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Pensando comunidade: a questão social do cuidado

Thinking community: the social question of care

Resumo:

O artigo discute a importância da coletivização do cuidado. O método é materialista-histórico, partindo da compreensão marxiana da condição de ser social. O artigo analisa a condição de propriedade privada de si a que é alçado o indivíduo na sociedade capitalista. Em seguida, analisa a formação da cultura do inimigo como impeditivo à coletivização do cuidado. Como resultado, apresenta práticas de coletivização que já vêm sendo adotadas com sucesso.

Palavras-chave:
Questão social; Cuidado; Propriedade privada; Feminismo marxista

Abstract:

The article discusses the importance of collectivizing care. The method is historical materialist, based on the Marxian understanding of the condition of social being. The article analyzes the condition of private property of the self to which the individual is elevated in capitalist society. It then looks at the formation of the culture of the enemy as an impediment to the collectivization of care. As a result, it presents collectivization practices that have already been successfully adopted.

Keywords:
Social question; Care; Private propriety; Marxist feminism

1. Introdução

O objetivo deste artigo é provocar reflexões sobre a questão social do cuidado, desde sua compreensão marxista, com os desdobramentos feitos por aquelas e aqueles que estudam o tema. A “crise do cuidado” que vem sendo enunciada especialmente por autoras feministas diz, com restrições cada vez mais evidentes e severas, as possibilidades de exercer o cuidado; e com o modo como todas as atividades de cuidado são consideradas, dentro do sistema capitalista.

Existem muitas maneiras de abordar a questão do cuidado e, especialmente, a mudança que a sociedade capitalista opera em relação ao valor do cuidado e à distribuição das tarefas a ele relacionadas. Opta-se, aqui, por uma análise que parte da compreensão da centralidade da propriedade privada para a sociabilidade capitalista. A análise, portanto, tem como referencial teórico a crítica marxiana às relações de trabalho, e a perspectiva marxista adotada, especialmente, por Silvia Federici. Ou seja, o argumento que será desenvolvido é o de que a transformação da força de trabalho em propriedade e a constituição de uma sociedade fundada na obrigação de trabalhar, como forma praticamente exclusiva de obter acesso aos bens indispensáveis à sobrevivência, são centrais para o modo como o cuidado passa a ser compreendido e realizado.

A metodologia será histórico-dialética, a partir da mobilização de autores e autoras que já tratam da questão do cuidado. O objetivo será demonstrar como é necessário considerar que há uma questão social ligada ao cuidado. A privatização das tarefas de cuidado e sua atribuição às mulheres, funcional para a reprodução da força de trabalho e, portanto, essencial para a produção e a circulação de mercadorias, não é algo lateral para a análise e o enfrentamento da questão social. Ao contrário, é central. Isso implica afirmar que, sem a compreensão da necessidade de coletivizar o cuidado, dificilmente será possível superar, ou mesmo tensionar, os elementos que estruturam a sociedade capitalista.

No caso do Brasil, é fundante considerar, ainda, o que a invenção da ideia de raça produz em termos de subjetividade. Para compatibilizar o discurso moderno do sujeito livre proprietário de si com a escravização das pessoas indígenas e negras, houve muito esforço filosófico e “científico”, no sentido da construção da figura do selvagem. Desumanizar tais pessoas era condição para não romper com o fundamento que legitimava a exploração do trabalho pelo capital. Após analisar esse aspecto, buscarei demonstrar que existem iniciativas de compreensão do cuidado como algo coletivo. Essas iniciativas, embora por vezes não relacionem a coletivização do cuidado à questão social, estão sem dúvida colocando as coisas sob esse prisma. Daí a importância de pensarmos sobre elas.

2. A noção de propriedade privada de si

A noção de propriedade privada, que já existia em modelos anteriores de sociedade (Arendt, 2002ARENDT, H. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002., p. 39; 71-78), torna-se central na forma capitalista de organização social. Há uma alteração na compreensão do que pertence à esfera privada ou à esfera pública. Privatiza-se o espaço doméstico. A propriedade privada “passa a ser compreendida como atributo do sujeito” (Federici, 2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017., p. 271, grifos da autora).

