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Tentáculos do capital via empréstimos consignados: Benefício de Prestação Continuada (BPC) em disputa

Tentacles of capital via payroll loans: Continuous Payment Benefit (BPC) in dispute

Resumo:

O objetivo deste escrito foi compreender a captura do capital financeiro sobre o Benefício de Prestação Continuada (BPC) por meio dos empréstimos consignados. Trata-se de estudo bibliográfico e documental qualitativo com uso do materialismo histórico-dialético como método de análise da realidade. Conclui-se que os empréstimos consignados são utilizados como instrumentos de expansão do capital financeiro e têm causado o endividamento da pessoa idosa beneficiária do BPC, agravando a extrema pobreza.

Palavras-chave:
Empréstimos consignados; BPC; Pessoa idosa; Capital financeiro

Abstract:

The objective of this writing was to understand the capture of financial capital on the Continuous Payment Benefit (BPC) through payroll loans. This is a qualitative bibliographic and documentary study using historical-dialectical materialism as a method of analyzing reality. It is concluded that payroll loans are used as instruments for expanding financial capital and have caused the indebtedness of elderly people who would benefit from the BPC, aggravating extreme poverty.

Keywords:
Payroll loans; BPC; Elderly; Financial capital

Introdução

Em 2022, o presidente do Brasil da época, Jair Messias Bolsonaro, sancionou a Lei de n. 14.431/2022BRASIL. Lei n. 14.431, de 3 de agosto de 2022. Altera as Leis n. 10.820, de 17 de dezembro de 2003, 8.213, de 24 de julho de 1991, e 8.112, de 11 de dezembro de 1990, para ampliar a margem de crédito consignado aos empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, aos segurados do regime próprio de previdência social dos servidores públicos federais, aos servidores públicos federais e aos segurados do Regime Geral de Previdência Social e para autorizar a realização de empréstimos e financiamentos mediante crédito consignado para beneficiários do benefício de prestação continuada e de programas federais de transferência de renda. Brasília, 2022a. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/l14431.htm . Acesso em: 13 out. 2023.
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, que permitiu a ampliação da margem de crédito para trabalhadores da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e incorporava, nesse “pacote de maldades”, a autorização para beneficiários de programas sociais. Assim, estava dando o aval do Estado brasileiro para a captura do Benefício de Prestação Continuada (BPC) como uma forma cruel de exploração do capital financeiro sobre a extrema pobreza da população idosa brasileira.

Cabe frisar que o BPC está previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) de 1993, que garante: “[...] de 1 (um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família” (Brasil, 1993BRASIL. Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Brasília: Secretaria de Desenvolvimento Social, 1993. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742compilado.htm . Acesso em: 20 nov. 2023.
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). Dessa maneira, o benefício está inserido no rol do Programa de Transferência de Renda e não tem a necessidade de contribuição prévia. Esse é o perfil dos beneficiários que os empréstimos consignados tentam e estão conseguindo capturar, como demostra o estudo do Instituto Brasileiro de Defesa de Consumidores (Idec), que em 2020 demonstrou que 41,8% da modalidade de crédito mais utilizada por consumidores superendividados é a do empréstimo consignado.

A empreitada em busca da pobreza como alvo do crédito não é recente, conforme expõem Netto, Pinheiro e Ferraz (2020NETTO, H. F. S.; PINHEIRO L. I. F.; FERRAZ, M. I. F. O pobre na mira do crédito: assistência social e financeirização no Brasil. Perspectivas em Políticas Públicas, v. 13, n. 26, p. 229-261, 2020. Disponível em: Disponível em: https://revista.uemg.br/index.php/revistappp/article/view/4994 . Acesso em: 12 set. 2023.
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, p. 231), quando apontam o interesse do capital em conceder crédito à população pobre e o processo de “[...] inserir nas suas carteiras o público em situação de vulnerabilidade, especialmente aqueles assistidos por políticas de transferência de renda”. Acrescentam que esse cenário que cria a “cidadania financeira” e da participação no circuito bancário tem consequências, como “[...] inadimplência, endividamento e comprometimento de renda das pessoas e famílias das mais baixas faixas de renda no Brasil, sobretudo aquelas mapeadas pela assistência social” (Netto; Pinheiro; Ferraz, 2020NETTO, H. F. S.; PINHEIRO L. I. F.; FERRAZ, M. I. F. O pobre na mira do crédito: assistência social e financeirização no Brasil. Perspectivas em Políticas Públicas, v. 13, n. 26, p. 229-261, 2020. Disponível em: Disponível em: https://revista.uemg.br/index.php/revistappp/article/view/4994 . Acesso em: 12 set. 2023.
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, p. 249). Nesse cenário de regulamentação dos empréstimos consignados, em especial, para pessoa idosa beneficiária do BPC, e tomando como ponto de partida que esse público está inserido já em situação de vulnerabilidade social; que alguns demandam serviços de cuidados e atenção devido a doenças; e que esse benefício tem sido a única fonte de renda para inúmeras famílias, chegou-se à formulação da problemática central deste estudo: o acesso ao crédito por beneficiários do BPC tem se constituído em acesso à dita “cidadania financeira” ou é mais uma estratégia de captura pelo capital financeiro de beneficiários com renda, ainda que mínima, via empréstimos consignados, para sua reprodução ampliada através de juros? Quais os impactos destes no bem-estar da pessoa idosa?

