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Trabalho e formação profissional nos Hospitais Universitários: impactos nas Residências em Saúde

Work and professional training in University Hospitals: impacts on Health Residencies

Resumo:

Este artigo busca reunir reflexões acerca da relação entre trabalho e formação profissional nos Hospitais Universitários sob gestão da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Partindo-se da compreensão de que inúmeros desafios têm sido identificados para o cumprimento da missão formativa desses hospitais, tendo em vista a lógica gerencialista imposta pela EBSERH, constata-se que as Residências em Saúde são frontalmente impactadas por tal processo, seja através de sua expansão, seja pelas dificuldades dos trabalhadores de efetivação do eixo da formação em seu cotidiano profissional.

Palavras-chave:
Hospital Universitário; Trabalho; Formação; Residências em Saúde

Abstract:

This article seeks to bring together reflections on the relationship between work and professional training in University Hospitals under the management of EBSERH. Starting from the understanding that numerous challenges have been identified for the fulfillment of the training mission of these hospitals, in view of the managerial logic imposed by the Company, it appears that Health Residencies are directly impacted by this process, whether through their expansion or due to the difficulties faced by workers in implementing the training axis in their daily professional lives.

Keywords:
University Hospital; Work; Professional Training; Health residencies

Introdução

No ano de 2011, os Hospitais Universitários (HUs) vivenciaram um processo de alteração fundamental em seu modelo de gestão com a chegada da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Passada mais de uma década da adesão por grande parte dos Hospitais Universitários brasileiros, a Empresa tem hoje atrelada a si um quantitativo expressivo de trabalhadores, quadro que vem sendo ampliado desde a sua criação.

Segundo dados disponíveis no site da Empresa,1 1 Essas e outras informações acerca do quadro de pessoal e remuneração da EBSERH encontram-se disponíveis em: https://www.gov.br/ebserh/pt-br/acesso-a-informacao/agentes-publicos/demonstrativos-de-quadro-de-pessoal-remuneracoes-e-beneficios/cargos-carreiras-e-beneficios/quadro-de-pessoal-e-composicao-da-remuneracao. Acesso em: 27 maio 2024. em dezembro de 2023 a instituição contava com 42.069 empregados (celetistas) e 16.276 servidores (RJU - Regimes Jurídicos Únicos - ativos). A partir da incorporação da EBSERH nos HUs, progressivamente o perfil das unidades de saúde foi sendo incrementado pelo acréscimo de trabalhadores celetistas, cuja ampliação, além de contribuir para a inversão dos nexos do regime de trabalho que dá base aos Hospitais Universitários, também impõe grandes desafios à efetivação da formação profissional - missão central dessas instituições.

Diante do exposto, tem-se que a chegada da EBSERH afetou o caráter de gestão essencialmente público dos HUs, na medida em que instaurou uma lógica empresarial pautada na dinâmica de produtividade para fins de cumprimento do contrato celebrado. Por conseguinte, este processo traz prejuízos não só na qualidade dos cuidados em saúde que passam a ser pautados por número de atendimentos, mas também no processo formativo que envolve atividades de ensino, pesquisa e extensão, e que, pela ótica mercantil, geram mais custos do que os indicadores necessários ao alcance das metas.

Partindo do entendimento de que os Hospitais Universitários apresentam como principais funções prestar atendimento de qualidade para a população, disponível para o Sistema Único de Saúde (SUS), e ser um centro de formação, qualificação profissional e atualização técnica de estudantes e formados em áreas diversas da Saúde, podemos afirmar que preceptoria, tutoria e supervisão acadêmica são parte inerente ao processo de trabalho dos trabalhadores da EBSERH. Porém, apesar de a formação aparecer em diversos eixos do Plano Estratégico da EBSERH (2018-2023)EBSERH. Plano estratégico da Rede EBSERH. Brasília, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/ebserh/pt-br/governanca/gestao-estrategica/estrategia-de-longo-prazo/plano-estrategico-da-rede-ebserh-2018-2023 . Acesso em: 26 maio 2024.
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, vemos que essa intenção colide diretamente com as condições e as relações de trabalho às quais os profissionais vinculados à Empresa estão submetidos, em um cenário em que há primazia da assistência à saúde em detrimento do ensino.

A partir deste entendimento, este artigo apresenta reflexões sobre a relação entre formação e trabalho nos Hospitais Universitários, a partir da gestão EBSERH, especialmente no que tange às residências multiprofissionais, cuja síntese aqui construída é fruto da sistematização de pesquisas das autoras, acumuladas nos últimos dez anos.