Hegel define o sujeito livre como aquele com propriedade, ainda que seja apenas a propriedade de si mesmo, da própria força vital. Segundo ele, “só pela plenitude do seu corpo e do seu espírito, pela conscientização de si como livre, é que o homem entra na posse de si e se torna a propriedade de si mesmo por oposição a outrem” (grifos da autora). Então, é possível “ceder a outrem aquilo que seja produto isolado das capacidades e faculdades particulares” da atividade corporal e mental ou, mesmo, do emprego delas por um tempo. É justamente a fixação desse tempo (que o direito chamará de jornada) o que confere “uma relação de extrinsecidade com a minha totalidade e universalidade” (Hegel, 1997HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997., p. 56, grifos do autor).

Essa formulação teórica, que equipara força de trabalho à propriedade privada e busca convencer de que possui-la é justamente o que nos torna livres, está diretamente conectada à naturalização da ausência de acesso a bens necessários à sobrevivência, senão através da compra. Quem passa fome porque não negociou adequadamente sua propriedade é o exclusivo responsável por essa privação. Para o que aqui interessa, é importante notar como a noção de propriedade privada de si será funcional para o aprofundamento da dominação masculina sobre as mulheres.

A imposição de uma nova forma de sociabilidade, ao alterar as compreensões acerca do que é privado e do que importa à esfera pública, modifica, segundo Rita Segato, a noção de gênero no “mundo-aldeia”. O ambiente doméstico, que era valorizado como espaço político, de consulta obrigatória, no qual se articulavam os grupos corporativos de mulheres, passa a ser compreendido como um ambiente não político. Os âmbitos da vida social passam a ser organizados de forma binária. Nesse contexto, segundo a mesma autora, há um aprofundamento da diferença de gênero e da violência que daí decorre (Segato, 2003SEGATO, R. L. Las estructuras elementales de la violencia: ensayos sobre género entre la antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2003., p. 39), porque a estrutura social incide sobre o “horizonte mental” dos homens, que devem ser capazes de demonstrar sua virilidade através da violência.

Silvia Federici apresenta uma visão desse processo histórico que dialoga, de certa forma, com a compreensão de Segato. Segundo Federici, o capitalismo instaura “uma nova ordem patriarcal, reduzindo as mulheres a uma dupla dependência: de seus empregadores e dos homens” (Federici, 2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017., p. 191). A elas é atribuído o trabalho de garantir a sobrevivência física de quem está impossibilitado para a troca e a renovação das forças das pessoas que se venderão como mercadoria. Um trabalho que rapidamente se tornará doméstico, invisível e não remunerado:

O capital tinha que nos convencer de que o trabalho doméstico é uma atividade natural, inevitável e que nos traz plenitude, para que aceitássemos trabalhar sem uma remuneração. Por sua vez, a condição não remunerada do trabalho doméstico tem sido a arma mais poderosa no fortalecimento do senso comum de que o trabalho doméstico não é trabalho, impedindo assim que as mulheres lutem contra ele, exceto na querela privada do quarto-cozinha, que toda sociedade concorda em ridicularizar, reduzindo ainda mais o protagonismo da luta (Federici, 2019FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019., p. 43).

Desse modo, o cuidado torna-se trabalho de cuidado e adquire, ao mesmo tempo, a função de viabilizar a troca (por isso chamado trabalho reprodutivo) e de garantir aos homens a sujeição feminina. Embora a condição essencial para que a troca se efetive seja justamente esse conjunto de atividades (de alimentar, de vestir, de cuidar da casa, das crianças, dos doentes e dos idosos), serão os homens a receber salários, com os quais irão garantir a sobrevivência da família (Fraser, 2020FRASER, N. Contradições entre capital e cuidado. Tradução: José Ivan Rodrigues de Sousa Filho. Princípios: Revista de Filosofia, Natal, v. 27, n. 53, maio/ago. 2020.), porque o acesso aos bens vitais, como alimentos, passará a ser intermediado pelo dinheiro.

Como refere Federici, a separação entre a produção de mercadorias e a reprodução da força de trabalho “tornou possível o desenvolvimento de um uso especificamente capitalista do salário e dos mercados como meios para a acumulação de trabalho não remunerado”. Ou seja, para essa autora, a separação entre produção e reprodução “criou uma classe de mulheres proletárias que estavam tão despossuídas como os homens, mas que, diferentemente deles, quase não tinham acesso aos salários”. Consequentemente, elas foram forçadas à condição de “pobreza crônica, à dependência econômica e à invisibilidade como trabalhadoras” (Federici, 2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017., p. 145-146).

