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Avaliação do programa Consultório na Rua no Sul do país: fatores que interferem na implementação

Evaluation of Consultório na Rua program in the South of the country: factors that interfere with implementation

Resumo:

O objetivo deste artigo é apresentar os resultados da pesquisa de avaliação realizada com 18 Consultórios na Rua implementados na região Sul do país. Para coleta de dados, utilizamos a pesquisa documental e a de campo. Os resultados demonstram que o programa foi bem avaliado. Porém, foi possível identificar fatores que têm distanciado o principal objetivo de sua implementação propriamente dita, o que demanda processos de avaliação permanentes para aperfeiçoar o desenvolvimento do programa.

Palavras-chave:
Avaliação de políticas; Implementação; Consultório na Rua; Indicadores e eficácia

Abstract:

The objective of this article is to present the results of the evaluation research carried out with 18 Street Clinics implemented in the southern region of the country. To collect data, we used documentary and field research. The results demonstrate that the program was well evaluated. However, it was possible to identify factors that have distanced the main objective from its implementation itself, which requires permanent evaluation processes to improve the development of the program.

Keywords:
Policy evaluation; Implementation; Consultório na Rua; Indicators and effectiveness

Introdução

O aumento da população em situação de rua (PSR) na atualidade, advindo do processo de agudização das expressões da questão social, tem demandado diversos desafios para a constituição das políticas sociais. O processo de rualização (Prates; Prates; Machado, 2011PRATES, F. C.; PRATES, J. C.; MACHADO, S. A. Populações em situação de rua: os processos de exclusão e inclusão precária vivenciados por esse segmento. Temporalis, Brasília, ano 11, n. 22, p. 191-215, jul./dez. 2011.) e a condição liminar (Varanda, 2009VARANDA, W. Liminaridade, bebidas alcoólicas e outras drogas: funções e significados entre moradores de rua. 2009. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.) relativa a uma situação social marginal e insalubre reiteram a deslegitimação dos direitos humanos sofrida diariamente pela PSR, por meio da violência (institucional, racial e de gênero), da discriminação, do estigma, da falta de serviços básicos e acessíveis, que ofereçam banho, alimentação, pernoite, dentre outras necessidades básicas. A PSR historicamente encontra muitas barreiras que limitam o acesso de forma integral ao direito às necessidades humanas básicas. A vida na rua expõe ao risco às diversas violências, a riscos de doenças, seja pela ingestão de alimentos degradados e água contaminada, seja por exposição às variações climáticas extremas, entre outros condicionamentos (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual de cuidado à saúde junto à população em situação de rua. Brasília: Ministério da Saúde, 2012.) que prejudicam consubstancialmente as condições de saúde.

O surgimento e a constituição do Consultório na Rua (CnaR) são atravessados pela necessidade de o Estado buscar alternativas em resposta ao problema do consumo de crack nos espaços públicos, publicizado a partir da década de 2000, principalmente da denominada cracolândia. Somado ao contexto político favorável à ampliação dos direitos da PSR e de fortalecimento do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) na arena de disputa política, o Ministério da Saúde apostou na reconfiguração de um projeto já existente no campo da saúde mental, o Consultório de Rua. Assim, o CnaR passa a ser gestado pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) como principal programa de atendimento à saúde da população em situação de rua.

As justificativas de reconfiguração do Projeto de Consultório de Rua (CdeR) e a criação do CnaR se apresentam pela vulnerabilidade e pelas necessidades de saúde das PSR, que encontram serviços de saúde constituídos de práticas mais tradicionais (Borisow, 2018BORISOW, I. da C. O Consultório na Rua e a atenção básica à população em situação de rua. 2018. Tese (Doutorado em Ciências) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.) e restritas, com base no modelo assistencial médico hegemônico e com baixa capacidade da rede de atenção básica em acolhê-las (Vargas; Macerata, 2018VARGAS, E. R.; MACERATA, I. Contribuições das equipes de Consultório na Rua para o cuidado e a gestão da atenção básica. Revista Panamericana de Salud Pública, v. 42, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.170. Acesso em: 25 jan. 2022.
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). Por outro lado, buscou-se também envolver as equipes da Estratégia Saúde da Família para uma abordagem intersetorial (Martinez, 2016MARTINEZ, M. O Consultório na Rua e as novas formas de intervenção em cenários de uso de crack: o caso de São Bernardo do Campo. In: RUI, T.; MARTINEZ, M.; FELTRAN, G. de S. (org.). Novas faces da vida nas ruas. São Carlos: Edufscar, 2016. p. 281-301.). Para Machado (2021MACHADO, M. P. M. As práticas dos consultórios na rua: perspectivas para o monitoramento e avaliação do campo. 2021. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.), outro ponto elementar no processo de reconfiguração entre CdeR e CnaR se refere à demanda da PSR para que o cuidado em saúde ofertado não se concentre apenas nas questões provenientes do uso de substâncias psicoativas e do sofrimento psíquico. Assim, o CnaR passa a ser gestado pela Política de Atenção Básica, entendendo a Atenção Primária em Saúde (APS) como ordenadora do sistema de atenção à saúde.

