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Rede de Filantropia para a Justiça Social: discurso ideológico de um aparelho privado de hegemonia

Social Justice Philanthropy Network: ideological discourse of a private apparatus of hegemony

Resumo:

Este artigo apresenta a Rede de Filantropia para a Justiça Social, enfatizando seu funcionamento, função e ideologias nela reproduzidas para garantir a hegemonia das classes dominantes. O debate desenvolve uma análise bibliográfica sobre aparelhos privados de hegemonia e demais conceitos e categorias relacionadas ao termo, tendo por base, principalmente, estudos gramscianos. A base analítica referenciada permite identificar especificidades do aparelho privado de hegemonia (APH) em destaque, em sua mediação com a visão de mundo construída.

Palavras-chave:
Aparelho privado de hegemonia; Ideologia; Gramsci

Abstract:

This article presents the Philanthropy Network for Social Justice, emphasizing its operation, function and ideologies reproduced in it to guarantee the hegemony of the dominant classes. The debate develops a bibliographical analysis on private apparatuses of hegemony and other concepts and categories related to the term, based mainly on Gramscian studies. The referenced analytical base allows us to identify specificities of the APH highlighted, in its mediation with the constructed worldview.

Keywords:
Private apparatus of hegemony; Ideology; Gramsci

Introdução

Diante de uma desigualdade brutal e crescente, verifica-se o aprofundamento do desenvolvimento de estratégias da classe detentora do poder, objetivando, assim, se sobressair em momentos de colapso, como no cenário atual. As alterações impostas pelo sistema capitalista demonstram a necessidade de atender cada vez mais às demandas e aos interesses do capital, cujos rebatimentos desse processo são nítidos, não somente para as relações sociais estabelecidas, mas também para a classe trabalhadora.

Na direção anteriormente apontada, ocorre o aprofundamento da contenção dos direitos e das políticas sociais, bem como a agudização das expressões da questão social, ambos explicitamente relacionados à intensificação da contradição capital/trabalho e ao desenvolvimento de estratégias para maior exploração da força de trabalho. Assim, são ampliados os tensionamentos vivenciados pela classe trabalhadora e, em decorrência, cresce a necessidade de manter a ordem e de criar o consenso como fator fundamental da dominação de classe.

Os aparelhos privados de hegemonia (APH) constituem-se em importantes mecanismos que redundam em ações e discursos para a construção de consenso entre as classes sociais, podendo, inclusive, contribuir para a ampliação e/ou renovação dos moldes neoliberais como estratégia do capital para manutenção da hegemonia e redirecionamento do atendimento de necessidades sociais e, logo, da busca da construção de outra visão de mundo.

Nesse sentido, visando desenvolver um estudo aproximativo com um determinado aparelho privado de hegemonia, enfatizando seu funcionamento, função e ideologias reproduzidas, para assim garantir a hegemonia das classes que detêm o poder, o debate que segue expõe uma proposta de análise do APH Rede de Filantropia para a Justiça Social (RFJS). A RFJS é uma rede com características próprias, mantida por fundos de justiça social.

Para tanto e referente ao percurso metodológico, foi desenvolvida uma análise bibliográfica do conteúdo das referências selecionadas sobre aparelhos privados de hegemonia, ideologia, demais conceitos e categorias relacionadas ao termo, tendo por base, principalmente, estudos de ­Gramsci e autores gramscianos. Posteriormente, expõe-se um levantamento de dados e características, que permitem identificar as especificidades do APH em destaque, em sua mediação com a visão de mundo construída.

A Rede de Filantropia para a Justiça Social é um espaço que reúne fundos e fundações comunitárias, organizações doadoras (grantmakers) que apoiam diversas iniciativas nas áreas de justiça social, direitos humanos e cidadania. O apoio das organizações-membros se concretiza pela doação de recursos financeiros - diretos e indiretos - a instituições e grupos da sociedade civil, lideranças e movimentos sociais que contribuam com o processo de transformação social e/ou lutam pelo reconhecimento de direitos em diversas áreas e regiões do país.

A proposta da Fundação apresenta dados relevantes, pois atua com o intuito de “empoderar” a sociedade civil organizada, caracterizando-se como uma ideia de fortalecimento de rede de filantropia para garantir a justiça social. Assim, constitui-se em importante objeto de análise, apresentando potencial de apontar os investimentos em ações que viabilizem e vislumbrem intervenções interligadas ao investimento social e à filantropia nacional.

Com o debate, pretende-se identificar qual o discurso ideológico reproduzido pela rede, as particularidades do termo filantropia utilizado e como ele foi adotado, visto que a Rede foi criada em 2012 com o propósito de promover e diversificar uma cultura filantrópica no Brasil, que garanta e amplie os recursos para a justiça social.