Há mais um aspecto relevante. Ao instituir a propriedade privada de si como condição de existência física e radicalizar o uso da moeda como meio universal de troca, naturaliza-se a compreensão do outro como inimigo. Esse é o principal efeito do que Marx vai chamar de estranhamento do trabalho, em que quem trabalha “tem a infelicidade de ser um capital vivo e, portanto, carente”, que, a cada momento no qual não trabalha, “perde seus juros e, com isso, sua existência”. Quando não há trabalho e, por consequência, não há salário, esse indivíduo “tem existência não enquanto homem, mas enquanto trabalhador, podendo deixar-se enterrar, morrer de fome”. É um não sujeito, impedido inclusive de realizar suas necessidades mais “mundanas”, como alimentar-se. Em razão disso, é que Marx concluirá que a propriedade privada deixará de ser um atributo alheio à condição humana e passará a constituir elemento estruturante da própria noção de indivíduo, exercendo “seu pleno domínio sobre o homem”, tornando-se “um poder histórico-mundial” (Marx, 2004MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 91-92).

Através dessa oposição imposta entre sem propriedade e propriedade, o trabalho - que é por excelência nossa forma de ser no mundo - passará a constituir-se como “a essência subjetiva da propriedade privada enquanto exclusão da propriedade”. O capital, por sua vez, se constituirá como “o trabalho objetivo enquanto exclusão do trabalho”. E ambos “são a propriedade privada enquanto sua relação desenvolvida da contradição” (Marx, 2004MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 102-103). Logo, a grande armadilha desse modelo de organização social, em que nossa força vital é transformada em propriedade privada de si, é que a subjetividade humana passa a atuar como essência da ideia mesma de propriedade privada (Marx, 2004MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 106-107).

A questão do cuidado tem íntima relação com essa subjetividade “proprietária”. Essa forma de compreender e viver o mundo faz com que espaços/ interesses/escolhas públicas sejam tratadas como se fossem algo que importa apenas a nós mesmos. Sim, porque se há alguém que se apropria dos frutos do meu trabalho, daquilo que nele é vida genérica, essa pessoa será necessariamente alguém contra mim (Marx, 2004MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 87). E por que deveríamos cuidar de nossos inimigos?

Essa escolha política, de sustentar a existência de uma propriedade privada de si, denominada força de trabalho, capaz de justificar o trabalho obrigatório, resulta tanto a transformação do trabalho em produtor da miséria humana quanto a perda da condição de realização da vida genérica, de que se reveste o trabalho humano.

Como afirma Marx (2004MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 83), “o trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho”. Então, ele “está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele”. Com essa perda da condição de realização da vida genérica ocorre, também, a perda da capacidade de identificação social e, consequentemente, de uma compreensão do cuidado como algo que nos interessa enquanto coletividade.

3. O não sujeito e a lógica do inimigo

Para completar a análise do que a sociedade capitalista, centrada na propriedade privada, altera em relação ao cuidado, é preciso ainda agregar outro elemento. O fato de que a violenta invasão colonial, bem como a escravização dos corpos indígenas e africanos, opera a partir da construção de outro discurso, que torce (ou distorce) o conceito de corpo como propriedade privada de si.

Enquanto o homem branco europeu será esse sujeito-propriedade que deverá vender-se para sustentar a si e a sua família, a mulher branca europeia será o outro que deverá prover (alimentando, satisfazendo sexualmente, limpando, cuidando) as condições para que a troca entre capital e trabalho se efetive. Por sua vez, as pessoas racializadas (não europeias) serão “o outro do outro”. Não terão sequer o status jurídico de pessoa. As identidades sociais, índios, negros e mestiços (assim considerados sempre em relação ao homem branco europeu), são construídas nesse período histórico para conferir “legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista” (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso) Editorial, 2005. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf U.
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/c...
).

No campo filosófico, a cultura racista foi justificada por Hobbes (2003HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 109) e Montesquieu (1979MONTESQUIEU, C. de. O espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979., p. 258-268), segundo o qual as pessoas escravizadas, “pretos dos pés à cabeça”, com “nariz tão achatado que é quase impossível ter pena deles”, tinham de viabilizar, com seus corpos, a exploração das Américas. Aqui entra a torção. Os seres humanos são livres, porque detentores da propriedade força de trabalho. As pessoas racializadas, porém, podem ser escravizadas.

