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Trabalho no Brasil (1995 a 2020): desigualdades de gênero e étnico-raciais

Work in Brazil (1995 to 2020): gender and ethnic-racial inequalities

Resumo:

O artigo resgata os aspectos centrais dos governos de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro, os modelos econômicos e sociais predominantes e as crises políticas-econômicas e sanitária. Objetiva demonstrar que a inserção das mulheres no mundo do trabalho é permeada pelas desigualdades de gênero e étnico-raciais. A metodologia utiliza o estudo estatístico, descritivo e comparativo dos dados, e evidencia a desigualdade de gênero e étnico-racial no país.

Palavras-chave:
Governos; Desigualdades de gênero, raça/etnia; Indicadores do trabalho

Abstract:

The article highlights the central aspects of the governmentes of Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer and Jair Bolsonaro, the predominant economic and social models and the political-economic and health crises. It aims to demonstrate that the insertion of women in the world of works is permeated by gender and ethnic-racial inequalities. The methodology uses statistical, descriptive and comparative data study and highlights gender and ethnic-racial inequality in the country.

Keywords:
Governments; Gender, race/ethnicity inequalities; Job indicators

Introdução

A compreensão dos indicadores econômicos e sociais sobre o trabalho e a ocupação na sociedade adquire inteligibilidade se submetida à leitura sócio-histórica das conjunturas brasileiras dos governos que se sucederam ao período da redemocratização brasileira, tendo em vista a implementação de modelos político-econômicos que ora privilegiaram, tão somente, as prescrições liberais dos organismos internacionais do capital, ou que concederam ao Estado um papel protagonista na regulação de tensões e conflitos emanados da contradição capital versus trabalho.

Assim, o estudo apresenta um resgate dos aspectos econômicos, políticos e sociais dos governos de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Vana Rousseff, Michel Temer e Jair Messias Bolsonaro, seus tensionamentos e adversidades, os quais potencializaram o atual contexto da crise sanitária advinda da covid-19. Para tanto, o artigo retrata e discute os dados quantitativos de renda média e ocupação no mercado de trabalho extraídos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre os anos de 1995 a 2020.

A sociedade burguesa, em sua particularidade brasileira, é demarcada pelo processo de socialização patriarcal, heteronormativo e racista que define o lugar subalterno da mulher, em especial da mulher negra e parda, a partir da divisão sexual do trabalho, ocupação de um lugar periférico no processo produtivo e da intensificação da exploração do capital. Objetiva-se demonstrar que a inserção das mulheres no mundo do trabalho se realiza a partir do prisma das desigualdades de gênero e étnico-raciais.

Utilizou-se a pesquisa documental, estatística, de nível descritivo e comparativo dos dados secundários, com análise histórico-crítica, para caracterizar a inserção da classe trabalhadora, nos quesitos de sexo, raça/etnia no mercado de trabalho, através dos índices de rendimento médio, ocupação, horas dedicadas ao cuidado de pessoas e/ou afazeres domésticos e trabalho em tempo parcial, em especial, naqueles que retratam as mulheres.

O trabalho estrutura-se a partir do resgate sócio-histórico das gestões presidenciais, no período em estudo, com a apresentação e análise dos dados de renda média mensal de todos os trabalhos, distribuídos pelo decurso dos mandatos, referidos para homens e mulheres. Também, discute os dados extraídos do estudo Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil (IBGE, 2021INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2021. Estudos e pesquisas. Informação demográfica e socioeconômica, n. 38. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101784 . Acesso em: 14 abr. 2021.
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). Por fim, as considerações finais refletem sobre os tensionamentos políticos e econômicos no Brasil e apontam a desigual inserção das mulheres no mundo do trabalho, as quais historicamente são marcadas pelas opressões interseccionais de gênero, raça/etnia, entre outras.

1. As gestões presidenciais no período de 1995 a 2020: trabalho e desigualdades

O governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) foi marcado pelo incremento do uso do receituário neoliberal no país, o que resultou num período de instabilidade macroeconômica permanente. Segundo Teixeira e Pinto (2012TEIXEIRA, R. A.; PINTO, E. C. A economia política dos governos FHC, Lula e Dilma: dominância financeira, bloco no poder e desenvolvimento econômico. Revista Economia e Sociedade, v. 21, número especial, p. 909-941, dez. 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/ecos/a/WRPZxp3LrymkXcqsR6gmNXD/?lang=pt# . Acesso em: 14 set. 2021.
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), o governo de FHC perseguiu as linhas gerais do chamado Consenso de Washington,1 1 Encontro promovido pelo Institute for International Economics em novembro de 1989, na capital dos Estados Unidos. Participaram funcionários do governo estadunidense, dos organismos financeiros internacionais (FMI, Banco Mundial e BID) e diversos economistas latino-americanos. Objetivou proceder a uma avaliação das reformas econômicas empreendidas nos países da região. “As propostas do Consenso de Washington nas 10 áreas a que se dedicou convergem para dois objetivos básicos: por um lado, a drástica redução do Estado e a corrosão do conceito de Nação; por outro, o máximo de abertura à importação de bens e serviços e a entrada de capitais de risco” (Batista, 1999, p. 33). na abertura comercial e financeira, privatizações de estatais e a reforma pró-mercado, o que minimizou a função do Estado em planejar e intervir na atividade econômica. A política econômica adotada pautou-se nos juros altos e na contenção dos gastos correntes.