Dessa forma, atualmente, o programa deve estar em convergência com as diretrizes e os fundamentos da PNAB e com a lógica da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), tendo a estratégia de Redução de Danos como proposição transversal em todas as ações realizadas pela equipe. Sendo parte da RAPS e desenvolvendo ações de atenção básica, o programa tem como objetivo garantir o acesso da PSR à rede de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e a promoção da equidade. De acordo com a Portaria n. 122, de 25 de janeiro de 2012, a formatação das equipes corresponde a três configurações diferentes: na modalidade I, minimamente formada por quatro trabalhadores; na modalidade II, minimamente por seis; e na modalidade III, também formada por seis trabalhadores, porém acrescida de um profissional médico.

Apesar de a implementação do programa se desenvolver há mais de dez anos, não há processos avaliativos institucionais ou indicadores específicos, no âmbito nacional, estadual ou municipal. E, na literatura, há uma escassez de produções científicas sobre o tema. Os desenhos metodológicos dos estudos sobre o CnaR, em sua maioria, estão mais voltados para descrição e análise do que para pesquisa de avaliação da implementação do programa (Duarte, 2022DUARTE, A. H. C. Avaliação da implementação do Programa Consultório na Rua na região sul do país. 2022. Tese (Doutorado em Serviço Social e Política Social) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2022.).

A partir do contexto explicitado, este artigo tem como objetivo descrever os resultados da avaliação da eficácia da implementação do programa Consultório na Rua da região Sul do país, tomando como base a pesquisa elaborada nos anos de 2021 e 2022.

Feitas essas iniciais considerações, para a construção deste artigo apresentamos a seguir três seções: a metodologia adotada para o estudo; os resultados e as discussões, nos quais evidenciamos alguns indicadores do processo avaliativo; e, por último, as conclusões tecidas a partir da análise dos resultados.

1. Metodologia

Neste estudo, optamos pela pesquisa de avaliação de processo do tipo acadêmica, com uso de abordagem mista (Creswell, 2010CRESWELL, J. W. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010.; Tanaka; Melo, 2007TANAKA, O. Y.; MELO, C. Reflexões sobre a avaliação em serviços de saúde e a adoção das abordagens qualitativas e quantitativas. In: BOSI, L. M.; MERCADO, F. J. (org.). Pesquisa qualitativa de serviços de saúde. Petrópolis: Vozes, 2007.; Minayo, 2009MINAYO, C. S. Construção de indicadores qualitativos para avaliação de mudanças. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 33, supl. 1, p. 83-91, 2009.), articulando dados quantitativos e qualitativos, com ênfase nestes últimos, a respeito do processo de implementação do programa Consultório na Rua dos municípios na região Sul do país. Com base nos estudos de Silva (2013SILVA, M. O. S. Pesquisa avaliativa: aspectos teóricos-metodológicos. São Paulo: Veras Editora; São Luís: Grupo de Avaliação e Estudo da Pobreza e de Políticas Direcionadas à Pobreza (Gaepp), 2013.) e Arretche (2007ARRETCHE, M. T. Tendências no estudo sobre avaliação. In: RICO, E. M. (org.). Avaliação de políticas sociais: uma questão em debate. São Paulo: Cortez, 2007. p. 29-39.), nossas escolhas pelo tipo de avaliação se configuraram com o objetivo de responder, de forma fidedigna, ao problema do estudo e respeitando as particularidades do objeto.