Como sustentar o discurso moderno diante dessa contradição? Será necessário destituir esses indivíduos da condição de pessoas. Como selvagens, são seres passíveis de desterritorialização, destruição da cultura e do pensamento social e político. Muitas correntes “científicas” reconheceram nas pessoas negras uma anatomia cerebral diferente e incapacitante. A raça foi o critério utilizado para “legitimar a produção de privilégios simbólicos e materiais para a supremacia branca” (Carneiro, 2023CARNEIRO, S. Dispositivos de racialidade. São Paulo: Zahar, 2023., p. 21 e 45). Isildinha Nogueira refere um médico francês radicado no Brasil que, em 1878, fez estudo mostrando como pesquisas científicas anteriores provavam a incapacidade mental de pessoas negras (Nogueira, 2021NOGUEIRA, I. B. A cor do inconsciente: significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva, 2021., p. 103).

Com a abolição formal da escravidão, o sofrimento imposto pela condição de propriedade privada de si também atingirá as pessoas indígenas e negras, mas de forma diversa. O homem negro ou indígena suportará a dupla condição de ser que vive do trabalho obrigatório e de alguém marcado pelo signo da racialização. Alguém inferior para o discurso hegemônico. Terá as “noções de hombridade e masculinidade dos colonizadores brancos impostas sobre ele”. Absorverá as ideias de masculinidade da sociedade branca e, de acordo com bell hooks, provará amargura e desespero, “pelo fato de a supremacia branca bloquear continuamente seu acesso ao ideal patriarcal” (hooks, 2019hooks, b. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019., p. 150). Precisará ser homem em uma realidade na qual deve comportar-se como coisa. A mulher negra e indígena estará em situação ainda pior. Terá menos opções de emprego, maior dificuldade de integração social e, segundo a mesma autora, em consequência da violência sofrida por seus homens, ainda maior exposição à violência doméstica (hooks, 2019hooks, b. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019., p. 99-100).

O medo será afeto essencial. Medo de não ter trabalho e, portanto, não sobreviver. Afinal, se nascemos proprietárias da força de trabalho, não aliená-la para obter alimento, remédio, roupa, moradia será sinal de fracasso. Um fracasso que conduzirá à morte. Em uma realidade de desemprego estrutural, essa é uma condição não apenas de vulnerabilidade. A palavra não dá conta dessa realidade. É desesperador partilhar o senso comum de que ter trabalho depende apenas do empenho individual, em uma realidade na qual boa parte das pessoas não conseguirá vender a força de trabalho, porque não existe espaço para todas. Especialmente, quando essa sociedade é atravessada por opressões que determinam as condições de possibilidade de sobrevivência dos diferentes corpos.

A esse medo irá somar-se o medo do outro, que será potencialmente o inimigo capaz de me impedir de trabalhar e, portanto, de sobreviver (Rolnik, 2018ROLNIK, S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N1 edições, 2018., p. 67). É a partir desse medo do outro que as práticas racistas, sexistas, etaristas, capacitistas irão operar. Afinal, se não há espaço para todas as pessoas, usar essas formas de opressão em favor da conquista da possibilidade de sobreviver com um mínimo de decência será quase um imperativo, tão profundo e em certa medida inconsciente, quanto difícil de ser compreendido e enfrentado no contexto das relações afetivas. Compreender as atividades de cuidado como tarefas que interessam à coletividade depende de reconhecer que compartilhamos um destino; que o outro não é inimigo e que é possível construir uma sociabilidade em que haja espaço para todas as pessoas.

4. Os limites do discurso do Estado sobre o cuidado

Ao assumir a responsabilidade por “harmonizar os interesses em luta”, o Estado brasileiro reconheceu a ausência de neutralidade na atuação diante das perturbações sociais. A construção de direitos previdenciários e trabalhistas constitui, portanto, uma mudança profunda no discurso do Estado. Até então, à neutralidade correspondia também um distanciamento em relação aos conflitos sociais. A posição do Estado era a de um terceiro que construía as regras do jogo e as aplicava, sem intervir na vontade individual. Afinal, as relações sociais se estabeleciam sob tal discurso, através de contratos (acordos livres de vontades individuais). São os direitos trabalhistas que promovem certa fissura na noção kantiana de autonomia da vontade albergada pelo Direito (Severo, 2020SEVERO, V. S. Elementos para o uso transgressor do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2020., p. 72).