[...] tais reformas não proporcionaram o esperado desenvolvimento, na verdade, produziram uma situação de instabilidade macroeconômica permanente e um padrão de crescimento stop and go, dada a elevada vulnerabilidade externa da economia no período, abalada frequentemente pelas turbulências do mercado financeiro internacional, às quais se respondia com juros elevados (para atrair o capital estrangeiro ou desestimular sua fuga) e contenção de gastos e investimentos públicos. Isso conduziu à explosão da dívida pública externa e principalmente a interna. O resultado foi a expressiva queda da formação bruta de capital da economia como porcentagem do PIB, entre 1995 e 2002, elevado desemprego e baixas taxas de crescimento, além da deterioração fiscal (Teixeira; Pinto, 2012TEIXEIRA, R. A.; PINTO, E. C. A economia política dos governos FHC, Lula e Dilma: dominância financeira, bloco no poder e desenvolvimento econômico. Revista Economia e Sociedade, v. 21, número especial, p. 909-941, dez. 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/ecos/a/WRPZxp3LrymkXcqsR6gmNXD/?lang=pt# . Acesso em: 14 set. 2021.
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, p. 916).

A criação do Fundo Social de Emergência em 19942 2 Neste ano, FHC era ministro do planejamento do governo de Itamar Franco. foi um de seus legados; nele previa-se a desvinculação de verbas do orçamento da União, o que permitiu ao governo remanejar 20% da arrecadação das contribuições sociais para outras áreas de seu interesse. Essa medida intensificou o desinvestimento do fundo público para as políticas sociais e, posteriormente, esse fundo passou a ser chamado de Desvinculação das Receitas da União (DRU).

As baixas taxas de crescimento (Teixeira; Pinto, 2012TEIXEIRA, R. A.; PINTO, E. C. A economia política dos governos FHC, Lula e Dilma: dominância financeira, bloco no poder e desenvolvimento econômico. Revista Economia e Sociedade, v. 21, número especial, p. 909-941, dez. 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/ecos/a/WRPZxp3LrymkXcqsR6gmNXD/?lang=pt# . Acesso em: 14 set. 2021.
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) repercutiram nas relações de trabalho e emprego, especificamente, no rendimento médio real de todos os trabalhos, identificados nos dados do IBGE (2002-2011INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Séries estatísticas. Rio de Janeiro: IBGE, 2002-2011. Disponível em: Disponível em: https://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=PE347&t=rendimento-medio-real-trabalho-principal-sexo . Acesso em: 4 jul. 2021.
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):

Quadro 1.
Rendimento médio mensal de todos os trabalhos por distribuição de sexo (1995-2002)3 3 Os dados de rendimento médio mensal do trabalho referentes aos governos anteriores a FHC não estão disponíveis na base de séries históricas do IBGE. . Moeda: real

O Quadro 1 revela que o rendimento médio mensal dos homens teve um acréscimo de R$ 18,00 entre os anos de 1995 e 1996, seguido de perdas contínuas, sendo a mais significativa entre os anos de 1998 e 1999, de R$ 89,00. Os rendimentos médios das mulheres foram inferiores aos dos homens no período estimado, com o maior ganho entre os anos de 1995 e 1996 (R$ 49,00). Porém, registrou-se no período um declínio percentual na proporção entre os sexos: se em 1995 a diferença entre o rendimento médio de homens e mulheres era de 37,4%, em 2002, essa diferença recuou para 29,8%.

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) manteve as linhas mestras da política macroeconômica do governo antecessor, a saber: sistema de metas de inflação, superávits primários e câmbio flutuante (Teixeira; Pinto, 2012TEIXEIRA, R. A.; PINTO, E. C. A economia política dos governos FHC, Lula e Dilma: dominância financeira, bloco no poder e desenvolvimento econômico. Revista Economia e Sociedade, v. 21, número especial, p. 909-941, dez. 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/ecos/a/WRPZxp3LrymkXcqsR6gmNXD/?lang=pt# . Acesso em: 14 set. 2021.
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). Contudo, quando comparados os dois governos, seus resultados foram melhores. Os autores citados asseveram que entre 2003 e 2010 houve o maior ciclo de crescimento, com taxa de 4,1% do Produto Interno Bruto (PIB) ao ano, quase o dobro do observado entre 1980 e 2002 (2,4% ao ano).

