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Indústria 4.0 e trabalho 0.4: colonialismo digital e a intensificação do trabalho

Industry 4.0 and labour 0.4: digital colonialism and the intensification of work

Resumo:

O presente artigo aborda as configurações do trabalho e suas evoluções históricas, partindo do início do capitalismo, sua expansão na Revolução Industrial, até a indústria 4.0 e suas tecnologias mais modernas para a precarização e exploração da força de trabalho. Nesse mesmo prisma, destaca as determinações reflexivas entre o capitalismo e o racismo, evidenciando a perpetuação da dinâmica de dominação étnico-racial, agora com as mais novas e sofisticadas ferramentas tecnológicas.

Palavras-chave:
Indústria 4.0; Colonialismo digital; Pacto da branquitude; Intensificação no trabalho; Saúde dos trabalhadores

Abstract:

This article looks at the configurations of labour and their historical evolution, starting from the beginning of capitalism, its expansion in the industrial revolution, to industry 4.0 and its most modern technologies for the precariousness and exploitation of the workforce. In the same vein, it emphasises the reflexive determinations between capitalism and racism, highlighting the perpetuation of the dynamics of ethnic-racial domination, now with the newest and most sophisticated technological tools.

Keywords:
Industry 4.0; Digital colonialism; Whiteness pact; Work intensification; Workers’ health

Introdução

Não tem nada mais antigo do que ver um menino negro sentado em cima de uma bicicleta, carregando comida com uma mochila nas costas. Isso remonta ao período escravagista... Isso remonta às formas de exploração totalmente refratárias da proteção social e totalmente precárias. (Dutra, 2023DUTRA, R. Palestra: Desafios da Regulação do Trabalho em Plataformas. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE TRABALHO PLATAFORMIZADO, 2023, Brasília. Anais [...]. Brasília: Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho, 5 e 6 set. 2023.)

Na epígrafe, Dutra (2023DUTRA, R. Palestra: Desafios da Regulação do Trabalho em Plataformas. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE TRABALHO PLATAFORMIZADO, 2023, Brasília. Anais [...]. Brasília: Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho, 5 e 6 set. 2023.) chama a atenção para os sentidos que os avanços das tecnologias digitais têm para o mundo do trabalho. Trata-se de uma problemática com representações paradoxais, pois, ao mesmo tempo que a Quarta Revolução Industrial traz as tecnologias disruptivas, por exemplo, a gestão algorítmica do trabalho e o Chat GPT, todavia, tais inovações não estão isentas da velha exploração do trabalho, típica do capitalismo na sua fase mais arcaica, compreendida na acumulação primitiva de capitais e sustentada no colonialismo-escravismo.

O novo paradigma socioprodutivo a partir das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) se insere na dinâmica estrutural do capital, que se realiza com os profundos investimentos em Ciência e Tecnologia para aumentar a produtividade, reduzir os custos do trabalho, e garantir a competitividade e o domínio internacional sobre o trabalho, o meio ambiente e os mercados. Isso tem consequência direta para a piora das condições de trabalho e vida da classe trabalhadora, sujeita ao crescimento do desemprego e à instabilidade das novas relações sociais de trabalho.

Faustino e Lippold (2023FAUSTINO, D.; LIPPOLD, W. Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana. São Paulo: Boitempo, 2023.), ao analisarem a dimensão global do fenômeno das atuais transformações tecnológicas, chamam a atenção para o colonialismo digital como síntese predominante das relações sociais de produção, segundo a divisão internacional do trabalho. Em entrevista para o projeto de pesquisa “O trabalho em tempos de Indústria 4.0: consequências sociais e de saúde para o trabalho”, financiamento CNPq - n. 306293/2021-8, 2023, Deivison Faustino afirmou que as atuais inovações tecnológicas promovem a permanência e a intensificação da “[...] concentração de poder monopolista jamais vista nas mãos de poucas corporações...”. Segundo ele: “As Big Techs assumem determinado poder político, econômico e social que nos remete, de maneira muito mais intensa e extensa, ao colonialismo e ao capital monopolista”. O colonialismo digital sintetiza a dimensão do poder político e econômico dos países detentores da alta tecnologia, num processo de nova partilha do mundo, especialmente, Estados Unidos da América (EUA) e China, mas não apenas. Ainda de acordo com Deivison Faustino:

[…] o grande poder das Big Techs ainda está concentrado no Vale do Silício, nos EUA. E essa corrida só tem intensificado a divisão internacional do trabalho, decorrente desse processo de concentração, né? O capital sempre concentra e, ao contrário do que se previa, que, algum dia, se chegaria em um mundo unificado e sem fronteiras, o que temos, na verdade, é uma concentração cada vez maior do poder, guerras generalizadas, e o caminho a passos largos em direção às catástrofes climáticas.