A evidência da questão social é, portanto, exatamente o que provoca o Estado, não sem resistências, a admitir a necessidade de acolher algumas demandas de cuidado, através do Direito. Sem romper com seu fundamento estrutural de reduzir pessoas à condição de proprietárias de si, os mais diferentes Estados capitalistas irão disciplinar direitos previdenciários e trabalhistas, que terão seu caráter social reconhecido explicitamente.1 1 No caso do Brasil, o Anteprojeto de criação da Justiça do Trabalho refere a “necessidade de harmonizar os interesses em lucta, como em defesa da autoridade do Estado, que não pôde ser neutro, nem abstencionista, deante das perturbações collectivas, deixando as forças sociaes entregues aos proprios impulsos”. Disponível em https://www.trt9.jus.br/portal/pagina.xhtml?secao=32&pagina=ANTEPROJETO_JUSTICA_DO_TRABALHO. Acesso em: 9 jul. 2023. O cuidado (por meio da instituição de aposentadoria, seguro contra acidentes, garantia de salário durante as férias e mesmo a possibilidade de descansar aos fins de semana sem perder remuneração, por exemplo) revela-se como necessário à coletividade, e não como algo que pertença ao que se convencionou chamar âmbito privado.

É no discurso do Direito do Trabalho que, pela primeira vez, o Estado capitalista reconhece também a ausência de autonomia individual em uma relação jurídica contratual. A imperatividade das normas, a irrenunciabilidade, a ideia de que quaisquer atos tendentes a atingir direitos são nulos (artigo 9o da CLT) compõem o conjunto de normas que constituem uma espécie de solução de compromisso, pela qual o Estado segue considerando os sujeitos como contratantes, mas, ainda assim, edita normas de proteção (Severo, 2020SEVERO, V. S. Elementos para o uso transgressor do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2020.). O recorte é de classe social, apenas. Há um silêncio perturbador quanto às opressões de raça, gênero, capacidade, sexualidade etc. O fato de existir um capítulo da CLT para regular condições do trabalho da mulher é evidência disso (Vieira, 2020VIEIRA, R. S. C. Cuidado, crise e os limites do direito do trabalho brasileiro. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 4, p. 2517-2542, 2020., p. 2517-2542).

Ainda assim, não é desprezível a função que esse campo jurídico exerce, de dar voz à classe trabalhadora e de explicitar o conflito, partindo justamente do reconhecimento da importância de um senso de comunidade. Por isso, refiro-me à regulação do cuidado coletivo. Ao estabelecer limites à jornada e ao salário ou impor condições saudáveis de trabalho, reconhece-se a necessidade de cuidar das pessoas, para que elas consigam viver sob a lógica do trabalho obrigatório, sem adoecer ou morrer precocemente. O desdobramento, com a regulação específica do cuidado (direito à educação; à creche; à amamentação), é parte desse mesmo discurso, pelo qual o Estado reconhece a necessidade de amparo social.

Quando, em seus Manuscritos, Marx chama a atenção para o fato de que somos “seres genéricos”, universais, porque nossa atividade vital é intrinsecamente ligada aos demais seres e à possibilidade mesma de existência, ele evidencia a potência que o metabolismo do capital tem para aniquilar nossa condição de seres sociais. É extremamente significativa a frase de Marx: “a morte aparece como uma dura vitória do gênero sobre o indivíduo determinado e contradiz a sua unidade” (Marx, 2004MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 85 e 110). Ao negar-se o princípio mais elementar da existência humana, que é o fato de nos constituirmos na relação com os outros e com o meio, passa-se a agir desde o imperativo do “todos contra todos”. N’O capital, o mesmo autor deixará claro que a união coletiva da classe trabalhadora, forçando a aprovação de uma lei, por exemplo, é um caminho para frear o capital. Nas palavras de Marx: “uma barreira social intransponível que os impeça a si mesmos de, por meio de um contrato voluntário com o capital, vender a si e a suas famílias à morte e à escravidão” (Marx, 2013MARX, K. O Capital. São Paulo: Boitempo, 2013. Livro I., p. 373).

O Direito do Trabalho impõe normas de proteção social. Permite, porém, que o cuidado em sentido mais estrito (cuidar dos filhos, dos idosos, da casa) siga sendo compreendido como algo que pertence à esfera privada e, sobretudo, que é algo atribuível preferencialmente às mulheres. Nega ou fragiliza a condição assalariada dessas atividades. Portanto, mesmo se tratando, essencialmente, de amparo social e, portanto, de regular questões que se justificam desde a perspectiva da necessidade coletiva de cuidado, o Direito do Trabalho não elabora nem reconhece expressamente o caráter central do cuidado para a vida em comunidade.