Para tanto, adotou-se um percurso metodológico que fosse capaz de fornecer bases para reflexão e desvendamento da realidade concreta. Por isso, recorreu-se ao método histórico-dialético, capaz de fornecer uma visão crítica das múltiplas determinações históricas do objeto de estudo e uma compreensão da realidade concreta nas suas contradições, principalmente sobre a busca pela vitalidade e pela construção de alternativas da acumulação do capital com a regulamentação do Estado. Este escrito trata-se de uma pesquisa teórica, de base bibliográfica e documental, com procedimentos qualitativos de análises do material. Este artigo é fruto dos estudos empreendidos pelo campo científico da Gerontologia Social Crítica, no qual o Serviço Social contribui ativamente, que tem construído um arsenal teórico capaz de desvendar as condições econômicas, políticas, sociais, culturais e territoriais que determinam o processo de envelhecimento e velhices da classe trabalhadora, especialmente das frações desta classe mais empobrecida.

Para responder ao problema de pesquisa e a seus objetivos, o artigo foi dividido em duas seções. A primeira aborda o caminho percorrido pelo capital financeiro para a construção dos empréstimos consignados e as regulamentações do governo de Lula até a regulamentação da Lei n. 14.431/2022BRASIL. Lei n. 14.431, de 3 de agosto de 2022. Altera as Leis n. 10.820, de 17 de dezembro de 2003, 8.213, de 24 de julho de 1991, e 8.112, de 11 de dezembro de 1990, para ampliar a margem de crédito consignado aos empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, aos segurados do regime próprio de previdência social dos servidores públicos federais, aos servidores públicos federais e aos segurados do Regime Geral de Previdência Social e para autorizar a realização de empréstimos e financiamentos mediante crédito consignado para beneficiários do benefício de prestação continuada e de programas federais de transferência de renda. Brasília, 2022a. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/l14431.htm . Acesso em: 13 out. 2023.
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, por Jair Messias Bolsonaro. A segunda seção tem a finalidade de aprofundar a reflexão sobre os impactos dos empréstimos consignados e a problematização da culpabilização da pessoa idosa pela situação de endividamento.

1. Os empréstimos consignados como instrumentos de acumulação do capital: o BPC na mira do capital financeiro

É inerente ao sistema capitalista buscar novos meios, instrumentos e caminhos para maximizar a obtenção dos lucros, utilizando-se de novas estratégias de reprodução ampliada, que geram ainda mais, para a classe trabalhadora, o aprofundamento das desigualdades sociais. O crescimento do sistema financeiro tem em sua espinha dorsal finalidades já conhecidas, todavia, apresenta inovações em processos de expropriação de direitos e com trânsito via políticas sociais.

Já não é de hoje que o capital financeiro tem buscado encontrar espaço nas políticas sociais. Conforme demonstrado em Lavinas e Gentil (2018LAVINAS, L.; GENTIL, D.L. Brasil anos 2000: a política social sob regência da financeirização. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, ed. 111, v. 37, n. 2, maio/ago. 2018. Disponível em: 03_lavinas_111_p190a211.indd (scielo.br). Acesso em: 12 out. 2023.), setores como educação, saúde e previdência, de responsabilidade do Estado, tradicionalmente têm sido capturados pelo capital como uma nova maneira de criar nichos de expansão. Um dos caminhos adotados para a expansão da margem de lucros foi a instauração dos empréstimos consignados com a Lei n. 10.820, de 2003BRASIL. Lei n. 10.820, de 17 de dezembro de 2003. Dispõe sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento, e dá outras providências. Brasília, 2003. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.820.htm . Acesso em 12 out. 2023.
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, no governo de Lula, que autorizava os descontos em folha de remuneração para empréstimos, financiamentos, cartões de créditos em benefício de instituições financeiras, ou seja, com o apoio do Estado brasileiro, o capital teve a estrutura jurídica e institucional necessária para alçar voos sobre parte da renda da classe trabalhadora.

Nessa perspectiva, os empréstimos são instrumentos do processo de acumulação capitalista, operados por bancos, que rendem valor acrescido de juros e constroem-se numa camuflada imagem que se desloca da extração da mais-valia, da exploração da força de trabalho da classe trabalhadora. Têm vida independente, capaz de engendrar seu próprio valor, e aparecem, como Marx (2017MARX, K. O Capital: crítica da economia política. O processo global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017. Livro III., p. 471) diz, sendo a “[...] mistificação capitalista em sua forma mais escancarada”. Na verdade, é o capitalista ativo que “[...] arranca do trabalhador, agora os juros aparecem, ao contrário, como o verdadeiro fruto do capital, como o originário, ao passo que o lucro, transfigurado em ganho empresarial, aparece como simples acessório [...]” (Marx, 2017MARX, K. O Capital: crítica da economia política. O processo global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017. Livro III., p. 271).

Os empréstimos consignados consolidaram-se como uma das modalidades de crédito com sedimentação do Estado brasileiro, e são direcionados para aposentados e pensionistas. Conforme Moura (2016MOURA, R. Crédito consignado: face da expropriação financeira no curso da contrarreforma da previdência. SER Social, Brasília, v. 18, n. 39, p. 374-390, jul./dez./2016. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/14629 . Acesso em: 27 set. 2023.
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, p. 388) já alertava, esse mecanismo possibilita o “[...] consumo para os aposentados, porém a médio e longo prazos a tendência é de perda da capacidade de consumo, rebaixamento das condições de vida, empobrecimento e endividamento pelo comprometimento das aposentadorias com o pagamento dos juros”.