Com a mediação da tecnologia informacional e digital, o capital expande o processo de reestruturação produtiva desenvolvido a partir da crise da década de 1970, quando as alterações tornaram os processos produtivos mais flexíveis, automatizados, robotizados e controlados a distância. Ao mesmo tempo que desterritorializa a produção, os grupos empresariais internacionais, transnacionais, holdings impõem rigorosos pacotes de ajuste fiscal aos Estados dos vários países de economia dependente, como o Brasil. Consubstancia-se o neoliberalismo como agenda política necessária ao conjunto de determinações postas pelo capital na sua atual fase de desenvolvimento, que se expressa na privatização e nas medidas restritivas para o acesso aos direitos sociais, como também na flexibilização das relações sociais laborais.

A partir de 2008, a crise do capital provocou novo ciclo de ajustes, com a exigência de os Estados socorrerem financeiramente os bancos e as empresas, e a oferta de incentivo à expansão dos mercados externos, que ocorre sob as garantias de apropriação do trabalho e de matérias-primas a baixos custos pelas grandes corporações. Tendencialmente, aprofundam-se a precarização do trabalho e as desigualdades sociais, atingindo em especial os grupos socialmente discriminados, conforme a divisão social, de gênero/sexo, étnico-racial, regional e capacitista do trabalho.

A pandemia da covid-19 (2020-2021) garantiu a expansão da indústria 4.0, em âmbito mundial, com o aumento do controle digital, produção, armazenamento e uso comercial de dados em nuvem, diga-se de passagem, controlados pelas Big Techs, como também a criação de novos produtos conectados em redes de internet, Internet das Coisas (sigla conhecida pelo termo em inglês, IoT), o que exige a hiperconectividade, tão propalada pela internet 5G, entre outras inúmeras determinações para a produção, circulação e consumo em ambientes físicos e do ciberespaço. Ou seja, a partir da emergência sanitária, o processo de digitalização das relações sociais teve maior visibilidade e avanço, uma vez que houve a necessidade de manter as pessoas sem contato físico, sem sair de casa, decorrente das medidas de isolamento social para conter a curva de contaminação pelo novo coronavírus. Dessa maneira, houve uma justificativa social para o avanço da transposição das atividades em ambientes físicos para as plataformas digitais. Todavia, cumpre frisar que as instituições públicas e privadas já vinham investindo nos processos necessários para a oferta de serviços e demais interações via plataformas digitais e aplicativos acessados a partir de celulares (smartfones) (Souza, 2021SOUZA, E. Â. de. A pandemia da covid-19 e o teletrabalho na Previdência Social. Caderno CRH, n. 34, e021038, 2021. https://doi.org/10.9771/ccrh.v34i0.42160. Acesso em: 5 mar. 2024.
https://doi.org/https://doi.org/10.9771/...
; 2022SOUZA, E. Â. de. Indústria 4.0: serviço social no sistema previdenciário em tempos da pandemia de covid-19. Katálysis, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 125-136, jan./abr. 2022.). Essas alterações impactam a vida como um todo, porque alteram as relações sociais, e as aceleradas transformações não podem ser ignoradas, especialmente quando se discute a relação trabalho e saúde.

Destarte, este texto dialoga com os elementos que amalgamam a formação social, econômica e política do país à estruturação do seu mercado de trabalho com o cenário contemporâneo da precarização e da intensificação laboral. Considera os impactos para a saúde, adoecimentos e sofrimentos relacionados ao trabalho. Mais ainda, evidencia-se como os processos de trabalho, dentro e fora do Estado, foram (e são) impactados pelo uso das novas tecnologias para o maior controle do trabalho pelo capital. Ademais, a reforma gerencial do Estado ocorrida no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC, 1995-2002; Brasil, 1995BRASIL. Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado do Brasil. Brasília: Presidência da República, Câmara da Reforma do Estado, Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1995. Disponível em: Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/fhc/plano-diretor-da-reforma-do-aparelho-do-estado-1995.pdf . Acesso em: 18 jan. 2024.
http://www.biblioteca.presidencia.gov.br...
) instituiu profundas mudanças na gestão das políticas sociais, a partir da adoção das parcerias público-privadas e da gestão empresarial no âmbito estatal. A gestão gerencialista efetua uma mobilização constante. Gaulejac (2007GAULEJAC, V. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Aparecida: Ideias & Letras, 2007. (Coleção Management, 4)., p. 109) evidencia que: “O essencial não é mais o respeito pelas regras e normas formais, mas a emulação permanente para realizar os objetivos. A mobilização pessoal torna-se uma exigência. Cada um deve ser mobilizado para preencher seus objetivos com entusiasmo e determinação”. Dessa maneira, o Estado promoveu a adoção dos pressupostos da organização laboral do mundo privado para o interior dos serviços públicos, com as exigências de metas, avaliações e uso de novos mecanismos de acompanhamento e gestão da força de trabalho.

Nota-se que o capital, para se manter e se expandir mundialmente, necessita realizar as constantes inovações técnicas de domínio da produção, trabalho e apropriação da natureza. Em consequência, as atuais transformações tecnológicas e das relações sociais de trabalho não são particulares dessa ou daquela ocupação, tampouco se referem apenas ao setor privado, mas envolvem o setor público, todas as profissões/ocupações e toda a vida em sociedade.