Quando se trata do enfoque na cultura filantrópica, é possível analisar contradições e tendências relevantes referentes aos APH e suas funcionalidades, como também desvelar ações desenvolvidas por fora ou por trás das políticas sociais, ou seja, desvendar ações com a mediação de outros atores sociais.

É importante destacar a possibilidade de esvaziamento de uma cultura do direito, que pode ser decorrente ou ter relação com a construção de uma filantropia empresarial; processos que precisam ser devidamente problematizados, concomitantemente e em decorrência da ausência do Estado no cumprimento de suas funções para com o atendimento das necessidades sociais.

A atuação de uma rede que articula organizações para levantamento de recursos financeiros para doação e apoio a outros membros, visando desenvolver uma transformação social, apresenta significativo conteúdo de análise, principalmente quando propõe uma visão que resulte num Brasil com uma cultura filantrópica ampliada e diversificada, que garanta e amplie a justiça social.

1. A dinâmica capitalista contemporânea e a funcionalidade dos aparelhos privados de hegemonia

Sob o prisma da necessidade de manter a vitalidade do sistema capitalista, a partir de suas constituições e contradição central, explicada pelo fato de que a riqueza é socialmente produzida e apropriada privadamente na mesma proporção, mantendo a desigualdade social, aprofundam-se ações da classe capitalista para atender aos princípios constitutivos de sua gênese.

O sistema vigente, caracterizado por meio das estratégias estabelecidas para enfrentar suas crises, não somente cria respostas para suas necessidades, mas também desenvolve ações a partir das relações sociais mediadas para fortalecer a lógica capitalista como lógica determinante, conforme cada momento histórico e luta estabelecida no contexto de crise, pois, “o processo é diferente em cada país, embora o conteúdo seja o mesmo” (Gramsci, 2007GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Tradução: Carlos Nelson Coutinho com a colaboração de Luiz Sergio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v. 3., p. 60).

Sendo assim, as contradições inerentes ao sistema capitalista trazem novas configurações ao modo de organização social. A classe dominante preocupa-se em conservar o ciclo do capital e o aumento do lucro, apesar das crises desse sistema, subordinando a classe dominada na sua produção e reprodução de forma alienada e, logo, os efeitos das crises são postos sobre as distintas classes.

A conjuntura contemporânea é caracterizada por uma crise estrutural que pode ser denominada também de crise orgânica, ou seja, constituída de cunho tanto econômico quanto político e de longa duração. A crise, observa Gramsci (2007GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Tradução: Carlos Nelson Coutinho com a colaboração de Luiz Sergio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v. 3.), é orgânica quando o “espiritual” se descola do “material”; quer dizer, quando a concepção de mundo (a superestrutura) se desenvolve de modo não conforme à estrutura.

As especificidades dessa crise estão no fato de que ela apresenta uma base econômica e material, além disso, também atinge e transita entre as esferas políticas e sociais, desvelando disputas entre interesses na construção de novas formas de sociabilidade. De acordo com o revolucionário sardo, “[...] o conteúdo [da crise orgânica] é a crise de hegemonia da classe dirigente, que ocorre ou porque a classe dirigente fracassou em algum grande empreendimento político para o qual pediu ou impôs pela força o consenso das grandes massas, ou porque amplas massas passaram subitamente da passividade política para uma certa atividade que constitui uma ‘revolução’” (Gramsci, 2016GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Edição e tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. v. 3., v. 3, C. 13, § 23, p. 60).

A crise orgânica é caracterizada pelo fato de que apenas sua dimensão econômica não oferece suporte necessário para sua justificativa ou explicação, sendo imprescindível a análise de aspectos políticos e sociais. Ao discutir crise orgânica, Gramsci (2007GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Tradução: Carlos Nelson Coutinho com a colaboração de Luiz Sergio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v. 3., p. 60) discorre:

[...] em certo ponto de sua vida histórica, os grupos sociais se separam de seus partidos tradicionais, isto é, os partidos tradicionais naquela dada forma organizativa, com aqueles determinados homens que os constituem, representam e dirigem, não são mais reconhecidos como sua expressão por sua classe ou fração de classe. Quando se verificam estas crises, a situação imediata torna-se delicada e perigosa, pois abre-se o campo às soluções de força, à atividade de potências ocultas representadas pelos homens providenciais ou carismáticos [...].

