, por outro, os resultados alcançados confirmaram a disposição do prefeito David Capistrano Filho de estabelecer o diálogo com o setor da construção civil, coerente ao compromisso assumido durante a campanha eleitoral. As mudanças processadas no texto final enviado à Câmara foram decorrentes do perfil de representação social do conselho do plano diretor, majoritariamente formado por segmentos ligados à produção imobiliária. Por parte do governo, diante das dificuldades políticas que impediram a gestão David Capistrano Filho de alterar a composição desse conselho, foi preciso negociar, pois, do contrário, não se teria aprovado o plano diretor em seu âmbito.
CONCLUSÕES
A análise da política de planejamento urbano em Santos, nos dois governos do PT, revelou as dificuldades em se romper com o modelo de ação pública, há muito cristalizado na cultura urbana brasileira. Para garanti-lo, os grupos sociais ligados ao setor de produção imobiliária desempenharam papel decisivo, mobilizaram-se e, organizados nos espaços institucionais existentes, defenderam seus interesses. Os esforços dos dois governos para ampliar os segmentos sociais de interlocução da política, para além desses grupos, foram ora pouco eficientes, como constatado no governo Telma de Souza, ora cautelosos, como visto no governo David Capistrano Filho. E a política dialogou efetivamente com os mesmos grupos sociais com que historicamente vem dialogando.
Em ambos os governos, o Conselho Consultivo do Plano Diretor ocupou posição estratégica, pois foi a arena institucional privilegiada da política. Nele concentraram-se as decisões sobre o plano diretor, mormente em sua dimensão de plano de uso do solo, cujos resultados foram, primeiro, a interrupção do processo e, depois, a aprovação da versão final do projeto de lei enviado ao Legislativo. As tentativas dos dois prefeitos de alterar sua composição em nenhum momento foram conclusivas, e o conselho manteve o mesmo perfil de representação social que foi definido em 1968, data de sua criação. Assim, nos oito anos de governo da Unidade Democrática Popular, os interlocutores privilegiados da política de planejamento urbano em Santos foram os grupos sociais representados no Coplan, predominantemente os setores ligados à produção imobiliária, que, no caso específico de Santos, eram liderados pela Associação dos Empresários da Construção Civil da Baixada Santista, a Assecob.
Esta análise, contudo, não se conclui se um último aspecto não for reforçado. As ações dos principais agentes da política desenvolveram-se dentro do contexto político e institucional existente, que favoreceu certos cursos de ação e impediu outros. Por intermédio das relações estabelecidas entre esses agentes, seus objetivos e interesses ¾ considerando que tais relações são mediadas por regras, formais ou não, e procedimentos institucionais estabelecidos ¾, os resultados da política, em cada um dos governos, foram as alternativas possíveis de serem apresentadas em cada um dos momentos políticos.
Se as alternativas de política apresentadas resultaram, predominantemente, da interação entre o Executivo e o setor de produção imobiliária, o processo da política somente chegou a seu término por meio das relações estabelecidas entre o Executivo e o Legislativo. Por uma razão institucional ¾ de manutenção da separação entre as funções executiva e legislativa ¾ e por uma razão política ¾ de evitar o confronto aberto com uma Câmara de representação predominante das forças tradicionais e conservadoras da sociedade santista ¾, a estratégia foi a de se preservar as funções políticas do Legislativo, submetendo-se a essa esfera as decisões que, institucionalmente, a ela estão restritas, reservando-se ao Executivo a competência formal de encaminhar projetos de lei e de regulamentar leis aprovadas. De seus resultados, extraem-se as possibilidades de coexistência política, reduzindo os riscos de paralisação do processo que possam ocorrer caso o conflito entre Executivo e Legislativo seja exacerbado.