5. A crise do cuidado

O que hoje se denomina “crise do cuidado” talvez seja exatamente a explicitação da falta que - não atendida pelo Estado através do Direito, mas, ao contrário, mantida na invisibilidade - retorna revelando sua centralidade. Como refere Regina Stela, no Brasil, a responsabilidade pelo cuidado é, em regra, das mulheres da família, que por vezes atuam em redes de solidariedade e outras tantas vezes repassam as tarefas “para trabalhadoras domésticas e outras profissionais do cuidado pouco valorizadas” (Vieira, 2020VIEIRA, R. S. C. Cuidado, crise e os limites do direito do trabalho brasileiro. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 4, p. 2517-2542, 2020., p. 2517-2542).

A aparente necessidade de finalmente falar sobre isso demonstra o aprofundamento das contradições do capitalismo, que faz emergir a violência dessa realidade de privatização do cuidado. Quanto mais pessoas desempregadas, quanto maior a concentração da renda nas mãos de poucos e quanto mais trabalho se extrai dos corpos que de algum modo conseguem usufruir do privilégio de ter uma atividade remunerada, menos capazes de cuidar nos tornamos.

Nancy Fraser, em artigo sobre o tema da crise do cuidado, menciona que “as atuais pressões” sobre as tarefas a ele ligadas não são acidentais. Ao contrário, para essa autora, “têm profundas raízes sistêmicas na estrutura de nossa ordem social”. De tal modo que sua enunciação (o reconhecimento de que há uma crise de cuidado) “indica que há algo podre não só na forma atual do capitalismo, a forma financeirizada, mas na sociedade capitalista per se” (Fraser, 2020FRASER, N. Contradições entre capital e cuidado. Tradução: José Ivan Rodrigues de Sousa Filho. Princípios: Revista de Filosofia, Natal, v. 27, n. 53, maio/ago. 2020., p. 99-117). Por mais que o capitalismo tenha se adaptado, seja através de legislação protetiva, cuja capacidade de “estabilizar a reprodução social por meio da limitação da exploração das mulheres e das crianças no trabalho fabril” se revela nítida; seja inserindo as mulheres no “mercado de trabalho”, a crise eclode quando as contradições do sistema se agudizam. A autora refere-se à pobreza de tempo gerada, inclusive, pelo endividamento das famílias, que precisam trabalhar cada vez mais para dar conta de despesas ordinárias (Fraser, 2020FRASER, N. Contradições entre capital e cuidado. Tradução: José Ivan Rodrigues de Sousa Filho. Princípios: Revista de Filosofia, Natal, v. 27, n. 53, maio/ago. 2020.). Sem discordar do fato de que o capitalismo “parasita atividades de prover, cuidar e interagir que produzem e mantêm vínculos sociais”, enquanto segue negando “valor monetizado” e tratando essas tarefas “como se custassem nada”, parece-me que é possível acrescentar um dado importante à análise de Fraser.

Considerar o trabalho de cuidado como algo individual não é lateral nesse processo que culmina na atual crise de cuidado. Tampouco é menos importante o fato de que não só o endividamento, mas também a própria colonização do tempo de vida pelo trabalho são elementos fundamentais dessa crise. Os meios digitais de comunicação e a flexibilização e extensão da jornada são fatores determinantes para o exaurimento das condições físicas e mentais de prestar cuidado. Nessa linha, descumprir direitos trabalhistas, como o direito à limitação da jornada, ao registro na Carteira de Trabalho e Previdência Social (e, por consequência o direito às férias, aos descansos remunerados etc.) é fator decisivo para tal crise. Então, a função mais imediata e urgente, para quem lida com o Direito, é radicalizar o compromisso com sua efetividade.

A observância dos direitos trabalhistas e o reconhecimento de consequências graves para quem os descumpre são também formas de tensionar para que haja condições de existência que permitam a realização do cuidado. É claro que isso não resolve tudo, pois do contrário essa análise não seria marxista. Retorno, então, ao primeiro ponto referido anteriormente. Há uma questão que não é menor para a compreensão da crise do cuidado. Cuidado é verbo coletivo, como referiram com muita felicidade Bruna Angotti e Regina Stela em podcast lançado durante a pandemia com esse nome.2 2 Disponível em: https://cuidar-verbo-coletivo.simplecast.com/, Acesso em: 10 jul. 2023.