Além de aposentados e pensionistas, o capital financeiro tem encontrado nos beneficiários do Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto na Loas, um espaço fértil de apropriação de renda com toques de crueldade com esse público, pois se trata de um público sem condições de prover o seu sustento ou de ser provido por sua família. Assim, o público-alvo desse benefício são pessoas que se encontram em situação de extrema vulnerabilidade financeira e, consequentemente, viveram com as ausências de acesso a elementos básicos para a sobrevivência humana, como trabalho protegido, saúde, educação e alimentação ao longo de sua trajetória de vida. Essa população, que pelas lutas sociais conseguiu firmar o direito à sobrevivência na velhice, de acessar os mínimos sociais para sobreviver, via benefício assistencial, é alvo de novas expropriações do capital.

O BPC, para inúmeras famílias brasileiras, tem sido a única renda existente, em virtude do alto índice de desemprego no país. Todavia, a Medida Provisória n. 1.106/22BRASIL. Medida Provisória n. 1.106, de 17 de março de 2022. Altera a Lei n. 10.820, de 17 de dezembro de 2003, para ampliar a margem de crédito consignado aos segurados do Regime Geral de Previdência Social e para autorizar a realização de empréstimos e financiamentos mediante crédito consignado para beneficiários do Benefício de Prestação Continuada e de programas federais de transferência de renda, e a Lei n. 13.846, de 18 de julho de 2019, para dispor sobre a restituição de valores aos cofres públicos. Brasília, 2022e. Disponível em: Disponível em: https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=MPV№=1106&ano=2022&ato=573kXSU1kMZpWT78c . Acesso em: 13 set. 2023.
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, que autorizou os beneficiários a contratarem os empréstimos consignados e ainda ampliou a margem de 35% para 40% de comprometimento do valor do benefício, parece de imediato ser benéfica para o público sem acesso ao crédito, mas, como uma areia movediça, ela compromete a sobrevivência da dignidade das pessoas idosas.

Desde 1995, com o processo de implantação de contrarreforma do Estado brasileiro por meio do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado e, atrelada a isso, a introdução de novos conceitos, como o de cidadão-consumidor que, conforme Mota (2009MOTA, A. E. Serviço Social e seguridade social: uma agenda política recorrente e desafiante. Em Pauta: Teoria Social e Realidade Contemporânea, n. 20, p. 127-140, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaempauta/article/view/164 . Acesso em: 11 set. 2023.
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, p. 136) alertava, trata-se de “[...] transformar o cidadão sujeito de direitos num consumidor; o trabalhador, num contribuinte autônomo; o desempregado [...]” expande-se um novo cenário de cidadania burguesa que busca transformar os serviços em mercadorias. Seguindo este caminho de avanço do sujeito de direitos em um consumidor de serviços, o Banco Central, em 2013, instituiu o “Programa Cidadania Financeira”, que tinha como finalidade promover a “inclusão financeira, da educação financeira e da proteção ao consumidor de serviços financeiros” (Banco Central, 2013, n. p.).

A Cidadania FinanceiraBANCO CENTRAL DO BRASIL. Cidadania financeira. [202-]. Disponível em: Disponível em: https://www.bcb.gov.br/cidadaniafinanceira . Acesso em: 13 out. 2023.
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, proposta pelo Banco Central, é “[...] o exercício de direitos e deveres que permite ao cidadão gerenciar bem seus recursos financeiros”, o que permitiria “um contexto de inclusão financeira, de educação financeira, de proteção do consumidor de serviços financeiros e de participação no diálogo sobre o sistema financeiro” (Banco Central do Brasil, 2018BANCO CENTRAL DO BRASIL. O que é cidadania financeira? Definição, papel dos atores e possíveis ações. BCB, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.bcb.gov.br/content/cidadaniafinanceira/documentos_cidadania/Informacoes_gerais/conceito_cidadania_financeira.pdf . Acesso em: 14 set. 2023.
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, p. 6). O acesso à chamada “Cidadania Financeira” revela-se uma estratégia do capitalismo para avançar em mecanismo de acumulação de lucros e com horizonte na comercialização dos direitos sociais, como saúde, educação, previdência social, ou seja, a ampliação de acesso desses direitos sociais via privatização e não pela responsabilidade estatal. E agora o BPC entrou na mira do capital financeiro como um recurso capaz de ampliar seus ganhos e sua dominação em todas as esferas da vida social.

