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O protagonismo de mulheres na luta por moradia no Rio Grande do Sul: a resistência não domesticada

The women’s protagonism in the struggle for habitation in Rio Grande do Sul: the untamed resistance

Resumo:

Este artigo discute as relações de gênero e os movimentos sociais referentes à inserção de mulheres trabalhadoras na luta por moradia no Rio Grande do Sul. Visa estudar tal organização política para reconhecer os impactos gerados frente à inacessibilidade de direitos. Foi realizado levantamento de dados através de reportagens publicadas entre 2016 e 2021. Então, busca-se compilar registros da luta cotidiana e apontar possíveis maneiras de contribuir para o seu fortalecimento.

Palavras-chave:
Gênero; Moradia; Movimentos sociais; Serviço Social

Abstract:

This article discusses gender relations and social movements regarding the working women’s insertion in the struggle for habitation in Rio Grande do Sul. It aims to study such political organization to recognize its impacts generated while facing the inaccessibility of rights. Data collection was carried out through reports published between 2016 and 2021. Therefore, it attempts to compile records of the daily struggle and indicate possible ways to contribute to its strengthening.

Keywords:
Gender; Habitation; Social movements; Social Work

Introdução

Entre o riscar das facas, facas, facas
E o quebrar das taças, taças, taças
Resistência
O que é resistência?
Ela nunca será domesticada
Ela é selvagem como o vento.
(Brisa Flow, “Resistência não domesticada”)

Em um dos períodos de maior crise social e econômica da história recente do Brasil, em que o neoliberalismo se acirra e intensifica a focalização das políticas sociais, as mulheres trabalhadoras são o segmento da população mais atingido pela fome, pelo desemprego e pela violência. Os retrocessos na sociedade brasileira são vários, como o recente Projeto de Lei n. 1.904/2024, apelidado de “PL do Incentivo ao Estupro”, que equipara a interrupção de gravidez realizada após a 22a semana de gestação ao crime de homicídio, mesmo para vítimas de abuso sexual, de maneira que reafirma o controle patriarcal sobre os corpos femininos, com o cerceamento dos direitos reprodutivos. Entretanto, a luta de classes não tem intervalos - em resposta às ofensivas antipopulares, as mobilizações da classe trabalhadora podem ser observadas nos mais diversos espaços. Entre elas, encontram-se, nas ocupações urbanas, mulheres que enfrentam a carestia e, em sua resistência cotidiana, colocam-se contra o sistema patriarcal-racista-capitalista.

Este artigo se debruça sobre as relações de gênero e os movimentos de resistência para apurar quais os impactos gerados e os desafios enfrentados pela organização das mulheres trabalhadoras do movimento de luta por moradia, frente ao contexto de inacessibilidade de direitos. Para tal, foi necessário estudar a organização das mulheres trabalhadoras em ocupações urbanas, a fim de reconhecer os impactos gerados por elas nas lutas coletivas em tempos de agravamento da política neoliberal.

A luta das mulheres tem ocupado centralidade nas mobilizações sociais e políticas no Brasil e no mundo, de tal forma que a consciência social avança, ainda que timidamente e por limitações do próprio tempo, no sentido do combate a práticas cotidianas sexistas, como na busca por transformação social. Contudo, a opressão e a exploração das mulheres têm raízes profundas, mais do que as convenções do senso comum. Desse modo, colocar uma lupa sobre as movimentações de mulheres trabalhadoras - a resistência não domesticada, que inspirou o subtítulo deste artigo, cantada por Brisa Flow -, que ocorrem fora dos centros urbanos e longe dos holofotes midiáticos, é importante para vislumbrar por quais formas o movimento feminista opera, como se insere na luta de classes e como atua para a transformação da realidade.

Do ponto de vista metodológico, a pesquisa é tipificada como quanti-qualitativa, pois se entende que o conjunto de dados mistos se complementa. O espaço-tempo definido é o Rio Grande do Sul, de 2016 a 2021, período em que foram publicadas as reportagens selecionadas à análise, relacionadas a ocupações urbanas e ao protagonismo de mulheres. Constitui-se como bibliográfica, pois abrange material público acerca do tema de estudo e busca que o pesquisador entre em contato direto com o que foi escrito, dito ou filmado sobre determinado assunto (Lakatos; Marconi, 2003LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2003.).

Para a execução da pesquisa, consideraram-se as reportagens como uma valiosa fonte de dados, logo, é um gênero jornalístico que permite o aprofundamento na análise da realidade social e a apreensão de seus movimentos. Referente à análise, foi realizada a análise de conteúdo, relativa às reportagens selecionadas, que se trata de “uma técnica para ler e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos, que analisados adequadamente nos abrem as portas ao conhecimento de aspectos e fenômenos da vida social de outro modo inacessíveis” (Moraes, 1999MORAES, R. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-32, 1999., p. 9).