Em tal realidade, é importante atentar-se para as formas de enfrentamento e as respostas estabelecidas para a conjuntura de crise, as quais desvelam estratégias capitalistas que apontam impactos significativos para as relações sociais, os direitos, a consciência de classe e a construção de uma outra cultura, visto que “[...] essa crise incide nas esferas da economia, da política e da formação de cultura e sociabilidades, determinando o surgimento de renovadas estratégias de gestão da crise que, sob determinadas condições objetivas, criam um campo de força em torno da luta pela hegemonia” (Mota, 2019MOTA, A. E. A cultura da crise e as ideologias do consenso no ultraneoliberalismo brasileiro. In: CISLAGHI, J. F.; DEMIER, F. (org.). O neofascismo no poder (ano I). Análises críticas sobre o governo Bolsonaro. Rio de Janeiro: Consequência, 2019. p. 135-148.. p. 135).

Diante dessas crises, as mudanças na economia não se limitaram às mudanças econômicas estatais. Elas atingiram a própria base material da produção, expõe Castelo (2012CASTELO, R. Gramsci e o conceito de crise orgânica. Margem Esquerda: Ensaios Marxistas. São Paulo: Boitempo, n. 19, out. 2012.). Assim, são desenvolvidas roupagens que permitam uma adequação à realidade vivenciada no seu meio social, desde que possibilite também a expansão do capital como um fim em si, dito de outra forma, a manutenção de sua hegemonia.

Tendo por base que a burguesia almejava, desde sua constituição, além de deter as propriedades, obter também os privilégios (Huberman, 1976HUBERMAN, L. História da riqueza do homem. 11. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.), são aprofundados fatores que intensificam processos de dominação por meio de medidas econômicas, políticas e sociais. As relações sociais prevalecem, por sua vez, permeadas de interesses divergentes entre a correlação de forças existente na sociedade.

Na dinâmica capitalista contemporânea, tais particularidades são cada vez mais explícitas, visto que são aprofundados os meios para alienar os indivíduos e mantê-los submetidos à classe dominante e, logo, ao próprio processo de produção, fator intrinsicamente relacionado ao desenvolvimento da hegemonia de quem detém o poder. Conforme debate Gramsci (2007GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Tradução: Carlos Nelson Coutinho com a colaboração de Luiz Sergio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v. 3., p. 48):

[...] O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que sejam levados em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida, que se forme certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa, mas também é indubitável que tais sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essencial, dado que, se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica, não pode deixar de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica.

Quando não responde aos interesses das massas, a classe dominante perde consenso, prevalece, então, o intuito de conciliar interesses de classes de forma que aparente determinado equilíbrio. Segundo análise gramsciana: “[...] a supremacia de um grupo social se manifesta em dois modos, como ‘domínio’ e como ‘direção moral e intelectual’. Um grupo social é dominante dos grupos adversários, os quais tendem a ‘liquidar’ ou a submeter mesmo com a força armada, e é dirigente dos grupos afins e aliados” (Gramsci, 2002GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Edição e tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 5., v. 5, C. 19, § 24, p. 62).

São desenvolvidas ações que visem fortalecer e garantir que se sobressaia a dominação dos detentores dos meios de produção. Para tanto, é necessária uma reconstrução que permita a consolidação da supremacia burguesa; sendo assim:

O exercício “normal” da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública - jornais e associações -, os quais por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados. Entre o consenso e a força, situa-se a corrupção-fraude (que é característica de certas situações de difícil exercício da função hegemônica, apresentando o emprego da força excessivos perigos), isto é, o enfraquecimento e a paralisação do antagonista ou dos antagonistas através da absorção de seus dirigentes, seja veladamente, seja abertamente (em casos de perigo iminente), com o objetivo de lançar a confusão e a desordem nas fileiras adversárias (Gramsci, 2007GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Tradução: Carlos Nelson Coutinho com a colaboração de Luiz Sergio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v. 3., p. 95).

Com o desmonte de direitos e políticas sociais implantados por meio das reformas contemporâneas, visando enfrentar os processos decorrentes das crises, identifica-se o enfoque em novos mecanismos econômicos e políticos que contribuam para a manutenção do status quo (Castelo, 2012CASTELO, R. Gramsci e o conceito de crise orgânica. Margem Esquerda: Ensaios Marxistas. São Paulo: Boitempo, n. 19, out. 2012.). De fato, eles atuam no sentido de expandir a dominação sobre as classes subalternas, com imbricação de teor ora consensual, ora coercitivo. Concomitantemente, há crescimento da pobreza e da desigualdade social, as quais demandam ainda mais a atuação estatal.

Para a manutenção de sua ideologia, o capital necessita constantemente reestruturar o processo de produção e de reprodução, por meio do qual, através de maior exploração da força de trabalho, é possível obter acréscimo de riqueza. Mas, essa concentração de riqueza nas mãos de poucos incide na expansão da desigualdade e pobreza da maioria e, ainda, em significativos empecilhos para o atendimento das demandas dos sujeitos sociais por meio da intervenção do Estado.