O contexto internacional de crescimento mundial, que se evidenciou até a crise internacional de 2008, impulsionou os resultados favoráveis na balança comercial com elevados superávits. No seu governo, o consumo das famílias e os investimentos públicos e privados cresceram devido à inclusão social das camadas mais pobres da população com a ampliação das políticas sociais, sobretudo nas áreas da educação, habitação e assistência social. A análise sobre o mercado de trabalho revela que:

No que tange ao mercado de trabalho, verificaram-se dois padrões diferenciados durante o governo Lula, a saber: i) entre 2003 e 2006, quando ocorreu uma pequena redução na taxa de desemprego das Regiões Metropolitanas (RMs) (de 12,3% em 2003 para 10% em 2006) e uma queda real de 5,0% na massa de rendimentos médios dos ocupados nas RMs; ii) entre 2007 e 2010, quando se verificou uma redução expressiva das taxas médias de desemprego na RMs (de 9,3% em 2007 para 6,7% em 2010) e uma melhora significativa da massa real de rendimentos dos ocupados (crescimento de cerca de 20%). Cabe destacar ainda o crescimento real do salário mínimo ao longo do governo Lula (expansão média de 5,9% a.a.) que teve efeitos positivos para demanda agregada e para a distribuição de renda (Teixeira; Pinto, 2012TEIXEIRA, R. A.; PINTO, E. C. A economia política dos governos FHC, Lula e Dilma: dominância financeira, bloco no poder e desenvolvimento econômico. Revista Economia e Sociedade, v. 21, número especial, p. 909-941, dez. 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/ecos/a/WRPZxp3LrymkXcqsR6gmNXD/?lang=pt# . Acesso em: 14 set. 2021.
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, p. 925).

A campanha de valorização do salário mínimo empenhada pelas centrais sindicais, com a assessoria do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), possibilitou a seguinte situação: “o ganho real acumulado no período do governo Lula é de 37,02%, resultante de uma variação nominal de 107,49%, contra inflação de 51,43%” (Dieese, 2008DIEESE. Política de valorização do salário mínimo: aplicação da MP 421 em 1º de março. Nota Técnica, n. 62, mar. 2008. Disponível em: Disponível em: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2008/notatec62SalarioMinimo2008.pdf . Acesso em: 2 jul. 2021.
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). Cabe ressaltar que a taxa de desemprego em 2010, fim do seu mandato, foi estimada em 6,7% (IBGE, 2021INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2021. Estudos e pesquisas. Informação demográfica e socioeconômica, n. 38. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101784 . Acesso em: 14 abr. 2021.
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).

Quadro 2.
Rendimento médio real do trabalho principal anual por distribuição de sexo, raça/etnia. Referência: mês de maio (2002-2011). Moeda: real

O Quadro 2( aponta que os homens brancos são os que receberam os maiores rendimentos médios. Entre os anos de 2002 e 2004, tiveram uma perda de R$ 427,00, experimentando um gradativo aumento nos anos posteriores referenciados. A mesma tendência foi observada para os homens pretos/pardos, cuja perda média entre 2002 e 2004 foi de R$ 160,00, com gradativo aumento nos anos compreendidos no período analisado, porém, ocuparam o terceiro lugar no quesito rendimento. As mulheres brancas ficaram em segundo lugar neste quesito. Observa-se uma perda entre os anos de 2002 e 2003 de R$ 192,00, com uma pequena variação entre 2003 e 2005 e aumento gradativo até 2011. As mulheres pretas/pardas apresentaram os menores rendimentos médios. No período de 2002 a 2005 sofreram uma perda de R$ 108,00, com posterior aumento do valor em tela. A desigualdade de gênero e étnico/racial fica evidenciada quando comparado o percentual entre o rendimento médio dos homens brancos com as mulheres brancas e com as mulheres pretas/pardas. No ano de 2002, as mulheres brancas receberam 65,2% do valor dos homens brancos; já as mulheres pretas/pardas, 33,1%. No ano de 2011, as mulheres brancas receberam 71,2% e as mulheres pretas/pardas, 37,7%.

Com sua popularidade em alta, Lula conseguiu eleger uma de suas ministras, Dilma Rousseff, cuja campanha política foi endossada pela sua “maternidade” ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)5 5 O PAC foi um amplo programa de construção e reparação de obras essenciais para o desenvolvimento do país. como sua sucessora para a presidência. Ao iniciar o seu mandato em janeiro de 2011, enfrentou o desafio do desaquecimento contínuo da economia, a perda de postos de trabalho, somados ao processo inflacionário,6 6 As projeções do governo previam uma queda de 1,2% no Produto Interno Bruto e de uma inflação de 8,2% no ano de 2015. o que culminou no agravamento do quadro de recessão econômica no país. Sua postura intervencionista passou a desagradar setores da burguesia, partícipes do capital rentista, os quais reclamaram a perda de controle sobre a condução da política econômica. Suas medidas não lograram êxito na reversão das tendências de desaceleração da economia. Na análise de Corsi (2016CORSI, F. L. A política econômica do governo Dilma: baixo crescimento e recessão. Novos Rumos, v. 53, n. 1, p. 153-165, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.36311/0102-5864.2016.v53n1.09. Acesso em: 16 abr. 2022.
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, p. 8):

A inflação permaneceu colada ao teto da meta, mas não estava fora de controle. As causas do fracasso dessa política são múltiplas e não se devem necessariamente às razões apontadas pelos neoliberais. Cabe destacar os seguintes pontos: 1 - cenário internacional adverso; 2 - efeitos defasados das medidas restritivas adotadas no primeiro semestre de 2011; 3 - deterioração das expectativas dos empresários; 4 - dificuldade de o Estado deslanchar os investimentos no setor de infraestrutura para enfrentar os pontos de estrangulamento da economia; 5 - juros altos; 6 - câmbio apreciado; 7 - crescimento lento da produtividade do trabalho; e 8 - baixo nível de investimento.