Assim, este texto realiza um diálogo com as relações sociais laborais a partir da aceleração das transformações tecnológicas atuais, de cariz digital e pós-covid-19. Considera uma série de questionamentos acerca das consequências sociais, econômicas e políticas da atual fase do sistema capitalista, financeirizado, globalizado, informatizado e informalizado (Antunes, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.) e, ainda, altamente racista.

A construção teórico-metodológica deste ensaio considera ainda a realização da disciplina “Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora”, oferecida na Universidade Federal de São Paulo, no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social, conduzida pelas autoras deste artigo, ao longo dos últimos anos. Salienta-se que a realização dessa disciplina tem provocado os estudos e as discussões das atuais transformações do mundo do trabalho, permitindo o acúmulo necessário para o presente texto. Ademais, utiliza-se, parcialmente, a entrevista semiestruturada realizada com o pesquisador Deivison Faustino e a sindicalista Marta Freitas, ocorrida em julho de 2023, a partir da pesquisa: “O trabalho em tempos de Indústria 4.0: consequências sociais e de saúde para o trabalho”, com financiamento CNPq - n. 306293/2021-8.

1. Dialética da modernidade tecnológica, racismos e relações precárias de trabalho

O processo de trabalho se constrói em um movimento dialético, nos momentos históricos, que pode ser reconhecido como o trabalho nas comunidades tribais, passando do trabalho rural e urbano no modo mercantilista para a formação do modelo capitalista (Oliveira, 1995OLIVEIRA, C. A. de. História do trabalho. 3. ed. São Paulo: Ática, 1995.), este último com a sistematização da exploração e opressão, inclusive com a criação do aparato ideológico da Igreja e da ciência para as justificativas necessárias à subjugação do outro, garantindo, assim, o domínio do europeu branco sobre o trabalho alheio de africanos(as) e respectivos descendentes, e dos povos originários, como também sobre os recursos naturais e territoriais (Fanon, 2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu, 2020.).

O trabalho como categoria ontológica é central para o desenvolvimento do ser social, considerando a riqueza do intercâmbio entre o ser humano e a natureza (Marx, 2006MARX, K. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2006. Livro I: O processo de produção do capital.). Todavia, o sistema do capital promove a apropriação do trabalho alheio para a captura do mais-valor, somente possível a partir de intensa violência.

Para o Frantz Fanon, a explosão do capitalismo no período inicial, que se convencionou chamar de acumulação primitiva de capitais, é pautada por uma violência sem mediação. O sistema colonial é uma violência explícita e sistemática, como forma de sociabilidade e organização social, né? Então, o Fanon faz muita questão de diferenciar as formas de dominação na metrópole, já abordadas pela ciência política moderna, e as formas de dominação na Colônia, onde a violência aparece em estado bruto, mas um dos elementos que compõem esse pacote de violências é o uso da ciência e da tecnologia como forma de dominação (Deivison Faustino, 2023FAUSTINO, D.; LIPPOLD, W. Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana. São Paulo: Boitempo, 2023., em entrevista).

Trata-se de uma forma “selvagem” e criminosa de exploração do ser humano. Transforma-se toda a sociedade em dois polos: por um lado, os detentores do capital, que, portanto, dominam os meios de produção e o trabalho, sendo que quanto maior a exploração, consequentemente, maior será o mais-valor; e, por outro, situa-se quem necessita vender a sua força de trabalho, trabalhadores(as) que, via de regra, se submetem por questões de necessidades da sociorreprodução da vida ou que são forçados, tal como a escravização laboral contemporânea.

O processo de trabalho no capitalismo tem sua história assentada na expropriação, na exploração e na escravização do trabalho. O tráfico negreiro não só sustentou financeiramente o acúmulo de riqueza para o desenvolvimento do capitalismo, como também garantiu a reposição constante de mão de obra trazida diretamente da África, como é o caso do Brasil e de países de nossa Afro-América Latina1 1 E aqui nos inspiramos em Lélia Gonzalez, que nos brinda com a construção da categoria “Amefricanidade” que, segundo a autora, nos permite ultrapassar a limitação territorial, linguística e ideológica, pensar a América como um todo, pensar América Central, Sul, Norte e Insular em sua totalidade (Gonzalez, 2020). e Caribe. É em uma Inglaterra fortalecida pela riqueza do tráfico que se propicia a primeira transformação do processo de trabalho, com a transição do modelo mercantilista para o modelo que agregou tecnologia, inicialmente com a máquina a vapor e a invenção da eletricidade (alimentação de teares). Esta transformação, ocorrida no período de 1760 a 1860, de acordo com Sakurai e Zuchi (2018SAKURAI, R.; ZUCHI, J. D. As revoluções industriais até a Indústria 4.0. Revista Interface Tecnológica, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 480-491, 2018.), é denominada Revolução Industrial - Indústria 1.0.