Portanto, a Medida Provisória n. 1.106/22BRASIL. Medida Provisória n. 1.106, de 17 de março de 2022. Altera a Lei n. 10.820, de 17 de dezembro de 2003, para ampliar a margem de crédito consignado aos segurados do Regime Geral de Previdência Social e para autorizar a realização de empréstimos e financiamentos mediante crédito consignado para beneficiários do Benefício de Prestação Continuada e de programas federais de transferência de renda, e a Lei n. 13.846, de 18 de julho de 2019, para dispor sobre a restituição de valores aos cofres públicos. Brasília, 2022e. Disponível em: Disponível em: https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=MPV№=1106&ano=2022&ato=573kXSU1kMZpWT78c . Acesso em: 13 set. 2023.
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foi uma estratégia utilizada para capturar os beneficiários do BPC no circuito de crédito, para uma parcela da sociedade que já está em situação de vulnerabilidade, até pela natureza dos critérios de acesso ao BPC. Prova disso foi que a Agência Câmara de Notícias (2022)AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Relator amplia margem consignável prevista em MP. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/notícias/892192-relator-amplia-margem-consignavel-prevista-em-mp-acompanhe . Acesso em: 11 set. 2023.
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, com essa medida provisória, alertou que o governo federal projetava atingir cerca de 4,8 milhões de beneficiários do BPC. Destaca-se que, oito meses depois dessa Medida Provisória, o desgoverno publica uma Instrução Normativa n. 138/22, que estabelecia os “[...] critérios e procedimentos operacionais relativos à consignação de descontos para pagamento de crédito consignado contraído nos benefícios pagos pelo INSS” (Brasil, 2022dBRASIL. Ministério do Trabalho e Previdência. Instrução normativa PRES/INSS n. 138, de 10 de novembro de 2022. Estabelece critérios e procedimentos operacionais relativos à consignação de descontos para pagamento de crédito consignado contraído nos benefícios pagos pelo INSS. Brasília, 2022d. Disponível em: Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-pres/inss-n-138-de-10-de-novembro-de-2022-*-450060585 . Acesso em: 12 set. 2023.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instr...
, n. p.).

Os caminhos de facilidades para tal atrocidade consolidaram-se, ainda mais, com a conversão dessa Medida Provisória na Lei n. 14.431/22BRASIL. Lei n. 14.431, de 3 de agosto de 2022. Altera as Leis n. 10.820, de 17 de dezembro de 2003, 8.213, de 24 de julho de 1991, e 8.112, de 11 de dezembro de 1990, para ampliar a margem de crédito consignado aos empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, aos segurados do regime próprio de previdência social dos servidores públicos federais, aos servidores públicos federais e aos segurados do Regime Geral de Previdência Social e para autorizar a realização de empréstimos e financiamentos mediante crédito consignado para beneficiários do benefício de prestação continuada e de programas federais de transferência de renda. Brasília, 2022a. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/l14431.htm . Acesso em: 13 out. 2023.
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, que teve a sanção decretada pelo presidente da época, Jair Messias Bolsonaro, e pelo seu ministro comandante da política econômica, Paulo Guedes. Cabe aqui ressaltar que o ministro tem ligações íntimas, notórias e públicas com o mercado financeiro.

Uma matéria publicada na Agência Brasil (2022aAGÊNCIA BRASIL. Beneficiários de programas sociais poderão fazer empréstimo consignado. 2022a. Disponível em: Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-10/bancos-ja-podem-fazer-emprestimo-consignado-do-auxilio-brasil-e-bpc . Acesso em: 2 set. 2023.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/economi...
) noticiava a autorização do governo federal para os bancos concederem empréstimos consignados aos beneficiários do BPC, inclusive com agilidade de tempo, o que permitia que o beneficiário pudesse receber o dinheiro em até dois dias úteis após sua contratação, além de outras “facilidades”, como: primeira prestação com 60 dias para pagamento; aprovação quase imediata; parcelamento em até 84 vezes; facilidade de contratação pelo aplicativo ou pelo site; e descontos em farmácias parceiras dos bancos. A Agência Brasil (2022bAGÊNCIA BRASIL. Bancos já podem fazer empréstimo consignado do Auxílio Brasil e BPC. 2022b. Disponível em: Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-10/bancos-ja-podem-fazer-emprestimo-consignado-do-auxilio-brasil-e-bpc . Acesso em: 17 set. 2023.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/economi...
) ainda destacou as principais instituições financeiras que ofereciam esse tipo de modalidade e que estavam autorizadas pelo Ministério da Economia, sendo elas: “[...] Caixa; Banco Agibank; Banco Crefisa; Banco Daycoval; Banco Pan; Banco Safra; Capital Consig Sociedade de Crédito Direto; Facta Financeira S.A. Crédito, Financiamento e Investimento; Pintos S.A. Créditos; [...] entre outras” (Agência Brasil, 2022bAGÊNCIA BRASIL. Bancos já podem fazer empréstimo consignado do Auxílio Brasil e BPC. 2022b. Disponível em: Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-10/bancos-ja-podem-fazer-emprestimo-consignado-do-auxilio-brasil-e-bpc . Acesso em: 17 set. 2023.
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, n. p.).

Em 2023, Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a presidência do país, com o terceiro mandato como presidente do Brasil. O primeiro passo do governo foi a instauração de um Gabinete de Transição da Presidência da República, que culminou em um relatório final que apresentou um panorama do Estado e das políticas públicas. No item sobre o Desenvolvimento Social, o relatório final informou que R$ 9,5 bilhões de empréstimos consignados foram concedidos nas vésperas da finalização das eleições de 2022 a que, inclusive, beneficiários do BPC tiveram acesso. Na verdade, no apagar das luzes do governo do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, ele ampliou um série de benefícios sociais para beneficiar sua campanha eleitoral, inclusive tal manobra permitiu a concessão de empréstimos consignados, por exemplo, aos beneficiários do Auxílio Brasil, com isso reforçando o traço da financeirização das políticas sociais. (G1,2022G1 NOTICIAS. MP junto ao TCU quer investigar Bolsonaro por oferta de consignado do Auxílio Brasil em ano eleitoral. 2022. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/11/30/mp-junto-ao-tcu-quer-investigar-bolsonaro-por-oferta-de-consignado-do-auxilio-brasil-em-ano-eleitoral.ghtml . Acesso em: 13 dez. 2023.
https://g1.globo.com/politica/noticia/20...
).