A perspectiva teórico-metodológica está alicerçada no método de Marx, pois o objetivo guia é referente ao impacto das lutas sociais frente ao contexto atual, assim, trata-se de investigar o movimento da realidade. Para Marx, o método desenvolvido não está alheio ou poderia ser separado de sua teoria social, não se trata de um método sobre “como conhecer”, mas “como conhecer um objeto real e determinado” (Marx, 1996MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1996. Livro I, t. 1 e 2. (Coleção Os Economistas)., I, 1, p. 673). Os pressupostos advêm de “indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas como as produzidas por sua própria ação” (Marx; Engels, 2007MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 86-87), portanto, não se parte do que é dito, imaginado ou representado e, sim, do processo de vida real. Ademais, o ser social “é processo, movimento, que se dinamiza por contradições, cuja superação o conduz a patamares de crescente complexidade e novas contradições impulsionam a outras superações” (Netto, 2009NETTO, J. P. Introdução ao método da teoria social. In: CFESS. Serviço Social: direitos e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009. p. 667-700., p. 674-675). Logo, percebe-se o mundo como um conjunto de processos sujeito a transformações.

Posto isso, o artigo seguirá, nos próximos tópicos, com considerações sobre a base teórica que lhe dá sustentação; na sequência, apresenta resultados e, posteriormente, considerações finais. Tal percurso permite retratar a resistência não domesticada das mulheres que ousam lutar por transformação social.

1. Superexploração e a questão de moradia no Brasil

Na sociedade de classes regida pela apropriação privada dos meios de produção, em que a troca de mercadorias é aspecto constitutivo da economia vigente, as classes trabalhadoras são aquelas que dispõem somente de sua própria força de trabalho para adentrar nas relações econômicas e, assim, garantir sua subsistência (Marx, 1996MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1996. Livro I, t. 1 e 2. (Coleção Os Economistas)., I, 1). Por outro lado, os capitalistas, possuidores dos meios de produção - entendem-se aqui matérias-primas, instrumentos de trabalho, entre outros -, adquirem a força de trabalho mediante compra, com o intuito de, no processo de produção de mercadorias, extrair mais-valia (Marx, 1996MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1996. Livro I, t. 1 e 2. (Coleção Os Economistas)., I, 1).

Isso porque tal extração é obtida através da exploração da força de trabalho, ou a taxa de mais-valia está expressa no mesmo grau que a força de trabalho é explorada. De maneira simplificada, a jornada de trabalho é composta: (1) pelo tempo necessário para a produção de valor equivalente ao investimento do capitalista na força de trabalho; e (2) pelo tempo para produção excedente de valor ou do sobretrabalho. A mais-valia, portanto, resulta das mercadorias produzidas através do trabalho não pago. Em face disso, a exploração do trabalho é acentuada ainda mais com o crescimento da “superpopulação relativa”, pois há uma força excedente de trabalho que é manejada para tal (Marx, 1996MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1996. Livro I, t. 1 e 2. (Coleção Os Economistas)., I, 1).

As relações sociais estão emaranhadas em uma estrutura produtiva, visto que seus atores agem de acordo com interesses econômicos (Bambirra, 2013BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. Florianópolis: Insular, 2013.), sendo por isso necessário compreender o capitalismo dependente da América Latina, território em que estão postas as relações sociais de interesse deste estudo. Assim, “a dependência é uma situação na qual certo grupo de países tem sua economia condicionada pelo desenvolvimento e expansão de outra economia à qual se encontra submetida” (Santos, 1970, apudBambirra, 2013BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. Florianópolis: Insular, 2013., p. 38).

Nesse sentido, Marini (2000MARINI, R. M. Dialética da dependência. Petrópolis: Vozes, 2000.) defende que há uma superexploração da força de trabalho, estabelecida para compensar a perda de capital da burguesia dependente, devido às relações econômicas desiguais entre os países periféricos e os países centrais do capitalismo. A superexploração no capitalismo dependente é, então, firmada: (1) com a remuneração da força de trabalho abaixo de seu valor real; (2) com a negação de condições necessárias para repor o desgaste da força de trabalho, pois obriga um dispêndio maior do que deveria proporcionar normalmente, o que provoca o esgotamento prematuro desta força produtiva; e (3) com a redução do consumo de trabalhadoras e trabalhadores além de seu limite normal, sendo o fundo de capital necessário para a compra da força de trabalho convertido em fundo de acumulação do capital. Aumenta-se, assim, o tempo do sobretrabalho (Marini, 2000MARINI, R. M. Dialética da dependência. Petrópolis: Vozes, 2000.).

Desse modo, considerando que a produção capitalista se refere também à produção e à reprodução de relações sociais (Iamamoto; Carvalho, 2006IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. de. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 19. ed. São Paulo: Cortez, 2006.), Marx (1996MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1996. Livro I, t. 1 e 2. (Coleção Os Economistas)., I, 2, p. 274) explica sobre acumulação capitalista:

Quanto maiores a riqueza social, o capital em funcionamento, o volume e a energia de seu crescimento, portanto também a grandeza absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior o exército industrial de reserva. [...]. Quanto maior, finalmente, a camada lazarenta da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior o pauperismo oficial.