O aparelho estatal apresenta-se funcionalmente imprescindível como instrumento de mediação, atendendo aos ditames da produção e da reprodução, ou seja, às formas de organização da vida, entretanto, responde a interesses de classes antagônicas. Contemporaneamente, portanto, verifica-se que ele exerce um papel importante com a intensificação de ações que demonstram sua atuação em maior benefício da classe dominante.

O Estado constitui-se como um importante mecanismo utilizado pela sociedade burguesa para enfrentar e/ou superar as crises do capital, com maior desresponsabilização perante os problemas sociais. É com esse intuito que Gramsci1 1 O sardo marxista avança no pensamento crítico de sua época ao abordar, de forma consistente, sobre o aparelho estatal como uma unidade articulada entre coerção/consenso, chamando atenção para a necessidade do estabelecimento de estratégias de luta pela classe trabalhadora, com o intuito de ampliar o papel político das massas e construir um projeto de classe hegemônico após a conquista do Estado. elabora a teoria do Estado como unidade articulada entre coerção e consenso:

[...] O Estado é certamente concebido como organismo próprio de um grupo, destinado a criar condições favoráveis à expansão máxima desse grupo, mas este desenvolvimento e expansão são concebidos e apresentados como a força motriz de uma expansão universal, de um desenvolvimento de todas as energias “nacionais”, isto é, o grupo dominante é coordenado concretamente com os interesses gerais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida como uma continua formação e superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo dominante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja, não até o estreito interesse econômico-corporativo [...] (Gramsci, 2007GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Tradução: Carlos Nelson Coutinho com a colaboração de Luiz Sergio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v. 3., p. 41).

Aparecendo também como um conjunto formado entre sociedade civil e sociedade política defendida pelo mesmo autor, a função estatal é primordial para exercer consenso/coerção entre as classes sociais. Contemporaneamente, a esfera estatal adota novas configurações para atender aos interesses capitalistas, as quais se caracterizam principalmente através do contexto de contrarreformas e pelo avanço do ideário neoliberal, que redundam em alterações nefastas a diversos setores societários.

Observa-se a construção de sociabilidades requeridas pelo capital para que ele mantenha sua hegemonia, quando se trata da concretização de reformas econômicas, por exemplo, é fundamental a presença de instituições estatais e também não estatais, as quais contribuem para que tais reformas sejam devidamente legitimadas. “A crise do capital com o seu invólucro neoliberal trouxe consigo outros fenômenos correlatos, cuja implicação maior tem sido o esvaziamento da democracia liberal burguesa e uma nítida regressão cultural” (Del Roio, 2020DEL ROIO, M. Crise orgânica, neoliberalismo e barbárie. Práxis e Hegemonia Popular, Marília, v. 5, n. 6, p. 5-15, jul. 2020., p. 7).

A regressão das conquistas civilizatórias com a derrocada dos serviços públicos é característica marcante do projeto ultraneoliberal, ultraconservador e protofascista da história, do qual decorre intensificação de contradições entre as classes, expressa numa lógica destrutiva e inaudita regressividade social. A partir desse enfoque, aprofundam-se a presença e a difusão dos aparelhos privados de hegemonia, em que nitidamente formas ideológicas são construídas com o intuito de suprir formas materiais, com isso, sua funcionalidade é explicitada na busca de uma nova produção coletiva de visão de mundo.

2. Caracterizando o APH: Rede de Filantropia para a Justiça Social

Como exposto anteriormente, para o marxista sardo italiano, o Estado integral é um conjunto formado pela sociedade civil e política, ou seja, pelos aparelhos governamentais e pelos aparelhos privados de hegemonia, havendo uma unidade como articulação; eles atuam conjuntamente para manter as condições de dominação da burguesia no mundo capitalista.

Salienta-se que, nos termos gramscianos, a sociedade civil é apresentada com uma distinção conceitual importante dos postulados trazidos por Marx e Engels, apesar de não haver ruptura entre esses autores, mas sim uma continuidade da tradição marxista, que enriquecem o debate sobre Estado. Pensar o Estado gramscianamente é pensá-lo sempre a partir de um duplo registro: o das formas dominantes na produção (classes e frações), que se constituem e se consolidam por intermédio de organizações da sociedade civil, ao mesmo tempo que, junto a cada aparelho ou órgão do Estado restrito, estão sempre presentes projetos e intelectuais vinculados às agências da sociedade civil (Mendonça, 2014MENDONÇA, S. R. de. O Estado ampliado como ferramenta metodológica. Marx e o Marxismo, v. 2, n. 2, jan./jul. 2014., p. 38).

Para compreendermos a sociedade civil devemos, então, atentar-nos ao que esse autor expõe sobre a categoria Estado, pois, para Gramsci, o Estado também é sociedade civil.