A avaliação de processo (Silva, 2013SILVA, M. O. S. Pesquisa avaliativa: aspectos teóricos-metodológicos. São Paulo: Veras Editora; São Luís: Grupo de Avaliação e Estudo da Pobreza e de Políticas Direcionadas à Pobreza (Gaepp), 2013.) se refere ao tipo de pesquisa desenvolvida durante o processo de implementação e permite a avaliação da eficácia do programa em desenvolvimento. Segundo Arretche (2007ARRETCHE, M. T. Tendências no estudo sobre avaliação. In: RICO, E. M. (org.). Avaliação de políticas sociais: uma questão em debate. São Paulo: Cortez, 2007. p. 29-39.), é uma avaliação que pode ser direcionada de duas maneiras: concentrada nas metas propostas e alcançadas ou nos instrumentos previstos e naqueles realmente aplicados na implementação da política. Assim, um dos recursos analíticos de nossa pesquisa avaliativa é o critério da eficácia da implementação, tendo como referência os objetivos e as normas com base nos documentos oficiais estabelecidos nacionalmente para implementação do programa em todo o território nacional.

Além da dimensão da eficácia, também incluímos o princípio da equidade, que fundamenta este estudo avaliativo, uma vez que, para o Sistema Único de Saúde, está intrinsecamente relacionado à implementação de políticas que visam diminuir vulnerabilidades a que certos grupos populacionais estão mais expostos, incluindo a PSR. Dessa maneira, buscamos evitar o uso homogeneizador de recursos analíticos que não respeitem as particularidades locais e de grupos ou que reforcem ainda mais as desigualdades sociais.

Para a coleta de dados, utilizamos como instrumento um questionário eletrônico, enviado por e-mail aos trabalhadores do CnaR da região Sul. Por meio dessa coleta de dados, buscamos identificar como os trabalhadores compreendem o processo de implementação do programa. Com isso, foi possível avaliar a implementação por meio das medidas de suficiência dos instrumentos e dos sistemas logísticos operacionais previstos. Isso possibilitou a concepção de novas proposições e indicadores para análise e avaliação do programa.

No período dessa pesquisa, de acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES, 2021CADASTRO NACIONAL DE ESTABELECIMENTO DE SAÚDE. Brasília, Banco de dados das equipes de Consultórios na Rua existentes na região Sul [2021] Disponível em: Disponível em: http://cnes2.datasus.gov.br/ . Acesso em: 15 abr. 2021.
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), havia 21 equipes localizadas em 16 municípios na região Sul, com o número aproximado de 100 trabalhadores(as) de nível superior e médio. Os questionários foram direcionados para os(as) trabalhadores(as) e destes, 42 responderam a pesquisa, correspondente a 18 CnaR de 15 municípios.

Para análise e interpretação dos dados, seguimos as etapas referenciadas por Bardin (1979BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979.): pré-análise, exploração do material sistematizado e, por fim, apresentamos nossa interpretação por meio da mediação entre o conteúdo dos dados e a teoria fundamentada, em direção a uma síntese interpretativa.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Londrina (CAAE: 33486220.0.0000.5231).

2. Resultados e discussões

Para a exposição dos resultados, inicialmente, apresentaremos o Quadro 1 de concatenação das avaliações dos CnaR. Com o intuito de resguardar a identidade dos sujeitos, utilizaremos codinomes para os 18 CnaR avaliados. Os codinomes foram escolhidos com base em alguns locais e referências de moradia e permanência das PSR nas cidades: Marquise, Viaduto, Praça, Avenida, Mocó, Esquina, Calçada, Vila, Centro, Semáforo, Mato, Fundo de Vale, Carcaça de carro, Lona, Papelão, Barraca, Carrinho e Abrigo.

Os indicadores de eficácia definidos foram agrupados em sete atributos e seus indicadores: 1. Disponibilidade de recursos humanos; 2. Carga horária; 3. Disponibilidade de recursos materiais (unidade móvel e veículo de transporte); 4. Sistemas operacionais e fluxos (ações de saúde de atenção básica, diagnóstico, planejamento, busca ativa e redução de danos); 5. Acolhimento e atendimento in loco (atividades in loco, atendimentos individuais e em grupo); 6. Cuidado em saúde, compartilhado e integrado (reuniões de equipe, ações compartilhadas e integradas com as Unidades Básicas de Saúde e com os serviços que compõem a RAPS); e 7. Educação no trabalho em saúde. Já as escalas para as medidas de avaliação foram agrupadas entre: Satisfatório, Pouco satisfatório e Insatisfatório, buscando respeitar as particularidades do trabalho em saúde com a PSR.