O processo de transformação segue-se à segunda Revolução Industrial, conhecida por Indústria 2.0, com o desenvolvimento da gestão taylorista/fordista. A terceira Revolução Industrial - Indústria 3.0 - ocorre entre 1980 a 1990, e é marcada por transformações tecnológicas configuradas na Revolução Técnico-Científica Informacional (Sakurai; Zuchi, 2018SAKURAI, R.; ZUCHI, J. D. As revoluções industriais até a Indústria 4.0. Revista Interface Tecnológica, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 480-491, 2018.). Esse período é marcado por “[…] anúncios de empregos que seriam menos pesados e mais criativos, emergindo atividades menos repetitivas” (Filgueiras, 2022FILGUEIRAS, V. A. Trabalho, Tecnologias da Informação e Comunicação e condições de vida: tecnologia para que(m)? “Novas” empresas e “velha” exploração do trabalho. Katálysis, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 1-5, 2022.).

Mudanças no processo de trabalho ocorrem na sociedade em movimento dialético, em direção à nova estrutura de sustentação político-econômico-ideológica, que reforça o compromisso do capitalismo em dominar e explorar ao máximo a força de trabalho e recursos socioambientais. É neste contexto que se produz nova forma de dominação no trabalho, amparado nos avanços do conhecimento da ciência sobre as tecnologias digitais. Nasce então, no presente século (XXI), a Quarta Revolução Industrial - Indústria 4.0.

Esta estrutura moderna do capitalismo objetiva tornar mais flexível, intermitente e ocasional as jornadas de trabalho; dessa forma, o trabalho se torna cada vez mais abstrato, contribuindo para sua desregulamentação e para o fim da legislação protetora do trabalho. Assim, a desmantelação do trabalho concreto por meio da utilização das novas tecnologias de exploração é imperativa para o capital criar mais valor, através da intensificação do trabalho físico e intelectual, se esquivando das legislações protetoras do trabalho.

Aflora o trabalho abstrato, o qual faz desaparecer as diferentes formas de trabalho concreto, que, segundo Marx, se reduzem a uma única espécie de trabalho, o trabalho humano abstrato, dispêndio de energias físicas e intelectuais, necessárias para a produção de mercadorias e de valorização do capital (Antunes, 2020ANTUNES, R. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da indústria 4.0. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 116).

Nesse processo de precarização do trabalho, a classe trabalhadora é induzida a trocar seus direitos trabalhistas pela falsa promessa de empreendedorismo digital, por infraestruturas, como empresas-aplicativos, que escamoteiam as relações sociais de trabalho, mediadas pelas empresas proprietárias das plataformas digitais, as quais comparecem, estranhamente, apenas como mediadoras da oferta e da procura por bens e serviços, vinculando indiretamente à sua plataforma a(o) trabalhadora/trabalhador, que agora é chamado de “parceiro(a)”, “colaborador(a)” ou “empreendedor(a)”. Trata-se de neologismos neoliberais que são usados como estratégia para que o trabalhador se perceba com maior participação na construção do trabalho, proposição de tornar-se um produtor de ideias, fazer melhor uso de sua imaginação e criatividade e, supostamente, se tornar dono de seu próprio negócio. As plataformas se apresentam como genuínos intermediários em determinado mercado e, “[…] nesse cenário, o empreendedorismo aparece com força, como suposta saída para o problema do desemprego e mesmo da subordinação” (Filgueiras, 2022FILGUEIRAS, V. A. Trabalho, Tecnologias da Informação e Comunicação e condições de vida: tecnologia para que(m)? “Novas” empresas e “velha” exploração do trabalho. Katálysis, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 1-5, 2022., p. 2.).

Já dentro dessa estrutura, o(a) trabalhador(a) assume integralmente os riscos do seu trabalho, ainda que atue sob um processo com características de supervisão e subordinação, e intensifica sua jornada de trabalho para alcançar metas de produtividade e rentabilidade. Essas crescentes demandas de trabalho precarizado, a pressão por produtividade e as longas jornadas de trabalho acarretam problemas de saúde física e mental. “Livrar-se dos custos do trabalho mantendo os ganhos e o controle da produção: desse modo, as empresas-aplicativo concretizam o auge do modelo de empresa enxuta, com um número ínfimo de empregados e milhares de ditos ‘empreendedores’ conectados” (Abílio, 2020ABÍLIO, L. C. Uberização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 115).

Filgueiras (2022FILGUEIRAS, V. A. Trabalho, Tecnologias da Informação e Comunicação e condições de vida: tecnologia para que(m)? “Novas” empresas e “velha” exploração do trabalho. Katálysis, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 1-5, 2022., p. 2) discute que as “novas formas” de trabalho estão sendo anunciadas há várias décadas, todavia, ainda não possuíam novas tecnologias como precondição, sendo que elas ganham forças com os denominados aplicativos e plataformas; “[…] no fim das contas os trabalhadores são menos livres e estão mais submetidos ao capital que os assalariados reconhecidos como tais”. Incluindo mais elementos, Chaves (2020CHAVES, A. B. P. Da planta taylorista/fordista ao capitalismo de plataforma: as engrenagens da exploração do trabalho. Research, Society and Development, v. 9, n. 6, e01963473, 2020., p. 9) considera que o capitalismo de plataforma

[...] institui uma relação de trabalho baseada na autonomia do prestador de serviço por meio de uma gestão baseada na conexão digital entre o cliente e o prestador de serviço. Tal mudança de organização empresarial provoca a imersão deste modelo de negócio no mundo sombrio do trabalho precarizado, com trabalhadores na condição de força de trabalho desprovida de relação contratual, realizando serviço por conta própria.