Assim, no governo Telma de Souza, a decisão tomada pela chefia do Executivo, diante do impasse nas negociações com o setor da construção civil, de interromper a política anteviu novos conflitos que poderiam emergir na discussão de um projeto de lei de instituição do plano diretor na arena legislativa. Telma de Souza, consciente desse quadro, observou: "a correlação de forças na Câmara era terrível. Sabíamos que, num confronto, o setor dominante da cidade levava a Câmara". Além do perigo de derrota, o próprio calendário eleitoral de 1992 contribuiu para a interrupção do processo, deixando sua solução para a administração seguinte. Portanto, o cálculo político priorizou as próprias regras de sucessão municipal, uma vez que o risco de insistir na proposta poderia comprometer a sucessão municipal.
No governo David Capistrano Filho, o projeto de lei foi enviado à Câmara e, apesar de ter incorporado a discussão ampliada com a sociedade organicamente estruturada e a negociação com os segmentos sociais específicos ¾ que, de forma direta e sistemática, mobilizaram-se em torno de sugestões que alteraram a versão de projeto do Executivo ¾ não foi votado até o final do governo. As hipóteses explicativas para esse resultado identificam a falta de empenho de membros do próprio Partido dos Trabalhadores em aprovar um projeto de tal magnitude e, se os próprios vereadores pertencentes ao partido do prefeito dispensaram poucos esforços às suas iniciativas no âmbito da temática urbana, imagine-se o comportamento daqueles não-alinhados. Esse aspecto foi reforçado com o quadro político-eleitoral da época, com a indicação de duas pré-candidaturas à prefeitura municipal pelo PT, dividindo a sua bancada de quatro vereadores em apoio a cada uma delas.
Além disso, dar continuidade ao processo da política no âmbito do Legislativo dependia do empenho do Executivo. Isso foi reconhecido pelo próprio chefe de governo, que identificou a esfera legislativa como "órgão de homologação das decisões tomadas na esfera executiva", e também por um dos vereadores do PT, para quem o Executivo faz valer sua força junto à sua bancada de forma a garantir a tramitação dos projetos de seu interesse até a votação. As poucas pressões exercidas combinaram-se ao momento eleitoral e à posição ocupada pela política na agenda do governo David Capistrano Filho.
Para a chefia do Executivo, as dimensões do projeto de lei que eram prioritárias vinham sendo de alguma forma cumpridas. A própria promoção do desenvolvimento contida no projeto do plano diretor encontrou outros canais para sua realização, mesmo que parcialmente, dadas suas especificidades que demandavam longo prazo e demorada maturação. Se, de um lado, as prioridades de governo trazidas para o plano diretor encontraram outros canais para se desenvolver, de outro, precisamos observar que esse plano, naquilo que se referia ao uso do solo, não mais correspondia à proposta original de governo. A versão final alterou os fundamentos de orientação da produção urbana como resultado do processo negociado entre o Executivo e o setor empresarial da construção civil. Assim, a pouca pressão exercida pelo Executivo sobre o Legislativo pode ser entendida dentro desse quadro. Para o prefeito, o projeto de lei de instituição do plano diretor não foi nem sequer votado por razões "decorrentes da natureza clientelista e, pior que clientelista (eu sei que é uma palavra dura), corrupta de uma parcela ponderável dos vereadores" e não por "oposição de qualquer setor socialmente importante da cidade que tenha se oposto ao plano diretor do jeito que ele foi formatado".
Se o resultado final foi a interrupção da tramitação do projeto de lei na Câmara em meados do último ano de mandato, visto não ter sido nem mesmo colocado em votação, na prática da ação de governar, as dimensões da política que interessavam ao Executivo já se realizavam por meio de programas prioritários de governo em implementação, definidos consoante as metas estabelecidas para a promoção das vocações econômicas da cidade. Para cumprir esses objetivos prioritários, as negociações com os setores empresariais, dentre eles o da produção imobiliária urbana, já haviam resultado no apoio esperado.
NOTAS
E-mail da autora: sonahas@seade.gov.br Trabalho extraído da tese de doutorado da autora (Carvalho, 1999).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Maio 2002 -
Data do Fascículo
Jan 2001