O “novo governo”, consciente dos efeitos nefastos dessa concessão de crédito, em março de 2023, via Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), publicou a Portaria n. 1.114/23, que teve a finalidade de impedir empréstimos, cartões de crédito ou operações de arrendamento mercantil. Sendo assim, as instituições financeiras ficavam proibidas de avançar para a realização de novas operações. Com base nessa portaria emitida pelo Ministério da Previdência Social, juntamente ao INSS e à Diretoria de Benefícios e Relacionamento com o Cidadão, determinou-se a interrupção da “[...] operacionalização dos contratos de pagamento mensal de empréstimos, financiamentos, cartões de crédito e operações de arrendamento mercantil dos Benefícios de Prestação Continuada (BPC/LOAS) [...]” (Brasil, 2023aBRASIL. Ministério da Previdência Social. Instituto Nacional do Seguro Social. Diretoria de Benefícios e Relacionamento com o Cidadão. Portaria DIRBEN/INSS n. 1.114, de 3 de março de 2023. Brasília, 2023a. Disponível em: Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-/dirben/inss-n-1.114-de-3-de-marco-de-2023-467798389 . Acesso em: 13 set. 2023.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta...
, n. p.).

Em entrevistas, o ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, afirmou que os empréstimos consignados comprometem metade do benefício dos aposentados, e reconhece ser complicado que o acesso ao crédito seja elemento de autonomia, tendo em vista ser uma parcela da população que se encontra em situação de vulnerabilidade social. O Partido Democrático Trabalhista (PDT), em 2022, entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), contra a Lei que possibilitava empréstimos consignados aos beneficiários do Auxílio Brasil e justificava que as parcelas eram elevadas, “[...] especificamente para indivíduos que têm programas assistenciais e de transferência de renda como única fonte de subsistência, tratando-se de verbas alimentares e indisponíveis, alcançando mais de 52 milhões de pessoas” (Partido Democrático Trabalhista, 2022PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA (PDT). Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido de medida cautelar de urgência. 2022. Disponível em: Disponível em: https://pdt.org.br/wp-content/uploads/2022/08/PETICAO.INICIAL-4.pdf . Acesso em: 5 set. 2023.
https://pdt.org.br/wp-content/uploads/20...
, n. p.).

Dentre as várias formas nas quais ocorrem as expropriações contemporâneas, na etapa do capital financeiro, destacam-se: a expropriação pela mercantilização dos meios de sobrevivência; a diminuição dos salários, especialmente via terceirização; o aumento da dependência da classe trabalhadora em relação ao mercado (contrariamente à etapa anterior de desmercadorização e desfamilização das políticas sociais); e o endividamento das famílias (acesso ao crédito e dificuldade de pagamento de juros), conforme Dörre (2022DÖRRE, K. Teorema da expropriação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2022.).

2. A captura do BPC pelos empréstimos consignados e os impactos: a culpabilização da pessoa idosa pelo endividamento

Reforça-se que, nos últimos anos, o capitalismo mundial reconfigurou-se numa direção que permitiu a expansão da esfera financeira e intensificou a centralização, a acumulação da lucratividade por meio de instrumentos, como fundos de pensão, capital portador de juros, empréstimos, instituições bancárias e títulos da dívida pública.

Esse movimento do capital financeiro, para além de sua aparência, mostra que a sociabilidade capitalista atual sob a máscara da valorização da pessoa idosa gera e adota termos que expressam sua ressignificação, como “melhor idade”, “terceira idade”, que indicam captura destes como nicho de mercado, incluindo o mercado financeiro. Logo, trata-se de uma pseudovalorização, ao lhes acrescentar um potencial consumidor de mercadorias. O “mercado da terceira idade” está em pleno percurso de expansão e animado com os dados que demonstram o crescimento do potencial de consumo, com isso, produtos e serviços estão sendo pensados para atender ao “público-alvo”.

Segundo os últimos dados do ano de 2021, divulgados pelo portal do governo federal, SUAS em númerosCOLEGIADO NACIONAL DE GESTORES MUNICIPAIS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. SUAS em números: proteção social, desproteção e financiamento do SUAS. [S. l.: s. n.], 2022. v. 1: Projeto e realidade social no contexto de pandemia. Disponível em: Disponível em: https://assistenciasocialnosmunicipios.org/estudos-e-relatorios/ . Acesso em: 1o set. 2023.
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, o BPC para a pessoa idosa tem aumentado no contingente de beneficiários, inclusive, chega-se em janeiro com R$ 2.105.288 milhões e, em novembro do mesmo ano, tem-se R$ 2.154.193,00. Ou seja, esses dados revelam o crescimento da vulnerabilidade social, que também foi influenciada pela vivência da pandemia de covid-19. Se, por um lado, esses dados revelam o aumento da pobreza no país e uma realidade de dificuldades e ausências para as famílias, por outro, para o capital financeiro, revelam-se como uma oportunidade de lançar mão sobre R$ 58.424.833.664 que foi o valor de recursos para o BPC em 2020.