Cabe ressaltar a questão da autonomia discutida por Cabral (2016CABRAL, M. S. F. A relação das necessidades de saúde com o processo de trabalho segundo a percepção dos instrutores de práticas meditativas. 2016. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Coordenadoria de Recursos Humanos, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, São Paulo, 2016.), recuperando Karl Marx, ao apontar que, juntamente às transformações econômico-sociais que se iniciam no século XVI, funda-se uma nova concepção de sujeito. “O sujeito moderno que é reconhecido e se reconhece como indivíduo, consciente, livre e autônomo, defensor da liberdade e igualdade, noções estas que são pilares ideológicos da sociedade burguesa” (Cabral, 2016CABRAL, M. S. F. A relação das necessidades de saúde com o processo de trabalho segundo a percepção dos instrutores de práticas meditativas. 2016. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Coordenadoria de Recursos Humanos, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, São Paulo, 2016., p. 137). A noção de autonomia não é uma real liberdade do indivíduo, mas uma concepção do capital ideologicamente apresentado como um degrau a ser alcançado no trabalho. A proposição político-ideológica da Indústria 4.0 é de um trabalho subordinado aos interesses do capital com uma roupagem de “autonomia”; constrói-se uma suposta concepção de valor do ser humano “livre” no processo de trabalho. Porém, o modelo da Indústria 4.0, pelo contrário, gera desgaste nos trabalhadores e nas trabalhadoras, que, na realidade, não possuem nenhuma autonomia no sentido verdadeiro da liberdade, da igualdade, no real poder de escolha e de decisão como indivíduos sociais com seus direitos garantidos.

Além dessas questões, reconhecemos que esse modelo da chamada “Quarta Revolução” acontece em uma sociedade em movimentação que se constrói em suas contradições de classe, de gênero/sexo, étnico-racial e capacitista, em seus conflitos. E não podemos deixar de trazer à luz a construção da sociedade brasileira fundada no processo escravista-colonial, que perdura com suas raízes racistas, estruturais e institucionais no contexto atual. O capitalismo se funda sob a riqueza oriunda do sistema colonial-escravagista, com a exploração do trabalho escravizado de negros(as) trazidos(as) da África para trabalhar nas terras de plantio e extrativismo, nas colônias invadidas pelos europeus, e, de forma soberana, os portugueses no Brasil, seguidos pela Inglaterra, principalmente, e por França e Espanha, predominantemente na nossa Afro-América Latina e Caribe.

Segundo Williams (1975WILLIAMS, E. Capitalismo e escravidão. Rio de Janeiro: Americana, 1975., p. 57): “A importância da ‘descoberta’ (aspas nossas) da América repousa não nos metais preciosos que ela fornece, mas no novo e inesgotável mercado que propiciou às mercadorias europeias”. O autor afirma que o comércio mundial alcançou um crescimento sem precedentes e, nesse crescimento, se encontra o tráfico negreiro, que não só traficava seres humanos para o trabalho, como também foi um negócio lucrativo para os comerciantes criminosos de seres humanos e donos dos navios negreiros, contribuindo para o aparecimento do mercado mundial. É necessário atentar que, no Brasil, o sistema escravista, exercido de modo violento, percorreu do século XVII ao século XIX.

No Brasil, em fins do século XIX, com a abolição da escravatura, os(as) negros(as) libertos(as) se encontraram como seres humanos desclassificados, porque “[…] a ordem escravocrata, concentrando e monopolizando os recursos econômicos, tornou impraticável o surgimento de alternativas que fixassem produtivamente essa crescente massa de desenraizados [...] inúteis e desadaptados” (Kowarick, 2019KOWARICK, L. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2019., p. 34). Resgatemos então que, desde a origem do trabalho no Brasil, a autonomia, entendendo como “novo” sujeito, e livre, nunca foi alcançada pelos(as) trabalhadores(as) negros(as).

No caso da particularidade brasileira, considera-se que a estruturação do mercado de trabalho, a par da formação social, econômica e política do país, ocorreu sob forte discriminação étnico-racial, de gênero/sexo, de idade, de regionalidade e de capacidade da venda da força de trabalho. Assim, a busca pelo aumento da produtividade do trabalho se deu a partir de uma política higienista e eugênica, implantada pelo Estado brasileiro a partir de meados do século XIX, estipulando que o trabalho na indústria nascente seria ocupado pelos europeus brancos, e o trabalho mais pesado, sem remuneração definida, tenderia a ser executado pelas pessoas outrora escravizadas, afro-brasileiras.