Reconhecer as atividades ligadas ao cuidado como atividades da comunidade implica uma alteração radical na forma como essas tarefas devem ser realizadas e, consequentemente, a quem atribuí-las. Isso diverge da luta por creches públicas, escolas em tempo integral, redução de jornada ou salário que permita o repasse do cuidado à terceira pessoa. Não se trata de invalidar ou criticar tais lutas. Apenas de pontuar a necessidade de reconhecer o caráter comunitário de todas as atividades ligadas ao cuidado. Ou seja, da necessidade de darmos um passo adiante e repensarmos o próprio conceito de unidade familiar, responsabilidade pela criação de filhos etc. Implica ressignificar as formas de organização e as instituições que sustentam o capitalismo, buscando através de práticas de coletivização do cuidado a superação da compreensão individualista das tarefas a ele relacionadas (Angotti; Vieira, 2021ANGOTTI, B.; VIEIRA, R. S. C. (org.). Cuidar, verbo coletivo: diálogos sobre o cuidado na pandemia da covid-19. Joaçaba: Editora Unoesc, 2021., p. 42).

Já existem experiências de arranjos coletivos de cuidado entre prostitutas, comunidade LGBTQIAN+ e em organizações sociais indígenas. É urgente que, como pontua Pedro Augusto Nicoli, os vínculos sociais sejam reconstituídos “não a partir necessariamente dos mesmos arranjos familiares da família heterossexual”. Ao contrário, a partir de outras “estratégias vitais”, que já estão sendo construídas e vivenciadas em algumas comunidades (Angotti; Vieira, 2021ANGOTTI, B.; VIEIRA, R. S. C. (org.). Cuidar, verbo coletivo: diálogos sobre o cuidado na pandemia da covid-19. Joaçaba: Editora Unoesc, 2021., p. 121).

6. Abraçando o desamparo: a necessária coletivização do cuidado

O abraço é talvez a forma mais eficaz de demonstrar afeto; de fazer perceber que o outro importa, que estamos implicados com a sua existência, com a sua fragilidade, com a sua dor ou alegria. Abraçar o desamparo é reconhecer a nossa condição de seres vulneráveis, mas é também nos reconciliarmos com o fato de que existimos coletivamente.

No início da década de 1970, Mariarosa Dalla Costa e Selma James escreveram The power of women and the subversion of the community, alguns anos depois publicado como livro.3 3 Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1002/9781119395485.ch7#accessDenialLayout. Acesso em: 9 jul. 2023. No texto, as autoras abordam a “questão da mulher” na conjuntura do capitalismo, salientando o quanto esse sistema destrói formas de comunidade que existiam anteriormente. Não se tratava, então, de lutar para ter liberdade de vender força de trabalho por capital. Tampouco se tratava de “voltar ao isolamento do lar”, por mais atraente que pudesse parecer. A tarefa histórica que essas autoras atribuem às mulheres é a de alterar as bases de convivência social, o que inclui diretamente a forma como cuidamos umas das outras.

No mesmo período, Lélia Gonzalez escrevia sobre a necessidade de compreender os processos de dominação masculina e branca, desde a militância. E a militância é sempre coletiva. Em um artigo brilhante, ela faz análise da figura da mãe-preta, afirmando que ao exercer a função materna e transmitir valores, costumes, crenças através da linguagem, a mulher negra ganha a “batalha discursiva” (Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: RIOS, F.; LIMA, M. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 75-93). E o quanto isso é o Real fazendo furo (Lacan, 2007LACAN, J. O seminário. Livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007., p. 149-150) no discurso dominante de uma sociedade que se pretende branca. Ou seja, por meio do cuidado, criam-se não apenas o laço social, mas também toda a cadeia de significados e significantes que acompanharão o sujeito ao longo da vida. Se, como afirma Lélia, há uma batalha discursiva que pode ser ganha através do cuidado, coletivizá-lo e pensá-lo desde outras bases - que não a do indivíduo ou a da família tradicional - é revolucionário.

Em O manifesto comunista, Marx refere-se à ridícula preocupação dos burgueses com a “pretensa comunidade oficial das mulheres”, chegando a afirmar que “os comunistas não precisam introduzir a comunidade das mulheres. Ela quase sempre existiu”. Nesse manifesto, o autor deixa clara sua compreensão de que o comunismo é a “ruptura mais radical com as relações tradicionais de propriedade” (Marx; Engels, 2005MARX, K.; ENGELS, F. O manifesto comunista. 4. reimp. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 56-57). Nos Manuscritos, já citados neste artigo, Marx será ainda mais incisivo, permitindo intuir que a superação da ideia de propriedade privada de si passa por uma “verdadeira dissolução do antagonismo do homem com a natureza e com o homem”, pelo “retorno do homem” à “sua existência humana, isto é, social”. É de cuidado que trata Marx, ao afirmar que reconhecer o caráter genérico da pessoa é compreender que existimos como “condição de elemento vital da efetividade humana”; que somos necessariamente dependentes, pois devemos a vida a outros seres que nos geraram e que providenciaram, a fim de que não morrêssemos após o nascimento (Marx, 2004MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 104-106 e 113).