De forma geral, o programa teve boas avaliações, com escalas satisfatórias e pouco satisfatórias na maioria dos indicadores. Contudo, como dito anteriormente, diante da falta de indicadores de avaliação, optamos, por um lado, por destacar nesses resultados os indicadores que apresentaram um quantitativo relevante de avaliações insatisfatórias: o veículo de transporte e a educação no trabalho em saúde; e, por outro, aqueles que, apesar de obterem boas avaliações, na análise dos dados, apresentaram elementos importantes a serem destacados, dada a inconsistência operacional do programa nos documentos oficiais, que são: disponibilidade dos recursos humanos, a carga horária e o planejamento das ações.

Quadro 1.
Concatenação das avaliações dos indicadores de implementação dos Consultórios na Rua

2.1 Veículo de transporte

O primeiro atributo do sistema logístico e operacional a ser destacado refere-se à disponibilidade de recursos materiais, no qual buscamos avaliar a partir do indicador as informações referentes aos veículos utilizados pelas equipes. Como não há clareza nos documentos oficiais sobre a obrigatoriedade da configuração do veículo como unidade móvel, decidimos separar um indicador para a unidade móvel e outro para o veículo de transporte.

Em relação ao indicador veículo de transporte, o critério de maior relevância utilizado para avaliação foi a exclusividade para o uso da equipe, pois, de acordo com a literatura, a ausência dessa exclusividade tem sido apresentada como uma das dificuldades no processo de implementação (Duarte, 2022DUARTE, A. H. C. Avaliação da implementação do Programa Consultório na Rua na região sul do país. 2022. Tese (Doutorado em Serviço Social e Política Social) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2022.). Os outros critérios de avaliação apontaram: se é possível realizar procedimentos básicos; se tem identificação visual; se é possível realizar atendimento no seu interior; se é possível levar profissionais da equipe; e se é possível levar equipamentos e insumos.

De acordo com as respostas dos sujeitos, sete CnaR foram avaliados como insuficientes em relação ao veículo, pois, apesar de indicarem um veículo disponível para a equipe, não há exclusividade no seu uso. Outros sete CnaR foram avaliados como satisfatórios, pois além de possuírem o carro exclusivo, também contemplam os outros critérios do indicador, sendo que quatro desses são aqueles que possuem a configuração da unidade móvel. Outros três CnaR foram avaliados como pouco satisfatórios, porque, apesar de possuírem veículos exclusivos, não apresentam identificação visual, que é um dos elementos para esse indicador já problematizado em outras pesquisas como elemento importante para o acolhimento no espaço da rua (Duarte, 2018DUARTE, A. H. C. O Sistema Único de Saúde e seus alcances: reflexões acerca do processo de trabalho do consultório na rua. 2018. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.). Um dos CnaR não respondeu a essa questão.

Ao analisar esses dados, podemos identificar que esse indicador do veículo foi um dos que mais tiveram avaliações insatisfatórias, no qual 38% dos CnaR informaram não ter um veículo exclusivo para uso. A exclusividade do uso do veículo é determinante no processo de implementação do programa, pois caso as equipes não tenham disponibilidade de uso, elas também não terão o poder de decisão para o uso diário, o que influenciará na programação das atividades e dos roteiros in loco.

Considerando a complexidade do programa e suas inovações perante o aperfeiçoamento das práticas de cuidado em saúde já existentes, a falta de garantia de um veículo para o uso da equipe, que propicie uma logística mínima para o atendimento no espaço da rua, demonstra uma desvalorização política da gestão para com a implementação do programa. Essa situação reforça a importância de existirem diretrizes políticas que orientem a operacionalização do programa na prática, pois para garantir a eficácia dos processos de implementação de políticas públicas não basta contar com a boa vontade ou a boa intenção por parte dos gestores implementadores. É preciso considerar que o processo de gestão envolve um conjunto de valores e conhecimentos sobre a concepção das práticas em saúde, que orienta o que se pretende construir e aonde se almeja chegar.

Apesar de a Portaria n. 122 de 2011 indicar que é de responsabilidade do município a aquisição do veículo para o uso da equipe, as diretrizes para a execução do programa não têm vinculado o caráter excepcional desse equipamento itinerante para a implementação e a manutenção do programa, tornando vago o requisito de atendimento in loco, e dependente dos contextos locais e regionais.