Portanto, a lei geral da acumulação capitalista é determinante da questão social, a qual consiste nas expressões do processo de formação, desenvolvimento e intervenção política da classe trabalhadora, ao exigir seu reconhecimento como classe frente ao Estado e ao empresariado; representa a manifestação cotidiana da contradição de classes no capitalismo (Iamamoto; Carvalho, 2006IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. de. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 19. ed. São Paulo: Cortez, 2006.).

Ao realizar um estudo histórico-estrutural de sociedades da América Latina, Vânia Bambirra (2013BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. Florianópolis: Insular, 2013.) expõe que a transformação no processo produtivo das sociedades dependentes ocorre a fim de atender às demandas de expansão do capitalismo mundial, ao passo que algumas dessas sociedades adquirem uma dinâmica própria em sua estrutura interna, como no caso do processo de industrialização ao fim do século XIX e início do século XX, atrelado à reorganização socioespacial em forma da urbanização.

As cidades começaram a se consolidar no Brasil na entrada do século XX, pois o desenvolvimento urbano se conformava de acordo com as necessidades da produção capitalista, ou seja, do desenvolvimento industrial. Assim, as cidades foram permeadas por processos de exclusão, evidenciando-se a apropriação desigual da terra - concentração fundiária - e a distribuição desigual da riqueza na organização das cidades, orientada pela segregação socioespacial, econômica e cultural, principalmente de trabalhadoras/es pobres e negras/os (Farage, 2014FARAGE, E. Experiências profissionais do Serviço Social nos movimentos sociais urbanos. In: ABRAMIDES, M. B.; DURIGUETTO, M. L. (org.). Movimentos sociais e Serviço Social: uma relação necessária. São Paulo: Cortez, 2014. p. 245-262.; Moura, 2020MOURA, C. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2020.).

Com o adensamento populacional nas cidades, os grandes proprietários de terrenos e imóveis realizaram projetos de reformas urbanas, com o aval do governo, que visavam à higienização social de áreas centrais - com a demolição de cortiços, despejos em favelas e aumento dos aluguéis, os segmentos de trabalhadoras/es pobres passam a se alocar às margens dos centros urbanos, sem qualquer infraestrutura (Boulos, 2012BOULOS, G. Por que ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto. São Paulo: Scortecci, 2012.; Farage, 2014FARAGE, E. Experiências profissionais do Serviço Social nos movimentos sociais urbanos. In: ABRAMIDES, M. B.; DURIGUETTO, M. L. (org.). Movimentos sociais e Serviço Social: uma relação necessária. São Paulo: Cortez, 2014. p. 245-262.). As populações pobres tendem a ser deslocadas para áreas periféricas, longe da infraestrutura, como Fabiana Reinholz (2019REINHOLZ, F. “A Ocupação Baronesa resiste e a chama não vai se apagar”, diz Alice. Brasil de Fato, Porto Alegre, 29 jul. 2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3N3emhi . Acesso em: 13 jul. 2022.
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) relata que ocorreu no lugar em que se organizou a Ocupação Baronesa, no centro de Porto Alegre, historicamente um território de passagem do povo indígena guarani e também quilombola, que após o processo excludente na década de 1950 se deslocam para uma área deserta nos entornos da cidade.

Assim, cria-se base para a especulação imobiliária, pois posteriormente o governo constrói estradas, rede de água e energia elétrica para atender às regiões distantes e garantir a reprodução social de trabalhadoras/es, o que valoriza toda a extensão de terrenos vazios em bairros entre os centros e as periferias, que podem ser vendidos a preços mais altos, bem como as propriedades da área central foram gentrificadas - assim ocorre até o tempo presente: especuladores mantêm propriedades desocupadas na espera de um momento em que possam vendê-las por um valor elevado (Boulos, 2012BOULOS, G. Por que ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto. São Paulo: Scortecci, 2012.). Valida-se a assertiva de que a acumulação capitalista necessita da expansão geográfica desigual.

Em outras ocupações da capital gaúcha, também há famílias que reivindicam a posse da terra na condição de quilombolas, como a Ocupação Sete de Setembro e a Ocupação 20 de Novembro (Ilha, 2016ILHA, F. Déficit de moradias na capital atinge quase meio milhão. Extra Classe, Porto Alegre, 15 fev. 2016. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/40Y5OOF . Acesso em: 13 jul. 2022.
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). Esta última, mesmo após ter a certificação concedida pela Fundação Palmares de que o território é um remanescente de quilombo, continuou em disputa com uma empresa incorporadora de Porto Alegre (Ilha, 2016ILHA, F. Déficit de moradias na capital atinge quase meio milhão. Extra Classe, Porto Alegre, 15 fev. 2016. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/40Y5OOF . Acesso em: 13 jul. 2022.
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), o que salienta esse conflito dos povos marginalizados com especuladores.