Estamos sempre no terreno da identificação de Estado e Governo, identificação que é, precisamente, uma reapresentação da forma corporativo-­-econô­mica, isto é, da confusão entre sociedade civil e sociedade política, uma vez que se deve notar que na noção geral de Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção) (Gramsci, 2012GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Edição: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. v. 3., p. 248, C. 6, § 88).

Com esse enfoque, o autor postula a proposta de um Estado integral como mediação importante para preservar o bloco histórico e ampliar seus interesses para favorecer determinado grupo. Gramsci supera o dualismo das análises que separavam e contrapunham a base à superestrutura, integrando sociedade política e sociedade civil numa só totalidade, em constante interação, no âmbito do que ele considerava as superestruturas (Mendonça; Fontes, 2012MENDONÇA, S. R. de; FONTES, V. História e teoria política. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (org.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 55-71.).

O conceito de aparelho privado de hegemonia caracteriza-se como importante e significativo conceito dos postulados gramscianos. Mormente, quando são ressaltadas particularidades interligadas à manutenção de hegemonia e formação de ideologia das classes dirigentes e dominantes e das classes subalternas, cada vez mais é presente a atuação de entidades, associações e instituições de ambas essas classes, as quais objetivam atender a demandas sociais.

Os APH têm ocupado lugar de destaque no estabelecimento de respostas aos sujeitos sociais, propondo intervenções direcionadas a mudanças na vida dos indivíduos e, ainda, na ideia de viabilização de uma outra sociabilidade, ao mesmo tempo que contribuem para a ordem capitalista e empresarial. A realização de um aparelho hegemônico, como cria um novo terreno ideológico, determina uma reforma das consciências e dos métodos de conhecimento, é um fato de conhecimento, um fato filosófico (Gramsci, 2007GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Tradução: Carlos Nelson Coutinho com a colaboração de Luiz Sergio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v. 3.).

Acompanha-se o desenvolvimento de uma complexa teia de aparelhos privados de hegemonia. Eles desvelam atuação imprescindível na cena contemporânea, com ações que tendem a fomentar a formação de uma nova cultura a partir de discursos para a construção de consenso entre as classes sociais, os quais corroboram articulações para o enfrentamento ou a superação dos momentos de desequilíbrios inerentes ao capitalismo, enquanto este último cria novas formas de reforçar ou retomar sua autonomia.

Perante o agravamento da desigualdade social, são construídas discussões e medidas de enfrentamento que desvelam práticas direcionadas a um discurso ideológico de atendimento de necessidades sociais por meio de ações denominadas “filantrópicas”, sendo elas decorrentes de setores detentores de riqueza, como ações benéficas para os indivíduos que vivenciam a pobreza.

Nesse discurso, é interessante observar como a persistência do termo “filantropia”, renovada pela “filantropia empresarial”, demonstra o quanto perdura a suposição, de maneira aparente ou sub-reptícia, de que doações de recursos sejam equivalentes ao respeito, ou ao merecimento, ou ainda à generosidade desprovida de interesses, movida apenas por amor à humanidade. Não à toa o termo é recorrente (Fontes, 2020FONTES, V. Capitalismo filantrópico? Múltiplos papéis dos aparelhos privados de hegemonia empresariais. Marx e o Marxismo, v. 8, n. 14, jan./jun. 2020.).

As propostas filantrópicas empresariais demonstram ações por meio de doações de seus integrantes para o desenvolvimento de intervenções no meio societário. Essas aparecem como formas de generosidade e solidariedade com a população, entretanto, constituem-se em investimentos, conforme termo utilizado no Brasil: “investimento social”. O termo filantropia está na moda, mas nubla as questões envolvidas, exatamente por deixar à sombra as demais relações que tais “doadores” mantêm com as diversas instâncias de poder; os recursos públicos com os quais se nutrem; e, finalmente, porque tal termo enfatiza a atuação contemporânea das entidades como se fossem apenas “sem fins lucrativos” (Fontes, 2020FONTES, V. Capitalismo filantrópico? Múltiplos papéis dos aparelhos privados de hegemonia empresariais. Marx e o Marxismo, v. 8, n. 14, jan./jun. 2020.).

Verifica-se que, com o discurso ideológico de filantropia empresarial ou investimento social, são mistificadas as relações que são construídas em um terreno de conflito e não de colaboração em benefício da sociedade, com aparente comprometimento, apoio e fortalecimento de organizações da sociedade civil (OSC); o que ocorre, na verdade, é uma tentativa de colocar interesses privados como se fossem interesses universais.

