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Editorial

Editorial

Scientiæ udia dedica inteiramente este número à reflexão histórica e epistemológica de questões relacionadas à biologia e à antropologia, girando, de certo modo, em torno do problema da herança, seja no sentido da teoria biológica da hereditariedade, seja no sentido antropológico de destino do humano. O número parte de questões mais localizadas ligadas ao transformismo do início do século xix e à reforma da sistemática biológica na direção da filogênese, para dedicar-se a seguir às conseqüências do problema da herança no plano humano: primeiro, com a apresentação do projeto eugenista de "melhoria biológica" da espécie humana, freqüentemente acusado por suas posições racistas e pseudo-científicas; finalmente, com a discussão sobre a manutenção do pressuposto da existência de raças humanas no discurso biológico e nos documentos políticos internacionais. A resenha prolonga essa discussão, colocando a questão, no caso da espécie humana, da direção na qual se aplicará a "máquina antropológica": não fará ela uma diferenciação do pós-humano (o novo humano) no interior do humano, agora que este já está completamente separado do animal?

Abrindo o conjunto de artigos, Gustavo Caponi discute o transformismo, debruçando-se comparativamente sobre dois autores da primeira metade do século xix - Etienne Geoffroy Saint-Hilaire e Georges Cuvier -, com o objetivo de reconstruir o quadro teórico, que incorporava princípios tais como o de compensação dos órgãos e o de correlação das formas, com os quais esses autores procuravam entender não só o funcionamento dos organismos, mas também a própria constituição das formas orgânicas. No segundo artigo, Charles Morphy Dias dos Santos discute a importância do monofiletismo - isto é, da concepção segundo a qual são naturais só aqueles grupos que respeitam o conceito evolutivo da ancestralidade comum - para a sistemática biológica, ramo da biologia que trata da descrição e organização da diversidade biológica em esquemas hierárquicos. O autor se detém particularmente na contribuição de Willi Hennig que consistiu na fundação da sistemática filogenética, que se configura como um instrumento poderoso na reconstrução da evolução dos organismos. Em seu artigo, Valdeir Del Cont apresenta o desenvolvimento da eugenia, "ciência do melhoramento humano" proposta por Francis Galton, de um duplo ponto de vista: no plano teórico, mostra como ele faz a tentativa de assentar sua teoria em uma compreensão dos mecanismos de transmissão dos caracteres de geração em geração, que se alinha à teoria pangênica da hereditariedade, proposta por Darwin; no plano prático, apresenta a idéia de controlar a transmissão dos caracteres considerados degenerativos mediante o controle do casamento, impedindo, assim, a proliferação e contribuindo para a melhoria de características do conjunto populacional. Evidentemente, a discriminação entre as características se assenta em juízos de valor com base em uma hierarquia suposta como natural. Finalmente, Paula Lipko e Federico di Pasquo voltam-se, em seu artigo, para a questão da existência de tipos raciais, por meio da investigação histórica a partir do século xvii das formas pelas quais foram classificadas e hierarquizadas as raças.

Os autores mostram como, em que pese todo o movimento de defesa dos direitos humanos e contra a discriminação racial, que caracterizou a segunda metade do século xx, e que serviu ao propósito de impedir a hierarquização das raças, não se questionou a existência de raças; ao contrário, essa suposição sobre a diversidade humana, que os autores mostram ter um profundo enraizamento na ciência moderna, serve de base para os discursos biológico e político.

Scientiæ udia publica como documento científico deste número, em edição bilíngüe latim/português, os dois Excerpta anatomica/Excertos anatômicos de René Descartes: o primeiro, escrito em 1631 e intitulado Partes similares et excrementa et morbi/Partes similares, secreções e doenças e o segundo, que data de 1637, intitulado De accretione et nutritione/Sobre o crescimento e a nutrição. Os textos tratam fundamentalmente de terapêutica e fisiologia (descrição dos processos de crescimento e digestão), são representativos da cisão humano/animal e do avanço da concepção mecanicista na medicina. Em sua introdução, Marisa Carneiro Franco Donatelli localiza, primeiramente, os dois textos no conjunto da reflexão médica de Descartes, mostrando como eles revelam uma clara passagem de uma posição aristotélica tradicional a uma perspectiva mecanicista que visa explicar os processos descritos no primeiro texto com base no modelo dos corpúsculos em movimento. Apesar disso, a terapêutica de Descartes manter-se-á bastante próxima da prática médica de seu tempo, recomendando cautela com as intervenções consideradas extremas como remédios químicos, sangrias e cirurgias. A autora discute, então, as relações entre a física e a medicina no que concerne à fisiologia, concluindo com o exame da explicação mecanicista da febre, proposta por Descartes.

Encerrando este número de Scientiæ udia, Messias Basques resenha Giorgio Agamben, mostrando o foco posto pelo autor no que considera ser a distinção fundadora do pensamento ocidental, a saber, a distinção entre homem e animal, que será enfocada no seio de uma reflexão sobre a noção de "aberto", enquanto modo particular de existência dos seres vivos no mundo. Embora tanto o homem como o animal estejam "abertos" ao mundo que os circunda, o homem tendeu historicamente a diferenciar-se, em termos de sua "abertura", dos animais, devido ao funcionamento de uma "máquina antropológica" produtora da singularidade do homem e, portanto, de sua diferença do animal. Contudo, a máquina antropológica opera por identificação da noção de humano à condição de "vida nua", na qual o corpo humano e todos os seus processos fisiológicos não só estão abertos à apropriação e à dominação, mas se convertem também em espaço unificado de contestação na história do pensamento ocidental.

PABLO RUBÉN MARICONDA

editor responsável

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2008
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