O mercado de trabalho, formalizado e com acesso aos direitos, como proposta da conciliação de classes, advém do governo de Getúlio Vargas, que também criou uma estrutura sindical vinculada à esfera estatal, a ela submissa, que garantiu a cidadania no/pelo trabalho. Assim, decorre da década de 1930, como proposta de reconciliação de classes no governo de Getúlio Vargas, a criação da carteira de trabalho, da justiça do trabalho, da previdência social, resultando na concepção da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no início de 1940. Todavia, é importante reconhecer que não houve a universalização desses direitos para toda a classe trabalhadora, uma vez que ficaram concentrados no sistema industrial e nos serviços urbanos, excluindo grande parcela de trabalhadores e trabalhadoras, especialmente a população negra que, desde o fim do sistema escravista (por questões explicitadas), de acordo com Moura (1977MOURA, C. O negro, de bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro: Conquista, 1977.), ficou às margens da cidade, sem qualquer reparação e/ou inserção no mercado de trabalho livre.

O processo da construção do capitalismo no Brasil nasce, então, estruturado na desigualdade, na qual a população negra é colocada à margem do processo produtivo, trazendo para o cenário a força de trabalho imigrante europeia, fortalecendo a dominação branca. Foi uma relação de dominação de um grupo sobre o outro e mantendo os pactos narcisísticos da branquitude, conforme nos refere Bento (2022BENTO, C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.). Segundo a autora, o pacto narcisístico trata de uma herança escravocrata que atravessa gerações e altera pouco a hierarquia das relações de dominação incrustadas nas empresas, ou seja, um “pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas que visam manter seus privilégios” (Bento, 2022BENTO, C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 18). A autora afirma que os processos de manutenção dos privilégios passam pelos pactos da branquitude, em reservar para si os melhores postos de trabalho e cargos de poder.

Deve-se confessar a incapacidade de encontrar indicadores para compreender as importantes reflexões (e denúncias) apresentadas por Bento (2002BENTO, M. A. S. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. 2002. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.), já na sua tese de doutorado, pois, ainda hoje, predominam as evidências superficiais, interpretações mecânicas e reducionismos simples com ênfase na educação, no currículo e na qualificação profissional, sem se considerar o racismo impregnado nas relações sociais de trabalho em geral, bem como a responsabilidade das pessoas brancas nesse processo, especialmente gestores e líderes das empresas, mas não apenas, uma vez que o racismo está presente em toda dinâmica social como uma mola propulsora que, com base em esquemas interpretativos universais, se torna eficaz em subtrair homens, mulheres, crianças, adolescentes, jovens e idosos dos processos por eles mesmos criados.

A dificuldade reside em reconhecer como as pessoas brancas têm responsabilidades na estruturação do mercado de trabalho e na consequente divisão étnico-racial, de gênero/sexo do trabalho. Contudo, tal reconhecimento não se dá à parte da sociedade de classes, do modo como o capital se estrutura como sistema sociometabólico. Destarte, Faustino e Lippold (2023FAUSTINO, D.; LIPPOLD, W. Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana. São Paulo: Boitempo, 2023., p. 51-52) destacam o papel do colonialismo e do racismo na exegese da primeira e da segunda revolução tecnológica, e sob essa estrutura emergem as revoluções sucessivas: “Não há capitalismo sem colonialismo e, por sua vez, não há colonialismo sem racismo, e ambos estão interligados dialeticamente por uma relação de determinação reflexiva”. Bento (2022BENTO, C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 3) considera que “a estrutura da sociedade de classes é fundamental para reproduzir as desigualdades raciais, ou ignorar o neoliberalismo como fenômeno que acentua discursos e práticas que fortalecem e legitimam a estrutura das desigualdades raciais em nossa sociedade”. Consoante com as desigualdades raciais, é a população negra que predomina nos trabalhos de entregadores e motoristas por aplicativos. Segundo estudo do Ipea (2021INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Mercado de trabalho: conjuntura e análise. Brasília, 2021. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10660/1/bmt_71_desigualdades.pdf . Acesso em: 18 fev. 2022.
https://repositorio.ipea.gov.br/bitstrea...
), entre entregadores(as), 59,2% são negros(as); entre motoristas, 60%.

Neste contexto, ao contrário do que se poderia imaginar, que os avanços técnico-informacionais trariam maiores facilidades para a vida como um todo, resultando em tempo livre e bem-estar social, a digitalização das relações sociais de trabalho tem se efetivado a partir da perda de acesso aos benefícios trabalhistas, que configura as demandas atuais de regulamentar ou não essas formas de trabalho e, para tanto, é necessário reconhecer o vínculo de emprego.