Na esteira das pressões políticas que se sucederam após a apertada vitória eleitoral de Dilma Rousseff (em 2014), o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) lançou um documento intitulado Uma ponte para o futuro (PMDB, 2015PMDB. Uma ponte para o futuro. Brasília, 29 de outubro de 2015. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3359700/mod_resource/content/0/Brasil%20-%20Uma%20ponte%20para%20o%20futuro%20Funda%C3%A7%C3%A3o%20Ulysses%20Guimar%C3%A3es.pdf . Acesso em: 5 jun. 2024.
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). Seu teor versou sobre a crise fiscal e econômica brasileira, e o quanto as divisões de opinião e disseminação do ódio na sociedade inviabilizariam os “consensos políticos”. Suas propostas fundamentaram-se na análise da recessão que colocou o país em risco, a partir da crise fiscal, com déficits nominais de 6% do PIB em 2014, “inéditos” 9% em 2015 e numa dívida pública que se aproximava de 70% do PIB.7 7 Uma Ponte para o Futuro, 2015, p.3. Disponível em: https://www.fundacaoulysses.org.br/wp-content/uploads/2016/11/UMA-PONTE-PARA-O-FUTURO.pdf

O documento citado atribuiu às opções políticas do governo, com a indexação orçamentária das despesas públicas, a geração de tais disparidades e concluiu que a dívida pública continuaria a elevar-se, a menos que reformas estruturais fossem realizadas. Para tanto, sugeriu acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas e o fim de todas as indexações, “seja para salários, benefícios previdenciários e tudo o mais”.8 8 Uma Ponte para o Futuro, 2015, p.10. Disponível em: https://www.fundacaoulysses.org.br/ wp-content/uploads/2016/11/UMA-PONTE-PARA-O-FUTURO.pdf Propôs que a decisão sobre os reajustes a serem concedidos à sociedade caberia ao Congresso em conjunto com o poder executivo, por ocasião da votação do orçamento anual. A ofensiva liberal burguesa estava lançada para decidir os rumos políticos e econômicos do país.

Pautas importantes para o governo foram travadas para a votação do Congresso Nacional e a oposição política cresceu nesta esfera do legislativo, sob a batuta do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (posteriormente deposto). Em abril de 2016, o país assistiu a um espetáculo de vulgaridades dos parlamentares na transmissão televisiva da votação do Congresso para a abertura do processo de impeachment da presidenta, sob o pretexto de irregularidades contábeis, as chamadas “pedaladas fiscais”, mecanismos amplamente utilizados nos governos anteriores para cobrir os déficits fiscais nas contas públicas.

O Senado aprovou o processo do impeachment, afastando Dilma Rousseff do cargo por 180 dias.9 9 A perda definitiva do cargo deu-se em 31 de agosto de 2016. A arbitrariedade prevaleceu na votação do Congresso a partir de arranjos argumentativos sobre ilegalidades, a fim de que a lei fosse aplicada seletivamente. Não há dúvidas de que os legados patriarcal-heteronormativo10 10 Relações assimétricas de poder entre homens e mulheres, com predomínio da classificação de atributos rígidos dos papéis de homens e mulheres na sociedade. e misógeno11 11 Ódio ou aversão às mulheres. do legislativo brasileiro contribuíram para a deposição da presidenta.

O golpe jurídico-parlamentar midiático foi consumado em maio de 2016 e o vice, Michel Temer, assumiu a presidência em caráter de interinidade por seis meses, vindo a ser efetivado posteriormente. O acirramento das medidas neoliberais adotadas a partir do golpe de 2016 promoveu as reformas de Estado, em especial, aquelas que atenderam aos interesses do mercado para destituir os direitos dos trabalhadores, como a Emenda Constitucional n. 95, de 2016 (Brasil, 2016BRASIL. Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Brasília, 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm . Acesso em: 12 abr. 2021.
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) - PEC da Morte -, que congelou os gastos públicos por 20 anos (corrigidos anualmente pelo índice do IPCA); e a reforma trabalhista que se iniciou em 2017 com a Lei n. 13.467/17 (Brasil, 2017bBRASIL. Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n. 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Brasília, 2017b. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm Acesso em: 12 abr. 2021.
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) e Lei n. 13.429 (Brasil, 2017aBRASIL. Lei n. 13.429, de 31 de março de 2017. Altera dispositivos da Lei n. 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Brasília, 2017a. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13429.htm Acesso em: 10 abr. 2021.
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) (lei das terceirizações). Essas reformas somaram-se à crise fiscal e econômica em curso no Estado brasileiro.

