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Editorial

EDITORIAL

Este número encerra o volume de 2011 de Scientiæ zudia, inteiramente dedicado às ciências biológicas, com trabalhos que são um bom exemplo da epistemologia histórica (ou, em alguns casos, história epistemológica) praticada entre nós. O número está organizado dos temas mais propriamente históricos para aqueles "teóricos", no sentido de que a epistemologia é dominante, sem que isso signifique a supressão, ou o desconhecimento, da história da biologia. Assim, o número começa com uma ampla revisão histórica do programa adaptacionista, passa, então, a dois estudos de caso, um biológico, sobre a descoberta da síntese da cloricia pelos sapos, o outro filosófico, sobre a atribuição de concepções lamarckistas e eugênicas a Nietzsche. Os dois artigos finais invertem, de certo modo, a perspectiva, partindo, no primeiro artigo, de considerações epistemológicas ligadas à morfologia vegetal e à produção artificial de vegetais para iluminar aspectos das ciências da vida e da química dos séculos xvii, xviii e xx; o outro artigo avança a proposta de considerar os conceitos funcionais na biologia como conceitos primitivos pertencentes a teorias (redes teóricas) biológicas, utilizando como exemplar a teoria da fecundação cruzada de Darwin.

Os dois primeiros artigos, escritos por Gustavo Caponi, fazem uma revisão histórica do desenvolvimento da biologia evolucionista em duas etapas. Analisa a relação entre a problemática adaptacionista e a teoria da seleção natural, para mostrar como, no primeiro período do desenvolvimento da biologia evolucionista, que se estende do século xix até as quatro primeiras décadas do século xx, desenvolveu-se o programa filogenético, que tem como base a ideia de"filiação comum" e não a de"seleção natural", como é o caso do programa adaptacionista. Caponi mostra, no segundo artigo, como esse último programa, que só havia até então orientado os estudos sobre a coloração dos animais, sobretudo de insetos, consolidou-se durante as décadas de 1940 a 1970, graças ao desenvolvimento confluente da genética ecológica de populações e da ecologia evolucionista.

Em seu artigo, Lucía Federico estuda um caso de transferência de problema de pesquisa de uma especialidade médica, a fisiologia humana, para uma especialidade biológica, a zoologia. Federico mostra, assim, como um fato fisiológico estabelecido pela investigação dos processos relacionados ao metabolismo do grupo hemo da molécula de oxiemoglobina, molécula transportadora do oxigênio, é utilizado para as investigações de classificação e análise da biologia dos anfíbios e répteis. O estudo enseja então uma reconstrução do processo de investigação que conduziu ao estabelecimento da cloricia como caráter bioquímico-fisiológico dos anfíbios. Também Wilson Antonio Frezzatti Júnior estuda, de certo modo, um caso de transferência (apropriação) de concepções ligadas à biologia evolucionista para um contexto metafísico. Para tanto, toma como caso exemplar o doutorado de Claire Richter em 1911, mostrando como essa autora construiu uma suposta oposição entre Lamarck e Darwin, em particular, entre a teoria lamarckista da herança dos caracteres adquiridos e a hipótese darwiniana da seleção natural, com o objetivo de vincular Nietzsche a Lamarck e ao programa eugênico de melhoramento da raça humana; ambas as vinculações são questionadas por Frezzatti Júnior, apesar das evidências de desenvolvimento em Nietzsche de ideias metafísicas (e proféticas) ligadas ao "melhoramento da humanidade".

Os dois últimos artigos possuem uma afinidade de perspectiva e temática: ambos tratam de questões epistemológicas concernentes a estruturas na biologia e ambos se debruçam sobre o reino vegetal. Assim, Maurício de Carvalho Ramos compara, do ponto de vista da morfologia, três processos de produção artificial de vegetais por meio de procedimentos laboratoriais químicos: a palingênese, as árvores metálicas e a plasmogenia. Essa comparação – que serve para constituir o pano de fundo da distinção fundamental entre o artificial e o natural, entre o artefato estruturalmente análogo e o organismo natural – permite discutir questões epistemológicas em torno das noções de organismo, vida, indivíduo, geração e fisiologia, visando estabelecer certas linhas de continuidade histórica e conceitual nas ciências da vida e na química do século xvii ao xx. De sua parte, Santiago Ginnobili, colocando-se desde o início na perspectiva metateórica estruturalista, propõe que se considerem os conceitos funcionais utilizados na biologia como conceitos primitivos que fazem parte de hipóteses e teorias científicas. Com base nessa hipótese interpretativa, Ginnobili reconstrói a teoria da fecundação cruzada, que se encontra na obra que Darwin dedicou à reprodução das orquídeas, mostrando, por um lado, que essa teoria é genuína segundo os padrões científicos usuais, e apresentando, por outro lado, uma avaliação de sua interpretação das funções como componentes estruturais primitivos de teorias comparativamente a outras interpretações usuais das funções. Cabe ainda assinalar que Scientiæ zudia completa a publicação dos trabalhos (excluindo-se os artigos de Lucía Federico e de Santiago Ginnobili ) apresentados no IV Colóquio de Filosofia e História da Ciência, ocorrido em agosto de 2010 na Universidade Estadual de Santa Cruz em Ilhéus. Agradece, outrossim, em nome dos autores e do editor, a Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli e a Paulo Tadeu da Silva pela organização desses quatro colóquios que muito contribuíram, em virtude do formato que permitia ampla e rigorosa discussão dos trabalhos apresentados, para o aumento da qualidade de interlocução (de exercício da crítica construtiva) entre os pares, de cuja qualidade os artigos publicados, neste número e no anterior, são amplo e aberto testemunho.

Pablo Rubén Mariconda

editor responsável

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Mar 2012
  • Data do Fascículo
    2011
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