Convém ressaltar que a Agência Brasil, em 2016AGÊNCIA BRASIL. MPF investiga vazamento de dados de trabalhadores que pediram aposentadoria. 2016. Disponível em: Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2016-02/mpf-investiga-vazamento-de-dados-de-trabalhadores-que-pediram-aposentadoria . Acesso em: 13 set. 2023.
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, destacou que o Ministério Público Federal (MPF), no Espírito Santo, já investigava o vazamento de dados de trabalhadores para instituições financeiras e bancos que, munidos dessas informações, entravam em contato com os possíveis segurados do INSS para oferecer empréstimos consignados; ou seja, essas instituições financeiras tinham acesso privilegiado sobre as concessões de aposentadorias quando nem os futuros aposentados sabiam da obtenção do direito. Isso demonstra o trânsito facilitado do capital financeiro em ter acesso a dados públicos sem qualquer punição.

Em 2019, o IdecINSTITUTO DE DEFESA DE CONSUMIDORES (IDEC). Após denúncia do Idec, INSS admite vazamento de dados de aposentados. São Paulo, 2019. Disponível em: Disponível em: https://idec.org.br/noticia/apos-denuncia-do-idec-inss-admite-vazamento-de-dados-de-aposentados#:~:text=Após%20denúncia%20do%20Idec%2C%20que,para%20agentes%20do%20setor%20financeiro . Acesso em: 3 set. 2023.
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noticiou que encaminhou notificações para o INSS acerca do vazamento de dados de aposentados. Na época, o presidente do INSS admitiu a ocorrência de vazamento de dados para agentes financeiros que agem para cooptação da população idosa e isso tem tido consequências devastadoras. O Idec já vem alertando para o superendividamento da pessoa idosa por meio de empréstimos consignados. De acordo com o Idec, em 2020 a modalidade de crédito mais utilizada por consumidores superendividados foi a do empréstimo consignado, com 41,8%, seguida do cartão de crédito, com 18,4%, e por fim o empréstimo pessoal, com 6%. Inclusive o Idec (2020)INSTITUTO DE DEFESA DE CONSUMIDORES (IDEC). Idosos reféns de empréstimos consignados aguardam batalha jurídica. São Paulo, 2020. Disponível em: Disponível em: https://idec.org.br/idec-na-imprensa/idosos-refens-de-emprestimos-consignados-aguardam-batalha-juridica . Acesso em: 4 set. 2023.
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aponta dez grandes bancos, entre eles: Itaú, Banco Pan, Cetelem e BMG, que estão sendo investigados pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) por exploração da hipervulnerabilidade do idoso, pela violação de dados pessoais e por possíveis abusos nos créditos para aposentados.

O Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e a Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas (CNDL), em 2019SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO (SPC); CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES LOJISTAS (CNDL). Empréstimo em bancos e financeiras é o maior vilão da inadimplência no país, revela pesquisa CNDL/SPC Brasil. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.cdlcacoal.org/blog/emprestimo-em-bancos-e-financeiras-e-o-maior-vilao-da-inadimplencia-no-pais-revela-pesquisa-cndlspc-brasil-102 . Acesso em: 11 set. 2023.
https://www.cdlcacoal.org/blog/emprestim...
, informaram que o endividamento dos brasileiros tem nos empréstimos com bancos e financeiras o principal responsável pela inadimplência no país. Com base nos dados divulgados pelo SPC (2019, n. p,), a negativação “[...] de CPFs no país é [pelo]o empréstimo pessoal contraído em bancos e financeiras: 69% dos usuários da modalidade de crédito estão com restrição no nome. O crediário (68%) e o cartão de crédito (67%) aparecem logo em seguida no ranking”. Nesses documentos, é possível verificar o reconhecimento de que a diminuição da renda e os altos índices de desemprego ocasionam dificuldades no pagamento de dívidas, todavia, o mesmo documento também aponta como sendo falta de controle financeiro das famílias. O discurso de culpabilizar as famílias pela situação de vulnerabilidade já é conhecido e utilizado para justificar as desigualdades sociais no país, e está alinhado a interesses burgueses de ocultar as bases macroeconômicas capitalistas que se retroalimentam da pobreza.

Diante de tal situação, em 2021BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Consumidor em números. Brasília, 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/consumidor-em-numeros-2021-3-3-milhoes-de-reclamacoes-foram-registradas-em-todo-o-pais/consumidor-em-numeros-2021.pdf . Acesso em: 13 set. 2023.
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, o governo federal (de Jair Messias Bolsonaro) lançou uma cartilha denominada (Super)endividamento da pessoa idosa: vamos falar sobre isso?, com o objetivo de problematizar essa questão. Nesse material, “o endividamento é um fato inerente à vida na sociedade de consumo, uma vez que, para consumir produtos e serviços, os consumidores estão constantemente endividando-se”; já o “superendividamento ocorre quando o excesso de endividamento compromete a dignidade do devedor” (Brasil, 2021aBRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. (Super)endividamento da pessoa idosa: vamos falar sobre isso? Brasília, 2021a. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/pessoa-idosa/CARTILHA_SUPERENDIVIDAMENTO.pdf . Acesso em: 4 set. 2023.
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, p. 7). É importante observar, por meio desse material, a aceitação do governo federal do endividamento como um elemento natural da vida humana, o que reforça o alinhamento à sociedade baseada no consumo, embora nem todos tenham acesso a bens e serviços.