No campo político, o ano de 2018 foi marcado pelas eleições para o legislativo federal e estadual, e para os cargos executivos dos governos estaduais e presidência da república. Tendo a crise econômica e política como pano de fundo, fatos inéditos inauguraram o curso do pleito, tais como: o impedimento de Lula para participar das eleições devido à sua prisão em julho de 2017, a negativa do habeas corpus pelo Supremo Tribunal Federal12 12 Em 7 de novembro de 2019, foi concluída a votação no Supremo Tribunal Federal que considerou a prisão em segunda instância como inconstitucional, por entender que a execução provisória feria o princípio da presunção de inocência. Lula obteve a soltura em 8 de novembro de 2019. e a ausência do candidato Jair Bolsonaro nos debates televisivos.

O processo eleitoral foi marcado pela disseminação de fake news (notícias falsas) que povoaram as redes sociais, tensionando o debate político, tendo em vista a disseminação de imagens e informações deturpadoras da realidade que incitaram o ódio (em especial das classes médias e empresariado) e a radicalização das opiniões. A sociedade viu-se novamente polarizada no segundo turno das eleições, entre os candidatos Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (PSL). O representante dos interesses da burguesia foi o vencedor do pleito.

Bolsonaro foi empossado em 2019. Seu governo deu continuidade ao programa ultraneoliberal de austeridade na política econômica, com o desfinanciamento das políticas sociais, medidas já implementadas no governo de Temer13 13 O governo Temer aumentou o percentual da Desvinculação das Receitas da União (DRU) para 30%. para atender aos interesses do mercado. Outras características dessa gestão deram-se na propagação do ativismo ultraconservador, de viés religioso diante das pautas dos costumes sociais, negacionismo perante o conhecimento científico e disseminação de propaganda ideológica contra o chamado “marxismo cultural”. O segmento militar foi convidado a ocupar inúmeros cargos da administração civil, com o intuito de propagar uma pretensa estabilidade política.

Como diria Fernandes (2009FERNANDES, F. Nós e o marxismo. São Paulo: Expressão Popular, 2009., p. 43): “O terrorismo burguês assume, então, proporções e intensidade que culminam em combinações ‘coloniais’: o biombo do Estado democrático oculta uma democracia restrita persistente e se sustenta com base no despotismo institucionalizado”.

No mesmo ano, o governo Bolsonaro encaminhou ao legislativo a proposta de reforma da previdência social para os trabalhadores, tanto da iniciativa privada quando para os servidores públicos. A Emenda Constitucional n. 103/2019 (Brasil, 2019BRASIL. Emenda Constitucional n. 103, de 12 de novembro de 2019. Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. Brasília, 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm . Acesso em: 3 jul. 2021
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) entrou em vigor em naquele ano. A reforma alterou o tempo de contribuição, fixando-a em 15 e 20 anos, para mulheres e homens, respectivamente; novas idades mínimas para a aposentadoria: 62 para as mulheres e 65 anos para os homens. A pensão por morte sofreu o maior dano: 50% sobre o valor previdenciário antes praticado, sendo possível um acréscimo de 10% por dependente econômico submetido à comprovação desta condição. Sem dúvida, os(as) trabalhadores(as) foram duramente penalizados(as) com a redução dos direitos sociais antes convalidados.

As reformas políticas, em questão, fragilizaram ainda mais o tecido social nas relações de trabalho e emprego, tornando ainda mais vulneráveis as classes trabalhadoras a instabilidades e flutuações do mercado. Concomitantemente a isso, deve-se considerar que a sociedade é constituída por uma construção social sexuada, que intensifica as desigualdades sociais no contexto da exploração capitalista, como aponta Antunes (2001ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 5. ed. São Paulo: Boitempo, 2001., p. 109):

As relações entre gênero e classe nos permitem constatar que, no universo do mundo produtivo e reprodutivo, vivenciamos também a efetivação de uma construção social sexuada, onde os homens e as mulheres que trabalham são, desde a família e a escola, diferentemente qualificados e capacitados para o ingresso no mercado de trabalho. E o capitalismo tem sabido apropriar-se desigualmente dessa divisão sexual do trabalho.

As desigualdades entre homens e mulheres evidenciam-se quando comparados os índices estatísticos de suas inserções no mercado de trabalho, sendo as mulheres majoradas quando vistas pelo prisma da raça/etnia.

Quadro 3.
Rendimento médio do trabalho principal recebido pelas pessoas a partir de 14 anos de idade; período de 2012 a 2020 (referência 1º trimestre de cada ano) distribuído por sexo.14 14 Na base de dados Sidra do IBGE não foi localizada a distribuição do rendimento médio do trabalho principal por raça/etnia. Moeda: real