A existência de imóveis e terrenos vazios, enquanto milhares de famílias enfrentam subcondições de habitação, é incansavelmente denunciada pelos movimentos de luta por moradia, realidade que inclusive contradiz a legislação. A Constituição Federal de 1988 prevê que a propriedade deverá atender a sua função social e, desde a Emenda 64 de 2010, reconhece a moradia como direito social. Ainda, Eblin Farage (2014FARAGE, E. Experiências profissionais do Serviço Social nos movimentos sociais urbanos. In: ABRAMIDES, M. B.; DURIGUETTO, M. L. (org.). Movimentos sociais e Serviço Social: uma relação necessária. São Paulo: Cortez, 2014. p. 245-262.) salienta que o Estatuto da Cidade de 2001 regulamenta a política urbana, cujas diretrizes gerais incluem ordenação e controle do uso do solo para evitar a retenção especulativa de imóveis urbanos.

Para além da situação de rua, as condições adversas de moradia incluem a falta de saneamento básico, água encanada, luz elétrica e coleta de lixo (Boulos, 2012BOULOS, G. Por que ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto. São Paulo: Scortecci, 2012.), questões que são expressas de variadas formas em todas as reportagens analisadas; bem como morar em locais de difícil acesso, distante de serviços de saúde, assistência, educação e transporte público. Trata-se da falta de infraestrutura e serviços básicos que definem todo o restante do contexto da vida de famílias que vivem nessa situação, influenciando inclusive nas condições de trabalho e lazer. Além disso, consideram-se famílias em situação de coabitação, que moram de favor com outros familiares, e famílias com ônus excessivo de aluguel (Boulos, 2012BOULOS, G. Por que ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto. São Paulo: Scortecci, 2012.).

É pertinente vislumbrar que, em resposta à miserabilidade imposta sobre a vida da classe trabalhadora, ela se mobiliza em torno de suas demandas e interesses. Então, a rebeldia, como uma expressão da questão social, é a propulsora para a organização de trabalhadoras e trabalhadores em movimentos sociais. Conduzido pelo projeto societário da classe trabalhadora ao constituir consciência política e reivindicação por direitos sociais, explicita Tatiana Pereira (2014PEREIRA, T. D. Movimentos urbanos: lutas e desafios contemporâneos. In: ABRAMIDES, M. B.; DURIGUETTO, M. L. (org.). Movimentos sociais e Serviço Social: uma relação necessária. São Paulo: Cortez, 2014. p. 119-135.), o movimento de luta por moradia tem como espaço principal de atuação as ocupações urbanas e levanta a bandeira da reforma urbana como solução para os conflitos fundiários.

Em complemento, Boulos (2012BOULOS, G. Por que ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto. São Paulo: Scortecci, 2012.) defende o ato de ocupar como um direito e, também, a alternativa frente às expressões da questão social que, nesse caso, surgem da mercantilização da moradia e da articulação entre o Estado e o capital imobiliário. Compreende-se também que os povos originários e quilombolas em luta por demarcação de seus territórios constituem movimentos socioterritoriais, bem como se inter-relacionam com as lutas encampadas em ocupações urbanas, justamente pelo aspecto da destituição de direitos, em virtude da acumulação capitalista.

Quando ao povo são impostas restrições de viver dignamente, como ao ser necessário optar entre pagar aluguel ou alimentar a família, estratégias de sobrevivência transformam-se em luta. Erguem-se os barracos e constroem-se lares em terrenos e construções ociosas, que não cumprem com sua função social; também são tecidas relações de identificação e laços comunitários entre quem enfrenta os mesmos reveses da questão habitacional. Nesse contexto, a presença e a liderança de mulheres na organização da luta por território e moradia se sobressaem, o que demanda atenção às particularidades dos contornos sociais que revestem esse processo.

2. As relações patriarcais e racistas circunscritas no capitalismo dependente

Ao definir a sociedade contemporânea como parte de um sistema patriarcal-racista-capitalista, busca-se evidenciar categorias históricas herdadas de modos de produção passados que persistem, a fim da manutenção do atual modo de produção, expressas, de forma mais aparente, em desigualdades sociais. Assim, as categorias de raça/etnia e gênero são operadas no interior da estrutura social e produtiva, segundo as necessidades do capital, e assumem diferentes formas de acordo com o estágio de desenvolvimento social, sendo mecanismos úteis para o abrandamento de tensões e de conservação da estrutura de classes (Saffioti, 2013SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013.).

Lélia Gonzalez (2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.) aponta a colonização do território, atualmente conhecida como América Latina por parte das sociedades ibéricas, que tornaram as sociedades latino-americanas herdeiras históricas de ideologias da classificação social através de raça/etnia e gênero, tal como de sua burocracia, de forma que essas sociedades herdeiras se caracterizam como hierárquicas. O desenvolvimento do capitalismo, em si, não significa um acesso igualitário de consumo por parte de toda a população, portanto, Heleieth Saffioti (2013SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013.) indica que o desenvolvimento do Brasil conserva a marginalização de certos setores populacionais, frente às vantagens que tal desenvolvimento proporciona ao restante da população.