1. Os Hospitais Universitários em cena: desafios ao trabalho e à formação profissional sob a gestão da EBSERH

Os Hospitais Universitários, mais que destinados a cobrir prioritariamente os níveis de média e alta complexidade, caracterizam-se pela dimensão de hospital-escola, isto é, espaço destacado na formação de trabalhadores e trabalhadoras na área da saúde, fundado na integração entre ensino, pesquisa, extensão e atendimento à população. Estes, ligados às universidades públicas federais, e reconhecidos e consagrados pela excelência acadêmica e formativa, enfrentaram, desde a sua origem e em proporções diferenciadas, a crise crônica à qual todo o Sistema Único de Saúde (SUS) foi submetido nas últimas décadas, em virtude de seu subdesfinanciamento.

Nessa perspectiva, sob o argumento de se garantir financiamento compartilhado para Hospitais Universitários federais entre as áreas da educação e da saúde, foi instituído, no governo Lula, o Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais (REHUF). Criado pelo Decreto n. 7.082, de 2010, o REHUF surgiu como uma possibilidade de: assegurar mecanismos adequados de financiamento, compartilhados entre as áreas da educação e da saúde; melhorar processos; adequar estrutura física; modernizar o parque tecnológico; reestruturar o quadro de recursos humanos; e aprimorar as atividades vinculadas a ensino, pesquisa e extensão, e à assistência à saúde, com base em avaliação permanente e incorporação de novas tecnologias em saúde (Brasil, 2010aBRASIL. Decreto n. 7.082, de 27 de janeiro de 2010. Institui o Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais - REHUF, dispõe sobre o financiamento compartilhado dos hospitais universitários federais entre as áreas da educação e da saúde e disciplina o regime da pactuação global com esses hospitais. Brasília, 2010a. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7082.htm . Acesso em: 24 maio 2024.
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).

Todavia, para tal reestruturação ocorrer, fazia-se necessário “um modelo de gestão mais ágil, eficiente e compatível com as competências executivas desses hospitais, além de oferecer solução jurídico-administrativa sustentável” (Brasil, 2010aBRASIL. Decreto n. 7.082, de 27 de janeiro de 2010. Institui o Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais - REHUF, dispõe sobre o financiamento compartilhado dos hospitais universitários federais entre as áreas da educação e da saúde e disciplina o regime da pactuação global com esses hospitais. Brasília, 2010a. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7082.htm . Acesso em: 24 maio 2024.
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). Sob visível inspiração de documentos do Banco Mundial de 2007BANCO MUNDIAL. Governança no Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil: melhorando a qualidade do gasto público e gestão de recursos. Washington, D. C., fev. 2007. Disponível em: Disponível em: https://documents.worldbank.org/en/publication/documents-reports/documentdetail/616691468226447118/brasil-governanca-no-sistema-unico-de-saude-sus-do-brasil-melhorando-a-qualidade-do-gasto-publico-e-gestao-de-recursos . Acesso em: 29 maio 2024.
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, a então “receita do sucesso” teve como cerne a gestão e como decisivo financiador o próprio Banco Mundial.

Uma das principais questões apresentadas referia-se à necessidade de composição de recursos humanos dos HUs, uma vez que o déficit de profissionais cumulativo ao longo dos anos foi tendo como resposta paliativa a contratação de trabalhadores, pelos hospitais, de forma essencialmente precarizada. A partir da proposta de fomentar a reestruturação dos Hospitais Universitários, o então governo Lula indicou, como saída única para as vicissitudes em voga, a criação de uma empresa pública de direito privado para conter a “crise” do maior complexo hospitalar público do país, proposta essa materializada através da Medida Provisória n. 520, de 31 de dezembro de 2010BRASIL. Medida Provisória n. 520, de 31 de dezembro de 2010. Autoriza o poder executivo a criar a empresa denominada Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares S.A. - EBSERH e dá outras providências. Brasília, 2010b. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/mpv/520.htm#:~:text=MEDIDA%20PROVIS%C3%93RIA%20N%C2%BA%20520%2C%20DE%2031%20DE%20DEZEMBRO%20DE%202010.&text=Autoriza%20o%20Poder%20Executivo%20a,que%20lhe%20confere%20o%20art . Acesso em: 26 maio 2024.
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.

Este processo, de abrangência nacional, foi analisado, contestado e considerado ilegal pelo Tribunal de Contas da União, destacado no Acórdão de n. 1.520/2006BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1520/2006. Relator: Paulo Bernardo da Silva. Representação. TC-020.784/2005-7. Plenário do Tribunal de Contas da União. Brasília, 23 ago. 2006. Disponível em: Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao-completo/*/KEY%253AACORDAO-COMPLETO-34251/DTRELEVANCIA%2520desc/0/sinonimos%253Dfalse . Acesso em: 28 maio 2024.
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. Também foram visíveis as notas e as manifestações de rejeição à empresa, especialmente pela Frente Nacional contra a Privatização da Saúde (FNCPS) que, desde 2010, não se furtou em se posicionar perante a conjuntura, e tem exercido protagonismo na resistência contra os retrocessos em curso e nas lutas em defesa dos princípios da reforma sanitária.