O outro ponto que merece destaque dessa cartilha são as causas que levariam a pessoa idosa ao superendividamento, dentre as quais estariam: consumo irresponsável; má administração do orçamento familiar; falta de educação e de planejamento financeiros. Ao afirmar isso, o governo federal culpabiliza a pessoa idosa pelo processo de endividamento e reduz essa situação a uma questão simples que pode ser resolvida apenas com a educação financeira, com isso, também se retira a responsabilidade do Estado na garantia de condições de vida digna. Não há qualquer manifestação de repúdio nesse documento ou que penalize as instituições financeiras, pelo contrário, ocorre um incentivo, conforme exposto na cartilha: “[...] o acesso ao crédito constitui recurso importante para a realização da atividade econômica, geração de empregos e de renda, e por isso deve ser concedido de forma responsável para não gerar consequências nefastas à própria economia” (Brasil, 2021aBRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. (Super)endividamento da pessoa idosa: vamos falar sobre isso? Brasília, 2021a. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/pessoa-idosa/CARTILHA_SUPERENDIVIDAMENTO.pdf . Acesso em: 4 set. 2023.
https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por...
, p. 8).

Em pesquisa realizada pela plataforma Fala.BR,1 1 “O Fala.BR (2023) é a Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação do Poder Executivo Federal. Por meio dela você pode enviar pedidos de acesso à informação e manifestações de Ouvidoria (denúncias, elogios, reclamações, sugestões e solicitações) aos órgãos e entidades. Conheça e utilize a plataforma” (Brasil, 2023, n. p.). que se configura como espaço de acesso à informação e à ouvidora, e com base na Lei de Acesso à Informação n. 12.527/11, foi solicitado ao INSS informações sobre dados de idosos beneficiários do BPC que estão com empréstimos consignados. Em resposta a esse pedido, o setor da Diretoria de Benefícios e Relacionamento com o Cidadão do INSS enviou um documento e esclareceu que a solicitação: “[...] não está disponível para extração de informações de contratos averbados de empréstimo consignado, pois este grupo está com problemas e, também, não há informação do quantitativo de contratos por beneficiários” (Fala.BR, p. 1).

Cabe aqui a seguinte reflexão: como é o INSS que operacionaliza o pagamento do benefício, seria prudente que a instituição tivesse controle desses quantitativos de beneficiários que têm desconto diretamente na folha de pagamento. A ausência no controle desses dados gera um vácuo na realidade e reforça ainda mais não só a negligência, mas também uma forma de incentivo via instituição para que idosos e idosas tenham a captura de sua única fonte de renda pelo capital financeiro. A única informação disponibilizada foi “[...] uma planilha que foi extraída do sistema SINTEWEB, onde consta a quantidade de parcelas descontadas dos benefícios de BPC para idosos, ou seja, parcelas que estão sendo pagas em cada competência e descontadas do beneficiário” (Fala.BR, p. 1).

Na planilha enviada, é possível verificar os descontos de empréstimos consignados e gastos referentes a cartão de crédito. Em relação aos empréstimos consignados, foram enviadas informações sobre a quantidade de parcelas, meses, ano e valores. Por meio desses dados, é possível verificar que é a partir de abril que os descontos começam a aparecer nas folhas do BPC/Loas, e que só crescem de forma exorbitante e assustadora mês a mês. Em abril de 2022, havia um total de 31.831 parcelas em aberto, mas quando analisados os dados do mês de dezembro, observaram-se 638.604 parcelas de empréstimos, ou seja, houve o aumento exorbitante de pessoas idosas que comprometeram sua renda para pagamento de empréstimos.

Por último, nos documentos enviados pela plataforma Fala.BR, é possível verificar, consequentemente, o aumento de valores repassados para pagamento de empréstimos; quando se observa abril/2022, encontra-se R$ 11.430.424,00, já em dezembro/2022, o montante chega ao valor de R$ 199.495.953,27 destinados para o capital financeiro, o que favorece o aumento da lucratividade, mas estimula o endividamento da pessoa idosa em situação de vulnerabilidade.

A vulnerabilidade da pessoa idosa e de sua família foi ainda mais exposta diante da instalação da pandemia de covid-19. Camarano (2022CAMARANO, A. M. Os dependentes da renda dos idosos e o coronavírus: órfãos ou novos pobres. In: SILVA, P. S.; CORSEUIL, C. H.; COSTA, S. J. (org.). Impactos da pandemia de covid-19 no mercado de trabalho e na distribuição de renda no Brasil. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2022. p. 431-441. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11561/22/218212_LV_Impactos_Cap18.pdf . Acesso em: 13 set. 2023.
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, p. 421) alertava que: “[...] 3,8% das mortes registradas por covid-19 até 1º de julho de 2020 ocorreram em indivíduos com 60 anos ou mais, dos quais 58,0% eram homens”. Mesmo diante desses impactos com a perda e ainda na continuidade da pandemia, o governo federal não considerou a fragilidade dessa população e a expôs a uma situação de entrega da única renda aos bancos.