Sendo a ordem patriarcal de gênero referente a “relações de dominação, opressão e exploração masculinas na apropriação sobre o corpo, a vida e o trabalho das mulheres” (Cisne, 2018CISNE, M. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez, 2018., p. 88), tem-se o sistema familiar que naturaliza e impõe à mulher o papel de trabalhadora doméstica e socializadora dos filhos (Saffioti, 2013SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013.), e a hierarquização de gênero se expressa em desigualdades em carreiras, qualificações e salários, bem como em mecanismos de sujeição e disciplinamento das mulheres, define Mirla Cisne (2018CISNE, M. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez, 2018.). Desse modo, elucida-se a divisão sexual do trabalho que conforma “a garantia da reprodução social da força de trabalho e da exploração do ‘trabalho desvalorizado’ das mulheres, indispensáveis à lógica de acumulação capitalista” (Cisne, 2018CISNE, M. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez, 2018., p. 91).

Ainda, tratar da divisão sexual do trabalho preconiza a articulação com a correspondente em nível racial, para não reforçar a armadilha do “racionalismo universal abstrato” que insinua a homogeneidade do segmento de mulheres (Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.). O caráter histórico das relações étnico-raciais - compreendendo que brancos também são sujeitos racializados - remonta à colonização de povos europeus sobre os territórios da América, sendo esse um processo violento de mutilação e estrangulação cultural, que alocou os povos originários e os povos negros africanos a uma divisão do trabalho hierarquizada, com o estabelecimento da escravidão e da servidão (Moura, 2020MOURA, C. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2020.).

Lélia Gonzalez (2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 143) afirma que, na América Latina, “o racismo é sofisticado o suficiente para manter negros e indígenas na condição de segmentos subordinados dentro das classes mais exploradas”, devido à ideologia do branqueamento. Com a invenção da superioridade branca, as identidades étnicas são violentadas ao se condicionar a negação da própria raça e cultura, pois é internalizado pelo negro e indígena o desejo de se tornar branco. Dentro das desigualdades raciais, a desigualdade de gênero está inscrita e articulada (Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.). É importante evidenciar que as mulheres escravizadas sofriam com uma exploração de duplo caráter, pois como elucida Angela Davis (2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 19), “quando era lucrativo explorá-las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero; mas, quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modos cabíveis apenas às mulheres, elas eram reduzidas exclusivamente à sua condição de fêmeas”.

No caso das mulheres dos povos originários, com formas de vida e demandas diversas, assim como suas etnias, Kena Chaves (2021CHAVES, K. A. Corpo-território, reprodução social e cosmopolítica: reflexões a partir das lutas das mulheres indígenas no Brasil. Scripta Nova: Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Barcelona, v. 25, n. 4, p. 51-71, 2021.) indica ser imprescindível tratar de sua relação inseparável com o território - condição necessária à existência e base para a reprodução social dos povos indígenas. É com a espoliação do território em vistas da expansão capitalista, combinada com a destituição de direitos, que estão conformadas a exploração e a opressão à qual essas mulheres são submetidas (Chaves, 2021CHAVES, K. A. Corpo-território, reprodução social e cosmopolítica: reflexões a partir das lutas das mulheres indígenas no Brasil. Scripta Nova: Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Barcelona, v. 25, n. 4, p. 51-71, 2021.).

Em vista disso, há uma dupla discriminação de mulheres não brancas - negras e indígenas (Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.) -, o que permite visualizar a divisão sexual e étnico-racial do trabalho. Evidentemente que, em terras de capitalismo dependente, esta tríade de opressões - classe, raça/etnia e gênero - é potencializada no processo de superexploração da força de trabalho, a fim de maiores ganhos para os capitalistas. Portanto, o contingente populacional submetido ao trabalho informal e precarizado, consequentemente, em vulnerabilidade e risco social, ainda que heterogêneo em cultura e características, majoritariamente, é de mulheres negras e indígenas (Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.).

3. Resultados

A fim de facilitar a exposição dos resultados, o Quadro 1 sistematiza o teor das reportagens e o jornal a que se vinculam, contendo a respectiva numeração utilizada para auxiliar sua menção no texto.

Quadro 1.
Sistematização das reportagens selecionadas com seus respectivos números

De modo geral, o que leva as pessoas às ocupações são as necessidades sociais, adicionando os fatores de gênero e raça/etnia, complexificam-se ainda mais suas motivações. Isso é indicado nas reportagens 3 e 7, quando as entrevistadas Alice Martins e Suelen Gonçalves afirmam que a formação das ocupações tem, nitidamente, cara feminina e cor negra - portanto, as famílias ocupantes são majoritariamente compostas por mães, chefes de suas famílias, que necessitam de um local para viver com seus filhos.