A partir do que foi dito até aqui, é possível concluir que a coletivização do cuidado é tão necessária quanto contraintuitiva. Desafia a subjetividade atomizada do sujeito capitalista. Em uma conjuntura histórica atravessada pela colonização e pela subjugação de determinados povos, alguns sofrerão mais que outros. É relevante, por exemplo, que a psicanálise tenha surgido a partir do desassossego das mulheres com essa fórmula de convívio social. Demonstra que, por mais que essa ordem nos submeta e condicione, por mais que estruture nossas relações sociais, há algo que sobra e insiste em nos conectar com nossa condição de seres sociais. Algo que produz pessoas que não se amoldam (e que por isso adoecem e sofrem).

O movimento que deu “nome ao mal-estar” das mulheres, diante dos “novos lugares que se abriam diante delas, desde as revoluções do século XVIII até a consolidação da ordem burguesa no fim do XIX” (Kehl, 2009KEHL, M. R. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 29-30; 77-78) já estava relacionado à privatização e à feminilização do cuidado. Para as mulheres negras, a enunciação do mal-estar se deu de outro modo. Em comunidades, como os quilombos e as irmandades femininas negras, pessoas racializadas conseguiram produzir coletivamente uma realidade menos violenta contra suas existências (Werneck, 2009WERNECK, J. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo. In: VERSCHUUR, C. (dir.). Vents d’Est, vents d’Ouest: mouvements de femmes et féminismes anticoloniaux [en línea]. Genève: Graduate Institute Publications, 2009 (generado el 19 avril 2019). Disponível em: http://books.openedition.org/iheid/6316. DOI: 10.4000/books.iheid.6316.
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). Isso porque, ao contrário das mulheres brancas, as negras e indígenas não tiveram espaço para enfrentar sua dor e seu adoecimento com o uso da psicanálise.

As discussões sobre a coletivização do cuidado de crianças e idosos não são novas (Federici, 2019FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019.; Rosas, 2014ROSAS, R. E. Feminização e coletivização do cuidado de idosos no México. Cadernos de Pesquisa, v. 44, n. 152, p. 378-399, 2014. Disponível em: https://publicacoes.fcc.org.br/cp/article/view/2893.
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) e, embora existam iniciativas que independem do Estado, muitas estão entrelaçadas com instituições estatais. Nas periferias do Brasil, há muito tempo as mulheres entenderam que compartilhar o cuidado é condição para a sobrevivência,4 4 Um exemplo é trazido na reportagem “A informal rede de creches para crianças que vivem na periferia”. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-47969511. Acesso em: 8 jul. 2023. inclusive porque não têm a escolha de contar com o Estado. Fazem-no da forma possível, precária, mas fundada em uma profunda noção de solidariedade.

7. Conclusão

Este artigo é só um começo, embora comece do meio. É apenas um esboço de uma teoria da coletivização do cuidado como uma estratégia fundamental de tensionamento da realidade capitalista e de tudo o que ela produz, em termos de aprofundamento do nosso desamparo. A proposta não é inovadora. Tanto assim que as autoras e os autores escolhidos para o diálogo que travei aqui (tantas outras poderiam ser chamadas nesta conversa) já falam disso há algum tempo.

O tema, porém, adquire nova importância com a chamada “crise do cuidado”, que é elemento da crise profunda e radical de um sistema que insiste em negar nossa condição de seres sociais. Daí por que examinar a questão do cuidado desde a perspectiva marxista da questão social, demonstrando que sua privatização tem relação direta com a construção de uma racionalidade fundada na noção de propriedade privada de si que pode contribuir, de algum modo, para mais estudos e práticas de coletivização do cuidado.

Essas práticas, por sua vez, têm o potencial de desvelar as contradições do capitalismo, ao tempo em que evidenciam o caráter comunitário do cuidado, como condição de possibilidade da vida. Já vivemos a urgência de um tempo em que parece não haver mais condições econômicas, mas também físicas e emocionais, para o cuidado. Desmistificar o conceito de propriedade privada de si, para reconhecer que somos seres dependentes, desamparados e vulneráveis, e sob essa premissa potencializar práticas coletivas de cuidado que já estão ocorrendo são imperativos de sobrevivência da espécie humana.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2024
  • Aceito
    19 Abr 2024
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