O contexto político atual menos favorável no trato com as políticas sociais tem resultado direto para a não priorização de necessidades e demandas apresentadas da PSR para as políticas e os programas regidos por diretrizes e princípios do SUS, da Reforma Psiquiátrica e da redução de danos, o que deslegitima programas e serviços como o próprio CnaR. Concretamente, essas dificuldades têm se apresentado na implementação do CnaR por meio da falta de estrutura e de recursos humanos.

Destarte, fica claro o determinante do processo de implementação como um campo de incertezas (Arretche, 2001ARRETCHE, M. T. Uma contribuição para fazermos avaliações menos ingênuas. In: BARREIRA, M. C. R. N.; CARVALHO, M. do C. B. (org.). Tendências e perspectivas na avaliação de políticas e programas sociais. São Paulo: IEE/PUC-SP, 2001. p. 43-55.): em algum momento, o programa poderá estar contemplado com os melhores equipamentos, mas em outro poderá sofrer um processo de recessão de recursos.

A escassez de financiamento é uma das principais causas da falta de estrutura encontrada para a implementação do SUS. Mas sabemos que essa também tem sido uma realidade para as demais políticas sociais, que encontram uma disputa política acirrada pelo fundo público. Além disso, temos as contrarreformas neoliberais em curso, que interferem diretamente na gestão e na implementação das políticas sociais. E essa disputa tem refletido os interesses de classes antagônicas no controle do fundo público (Duarte; Santos; 2021DUARTE, A. H. C.; SANTOS, E. R. A participação política na disputa pelo fundo público e sua influência para efetivação das políticas sociais. In: LANZA, L. M. B.; FAQUIN, E. S.; ROMIZI, F. (org.). A mobilidade humana internacional: entre direitos ideais e políticas reais. São Carlos: Pedro e João Editores, 2021. p. 55-75.).

2.2 Educação no trabalho em saúde

De acordo com Brasil (2018BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? 1. ed. rev. Brasília: Ministério da Saúde, 2018., p. 9), o conceito de educação no trabalho em saúde, também conhecido como educação em saúde e educação na saúde “consiste na produção e sistematização de conhecimentos relativos à formação e ao desenvolvimento para a atuação em saúde, envolvendo práticas de ensino, diretrizes didáticas e orientação curricular”. Nesse sentido, a educação permanente e a educação continuada apresentam-se como duas modalidades da educação no trabalho em saúde.

Ao investigarmos a existência desses processos, perguntamos aos sujeitos como tem se desenvolvido a educação no trabalho em saúde. De acordo com os resultados, 11 CnaR foram avaliados como pouco satisfatórios, pois embora os(as) trabalhadores(as) afirmassem terem acesso a ações de educação no trabalho em saúde, indicaram ser de maneira esporádica. Os outros sete CnaR foram avaliados de forma insatisfatória, pois não há acesso à educação no trabalho em saúde e, em alguns casos, apresentam somente incentivo à busca de formação individual. Desse modo, nenhum CnaR foi avaliado como satisfatório, pois nenhum sujeito informante referiu ter acesso à educação no trabalho de maneira permanente ou continuada. É importante pontuar que esse atributo é o único que não obteve avaliação satisfatória de nenhum CnaR. Esse indicador também foi um dos que mais receberam avaliações insatisfatórias, junto ao indicador veículo de transporte, de acordo com as respostas dos sujeitos.

Quando perguntamos aos sujeitos sobre alguma mudança no desenho original do programa, foram apontadas: a necessidade de mais capacitações disponíveis para a equipe e recursos financeiros para tal; a necessidade de encontros com outras equipes para compartilhar experiências e as avaliações dos planos de trabalho; a necessidade de incluir no desenho do programa alternativas de prevenção para o adoecimento dos trabalhadores.

Considerando que o tema da educação no trabalho em saúde é bastante amplo, não temos a intenção de aprofundar suas particularidades. Mas compreendemos que a organização de espaços coletivos de discussão e reflexão entre os trabalhadores de forma periódica é uma das estratégias da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS), além de outras iniciativas.

Apesar da pertinência e da relevância da Educação Permanente em Saúde (EPS) na literatura e na avaliação da própria PNEPS, tem sido identificada a necessidade de propor caminhos para o fortalecimento e a institucionalização da política, indicando que o processo de implementação tem apresentado alguns “nós críticos” no que dizem respeito: “a aspectos político-gerenciais e financeiros do processo de gestão e planejamento da PNEPS, enquanto outros se referem a aspectos conceituais e metodológicos, envolvidos na programação e execução das ações de EPS” (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? 1. ed. rev. Brasília: Ministério da Saúde, 2018., p. 15).