À época, o Conselho Nacional de SaúdeCONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Moção de Repúdio n. 001, de 27 de janeiro de 2011. Brasília, 2011. Disponível em: Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/mocao/mocoes_11.htm . Acesso em: 28 maio 2024.
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, maior instância deliberativa do SUS, também se mostrou contrário à aprovação da referida Medida Provisória por meio de moção de repúdio n. 001, de 27 de janeiro de 2011, salientando os prejuízos e os riscos advindos com a proposta.

Assim, a EBSERH voltou aos holofotes sob o formato de Projeto de Lei n. 1.749/2011 durante o governo Dilma, e rapidamente aprovado nos termos da Lei n. 12.550, de 15 de dezembro de 2011BRASIL. Lei n. 12.550, de 15 de dezembro de 2011. Autoriza o Poder Executivo a criar a empresa pública denominada Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares - EBSERH; acrescenta dispositivos ao Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; e dá outras providências. Brasília, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12550.htm . Acesso em: 24 maio 2024.
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, sob o pretexto de regularizar o vínculo dos trabalhadores, realidade que serviu de ensejo para a criação da empresa. Diante disso, ao ser criada, a EBSERH, vinculada ao Ministério da Educação, passa a não só a se apresentar como alternativa aos Hospitais Universitários, como também se torna, a partir da Portaria do MEC n. 442, de 25 de abril de 2012BRASIL. Ministério da Educação. Portaria n. 442, de 25 de abril de 2012. Delega à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares - EBSERH o exercício de algumas competências descritas no Decreto n. 7.690, de 2 de março de 2012, bem como no Decreto n. 7.082, de 27 de janeiro de 2010. Brasília, 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.andifes.org.br/wp-content/files_flutter/MEC_Portaria_442,_de%2025-4-12 . Acesso em: 26 maio 2024.
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, nomeadamente a gestora do REHUF, o que serviu como instrumento de pressão para a sua ligeira aprovação nas universidades.

Sobre os chamados “novos modelos de gestão” na saúde, nos quais se inclui a EBSERH, Correia (2011CORREIA, M. V. C. Por que ser contra aos novos modelos de gestão do SUS? In: BRAVO, M. I. S.; MENEZES, J. S. B. (org.). Saúde na atualidade: por um sistema único de saúde estatal, universal, gratuito e de qualidade. Rio de Janeiro: EdUERJ; Rede Sirius, 2011., p. 43) expõe sete argumentos contrários à sua entrada no SUS: “integra o processo de contrarreforma do Estado brasileiro; privatiza os serviços públicos; ameaça os direitos sociais; contraria a legislação do Sistema Único de Saúde; prejudica os trabalhadores; limita o controle social; e propicia o desvio de recursos públicos”.

A fragilidade do modelo de gestão foi notória nos governos Temer e Bolsonaro através do aparelhamento da EBSERH e sua utilização como recurso de jogo político a serviço do governo, o que se estampa com as prioridades e com as nomeações, como a feita pelo presidente interino Michel Temer ao final de 2016, indicando ao cargo de diretor da referida empresa um representante da Odebrecht; e com a sua militarização no governo Bolsonaro (Gonçalves, 2020GONÇALVES, L. A. P. Mais um ministério de farda: coronavírus e militarismo, a dupla carga epidêmica sobre a saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 30, n. 4, p. 1-10, 2020.).

Atualmente, a rede de Hospitais Universitários federais é formada por 51 hospitais vinculados a 36 universidades federais. Desses, 41 hospitais estão associados à EBSERH (EBSERH, 2024bEBSERH. Sobre os hospitais universitários federais. Brasília, 2024b. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/ebserh/pt-br/hospitais-universitarios/sobre-os-hospitais-universitarios-federais . Acesso em: 26 maio 2024.
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).

No âmbito da organização do trabalho nos HUs, a introdução de um novo vínculo de trabalho em conjunto com o Regime Jurídico Único não se constituiu novidade, já que a justificativa da criação da EBSERH deu-se justamente ancorada no intuito de regularizar a situação dos terceirizados que perdurava há décadas. Entretanto, mostrou-se, nos moldes da Empresa, uma verdadeira avalanche - que incidiu em uma profunda e perversa cisão entre estatuários e celetistas. A manutenção de dois vínculos empregatícios, corroborando Goes (2020GOES, K. R. Estado brasileiro e as metamorfoses do mundo do trabalho no serviço público federal: a terceirização do Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL). 2020. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.), criou um ambiente de tensão, competitividade e de assédio moral entre os(as) próprios(as) trabalhadores(as).