O Quadro 3 apresenta a distribuição do rendimento médio do trabalho principal por sexo, no período compreendido entre os anos de 2012 e 2020, tendo como referência o primeiro trimestre de cada ano. Observa-se a tendência dos rendimentos maiores para os homens em detrimento das mulheres. Para os homens, o período de 2012 a 2014 resultou num incremento de R$ 167,00, o que sugere pensar nos efeitos da melhora significativa da massa real de rendimentos dos ocupados ocorrida no segundo governo de Lula. O mesmo ocorre com as mulheres, houve o aumento de R$ 117,00 nesse triênio. O período de 2016 a 2020 apresenta uma oscilação nos rendimentos, ora para mais, ora para menos, afetando ambos os sexos, inclusive, é necessário considerar que em março de 2020 foi decretado o período pandêmico (covid-19), o qual agravou a crise político-econômica brasileira, sob os auspícios de um governo de orientação ultraneoliberal e conservador.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em seu estudo Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil (IBGE, 2021INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2021. Estudos e pesquisas. Informação demográfica e socioeconômica, n. 38. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101784 . Acesso em: 14 abr. 2021.
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), retratou a dimensão da desigualdade entre homens e mulheres frente às condições objetivas de vida a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD contínua de 2019):

Quadro 4.
Taxa de participação na força de trabalho (a partir dos 15 anos) por sexo

No Quadro 4, pode-se observar que a taxa de participação da força de trabalho da população em idade de trabalhar e inserida na força de trabalho ou em busca de uma colocação revela a menor inserção das mulheres no mercado de trabalho, o que demonstra a desvantagem delas para conseguir e manter os postos de emprego.

Quadro 5.
Média de horas semanais dedicadas a cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos por pessoas acima de 14 anos, distribuição por raça/etnia e sexo

O Quadro 5 revela que as mulheres consomem o dobro de horas nos cuidados de pessoas e/ou dos afazeres domésticos em relação aos homens, e para as mulheres negras e pardas o indicador atinge 22 horas semanais, o que possibilita pensar que estas se inserem mais no mercado de trabalho reprodutivo, formal ou informal, desempenhando funções ligadas às tarefas domésticas, o que lhes confere salários reduzidos.

Quadro 6.
Ocupados por tempo parcial, distribuição por raça/etnia e sexo

O Quadro 6 traz à luz a ocupação do trabalho em tempo parcial entre homens e mulheres. Percebe-se que a ocupação no mercado de trabalho em tempo parcial é superior nas mulheres em relação aos homens, e maior quando se trata das mulheres negras e pardas. A necessidade de conciliar as atividades domésticas e dos cuidados da família se impõe como condição para as mulheres inserirem-se no mercado de trabalho em tempo parcial. É necessário destacar que essas atividades não são consideradas trabalho, ainda que sejam essenciais para a reprodução social da sociedade.

A pandemia de covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março de 2020, configurou-se como uma grave crise sanitária que potencializou a já existente crise econômica, política e fiscal do país, a qual foi identificada pelos indicadores sociais e econômicos do IBGE e de outros institutos.

No que se refere ao desemprego, a PNAD contínua (IBGE, 2020INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). 2020. PNAD contínua. Rio de Janeiro: IBGE. Disponível em: Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/17270-pnad-continua.html?edicao=20636&t=series-historicas . Acesso em: 10 out. 2021.
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) mostrou que o país atingiu no primeiro trimestre daquele ano a marca de 12,9 milhões de pessoas (12,2%) sem trabalho. As desigualdades se acentuam quando analisadas as questões étnico-raciais e de gênero: os índices foram maiores para as pessoas que se declaram pretas (13,5%) e pardas (15,2%). No quesito gênero, a taxa de desocupação ficou em 10,4% para homens e 14,5% para as mulheres. As mulheres, especialmente as pretas e pardas, são as mais afetadas pela retração do mercado de trabalho na oferta de empregos formais, restando-lhes como única opção a inserção em atividades circunscritas à informalidade, a precarização e a desproteção social.

Numa análise sobre o mercado de trabalho, sob o impacto da pandemia, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2020INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Mercado de trabalho: conjuntura e análise. Edição especial covid-19. n. 69. Ano 26. Julho de 2020. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10291/1/bmt%2069.PDF Acesso em: 06 jun. 2024.
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, p. 9) registrou:

Os primeiros meses do ano de 2020 foram marcados pelo surgimento e agravamento da pandemia do novo coronavírus. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, no trimestre terminado em maio de 2020, a população ocupada (PO) no país diminui 7 milhões em comparação ao mesmo trimestre do ano anterior, e os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostram, no acumulado de 2020, um saldo negativo de mais de 1,1 milhão de empregos formais.

Em continuidade, o estudo do IPEA estimou que na segunda quinzena de março de 2020 a maioria das mulheres tenha ficado fora da força de trabalho, “sem trabalhar nem procurar trabalho, o que não ocorria há pelo menos três décadas” (IPEA, 2020INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Mercado de trabalho: conjuntura e análise. Edição especial covid-19. n. 69. Ano 26. Julho de 2020. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10291/1/bmt%2069.PDF Acesso em: 06 jun. 2024.
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, p. 17). O declínio ostensivo dos empregos formais deflagrou a perda de rendimentos das famílias e o incremento dos níveis de pobreza e, por consequência, das condições objetivas de vida da classe trabalhadora, evidenciando a tragédia social em que se encontra a sociedade brasileira.