Defende-se, por exemplo, que as OSC se constituem em instituições que desenvolvem ações ou projetos sociais visando responder a necessidades sociais de interesse público. De acordo com a plataforma Mapa das Organizações da Sociedade Civil, as OCS são entidades/grupos nascidos da livre organização e da participação social da população que desenvolvem ações de interesse público sem visar ao lucro. As OSC tratam dos mais diversos temas e interesses, com variadas formas de atuação, financiamento e mobilização (Brasil, 2019BRASIL. O que são Organizações da Sociedade Civil - OSC e MROSC? Brasília: Governo do Distrito Federal, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.ibram.df.gov.br/o-que-sao-organizacoes-da-sociedade-civil-osc-e-mrosc . Acesso em: 18 mar. 2022.
https://www.ibram.df.gov.br/o-que-sao-or...
), todavia, outros objetivos também podem ser identificados.

Com esse debate, este estudo enfatiza o APH Rede de Filantropia para a Justiça Social, que se caracteriza como um espaço que reúne fundos e fundações comunitárias, organizações doadoras (grantmakers), responsáveis por mobilizar recursos de fontes diversificadas para apoiar grupos, coletivos, movimentos e organizações da sociedade civil que atuam nos campos da justiça social, direitos humanos, cidadania e desenvolvimento comunitário (Rodrigues, 2022RODRIGUES, Mariana. 10 anos da Rede de Filantropia para Justiça Social: Fundo Brasil participa da celebração, 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.fundobrasil.org.br/fundo-brasil-participa-das-comemoracoes-de-10-anos-da-rede-de-filantropia-para-justica-social/#:~:text=Criada%20em%202012%2C%20a%20Rede,da%20justi%C3%A7a%20social%2C%20direitos%20humanos%2C . Acesso em: 14 jan. 2022.
https://www.fundobrasil.org.br/fundo-bra...
).

A rede em questão dispõe da atuação em áreas que possibilitem uma possível “justiça social”, parece que no sentido de aparentar um equilíbrio que não é viável numa sociedade de classes antagônicas. Essa rede foi criada em 2012, justamente com o propósito de promover e diversificar uma cultura filantrópica no Brasil, em busca de recursos para tal. Integram o quadro de sócios fundadores as seguintes organizações-membros: Fundo Baobá, Fundo Elas+, Fundo Brasil, Fundo Casa Socioambiental, Instituto Comunitário da Grande Florianópolis - ICOM - Brazil Foundation, o Instituto Rio e o Instituto Baixada (Rede de Filantropia para a Justiça Social Rodrigues, 2022RODRIGUES, Mariana. 10 anos da Rede de Filantropia para Justiça Social: Fundo Brasil participa da celebração, 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.fundobrasil.org.br/fundo-brasil-participa-das-comemoracoes-de-10-anos-da-rede-de-filantropia-para-justica-social/#:~:text=Criada%20em%202012%2C%20a%20Rede,da%20justi%C3%A7a%20social%2C%20direitos%20humanos%2C . Acesso em: 14 jan. 2022.
https://www.fundobrasil.org.br/fundo-bra...
).

Com a “missão de fortalecer as organizações da sociedade civil brasileira que trabalham com direitos humanos, raciais, de gênero, socioambientais e desenvolvimento comunitário através de ações que visem à ampliação da filantropia para a justiça social” (Rede de Filantropia para a Justiça Social, [2022]REDE DE FILANTROPIA PARA A JUSTIÇA SOCIAL. [S. l.], 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.filantropia.ong/sobre-nos . Acesso em: 14 jan. 2022.
https://www.filantropia.ong/sobre-nos...
, n. p.), essa rede visa contribuir para a formação de uma cultura da solidariedade em prol das classes subalternas, mas acaba resultando em maior subordinação delas, pois as propostas explicitadas deixam visível o recorte e o apoio empresarial, ou seja, desvelam o interesse, na verdade, de cunho privado e não coletivo.

O referido APH é basilar para a exemplificação de mediação das corporações financeiras que emergem na sociedade como primordiais na construção de consenso entre as classes sociais, com redirecionamento do atendimento de necessidades sociais e, logo, da busca da construção de outra visão de mundo.

[...] Os aparelhos privados de hegemonia ligam-se direta ou indiretamente ao solo da produção, permitindo compreender como diferentes tendências e contradições são traduzidas em formas mais ou menos organizadas de cultura e de consciência e chegam a condensar-se como projetos políticos. Partindo das observações de Gramsci, é possível ir além e acompanhar o processo pelo qual do conflito e agregação entre aparelhos privados de hegemonia se cristaliza uma direção mais ou menos definida, que empolga e penetra o Estado e a partir dele se expande, conduzida como política pública através de suas agências (Fontes, 2018FONTES, V. Estado e sociedade civil: anjos, demônios ou lutas de classes? Revista Outubro, n. 31, 2o sem. 2018., p. 221).