Aqui, destacamos como parte desse processo o modelo de desempenho por competência. De acordo com a cláusula I, do artigo 2º da Norma Operacional n. 1 de 2015, a gestão do desempenho por competência é um processo que envolve o(a) colaborador(a) e sua chefia imediata, voltado para o acompanhamento do desenvolvimento de suas competências individuais e de suas entregas, visando, assim, alcançar os resultados organizacionais e atender às necessidades dos(as) usuários(as) dos serviços de saúde (EBSERH, 2015EBSERH. Norma Operacional DGP/Sede n. 1, de 7 de abril de 2015. Estabelece os princípios norteadores e regulamenta o processo de gestão de desempenho por competências dos colaboradores da EBSERH. Brasília, 2015. Disponível em: Disponível em: https://chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.gov.br/ebserh/pt-br/hospitais-universitarios/regiao-sudeste/hu-ufjf/governanca/gerencia-administrativa/divisao-de-gestao-de-pessoas/capacitacao-e-desenvolvimento-de-pessoas1/NormaOperacionaln01_2015GestodoDesempenho.pdf . Acesso em: 26 maio 2024.
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).

Por sua vez, a progressão funcional depende dos méritos apresentados no Banco de Talentos por meio de formulário de qualificação profissional. Esse Banco pontua atividades de docência, instrutoria, publicações, coordenação e participação em eventos, bancas, dentre outros. Assim, a instituição requisita um profissional polivalente, que assume multiatividades (comissões, comitês, grupos de trabalho), presta assistência aos(às) usuários(as) e desempenha atividades de ensino. Acerca disso, vale destacar o Plano de Cargos, Carreiras e Salários da EBSERH que não contempla nenhum incentivo financeiro por titulação, não estimulando a qualificação profissional, quesito fundamental para a qualidade da formação no âmbito dos HUs.

As disparidades podem ser verificadas igualmente entre profissões dentro da própria estrutura da EBSERH. O Plano de cargos, carreiras e salários (EBSERH, 2023aEBSERH. Plano de cargos, carreiras e salários. Brasília, jun. 2023a. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/ebserh/pt-br/acesso-a-informacao/agentes-publicos/demonstrativos-de-quadro-de-pessoal-remuneracoes-e-beneficios/cargos-carreiras-e-beneficios/plano-de-cargos-e-beneficios/plano-de-cargos-carreiras-e-salarios . Acesso em: 26 maio de 2024.
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) privilegia, em seus escritos, áreas de formação, expressas na organização geral das carreiras (repartidas entre carreira médico e enfermeiro - CME - e carreira nível superior - S) e no desequilíbrio remuneratório percebido a áreas que requisitam o mesmo grau de escolaridade.

É o caso do(a) educador(a) físico(a), do(a) pedagogo(a) e do(a) psicólogo(a) que têm como salário-base o valor de R$ 6.460,34; o(a) biólogo(a), farmacêutico(a) e o(a) nutricionista, percebendo a quantia de R$ 7.623,52; e o(a) advogado(a), R$ 10.613,64, todos(as) cumprindo a mesma jornada de trabalho de 40 horas semanais, ou seja, não havendo isonomia. Assistentes sociais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos(as) e terapeutas ocupacionais, com jornada de 30 horas, têm salário-base de R$ 5.717,63, enquanto cirurgiões(ãs) dentistas, com a mesma jornada, fazem jus ao salário-base de R$ 6.747,09. Esse cisma é ainda mais discrepante quando se compara o nível salarial desses(as) trabalhadores(as) com os altos cargos mantidos por comissão da EBSERH sede, como coordenador(a) e chefe de gabinete (R$ 27.218,87), sem falar em superintendente de hospital de grande, médio e pequeno porte (R$ 27.984,32) (EBSERH, 2023bEBSERH. Plano de cargos em comissão e funções gratificadas: remuneração de presidente e diretores honorários conselheiros. Brasília, jun. 2023b. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/ebserh/pt-br/acesso-a-informacao/agentes-publicos/demonstrativos-de-quadro-de-pessoal-remuneracoes-e-beneficios/cargos-carreiras-e-beneficios/plano-de-cargos-e-beneficios/plano-de-cargos-em-comissao-e-funcoes-gratificadas/ . Acesso em: 26 maio 2024.
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).

Conforme demonstrado na pesquisa de Fernandes (2017FERNANDES, R. B. Da conquista ao desmonte: um estudo sobre os (des)caminhos da política de saúde em tempos de EBSERH. 2017. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Universidade de Brasília, Brasília, 2017.), a própria reestruturação do organograma e a divisão das carreiras nos termos sinalizados instituem assimetrias. Isso é sinal do reforço ao modelo de atenção à saúde médico-centrado, que exacerba a hierarquização entre profissões e áreas nos moldes mais anacrônicos, prática que se confronta profundamente com a concepção de saúde da reforma sanitária em seu sentido integral. Ademais, a imposição do regime celetista contribuiu para a fragilização de identidade una dos(as) trabalhadores(as), na medida em que os HUs passam a ter uma hibridização de vínculos trabalhistas.