A responsabilização social das mulheres - principalmente negras e indígenas, devido às heranças de colonização e escravatura - pelo trabalho doméstico e de cuidados, característica da divisão sexual e étnico-racial do trabalho e que configura o trabalho reprodutivo não remunerado (Saffioti, 2013SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013.; Cisne, 2018CISNE, M. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez, 2018.; Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.), determina a relevância das condições de moradia para a execução desses trabalhos. A moradia, portanto, “reveste-se como um bem de primeira necessidade para as mulheres em geral” (Souza, 2013SOUZA, A. P. As mulheres nos movimentos sociais de moradia: a cidade sob uma perspectiva de gênero. Humanidades em Diálogo , São Paulo, v. 5, p. 93-108, 2013., p. 98).

Devido às opressões estruturadas por relações patriarcais e racistas no capitalismo, os corpos de mulheres, sobretudo negras e indígenas, estão mais sujeitos às violações dos direitos à privacidade, à liberdade de ir e vir, à educação, à intimidade, à integridade física e à vida, principalmente quando a realidade é a de “falta de moradia adequada, já que os maiores agressores e violadores dos direitos das mulheres ainda são seus pais, irmãos, maridos e companheiros que coabitam no mesmo local” (Veloso, 2017VELOSO, L. L. O papel das mulheres na luta pelo direito à moradia. In: IBDU. Direito à cidade: uma visão por gênero. São Paulo: IBDU, 2017. p. 37-40., p. 37). A Ocupação Mirabal, em Porto Alegre, atesta essa questão, como mostrado nas reportagens 2 e 4, por ser voltada para o acolhimento de vítimas de violência doméstica.

Ademais, as mulheres superexploradas, submetidas às desigualdades de gênero e raça/etnia, quando adentram o mercado de trabalho, defrontam-se com a dupla jornada - acumulação de responsabilidades no espaço público e privado -, bem como com a desvalorização de seu trabalho - baixíssima remuneração e preferência na contratação de homens (Pinheiro, 2017PINHEIRO, V. O peso da vida urbana sobre os ombros das mulheres e a dimensão dos despejos forçados. In: IBDU. Direito à cidade: uma visão por gênero. São Paulo: IBDU, 2017. p. 44-46.; Saffioti, 2013SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013.; Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.). Então, as mulheres têm menos oportunidades de acesso e controle sobre os recursos produtivos, como terra, capital, trabalho e tecnologia, substanciais à produção da habitação (Pinheiro, 2017PINHEIRO, V. O peso da vida urbana sobre os ombros das mulheres e a dimensão dos despejos forçados. In: IBDU. Direito à cidade: uma visão por gênero. São Paulo: IBDU, 2017. p. 44-46.).

Com isso, compreende-se que os 48,1% dos domicílios brasileiros que são chefiados por mulheres estão mais propensos a situações de vulnerabilidade social. É exatamente o que revelam os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C) de 2018, sintetizados por Cristina Vieceli (2020VIECELI, C. P. Mulheres chefes de família e a vulnerabilidade à pobreza. Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino, 2020. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3N7l2Lo . Acesso em: 30 jul. 2022.
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): (1) da população extremamente pobre, os lares chefiados por pretas ou pardas concentram 23,7%, enquanto os chefiados por brancas, 13,9%; (2) da população pobre, aqueles chefiados por pretas ou pardas agregam 63%, ao passo que os domicílios chefiados por brancas, 39,6%. São essas mulheres que, pela precariedade da infraestrutura e de acesso a serviços nas localidades em que residem, têm seu cotidiano atravessado por dificuldades, inclusive na realização do trabalho doméstico, aponta Amanda Souza (2013SOUZA, A. P. As mulheres nos movimentos sociais de moradia: a cidade sob uma perspectiva de gênero. Humanidades em Diálogo , São Paulo, v. 5, p. 93-108, 2013.).

Tendo em vista o exposto, constatam-se as muitas circunstâncias de envolvimento das mulheres na luta por direito à moradia, que abrangem desde dificuldades financeiras para quitar os custos referentes à habitação, preocupação com a segurança familiar, desejo de acesso à infraestrutura urbana, até a necessidade de saída ou expulsão de ambiente violento (Veloso, 2017VELOSO, L. L. O papel das mulheres na luta pelo direito à moradia. In: IBDU. Direito à cidade: uma visão por gênero. São Paulo: IBDU, 2017. p. 37-40.).

Em todas as reportagens selecionadas, evidenciam-se não só a presença de mulheres, como também o papel de liderança que assumem na luta por moradia, ao serem responsáveis por organizar os movimentos e articular projetos e atividades nas ocupações. Entre as oito reportagens, ao todo, 14 lideranças comunitárias foram entrevistadas, sendo dessas dez mulheres; as reportagens 2 e 4 narram uma ocupação exclusiva para mulheres, voltada para o acolhimento de vítimas de violência doméstica; ainda, a reportagem 6 aborda iniciativa de cooperativa constituída unicamente por mulheres.