Cabe destacar que a realidade da pessoa idosa e das famílias tem sido atravessada de reconfigurações nos arranjos de sobrevivência, principalmente com o aumento do desemprego que a reposiciona como provedora da família. Como Camarano (2022CAMARANO, A. M. Os dependentes da renda dos idosos e o coronavírus: órfãos ou novos pobres. In: SILVA, P. S.; CORSEUIL, C. H.; COSTA, S. J. (org.). Impactos da pandemia de covid-19 no mercado de trabalho e na distribuição de renda no Brasil. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2022. p. 431-441. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11561/22/218212_LV_Impactos_Cap18.pdf . Acesso em: 13 set. 2023.
https://repositorio.ipea.gov.br/bitstrea...
, p. 422) aponta: “[...] a família de um idoso não é um ninho vazio, como esperado pela literatura, e o idoso tem desempenhado um papel importante como seu provedor”. Se o BPC é, muitas vezes, a única fonte de renda para sustento da pessoa idosa e de sua família, quando esse valor vem permeado pelo desconto de empréstimos consignados, tem-se uma situação de exposição à extrema vulnerabilidade, inclusive, de insegurança alimentar.

O deputado federal Guilherme BoulosBOULOS, G. Projeto de Lei 2.530/2023. Altera a Lei n. 10.820, de 17 de dezembro de 2003, para dispor sobre empréstimos consignados em caso de contratação sem autorização do beneficiário. Brasília, 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2361969 . Acesso em: 12 set. 2023.
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, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), apresentou o Projeto de Lei (PL) n. 2.530/23, que tem como finalidade coibir empréstimos consignados sem a autorização dos beneficiários, ou seja, essa tem sido outra estratégia adotada pelos bancos e financeiras, repassando empréstimos consignados para expansão desse mecanismo de obtenção de lucro. De acordo com o Procon/SP (2021)FUNDAÇÃO DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR - PROCON/SP. Reclamações contra crédito consignado. São Paulo, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.procon.sp.gov.br/reclamacoes-contra-credito-consignado/ . Acesso em: set. 2023.
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, as reclamações sobre o crédito consignado aumentaram de forma significativa em 2021, chegando a 6.442 queixas dos beneficiários que afirmaram não ter autorizado tal transação e, quando procuram o banco, não conseguem resolver a situação.

Por fim, no correr de escrita deste artigo, foi noticiado na Agência Brasil (2023AGÊNCIA BRASIL. STF tem maioria por consignado para beneficiários de programas sociais. 2023. Disponível em: Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-07/stf-tem-maioria-por-consignado-para-beneficiarios-de-programas-sociais . Acesso em: 10 set. 2023.
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) que o Supremo Tribunal Federal (STF) já tinha maioria dos votos para liberação dos empréstimos destinados aos beneficiários de programas sociais, com isso, rejeitou-se a liminar do PDT, que barrava a liberação desses empréstimos. Os ministros entenderam que os empréstimos são constitucionais se os beneficiários desejam ter acesso a tal recurso, entretanto, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu o julgamento, justificando a necessidade de vista do processo, para ganhar tempo e munir-se de informações.

Considerações finais

No primeiro governo Lula, a Lei n. 10.820 de 2003BRASIL. Lei n. 10.820, de 17 de dezembro de 2003. Dispõe sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento, e dá outras providências. Brasília, 2003. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.820.htm . Acesso em 12 out. 2023.
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foi criada com a finalidade de autorizar descontos em folha de remuneração para empréstimos, financiamentos, cartões de créditos, em benefício de instituições financeiras. Isso demostra que não é de hoje que o Estado tem facilitado e estruturado, mais uma vez, meios de apreensão da renda dos trabalhadores. Mas não satisfeitos com a abrangência dessa expropriação, lançaram-se “garras” sobre a renda de pessoas idosas vulneráveis, com o acesso a empréstimos pelos beneficiários do BPC.

Avançando nas estratégias de expansão do capital financeiro, foi no desgoverno do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro que ocorreu regulamentação, com a finalidade de permitir os empréstimos consignados para o BPC, com isso, facilitando uma “cidadania financeira” que beneficia a burguesia financeira. Contraditoriamente, o mesmo desgoverno elaborou uma cartilha que culpabiliza a pessoa idosa pelo processo de endividamento e reduz essa situação a uma questão simples que pode ser resolvida apenas com a educação financeira, jogando uma cortina de fumaça sobre a realidade.

A captura do BPC pelo capital financeiro revela que o discurso da “cidadania financeira” é uma falácia, que mascara os reais objetivos de mercantilizar espaços não mercantis para a reprodução do capital. Os tentáculos perigosos e nocivos da financeirização chegam às pessoas idosas beneficiárias do BPC, que já se encontram em miserabilidade, mas têm ainda mais achatado seu fundo de reprodução. Estes espaços passam a ser colonizados, à medida que são alvo rentável e atrativo para a financeirização, com o discurso falacioso de permitir acesso ao crédito e ao consumo.

Referências

  • 1
    “O Fala.BR (2023) é a Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação do Poder Executivo Federal. Por meio dela você pode enviar pedidos de acesso à informação e manifestações de Ouvidoria (denúncias, elogios, reclamações, sugestões e solicitações) aos órgãos e entidades. Conheça e utilize a plataforma” (Brasil, 2023BRASIL. Controladoria-Geral da União. Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação do Poder Executivo Federal. Brasília, 2023b. Disponível em: Disponível em: https://falabr.cgu.gov.br/web/home . Acesso em: 9 set. 2023.
    https://falabr.cgu.gov.br/web/home...
    , n. p.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2024
  • Aceito
    19 Jun 2024
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