Acrescenta-se a esta análise as falhas referentes aos direitos trabalhistas. Conforme Relatório de avaliação da EBSERH, realizado pela Controladoria-Geral da União (CGU), divulgado em maio de 2023, foram constatadas falhas relacionadas aos direitos dos trabalhadores, o que tem contribuído com o aumento das despesas para atender ao insucesso em ações judiciais trabalhistas, chegando ao montante de quase R$ 100 milhões. Foram encontradas, ainda, falhas nos controles internos da Empresa, ocasionando uma superestimação da despesa com benefícios a empregados (CGU, 2023CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO (CGU). Relatório de avaliação: Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares. Exercício 2022, Brasília, 2023. Disponível em: Disponível em: https://eaud.cgu.gov.br/relatorios/download/1274243 . Acesso em: 26 maio 2024.
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, p. 25).

Nessa esteira, a EBSERH efetuou, também, o pagamento indevido de remuneração a colaboradores em situação de acumulação de cargos, uma vez que não houve efetiva prestação de serviço em casos de incompatibilidade de horários entre as jornadas dos dois vínculos de trabalho. Conforme a CGU (2023CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO (CGU). Relatório de avaliação: Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares. Exercício 2022, Brasília, 2023. Disponível em: Disponível em: https://eaud.cgu.gov.br/relatorios/download/1274243 . Acesso em: 26 maio 2024.
https://eaud.cgu.gov.br/relatorios/downl...
, p. 29), estima-se o valor de 110.212,6 horas incompatíveis em um ano, ocasionando uma distorção no montante estimado de R$ 4.538.003,74 no exercício de 2022. Tais falhas permitiram a ocorrência de possíveis fraudes que implicaram prejuízos ao erário no montante de R$ 5,62 milhões no exercício de 2022 (CGU, 2023CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO (CGU). Relatório de avaliação: Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares. Exercício 2022, Brasília, 2023. Disponível em: Disponível em: https://eaud.cgu.gov.br/relatorios/download/1274243 . Acesso em: 26 maio 2024.
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).

Após 13 anos da incorporação desse modelo de gestão, reafirma-se que a entrega dos HUs para uma empresa com personalidade jurídica de direito privado rompe com o caráter eminentemente público da Universidade, e permite que a lógica do setor privado seja predominante nesse espaço de interface singular com a saúde pública.

No que concerne às relações de trabalho, entre tantas problemáticas, destacamos este tema como o grande nó da realidade dos HUs na contemporaneidade. As mudanças, sensíveis aos(às) trabalhadores(as) e aos(às) usuários(as) do sistema, se fizeram sentir, especialmente, no trato interpessoal entre os sujeitos.

A lógica privatista trazida pela Empresa contribuiu para a instauração da competitividade e do acirramento de conflitos, os quais têm como efeito a deterioração das relações de trabalho, que, mesmo afetando, em proporções distintas, os(as) trabalhadores(as) estatutários(as) e celetistas, cria uma complexa teia, a qual favorece sobremaneira a manutenção da Empresa em seus moldes atuais. Isso porque estabelecer abismos entre os indivíduos destrói as possibilidades de organização coletiva, de percepção de identidades e, assim, da construção de resistências incisivas por dentro.

Se essencialmente a EBSERH é erguida sobre a lógica mercadológica, da produtividade, vemos que os(as) trabalhadores(as), hoje cobrados(as) por números, têm expandida a intensificação do processo e do ritmo de trabalho, aos quais se encontram submetidos(as), prejudicando diretamente a formação.

Abbade (2022ABBADE, E. B. O impacto da gestão EBSERH na produção dos hospitais universitários do Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, v. 27, n. 3, p. 999-1013, 2022., p. 1009), analisando a produção dos HUs pertencentes à EBSERH, destaca que “a proposta de gestão apresentada pela EBSERH para os HUs é encarada como um novo modelo de gestão, centrado fortemente em uma postura gerencial”, o que tem impactado em melhorias em termos de performance e eficiência. Como exemplo, destacamos a adoção do Kanban2 2 Como é sabido, o Kanban foi incorporado pelas empresas no processo de reestruturação produtiva como forma de controle de trabalho e aproveitamento máximo do tempo de produção, especialmente a partir do toyotismo (Antunes, 2002). como método de gerenciamento de leitos e avaliação de tempo de internação.

As mudanças desde a criação da Empresa, como encerramento e alteração de atividades e setores já consolidados nos Hospitais Universitários, repercutiram não só na oferta de serviços, mas igualmente no prejuízo à continuidade de estágios curriculares e na extinção de projetos - não pelo seu término decretado, mas pela inviabilidade de manutenção decorrente da ausência de suporte como reflexo da centralidade dada à assistência em saúde, o que se desdobra em desvantagem para outras dimensões, como o ensino, a pesquisa e a extensão.

No caso das Residências, é interessante observar que estas são expandidas, o que contribui, sobremaneira, para a não recomposição da força de trabalho do SUS. Vemos, assim, uma inversão na missão dos HUs de atendimento qualificado e dimensão de hospital-escola, confrontada por uma dinâmica de perdas para a comunidade e para o processo formativo de graduandos, estagiários e residentes.