2. O desgaste no trabalho e na saúde dos(as) trabalhadores(as) no capitalismo de plataforma

É reconhecido, então, que o processo de transformação do trabalho, conjugado aos movimentos e aos conflitos sociais, carrega mudanças nas formas de desenvolver as tarefas/atividades prescritas aos(às) trabalhadores(as). O trabalho no modelo taylorista/fordista demandava um esforço físico em maior grau no desempenho da atividade. Os avanços foram contínuos no campo da mecanização e da tecnologização, carregando consigo novos modos de trabalhar. Nesse campo, inscrevem-se os trabalhos fragmentados, com exigência de ritmo acelerado, trabalhos manuais e repetição constante de movimentos que sobrecarregam, particularmente, a coluna lombar e cervical, além de membros superiores, sobretudo, no modelo taylorista/fordista.

A introdução de sistemas informatizados no trabalho, bem como a própria mudança na organização do trabalho capitalista neoliberal, passa a exigir maior desempenho nas habilidades mentais com desaceleramento da exigência física, embora esta não tenha desaparecido. Trata-se de processo cumulativo, à medida que aos(às) trabalhadores(as) acrescentam-se gastos de energias intelectuais e psíquicas aos gastos de energias físicas (Rosso, 2008ROSSO, S. D. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008.).

Nas transformações do mundo do trabalho, alguns elementos que causam desgastes desaparecem, porém, novas formas carregam outros elementos que não se apresentavam na maneira antiga. Aspectos, como exigências de carga física estática, aumentam no processo de informatização/digitalização no trabalho, advém aumento da atenção/concentração, além de exigências nos processos cognitivos mais complexos ao se lidar com informações no plano da digitalização. Somado a essa nova organização e aos processos de trabalho, que aumentam o ritmo, a pressão, bem como a introdução da “ilusória” autonomia no trabalho, evidencia-se o aumento das trocas comerciais globalizadas, que se refletem na maior rapidez no trabalho para aceleração do tempo nas transações nacionais e internacionais, injetando maior rentabilidade ao sistema financeiro.

Kaplan et al. (2022KAPLAN, D. S. et al. O futuro do trabalho na América Latina e no Caribe . [S. l.]: Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), 2022. Disponível em: Disponível em: https://publications.iadb.org/es/el-futuro-del-trabajo-en-america-latina-y-el-caribe-la-flexibilidad-llego-para-quedarse . Acesso em: 5 mar. 2024.
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), ao discutir o Futuro do Trabalho na América Latina e Caribe, reconhecem que o novo processo capitalista neoliberal carrega consigo reformas que incluem acordos flexíveis de trabalho, que podem ser considerados uma nova tendência de flexibilização do local e do tempo de trabalho. Os autores reconhecem que os avanços nas tecnologias têm sido um dos impulsores de mudanças no mundo do trabalho, porém, “[…] a capacidade de trabalhar em qualquer lugar e a qualquer momento pode levar a maior intensificação do trabalho” (Kaplan et al., 2022KAPLAN, D. S. et al. O futuro do trabalho na América Latina e no Caribe . [S. l.]: Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), 2022. Disponível em: Disponível em: https://publications.iadb.org/es/el-futuro-del-trabajo-en-america-latina-y-el-caribe-la-flexibilidad-llego-para-quedarse . Acesso em: 5 mar. 2024.
https://publications.iadb.org/es/el-futu...
, p. 13). Em tese, quanto maior a intensidade, mais trabalho é produzido no mesmo período de tempo considerado (Rosso, 2008ROSSO, S. D. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 21). Rosso afirma ainda que prevalece, há pelo menos 200 anos, a hipótese de que as transformações tecnológicas que acontecem de tempos em tempos, além de substituir o trabalho, que é sua implicação primeira, também contribuem para aumentar o grau da intensidade.

Com esse modo de trabalhar, com mais intensificação, e outros elementos já apontados, os efeitos são danosos à saúde de trabalhadores e trabalhadoras. Neste contexto, aumentam os níveis de vulnerabilidade social e do trabalho, contribuindo para o adoecimento no campo da saúde mental, com estresse, fadiga generalizada, depressão, ansiedade, burnout.

Abel Santos, importante interlocutor de entregadores(as) por aplicativos e presidente da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos (Anea), explicitou, durante o Seminário Internacional de Trabalho Plataformizado, realizado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho, ocorrido em setembro de 2023, relevantes aspectos das condições de trabalho vinculadas às empresas de plataformas digitais e de aplicativos de celulares (smartphones):

Nós, trabalhadores de plataformas digitais, somos violados. Nós não temos direito ao almoço. Nós levamos comida. Eu carrego camarão, eu carrego hambúrguer artesanal, eu carrego todo tipo de especiarias que vocês possam imaginar e eu não tenho direito a um almoço. O prato dos trabalhadores sempre esteve vazio. As plataformas digitais esvaziaram esse prato e hoje elas trazem a proposta dele continuar vazio [...] ninguém está lutando para ter luxo, é só comida. É só comida! (Abel Santos)