O trabalho assalariado significa a condição de sobrevivência da classe trabalhadora, em especial, das mulheres. Estas, historicamente, foram submetidas à esfera da reprodução da vida social pelo processo de socialização da sociedade patriarcal que define o lugar da mulher reservado à casa, aos cuidados e à reprodução biológica, produto da divisão sexual do trabalho.18 18 A divisão sexual do trabalho resulta de um sistema patriarcal capitalista que, por meio da divisão sexual do trabalho, confere às mulheres um baixo prestígio social e as submete aos trabalhos mais precarizados e desvalorizados (Cisne, 2012, p. 109).

Ao analisar a condição da mulher no sistema capitalista, Saffioti (2013SAFFIOTI, H. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 3. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013.) afirma que há uma dupla desvantagem, considerando-se os planos estrutural e superestrutural, visto que é da própria natureza do capitalismo incrementar a marginalização de determinados setores da população no sistema produtivo. No primeiro plano, a ocupação se dá numa posição periférica ou marginal. No segundo, compele a uma subvaloração das capacidades femininas. O sexo atua como fundamento da inferiorização e interfere de modo eficaz para a reprodução da sociedade, pois assume uma aparência inédita e determinada para o sistema de produção social. Nessa direção, a autora considera que o sistema capitalista não é compatível com a emancipação feminina por força do ingresso da mulher no mercado de trabalho.

O modo de produção capitalista alija força de trabalho do mercado, especialmente a feminina. Os caracteres raciais e de sexo operam “como marcas sociais que permitem hierarquizar, segundo uma escala de valores, os membros de uma sociedade historicamente dada” (Saffioti, 2013SAFFIOTI, H. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 3. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013., p. 60).

Antunes (2001ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 5. ed. São Paulo: Boitempo, 2001.) entende que a inserção da mulher no mundo produtivo revela uma “emancipação parcial” que se deu na dialética contraditória entre as lutas feministas e o interesse do capital em ampliar seu escopo de exploração da classe trabalhadora, sobretudo, no trabalho de âmbito reprodutivo.

O atual contexto mundial de crise sistêmica do capital e da crise sanitária imposta pela covid-19 acirrou ainda mais a exploração e a precarização das condições da força de trabalho, haja vista o aumento da informalidade e da vulnerabilidade social, o que incide nas opressões de gênero, resultantes das relações assimétricas de poder (controle, dominação e subordinação) exercidas pelos homens sobre as mulheres e nas históricas discriminações étnico-raciais. É inconteste que as lutas feministas aglutinem os interesses da diversidade de expressões do feminino, da diversidade étnico/racial da sociedade no contexto das lutas de classe, com vista à superação da ordem burguesa e na perspectiva da emancipação humana.

Considerações finais

Após tantos percalços econômicos depois da redemocratização, o Brasil vivenciou, a partir do governo de FHC, a adoção do uso do receituário neoliberal, o que resultou na estabilização monetária, porém, com instabilidade macroeconômica permanente, desinvestimento nas políticas sociais, haja vista a Desvinculação das Receitas da União (DRU). Este cenário levou a população a escolher posteriormente Lula como presidente, que, apesar de seguir as premissas macroeconômicas do governo anterior, ampliou as políticas públicas e possibilitou a inclusão dos segmentos mais empobrecidos da população na esfera do consumo, com o aumento real do salário mínimo e uma menor taxa de desemprego. Todavia, as repercussões da crise do capital ocorrida em 2008 e deflagradas em 2015 em solo nacional reacenderam a ofensiva liberal burguesa do país, que não tardou em imputar uma resposta ultraneoliberal no campo econômico, ultraconservadora e reacionária na área dos costumes e cerceadora das liberdades de expressão.

Nesse contexto de tensionamento da luta de classes, ocorre o golpe jurídico-parlamentar midiático de 2016, em que se sucederam governos alinhados aos interesses do capital e que deflagraram a contrarreforma do Estado, com o desfinanciamento das políticas sociais, através de medidas impopulares, como congelamento dos gastos públicos por 20 anos, a reforma trabalhista e a previdenciária. O saldo dessas medidas de choque foi o aumento do desemprego, que resultou na ampliação da precarização, na desproteção da força de trabalho e no empobrecimento da população, cujo impacto é sentido com maior vigor nas mulheres, cujas histórias são marcadas pela opressão de gênero/raça/etnia.

Os dados do IBGE revelam um retrato da desigualdade de gênero e étnico-racial quando comparados os rendimentos médios dos trabalhadores, a participação na força de trabalho, a forma de ocupação, as horas dedicadas nos cuidados com pessoas, crianças e afazeres domésticos. Nestes, as mulheres e, sobretudo, as mulheres negras e pardas aparecem em desvantagem em relação aos homens, pois, historicamente, foram submetidas à esfera da reprodução da vida social pelo processo de socialização da sociedade patriarcal, heteronormativa, racista e sexista, que define o lugar subalterno da mulher como produto da divisão sexual do trabalho, na ocupação de um lugar periférico do processo produtivo e da intensificação da exploração do capital.