2. Residências em Saúde sob gestão da EBSERH: a serviço de quem?

O escrutínio do panorama atual da EBSERH ratifica que é neste cenário de contradições que ocorre o processo de formação para o SUS nos HUs. Desde a implementação da gestão da EBSERH, identifica-se um aumento exponencial na criação de programas e vagas de Residências para os Hospitais das Universidades Federais. Diante disso, consideramos que, com base nos elementos apresentados, a efetivação de um projeto formativo e de trabalho em saúde, ancorado no projeto da Reforma Sanitária, torna-se ainda mais desafiador àqueles(as) que defendem o caráter público e integral da saúde em sua atuação na gestão e/ou na assistência.

Castro et al. (2020CASTRO, M. M. C et al. Serviço Social e residências em saúde no Brasil: panorama nacional. Serviço Social em Perspectiva, v. 4, n. 2, p. 216-235, 2020., p. 224), analisando a área de Serviço Social, indicam que os HUs constituem parte significativa das ofertas dos cursos de Residência da área, sendo um dos principais impactos “a transição dos ‘recursos humanos’, que gerou aposentadorias e remoções de profissionais para outros setores das Universidades”. Nesse sentido, as autoras alertam ainda que a expansão massiva das Residências pode se tornar estratégia de alcance de metas e de substituição precarizada de profissionais.

Vale salientar a evolução avassaladora do financiamento das bolsas de Residência que indica, indubitavelmente, o papel estratégico que essa modalidade de formação em saúde vem adquirindo ao longo do tempo, principalmente a partir de 2010, quando se inicia o REHUF.

Essa expansão pode ser visualizada na Tabela 1, a seguir.

Tabela 1.
Vagas disponíveis para os Programas de Residência Multiprofissional no Brasil, em 2006 e 2018/2020

Na ocasião do Seminário Nacional de Residência em Área Profissional, realizado em Brasília (2023), a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) compartilhou o quantitativo de vagas ofertadas pelo Ministério da Saúde no ano de 2023 para Residências em Área Profissional. Totalizavam, no 1° semestre de 2023, 8.995 vagas/bolsas registradas no Sistema de Informações Gerenciais (SIG) Residências. Subscreve-se um aumento de 390 bolsas de Residência em área profissional custeadas pelo Ministério da Saúde, comparando os dados SIG Residências em 2020 (8.605 vagas).

Reconhecemos que os Programas de Residência têm o potencial de fomentar, em seus processos de trabalho, ações que possibilitam a integralidade da atenção por meio do trabalho interprofissional baseado nas práticas colaborativas de equipes multiprofissionais nos serviços de saúde. Em 2024, o Exame Nacional de Residência (Enare) da EBSERH disponibilizou 5.096 vagas, sendo 3.151 para a área médica e 1.945 para a área multi e uniprofissional, demonstrando a relevância da Residência para a empresa (EBSERH, 2024aEBSERH. Exame Nacional de Residência. Brasília, 2024a. Disponível em: Disponível em: https://enare.ebserh.gov.br . Acesso em: 26 maio 2024.
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).

Contudo, ao olharmos para essa expansão, não podemos desconsiderar as análises de Silva (2018SILVA, L. B. Residência multiprofissional em saúde no Brasil: alguns aspectos da trajetória histórica. Katálysis, Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 200-209, jan./abr. 2018.), que indica que os Programas de Residência podem ser utilizados como estratégia de trabalho precário. A autora afere que há uma contradição explícita nas legislações da Residência que, “de um lado, afirmam uma formação com foco na integralidade e interdisciplinaridade e, de outro, criam as condições práticas para a precarização e exploração intensa da força de trabalho do residente” (Silva, 2018SILVA, L. B. Residência multiprofissional em saúde no Brasil: alguns aspectos da trajetória histórica. Katálysis, Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 200-209, jan./abr. 2018., p. 207).

A pesquisa realizada por Zacaron (2023ZACARON, S. S. Preceptoria em Serviço Social: um estudo nos hospitais universitários da região nordeste geridos pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares/EBSERH. 2023. Tese (Doutorado) - Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2023.) sobre preceptoria nos HUs vinculados à EBSERH do Nordeste aponta que, para os trabalhadores, nem sempre é possível planejar as atividades de supervisão dos(as) residentes, uma vez que as demandas assistenciais absorvem expressivamente a carga horária dos(as) preceptores(as). Ademais, a pesquisa confirmou que a instituição, de modo geral, não garante carga horária para as atividades voltadas para a supervisão. Decerto, o ensino é em serviço, o que pressupõe sua realização concomitante à dinâmica do trabalho. No entanto, a inexistência de tempo para reflexão, para avaliação, para discussão e para planejamento das atividades contribui para uma formação alienada, incorrendo em “práticas de ensino voltadas para o espontaneísmo através da demonstração e repetição de suas atividades” (Silva, 2016SILVA, L. B. Trabalho em saúde e residência multiprofissional: problematizações marxistas. 2016. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016., p. 5), que são regidas pela lógica da clínica médica e parcialização do trabalho.