Numa realidade em que a ausência das ações estatais governamentais para o atendimento dos sujeitos é recorrente e, devido a isso, as políticas sociais caminham para um distanciamento do âmbito da garantia de atendimento das necessidades sociais, o discurso ideológico de generosidade de organismos privados revela-se como importante mecanismo de incorporação das demandas dos subalternos, dotado de interesses pela expansão capitalista.

Partindo para análise dos objetivos da Rede de Filantropia para a Justiça Social (2022REDE DE FILANTROPIA PARA A JUSTIÇA SOCIAL. [S. l.], 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.filantropia.ong/sobre-nos . Acesso em: 14 jan. 2022.
https://www.filantropia.ong/sobre-nos...
), aparecem:

  • Fortalecer e promover a filantropia de justiça social no Brasil, na perspectiva dos direitos humanos, entendidos desde uma perspectiva complexa e interseccional.

  • Difundir e dar visibilidade às organizações-membros, ressaltando sua atuação e sua contribuição para a transformação do país, a fim de que possam ser vistas como alternativas de investimento social.

  • Articular as organizações-membros para fortalecer as lutas e ampliar os recursos para a doação nas áreas de direitos humanos e justiça social, para o apoio de iniciativas transformadoras.

Com seus objetivos, a difusão de uma ideia de “filantropia” como possibilidade de transformar a realidade é clara, desde que as organizações componentes sejam identificadas como alternativas de investimento social e, assim, tenham recursos para sua doação ampliados. Tal filantropia, portanto, é empresarial.

Não há equilíbrio entre sociedade civil e sociedade política; desvelam-se aqui novas formas de dominação, a construção de uma afirmação de projeto em disputa e de manutenção de uma ordem, em que a transformação social não é um objetivo em si, pelo menos não no sentido de permitir a construção de um bom senso ou a transformação das estruturas do modo de produção do país. Ora, há claramente uma enorme quantidade e variedade de entidades associativas empresariais, sem fins lucrativos, porém voltadas diretamente para a defesa corporativa de empresas, corporações, empresários, setores de atividade etc. Ademais, parcela expressiva desse empresariado se apresenta como “investimento social privado” (Fontes, 2020FONTES, V. Capitalismo filantrópico? Múltiplos papéis dos aparelhos privados de hegemonia empresariais. Marx e o Marxismo, v. 8, n. 14, jan./jun. 2020., p. 19).

A Rede de Filantropia para a Justiça Social desenvolve articulações estratégicas para atingir sua função, para tanto, atua em conexão com atores nacionais e internacionais, identificados como apoios e parceiras institucionais, sendo eles: para transformar-doar, Inter-american Foundation, Wellspring Philanthropic Fund, OAK Foundation, Porticus, Baobá - Fundo para a Equidade Racial, Global Dialogue, Gife, Instituto Sabin, Ford Foundation, Global Fund for Community Foundations, ICS, Freedom House, WKKF, Instituto C&A. E como parcerias institucionais: HRFN, Philanthropy for Social Justice and Peace, Edge Funders Alliance e Wings.

Conforme posto pela respectiva Rede (2022), o apoio das organizações-membros se concretiza através da doação de recursos financeiros a instituições, grupos, lideranças da sociedade civil, que contribuem com o processo de transformação social e/ou lutam pela defesa e pelo reconhecimento de direitos em diversas áreas e regiões do país. A maioria dos membros também apoia iniciativas de desenvolvimento, fortalecimento e articulação institucional, e promove atividades de formação, diálogo e debates em várias áreas e com múltiplos atores.

As ações da Rede são dirigidas a organizações da sociedade civil, com enfoque principal no oferecimento de apoio financeiro para sua manutenção na sociedade, visando, assim, fortalecer e aprimorar a cultura filantrópica no Brasil, tendo como visão um país com uma cultura filantrópica ampliada e diversificada, que garanta e amplie a justiça social por meio de doações empresariais.

Mas, de qual cultura filantrópica estamos falando quando o intuito é o investimento social privado, por meio da cultura de doações em prol de grupos, coletivos, movimentos, lideranças e organizações da sociedade civil comprometidas com seus campos de atuação? Fontes (2020FONTES, V. Capitalismo filantrópico? Múltiplos papéis dos aparelhos privados de hegemonia empresariais. Marx e o Marxismo, v. 8, n. 14, jan./jun. 2020.) salienta: não é filantropia o que caracteriza o capitalismo contemporâneo e do qual o Brasil é um dos pontos de observação privilegiado. Há inúmeros estudos brasileiros sobre o avanço do capital aos recursos públicos (educação, saúde e, especialmente, a previdência) por intermédio de aparelhos privados de hegemonia, como de “organizações sociais”.

