DOCUMENTOS CIENTÍFICOS
EXCERTOS ANATÔMICOS
[601] Partes similares, secreções e doenças 1
René Descartes
1631
Além do espírito animal, o homem2 compõe-se de espírito animal que é homogêneo ao nosso ar, de humor homogêneo à água e de partes sólidas que podem ser comparadas à terra. Da mistura entre espírito animal e humor surge o espírito vital, que pode ser comparado ao fogo. Da mistura imperfeita entre o humor e as partes terrosas surge o sangue. A bile amarela,3 porém, é uma mistura mais imperfeita das partes mais duras. A bile negra ácida é uma [mistura] mais perfeita, mas na qual a parte mais sutil do humor se dissipou. A urina é uma [mistura] bastante perfeita, mas na qual o humor é excessivo. [602] Outra ainda bastante perfeita, mas na qual faltam a sutileza e a solidez extremas, é a pituita viscosa e o muco [nasal]. Enfim, uma [mistura] perfeita produz as carnes, os nervos e os ossos, à medida que nela haja mais ou menos partes sólidas.
As unhas e os pêlos são da mesma matéria dos ossos, no entanto elas não se endurecem a tal ponto, porquanto deixam escapar demais rapidamente as partes fluidas. Mas os dentes, certamente da mesma matéria dos chifres, todavia são duros como os outros ossos, porque, ocultos pela boca, têm mais humor e unem-se mais lentamente.
Pelas orelhas sai o espírito excrementício: daí o silvo e o zumbido, visto que aquele espírito, estando naturalmente impedido pela sujeira da orelha, não sai, e ao se chocar com esse obstáculo, produz um som.
Pelos olhos também escapa um espírito, como é visível naquelas mulheres menstruadas de cujos olhos se diz que emitem um vapor: pois todo o corpo da mulher está cheio de humores, quando ela está menstruada, e é purgado do humor mais espesso através da vulva e do mais sutil pelo lugar mais alto, isto é, através dos olhos.
Todo arrepio e frio no corpo ocorre pelo fato de as partes fluidas confluírem para um certo foco, no qual então o calor é extremo. Assim, depois da refeição, as extremidades ficam frias, porque as partes quentes convergem para o estômago. Da mesma maneira, naquelas febres que começam pelo frio, deve ser afirmado que elas têm um certo foco, no qual o humor vicioso se inflama pela primeira vez; isso ocorre no coração,4 como penso, ou em outro lugar. Mas esse humor vicioso impregna primeiro o sangue; no momento em que este sangue entra no coração, [603] provoca a febre: a partir desse momento, podem surgir5 os acessos de febre.
Três focos [se acendem no homem: o primeiro, no coração a partir do ar e do sangue; o outro, no cérebro a partir destes mesmos, porém mais atenuados; o terceiro, no ventrículo a partir dos alimentos e da matéria do próprio ventrículo. No coração, ele é como o fogo que se origina da matéria seca e densa; no cérebro, como o fogo que surge do espírito do vinho; no ventrículo, como o fogo que se origina da madeira verde. Neste, os alimentos podem se deteriorar e também se aquecer espontaneamente, sem a ajuda do fogo,] como o feno úmido etc.6
Neste momento, no fígado, por causa do ventrículo, produz-se o calor pela mistura do quilo e do sangue que aí estava antes. Ora, diz-se que o fígado é quente, quando nele há muito sangue já formado; aquele atrai rapidamente para si o quilo ou as partes mais quentes que estão contidas nos alimentos, e por esta razão o que resta se corrompe com mais dificuldade: daí julga-se que o ventrículo esteja frio.
Imediatamente acendem-se outros fogos não naturais em todo o corpo. Inflamações, erisipelas, abscessos, pleurites etc. acontecem desse modo. Ou ocorre uma anastomose de uma veia e de uma artéria, daí a inflamação, quando o sangue mais quente e mais acre penetra a túnica da veia; ou o mesmo sangue mais acre não pode penetrar pela túnica da veia, mas pelas extremidades junto com os espíritos dispersos: o que provoca a erisipela;7 ou a matéria aflui em grande número além do natural em algum lugar e aí se corrompe por si mesma, como no abscesso simples; ou esta putrefação é comunicada às veias e artérias por causa da proximidade do local, como na pleurite. Nas feridas, ainda, acende-se um fogo, porque aí as fibras das veias e das artérias são abertas, e o resíduo do sangue aí se corrompe.
A convulsão ocorre quando o interior dos nervos contém uma exalação, [604] e não um puro espírito animal. Com efeito, é gerada uma exalação se um nervo é pungido ou se, por acaso, ali penetra um vapor viscoso. Ora, aquela exalação abala os nervos, porque liga de algum modo as partes dos espíritos e faz isso de tal modo que muitas exalem simultaneamente e, vencendo assim a força do nervo, disponham-se e estejam determinadas a certos movimentos, embora sejam habitualmente dispostas e determinadas pelos nervos, porque cada partícula do nervo é mais poderosa do que cada partícula do espírito.
As exalações não costumam ser produzidas somente pelo calor e pelo frio, mas apenas pelo frio que sobrevém ao calor. Com efeito, o calor, na verdade, enfraquece os espíritos, mas não porque produz a exalação e sim porque, enquanto os enfraquece, abre-lhes, ao mesmo tempo, os condutos pelos quais escapam; e se o calor não é suprimido, esses condutos encontram-se sempre, no corpo, em proporção correspondente à quantidade de espíritos rarefeitos. Mas se sobrevém um frio que fecha esses condutos, e o espírito que começou a se rarefazer ainda prossegue o caminho, seja porque começou, seja ainda mais pela ajuda do calor de outras partes, então esse espírito, que não pode evaporar-se, converte-se em exalação.