Concomitantemente, a pesquisa supracitada reafirmou que a prioridade da EBSERH se centra na assistência à saúde em vez do ensino. Ou seja, confirma que a cessão dos HUs para uma empresa pública de direito privado fere a autonomia universitária nos assuntos que se referem ao ensino, reforça o modelo privatista de gestão hospitalar e descaracteriza a parte “universitária” dos Hospitais, uma vez que o foco se centra na prestação de serviços. Inclusive, as atividades de ensino predominantemente não são consideradas no momento de dimensionamento do contingente profissional.

Ou seja, a EBSERH, ao prever o seu quadro de vagas, desconsidera a Preceptoria dentre as atividades assistenciais, o que endossa a tendência dos espaços de Residência como trabalho precarizado em detrimento da formação em serviço. Nessa monta, como garantir supervisão profissional continuada se não houver preceptores disponíveis e com condições de trabalho favoráveis para desenvolver tal função? Afinal,

[...] a falta de remuneração, de disponibilização de carga horária para planejamento e realização de atividades extra-assistenciais, dificultam a vontade do preceptor em colaborar com a Residência. Os residentes também ficam desestimulados. A EBSERH deveria pensar no dimensionamento profissional que contemple a missão dos HUs em formar profissionais, e não apenas pensando na assistência (que já é um número reduzido). Com carga horária extra, poderia realizar planejamento das atividades junto aos residentes e qualificar a formação (Zacaron, 2023ZACARON, S. S. Preceptoria em Serviço Social: um estudo nos hospitais universitários da região nordeste geridos pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares/EBSERH. 2023. Tese (Doutorado) - Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2023., p. 163).

A pesquisa demonstrou ainda a insatisfação das preceptoras no quesito valorização profissional, perpassando três questões principais, a saber: ausência de pontuação da Preceptoria para progressão funcional na Empresa; ausência de remuneração adicional para a Preceptoria; e ausência de carga horária protegida para realização da supervisão (Zacaron, 2023ZACARON, S. S. Preceptoria em Serviço Social: um estudo nos hospitais universitários da região nordeste geridos pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares/EBSERH. 2023. Tese (Doutorado) - Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2023.).

Tal achado coaduna com as pesquisas realizadas pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS, 2018ABEPSS. Relatório da pesquisa: mapeamento das residências em área profissional e Serviço Social. Brasília: ABEPSS, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.abepss.org.br/arquivos/anexos/relatorio-abepss-residencia-201812031150396627330.pdf . Acesso em: 26 maio 2024.
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; 2022ABEPSS. Formação e residências em saúde: contribuições da ABEPSS. Brasília, 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.abepss.org.br/arquivos/anexos/formac%CC%A7a%CC%83o-e-reside%CC%82ncias-em-sau%CC%81de-220601-202206012224227011490.pdf . Acesso em: 24 maio 2024.
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), que apontam que um dos principais desafios das Residências diz respeito à valorização e ao reconhecimento da preceptoria, da tutoria e dos planejamentos compartilhados entre os sujeitos que compõem as Residências.

Posto isso, afere-se que na EBSERH o que se vê é a intensificação da velocidade e do ritmo do trabalho, além de relações hierarquizadas e verticais entre gestores e funcionários, o que desencadeia sofrimento para os(as) trabalhadores(as), assédio moral, descontentamento com o trabalho realizado e adoecimentos decorrentes desse contexto (Zacaron, 2023ZACARON, S. S. Preceptoria em Serviço Social: um estudo nos hospitais universitários da região nordeste geridos pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares/EBSERH. 2023. Tese (Doutorado) - Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2023.).

Corroborando Bolzan e Isaia (2010BOLZAN, D. P. V; ISAIA, S. M. A. Pedagogia universitária e aprendizagem docente: relações e novos sentidos da professoralidade. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 10, n. 29, p. 13-26, jan./abr. 2010., p. 22), entendemos que os processos formativos se constituem em atividades coletivas e devem ocorrer de forma compartilhada. A proposição de um trabalho conjunto implica que o “trabalho pedagógico seja organizado considerando os tempos e os espaços pedagógicos a serem vivenciados pelos sujeitos envolvidos no processo formativo em andamento”.

Portanto, espaços de estudo e discussão de caso colaboram para a implementação de trabalho em equipes, fortalecendo os laços de confiança e cooperação, proporcionando, desse modo, um aporte importante para a construção de conhecimento pedagógico partilhado.