A Rede de Filantropia para a Justiça Social exerce uma função ideológica em benefício do capital e da manutenção de sua hegemonia, com discursos contraditórios e complementares de generosidade e investimento social, os quais se constituem em suporte para o enfrentamento da crise orgânica da classe dirigente, pois, “‘a passividade política’ das grandes massas, por sua vez, é uma forma de atividade, enquanto é uma busca de solução a uma crise de consenso do Estado” (Liguori; Voza, 2017LIGUORI, G.; VOZA, P. (org.). Dicionário gramsciano (1926-1937). São Paulo: Boitempo, 2017. 831 p., p. 143).

Há um descompasso na conservação das relações sociais, englobando as dimensões econômicas e políticas. Diante disso, a saída é pela via da reconstrução da supremacia burguesa, visto que o sistema posto é antagônico e, portanto, irrevogável, podendo redundar apenas em desintegração, regressão sociocultural ou barbárie (Del Roio, 2020DEL ROIO, M. Crise orgânica, neoliberalismo e barbárie. Práxis e Hegemonia Popular, Marília, v. 5, n. 6, p. 5-15, jul. 2020.).

O APH em destaque, em sua imbricação com o Estado, resulta numa proposta de “empoderar” setores específicos, fazendo com que eles, por meio de comportamentos “altruístas”, executem uma ação que encubra sua contribuição para expansão da desigualdade e agudização das expressões da questão social, para as quais a intervenção estatal governamental já não cumpre sua função, havendo um verdadeiro abandono das classes subalternas.

Uma rede de fundos para a justiça social apresenta a possibilidade de respostas para as demandas das classes subalternas por fora das políticas sociais, aprofundado a mediação de outros atores sociais. Com tal realidade, há tendência de esvaziamento da cultura do direito e da prioridade em sua viabilização, visto que a filantropia empresarial “é um privilégio da desigualdade, não existe capitalismo filantrópico” (Fontes, 2020FONTES, V. Capitalismo filantrópico? Múltiplos papéis dos aparelhos privados de hegemonia empresariais. Marx e o Marxismo, v. 8, n. 14, jan./jun. 2020., p. 19).

Considerações finais

O capitalismo desenvolve, então, estratégias, com o intuito de enfrentar e/ou superar os momentos de crises sem alterar a estrutura da acumulação capitalista, assim, necessita expropriar cada vez mais as garantias estabelecidas e os próprios sujeitos sociais. Logo, são promovidos mudanças e impasses para a implementação das políticas sociais, com regressividade civilizatória e ataque aos direitos.

Numa conjuntura como a contemporânea, de crise orgânica, as estratégias para enfrentar ou superar tais crises são rigorosas e tentam manter a supremacia burguesa a todo custo. Diante disso, os efeitos da crise são visíveis nas distintas classes e desvelam-se em aspectos econômicos, políticos e sociais.

A análise da correlação de forças revela a disputa entre projetos distintos de classes antagônicas, de que emerge a destruição de forças civilizatórias, com possibilidade de surgimento de novas organizações sociais. Em tal contexto, quando já não atende a interesses das massas, a classe dominante estrategicamente elabora formas de seu revigoramento ou manutenção e, nisso, os aparelhos privados de hegemonia emergem como molas propulsoras.

Com uma direção político-moral que elabora ações imbuídas de generosidade por meio de doações e fundos para organizações sociais em benefício das classes subalternas, a Rede de Filantropia para a Justiça Social dissemina seu projeto de classe com enfrentamento através de uma cultura filantrópica falseada e marcada pelo objetivo de atingir um investimento social privado. Para que a ordem capitalista prevaleça e a luta de classes não resulte em maiores tensões, o apaziguamento com ações que propaguem o “amor a humanidade” é uma saída estrategicamente favorável frente à tamanha destruição e à expropriação.

O redirecionamento do atendimento de necessidades sociais e, logo, da busca da construção de outra visão de mundo resulta no obscurantismo da destruição de direitos e na construção de uma nova sociabilidade, na qual a defesa das instituições, pela via das empresas como forma de investimento social, tende a retomar o discurso filantrópico com novas tendências; contudo, onde o velho paradoxo entre acumulação privada e miséria absoluta permanece.

Referências

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  • CASTELO, R. Gramsci e o conceito de crise orgânica. Margem Esquerda: Ensaios Marxistas. São Paulo: Boitempo, n. 19, out. 2012.
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  • GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere Edição: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. v. 3.
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    O sardo marxista avança no pensamento crítico de sua época ao abordar, de forma consistente, sobre o aparelho estatal como uma unidade articulada entre coerção/consenso, chamando atenção para a necessidade do estabelecimento de estratégias de luta pela classe trabalhadora, com o intuito de ampliar o papel político das massas e construir um projeto de classe hegemônico após a conquista do Estado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2024
  • Aceito
    03 Set 2024
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