A pandemia de covid-19 desnudou a crise político-econômica brasileira, aprofundando-a, resultando no desemprego estrutural e, por consequência, no incremento da informalidade e da precarização do trabalho, os quais sugerem o acirramento das desigualdades de gênero, sobremaneira às desigualdades étnico-raciais.

Por isso, é crucial a ampliação das lutas feministas em sua diversidade étnico-racial no contexto da luta de classes para a real supressão da ordem do capital, que é a matriz geradora e mantenedora da atual condição de superexploração da classe trabalhadora. A emancipação humana, como ideal a ser perseguido, só se efetivará a partir do reconhecimento, enfrentamento e superação dessas desigualdades e opressões interseccionais (classe, raça/etnia, gênero, território, entre outras) que incidem eminentemente sobre as mulheres.

Referências

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  • BRASIL. Lei n. 13.429, de 31 de março de 2017 Altera dispositivos da Lei n. 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Brasília, 2017a. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13429.htm Acesso em: 10 abr. 2021.
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  • BRASIL. Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017 Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n. 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Brasília, 2017b. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm Acesso em: 12 abr. 2021.
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  • PMDB. Uma ponte para o futuro Brasília, 29 de outubro de 2015. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3359700/mod_resource/content/0/Brasil%20-%20Uma%20ponte%20para%20o%20futuro%20Funda%C3%A7%C3%A3o%20Ulysses%20Guimar%C3%A3es.pdf Acesso em: 5 jun. 2024.
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  • SAFFIOTI, H. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 3. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
  • TEIXEIRA, R. A.; PINTO, E. C. A economia política dos governos FHC, Lula e Dilma: dominância financeira, bloco no poder e desenvolvimento econômico. Revista Economia e Sociedade, v. 21, número especial, p. 909-941, dez. 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/ecos/a/WRPZxp3LrymkXcqsR6gmNXD/?lang=pt# Acesso em: 14 set. 2021.
    » https://www.scielo.br/j/ecos/a/WRPZxp3LrymkXcqsR6gmNXD/?lang=pt#
  • 1
    Encontro promovido pelo Institute for International Economics em novembro de 1989, na capital dos Estados Unidos. Participaram funcionários do governo estadunidense, dos organismos financeiros internacionais (FMI, Banco Mundial e BID) e diversos economistas latino-americanos. Objetivou proceder a uma avaliação das reformas econômicas empreendidas nos países da região. “As propostas do Consenso de Washington nas 10 áreas a que se dedicou convergem para dois objetivos básicos: por um lado, a drástica redução do Estado e a corrosão do conceito de Nação; por outro, o máximo de abertura à importação de bens e serviços e a entrada de capitais de risco” (Batista, 1999BATISTA, P. N. O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos. São Paulo: Consulta Popular, 1999. Caderno n. 7., p. 33).
  • 2
    Neste ano, FHC era ministro do planejamento do governo de Itamar Franco.
  • 3
    Os dados de rendimento médio mensal do trabalho referentes aos governos anteriores a FHC não estão disponíveis na base de séries históricas do IBGE.
  • 4
    Nas séries históricas do IBGE (referência à tabela FDT 802), não há o registro de dados do ano 2000.
  • 5
    O PAC foi um amplo programa de construção e reparação de obras essenciais para o desenvolvimento do país.
  • 6
    As projeções do governo previam uma queda de 1,2% no Produto Interno Bruto e de uma inflação de 8,2% no ano de 2015.
  • 7
  • 8
  • 9
    A perda definitiva do cargo deu-se em 31 de agosto de 2016.
  • 10
    Relações assimétricas de poder entre homens e mulheres, com predomínio da classificação de atributos rígidos dos papéis de homens e mulheres na sociedade.
  • 11
    Ódio ou aversão às mulheres.
  • 12
    Em 7 de novembro de 2019, foi concluída a votação no Supremo Tribunal Federal que considerou a prisão em segunda instância como inconstitucional, por entender que a execução provisória feria o princípio da presunção de inocência. Lula obteve a soltura em 8 de novembro de 2019.
  • 13
    O governo Temer aumentou o percentual da Desvinculação das Receitas da União (DRU) para 30%.
  • 14
    Na base de dados Sidra do IBGEINSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Sidra. Rio de Janeiro: IBGE. Disponível em: Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/5436 . Acesso em: 16 set. 2021.
    https://sidra.ibge.gov.br/tabela/5436...
    não foi localizada a distribuição do rendimento médio do trabalho principal por raça/etnia.
  • 15
    IBGE. Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil. 2ª ed. Estudos e pesquisas. Informação demográfica e socioeconômica nº 38. [acesso 2021 abril 20]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101784
  • 16
    Idem à nota 15.
  • 17
    Idem à nota 15.
  • 18
    A divisão sexual do trabalho resulta de um sistema patriarcal capitalista que, por meio da divisão sexual do trabalho, confere às mulheres um baixo prestígio social e as submete aos trabalhos mais precarizados e desvalorizados (Cisne, 2012CISNE, M. Gênero, divisão sexual do trabalho e Serviço Social. São Paulo: Outras Expressões, 2012., p. 109).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2024
  • Aceito
    03 Jun 2024
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