Pode-se afirmar que a formação em serviço tem potencialidade para a construção de um trabalho em saúde, voltado para as necessidades de saúde se construído a partir de realidades sociais, ou seja, como uma ação estratégica voltada para a formação e nos moldes dos princípios basilares do SUS. Nesse campo, os Hospitais Universitários, pela sua missão histórica, tornam-se estratégicos. Assim, construir análises continuadas e posicionadas em torno do modelo de gestão da EBSERH se torna fundamental para avançarmos na crítica permanente em torno das fissuras deixadas pela adesão a esse modelo de gestão no âmbito do Sistema Único de Saúde.

Considerações finais

Fundada com a atribuição de firmar respostas à situação dos mais de 26 mil trabalhadores terceirizados, a EBSERH colocou-se em cena pelo governo federal como a saída para o contexto de crise dos Hospitais Universitários, possível pelos contratos que conferem nova gestão aos HUs. Entretanto, convém sublinhar que se trata, em suma, do repasse de responsabilidade de importante espaço de formação profissional e de atendimento qualificado em saúde para uma entidade alheia à universidade, com finalidades distintas do preconizado ao SUS. Dados os níveis de complexidade que os HUs cobrem que implicam procedimentos mais caros e requisitam corpo profissional mais qualificado, o que se tem de inegável e consistentemente é a alta concentração de recursos materiais, financeiros e humanos dos Hospitais Universitários federais como alvo das investidas do capital (Fernandes, 2017FERNANDES, R. B. Da conquista ao desmonte: um estudo sobre os (des)caminhos da política de saúde em tempos de EBSERH. 2017. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Universidade de Brasília, Brasília, 2017.).

De posse deste traçado histórico e dos efeitos perversos que a dinâmica de funcionamento da EBSERH tem produzido sobre a formação profissional e as condições e as relações de trabalho, entendemos que a formação deve ser pauta central e prioritária nos HUs. No entanto, o gerencialismo, como ideologia de gestão capitalista, esvazia conteúdos criativos e reflexivos de trabalho, o que impacta diretamente na qualidade da formação, enquadrando processos e dinâmicas a metas e indicadores de eficiência, eficácia, produtividade e desempenho muito aquém da perspectiva de compromisso e de princípios que fundam e orientam o funcionamento do Sistema Único de Saúde brasileiro.

Posto isso, a formação é colocada em posição coadjuvante, ainda que a Empresa tenha em seus termos contratuais que os seus trabalhadores devem desempenhar as atividades de formação. Trata-se, portanto, de uma gestão “frágil”, porosa, que contradiz, em si mesma, a missão precípua dos Hospitais Universitários. Assim, as Residências em Saúde, como um processo fundamental para a formação de trabalhadores no SUS e para o SUS, é impactada diretamente por esta lógica gerencial que se contrapõe às bases formativas construídas pelo projeto de reforma sanitária.

Problematizando sobre as metamorfoses advindas com a EBSERH, especialmente no que se refere ao compromisso dos HUs com o ensino, Sodré et al. (2013SODRÉ, F. et al. Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares: um novo modelo de gestão? Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 114, p. 365-380, 2013. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/m9mFrqzgRhYCmgDkmyNhttd/ Acesso em: 29 maio 2024.
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, p. 377) sugeriam a seguinte reflexão: “qual a garantia que temos de não sermos surpreendidos em um futuro próximo se um aluno em fase de aprendizado técnico ser mais cobrado por economizar materiais durante o seu aprendizado do que a preocupação com o usuário que está sendo atendido?”. A resposta é que não há garantia dentro de uma estrutura que preza e se pauta pelo lucro. Ao contrário, vemos que a tendência é de que os rendimentos econômicos se sobreponham à prerrogativa da formação acadêmica - que é pilar e pressuposto da existência dos Hospitais Universitários. Em suma, o que temos, conforme as lúcidas palavras de Marx (2008MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 80), é que “com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens”.

O retrato da realidade assevera que as grandes questões que constituem entraves à exequibilidade do SUS nos Hospitais Universitários foram sistematicamente reduzidas à gestão, quando, na verdade, perpassam centralmente questões ainda maiores e perenes, como o subfinanciamento crônico da política de saúde brasileira.

Assim, frisamos que o novo modelo de gestão adotado pela EBSERH gera impactos evidentes e dramáticos à formação para o Sistema Único de Saúde, comprometendo a tríade ensino, pesquisa e extensão. Conforme destaca Granemann (2012GRANEMANN, S. Sara Granemann analisa e denuncia a privatização dos hospitais universitários. Esquerda On-line. 15 nov. 2012. Disponível em: Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2012/11/15/sara-granemann-analisa-e-denuncia-a-privatizacao-dos-hospitais-universitarios/ . Acesso em: 30 maio 2024.
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, n. p.), “para os trabalhadores que ajudaram a construir este excepcional complexo hospitalar […] significa uma profunda alteração na vocação medular dos hospitais”.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2024
  • Aceito
    15 Ago 2024
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