Para Luiza Veloso (2017VELOSO, L. L. O papel das mulheres na luta pelo direito à moradia. In: IBDU. Direito à cidade: uma visão por gênero. São Paulo: IBDU, 2017. p. 37-40.), o protagonismo feminino é destaque nacional e influencia nas conquistas referentes à política habitacional, sendo determinante para isso, além das condições precárias de moradia, a urgência em romper os limites do espaço doméstico para ocupar o espaço público. Logo, é válido destrinchar os elementos reportados que perpassam pela ação das mulheres.

Diferenciam-se as formas de organização das ocupações, de acordo com a configuração de seus ocupantes, espaço, afiliações políticas, necessidades e outras especificidades. Na reportagem 1, a líder, Jussara Vaz dos Santos, pontua que a organização da Ocupação Lanceiros Negros, em Porto Alegre, se dá no sentido da não criminalização do movimento, por isso a proibição do uso de álcool e de outras drogas nas dependências do prédio ocupado, e o controle para entrada e saída do prédio. Além disso, a logística para a alocação é de famílias com crianças nos dois primeiros andares do prédio, enquanto casais sem filhos e solteiros ficam no terceiro andar.

Já na reportagem 4, assinala-se que a organização da Ocupação Mirabal envolve a divisão de tarefas no cuidado com as crianças, para que as mães que não conseguiram vagas em creches possam trabalhar, bem como espaços de formação, com psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros, para qualificar o acolhimento das mulheres vítimas de violência. Na reportagem 5, a líder Teresa Duarte, da Ocupação Pinheirinho em Passo Fundo, ressalta que é imprescindível unir os moradores das ocupações em torno da luta pelo direito à moradia, sendo preciso concretizar a organização política em si.

Dessas organizações, decorrem a estruturação de espaços de debates, a formação e a informação de direitos, fundamentais para o desenvolvimento da autonomia de mulheres que tiveram seus direitos destituídos; e para o processo de emancipação, há menção de espaços assim nas reportagens 2, 4, 6 e 8. Por sua vez, a articulação de associações, projetos e atividades dentro das ocupações fortalece o protagonismo feminino; estes só não são identificados na reportagem 5.

Exemplos desses projetos são as cooperativas, que visam à geração de renda e incentivam a autonomia financeira das mulheres, como no caso da Ocupação Baronesa e Ocupação Steigleder - em São Leopoldo -, respectivamente, reportagens 3 e 6. A ideia de iniciativas, como horta comunitária e cozinha coletiva da Ocupação Vila Resistência, em Santa Maria, citadas na reportagem 8, incentiva a divisão coletiva de tarefas, que possibilita o rompimento com a atribuição de tarefas domésticas às mulheres.

Todos esses itens, que aparecem em maior ou menor grau nas ocupações retratadas, direcionam para a formação de vínculos comunitários e o fortalecimento político dos sujeitos, como evidencia a Ocupação Baronesa, na reportagem 3, com a menção de que o desejo das mulheres ocupantes era manter a união da comunidade formada. É explicitada, portanto, a formação de uma consciência feminista, à medida que mulheres têm protagonismo na direção dos movimentos de luta por moradia, um processo que não deve ser deixado à deriva, e sim, intencionalmente construído e intensificado, de acordo com as necessidades de superação da ordem patriarcal e racista.

No mesmo contexto de cortes em investimentos sociais e retrocesso em políticas habitacionais, denunciado nas reportagens 1, 2, 3 e 5, as famílias de ocupações urbanas são submetidas à desocupação de suas casas e à realocação em outras áreas, o que ocasiona a quebra de vínculos comunitários e, até mesmo, afastamento de familiares, além da incerteza para onde ir. Muitas vezes, as reintegrações de posse ocorrem em razão de interesses do capital imobiliário, que promove o processo de gentrificação nas cidades, apontado nessas mesmas reportagens citadas. O anseio com as ameaças de reintegrações é presente na maioria das reportagens selecionadas, com exceção da reportagem 6.

Frente aos conflitos fundiários, a forma como o poder público opera é caracterizada como ineficiente na maioria das reportagens analisadas, com exceção da reportagem 7, em que a regulação fundiária foi concretizada e resultou no bairro Nova Santa Marta, em Santa Maria. Na reportagem 5, é acusado que a prefeitura apenas tolera as ocupações como maneira de não se responsabilizar por uma política habitacional no município. Nas reportagens 2 e 3, é mencionada a disposição do aluguel social para as famílias que sofrem reintegração de posse, porém se protesta que este é um benefício de passagem, cujo encaminhamento não é garantido, tem o valor irrisório de R$ 500,00 para cobrir água, luz e aluguel, além de que, por vezes, os locatários não o aceitam, devido aos demorados trâmites burocráticos.