A percepção e os sentimentos do trabalhador emergem de suas necessidades diárias que o trabalho em plataformas digitais, como entregador, não garante. Não são incluídos direitos básicos, como o direito à alimentação, e vai além quando o trabalhador se refere aos direitos à vida digna como um todo. Sim, passam necessidades os entregadores de aplicativos digitais, elementos básicos e fundamentais para a vida digna no trabalho e fora dele:

Nós passamos necessidades! Nós passamos dificuldades de cultura, necessidades de lazer, necessidades de esportes, necessidade de saúde, necessidade de educação. Nós passamos necessidades, nós não temos facilidade de acesso. Então, nós passamos fome. Não é apenas os 33 milhões constatados pelo Estado que se passa fome hoje. É muito mais! Sabe quantas vezes eu tenho a possibilidade de levar uma pizza para casa? É muito pouco porque, hoje, pesa no orçamento final, quando a gente vive com menos de um salário mínimo. Então, isso é passar fome, apenas ter arroz e feijão em casa não é o suficiente. É a mesma coisa você dizer que tenho acesso à cultura apenas com a TV aberta, não tenho acesso à cultura. É a mesma coisa você dizer que tem acesso ao esporte porque na quadra perto da minha casa tem uma quadra poliesportiva. Não é acesso ao esporte. Então, nós temos necessidades sim (Abel Santos).

Abel Santos apresenta um relato emocionado das condições de trabalho e, em consequência, de vida, a partir da vinculação subalterna aos aplicativos e dos baixos rendimentos, como também da impossibilidade de acesso aos serviços de bem-estar social e das possibilidades de potenciação da vida. O pressuposto da renda do trabalho, sem vínculos laborais formais, resulta da quantidade de entregas efetivamente realizadas, cujos valores são pagos por atividade e muito rebaixados, podendo ser melhorados a partir dos sistemas de bonificação, ou seja, da individualização e extensão da jornada de trabalho.

O trabalho por plataformas digitais tem ocorrido à parte de qualquer garantia social conquistada pela classe trabalhadora. Em geral, além dos investimentos feitos por trabalhadores e trabalhadoras em termos de aquisição ou aluguel de carros, motos e bicicletas, celulares (smartphones), internet, seguros etc., há o distanciamento do direito do trabalho e da previdência social. A modernidade do capital tem um efeito inverso para o mundo do trabalho!

Considerações finais

Reconhece-se a permanência da precarização do trabalho no atual contexto, em que se vangloriam as inovações técnicas trazidas pelo fenômeno da Indústria 4.0. Embora as lutas da classe trabalhadora, ao longo dos séculos XIX e XX, tenham gerado importantes legislações e marcos regulatórios, capazes de estabelecer limites à exploração do capital, no atual momento, as novas formas de subordinação ao trabalho a partir de relações digitalizadas retomam as características da exploração anteriores às normas do direito do trabalho, tão duramente conquistadas pelos trabalhadores. A renda do trabalho se torna imprevisível, altamente manipulada por alcance de bônus determinado pelos algoritmos em uma estrutura dinâmica de mercado, sem respeito às normas do direito do trabalho, incluindo as de saúde e de segurança laborais.

Mais que isso, as novas características das relações laborais conferem atenção ao velho problema do racismo estrutural/institucional, como válvula propulsora do lugar ocupado na divisão social do trabalho e, por conseguinte, na divisão social de classes. Trata-se de reconhecer que, no Brasil, a formação do mercado de trabalho livre se configurou a partir do histórico de quase 400 anos do sistema escravista e, ao fim desse sistema criminoso, o Estado instituiu a política para o branqueamento da população brasileira com base em uma política de imigração que financiou a vinda de europeus brancos para laborar no mercado de livre, ao mesmo tempo em que delegou o atamento da população negra às piores formas de trabalho, em consequência, às situações de pobreza, baixa escolaridade e níveis inferiores de cidadania.

Não obstante, as lutas dos movimentos negros, como parte de uma processualidade antirracista, têm enfrentado a complexidade da formação e do desenvolvimento sócio-histórico do país, em sua configuração do mercado de trabalho e dos valores socioculturais que desempenham papel significativo na interação dinâmica da inclusão e exclusão de pessoas não brancas do mercado de trabalho.

Ao mesmo tempo que o mercado de trabalho ainda convive com o racismo remanescente da lógica escravista e eugenista do Estado, o sistema capitalista, em âmbito mundial, tem conduzido intensos investimentos para o desenvolvimento e a adoção de novas tecnologias de produção, gestão e organização do trabalho que, via de regra, repõem maneiras arcaicas que submetem a força de trabalho a um nível intenso de exploração e de desigualdade de gênero/sexo e étnico-racial.

Acreditamos que se trata de compreender que as inúmeras profissões são afetadas pelas relações sociais de trabalho que estão sendo instituídas a partir da Indústria 4.0. Na particularidade do Serviço Social, a afetação ocorre desde as suas condições de trabalho até as formas de atendimento que, ao serem transpostas para os ambientes virtuais, carregam inúmeros desafios na garantia de acesso e das condições éticas e técnicas do trabalho desenvolvido.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2024
  • Aceito
    22 Jul 2024
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