A mesma coisa se constata nas castanhas colocadas sobre o fogo em cima de um ferro perfurado: de fato, se elas não são remexidas, o fogo enfraquece os espíritos que se encontram em seu interior, mas, no entanto, consome também a cobertura externa daquela que está mais próxima do fogo, pela qual aquele espírito sai como suor. Mas se elas são remexidas, então a cobertura externa que está mais próxima do fogo opõe-se8 em outra parte ao ar frio, e seus condutos por esta razão tornam-se estreitos. No entanto, o espírito interior não menos se enfraquece, seja porque tenha começado, seja porque o fogo [procedente] de outra parte o impele. Mas não [605] pode sair pela cobertura externa voltada, agora, para o fogo: ou porque tal cobertura ainda não está bastante rarefeita, ou porque [o espírito] já dirigiu suas passagens para uma outra parte. Desta forma, a castanha se rompe com violência.
Certos alimentos, todavia,9 são cheios de exalações, embora sejam facilmente convertidos em um espírito espesso pelo calor natural. No entanto, o mesmo calor não pode abrir tão facilmente para eles os condutos pelos quais sairiam dos intestinos.
Durante a secção da veia, é feita uma ligadura no braço, para que o sangue aí permaneça mais abundante. E isso ocorre porque, na diástole, o sangue é impelido com violência para as extremidades do corpo; pelo fato de que isso ocorre com violência, o sangue fica impedido10 de chegar ao braço. Na sístole, ao contrário, [o sangue] reflui das extremidades do corpo sem ímpeto, porque a ligadura pode impedir que reflua.
Se a partir de uma cólica ocorre uma paralisia, perde-se somente o movimento, não o sentido, porque são afetadas apenas as membranas dos nervos, não a medula.11
Danificada ... a medula (dos nervos),12 perde-se algumas vezes o movimento do fêmur, sem que fique prejudicado o movimento do braço. Não é de admirar [o que acabou de ser dito], já que o nervo que atinge o fêmur é distinto do nervo do braço e, além disso, é mais tênue naquele lugar.
O muco que sai pelas narinas e pelo palato é [606] gerado neles próprios, e não no cérebro, pois a matéria da qual ele é produzido não é, por todo o tempo em que está no cérebro, outra coisa senão espírito, e não muco. Como a fuligem que adere às chaminés não é caligem, enquanto sai do fogo, mas sim fumaça.
O feto é alimentado no útero pelo sangue que deflui de todos os membros da mãe; este sangue pode estar impregnado das formas ou das idéias que estão em sua imaginação: daí se formam os sinais no corpo do feto.13
Durante o sono, saem mais espíritos pelas narinas e pelo palato do que quando estamos acordados: daí o corpo14 nesse momento estar parado. Depois do sono, ocorre o espreguiçamento para novamente encher, naquele momento, os músculos de espíritos, os quais durante o sono haviam escapado.
O açafrão ajuda aos asmáticos: é dada a dose de um escrúpulo15 com meia semente de musgo e com ótimo vinho.
As favas purificam, e alguém, depois de tê-las comido, foi purgado e liberado da tosse.
O tísico é curado, servindo-se de duas gemas de ovo pouco cozidas e acrescidas de enxofre em pó e vinho, na quantidade de uma fava um tanto grande16 (ad fabæ majusculæ quantitatem), com um gole de vinho doce; ótimo [tomar] uma hora antes das outras refeições.
Antídoto contra a peste e os venenos do rei Mitridate. Pega duas nozes secas, dois figos e tritura [607] junto outro tanto de folhas de arruda17 trituradas juntas, adiciona um grão de sal; toma, em jejum, sempre pela manhã, não importa onde.
Se houver uma picada incômoda nas plantas dos pés ou nas palmas das mãos, elas devem ser mantidas na água quente por tanto tempo quanto seja necessário até que saiam os pedacinhos.18
O pulso fica mais rápido depois do sono, porque o sangue, entorpecido pelo repouso em algumas veias e nas carnes dos músculos, conflui imediatamente em direção ao coração por causa do movimento de todo o corpo e da repentina entrada dos espíritos nos músculos. Daí, então, ocorrem por vezes o bocejo e o espreguiçamento, ao mesmo tempo.
O espirro é a limpeza dos ventrículos do cérebro, através das narinas. O bocejo é a purgação, através do palato, dos vapores que existem entre as duas meninges. Ora, os vapores19 são aí reunidos pela falta de agitação na substância do cérebro, ou quando o cérebro subitamente se contrai, já que está inchado, estando cheio aquele espaço entre as duas meninges, como sempre. Como quando acordamos e exalamos cheiro (olfacimus), ao deixar escapar o espírito do peito através das narinas, se o odor está contido na boca fechada e ainda se é colocado na orelha (etiam si auri imponatur).
Mulher que sofre de hemorragia20 a cada sete dias. Hist. univ. f. 804.
No escorbuto observa-se um movimento de piora sem febre aparente ou com uma [febre] muito fraca, em algumas pessoas pelo quarto ou quinto dia, em outras pelo terceiro dia, e em algumas outras todos os dias.21
Traduzido do original em latim
por Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli.
Revisão técnica de Roberto Bolzani Filho.
Notas
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Jun 2009 -
Data do Fascículo
Jun 2008