As remoções forçadas, em que são comuns ações truculentas e agressivas por parte da Brigada Militar, são referidas nas reportagens 1, 2, 3 e 5 - inclusive, na reportagem 5 é relatado que os processos de reintegração são traumáticos, pois ocorrem demolições das habitações e perda de pertences das famílias. Não são incomuns também as tentativas de intimidação às ocupações, como relatado nas reportagens 1 e 4, em que viaturas percorrem, às voltas, as ocupações insistentemente. No que diz respeito à violência física, na reportagem 2 é denunciado que as reintegrações nas ocupações Lanceiros Negros e Aldeia Zumbi dos Palmares, em Porto Alegre, ocorreram com o uso de cassetetes, gás lacrimogêneo e spray de pimenta, na intenção de agredir fisicamente os ocupantes.

Quando a moradia passa a ser ameaçada dessa forma, as mulheres são as que mais sofrem, “já que perder o lar significa também perder o ambiente de criação dos filhos e seu ambiente de sobrevivência” (Souza, 2013SOUZA, A. P. As mulheres nos movimentos sociais de moradia: a cidade sob uma perspectiva de gênero. Humanidades em Diálogo , São Paulo, v. 5, p. 93-108, 2013., p. 98). De acordo com Valéria Pinheiro (2017PINHEIRO, V. O peso da vida urbana sobre os ombros das mulheres e a dimensão dos despejos forçados. In: IBDU. Direito à cidade: uma visão por gênero. São Paulo: IBDU, 2017. p. 44-46.), os despejos forçados refletem justamente a soma de desigualdades sociais que estão estruturadas na sociedade, as quais definem a organização segregatória das cidades, pois determinam os espaços que cada um pode ocupar. Para as mulheres, vivenciar as remoções de suas moradias é uma sobrecarga de preocupações e responsabilidades, que se somam às violências patriarcais cotidianas (Pinheiro, 2017PINHEIRO, V. O peso da vida urbana sobre os ombros das mulheres e a dimensão dos despejos forçados. In: IBDU. Direito à cidade: uma visão por gênero. São Paulo: IBDU, 2017. p. 44-46.).

À vista disso, estas intenções de higienização social nas cidades - chamadas de “revitalização” - ou de lucro com a especulação imobiliária em áreas valorizadas, que terminam em reintegrações de posse, podem ser sintetizadas como a violação do direito de viver, como a liderança da Ocupação Baronesa define na reportagem 3, principalmente porque não são garantidas políticas habitacionais em retorno a essas famílias, enquanto suas construções de lares, vínculos e futuro são violentamente rompidas.

Considerações finais

Em coesão à compreensão teórica exposta neste estudo, entende-se que urge que a superexploração das trabalhadoras latino-americanas seja pauta central do movimento feminista, em contrário a tendências e perspectivas teóricas que não realizam distinções no interior da categoria mulher. Para isso, é imprescindível compreender que as opressões de classe, raça/etnia e gênero são enoveladas e, em períodos de crise econômica e ascensão do conservadorismo, são os segmentos de mulheres negras, indígenas e pobres os mais ameaçados pela destituição de direitos sociais.

A respeito da questão de moradia brasileira, relacionada à acumulação capitalista e à intencional segregação socioespacial, levanta-se a necessidade de materializar cidades que possibilitem o exercício da cidadania e o acesso aos direitos sociais mais básicos. Para tal, reforça-se que transformações em nível macroestrutural necessitam ser postas com veemência no eixo das políticas sociais, na coerência de pautar a reforma urbana em debates e formulações públicas, ao compreender que a garantia do direito à moradia é imprescindível para o pleno desenvolvimento dos seres sociais.

No que concerne ao entrelaçamento dos movimentos feminista e de luta por moradia, foi assimilado que o protagonismo de mulheres é demarcado na luta por moradia. Desse modo, é potencializado o alastramento de uma consciência feminista nessas organizações, conforme são promovidos espaços de debate, formação e informação sobre direitos, que incentivam o exercício da cidadania e a autonomia das mulheres. Ademais, são importantes para tal elevação de consciência as ações concretas, que visam intervir na sobrecarga das mulheres com tarefas domésticas e de cuidado socialmente impostos, bem como projetos de geração de renda que auxiliem em sua independência financeira.

Finalmente, a ascendente consciência feminista forjada pelo seu protagonismo nas lutas populares é um campo vasto para ser estudado, como para compor centralmente a agenda do dia, de maneira a direcionar debates e apoio públicos. Remanesce incansavelmente se aproximar do que é real e intervir para a construção da realidade de que se necessita, aquela sem opressões de classe, gênero, raça/etnia e de qualquer outra ordem, até que a última das sem-teto tenha moradia, que o último dos famintos tenha alimento, que a última das despossuídas seja restituída por seus anos de trabalho e, em diante, até que estejam livres.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2024
  • Aceito
    17 Jul 2024
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