Em relação ao adoecimento dos trabalhadores, em específico no trabalho com a PSR, há poucos materiais que abordem este tema. Para Santana e Rosa (2016SANTANA, C. L. A.; ROSA, A. S. Saúde mental das pessoas em situação de rua: conceitos e práticas para profissionais da assistência social. São Paulo: Epidaurus Medicina e Arte, 2016.), é preciso estar atento ao processo de adoecimento causado pelo trabalho nesse campo, pois esses trabalhadores se deparam diariamente com situações de alta vulnerabilidade social e deslegitimação dos direitos humanos. E as relações construídas com a PSR, muitas vezes, levam tempo, fazendo com que os resultados esperados tenham ainda outra temporalidade, o que pode ser muito angustiante para a equipe. Sobretudo, é preciso também considerar a tensão existente entre os resultados atribuídos a lógicas produtivistas ou gerencialistas e os resultados qualitativos, com ênfase em processos de gestão democrática na gestão pública.

Em relação ao risco ocupacional, há um estudo realizado com trabalhadores do CnaR organizado por Lima et al. (2019LIMA, A. F. S. et al. Reconhecimento dos riscos no trabalho do Consultório na Rua: um processo participativo. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 53, e0349, 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1980-220X2018022603495. Acesso em: 20 abr. 2021.
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), no qual o risco psicossocial foi o mais enfatizado pelos participantes da pesquisa. Para os autores, esses(as) trabalhadores(as) lidam diariamente com uma realidade desumana, que demanda uma tomada de decisão recorrente. Porém, se sentem limitados pela falta de condições estruturais de trabalho, pela escassez de sistematização de uma rede de atendimento no território e pelo despreparo apresentado por outros profissionais para com o acolhimento da PSR.

De acordo com a Universidade Federal Fluminense (2014)UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF). Diretrizes, metodologias e dispositivos do Pop Rua. Equipe de Consultório na Rua, Rio de Janeiro - Centro. Niterói, 2014. Disponível em: Disponível em: https://redehumanizasus.net/wp-content/uploads/2019/04/564-1-1.pdf . Acesso em: 21 jan. 2022.
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, além do espaço individualizado proporcionado para a escuta do sofrimento do trabalhador, é preciso proporcionar espaços coletivos, tornando coletivo e político o sofrimento que advém do trabalho, olhando para as condições e para o modo como está sendo gerido o processo de trabalho, a fim de que, assim, a queixa do trabalhador se transforme em demanda para reposicionamentos do próprio profissional, da equipe e da gestão. Nesse sentido, compreendemos que a EPS também tem um papel estratégico nesse processo.

Porém, a falta de acesso à educação no trabalho em saúde identificada pelos sujeitos desta pesquisa acarreta um déficit de espaços coletivos para que os(as) trabalhadores(as) tenham a oportunidade de expressar suas dificuldades e problematizar alternativas. Nesse sentido, apesar de a EPS ser uma política pública e fazer parte da educação no trabalho em saúde, a avaliação desse indicador nos CnaR pesquisados aponta que é preciso avançar na implementação dessa política, compreendida como estratégica para o processo de construção do SUS, com vista a qualificar e aperfeiçoar o processo de trabalho em saúde.

2.3 Disponibilidade dos recursos humanos

A partir das respostas dos sujeitos, todos os serviços que responderam a esta variável foram avaliados de forma satisfatória, ou seja, 17 CnaR estão com o número mínimo de trabalhadores, de acordo com a modalidade da equipe cadastrada no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), e contemplam o quantitativo das categorias profissionais elencadas por modalidade - somente um dos CnaR não respondeu a essa questão.

Embora todos que responderam a essa questão indicassem estar com a equipe mínima completa, um elemento importante identificado na composição das equipes, de acordo com as respostas, foi o acréscimo do profissional médico em três CnaR, mesmo sendo das modalidades I e II, ou seja, não sendo da modalidade III. Isso nos indica que esses municípios têm financiado com recursos próprios o profissional médico para integrar as equipes de CnaR. De acordo com Machado (2021MACHADO, M. P. M. As práticas dos consultórios na rua: perspectivas para o monitoramento e avaliação do campo. 2021. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.), no período de sua pesquisa, foram identificados no total 38 médicos cadastrados no CNES em equipes de CnaR no âmbito nacional da modalidade I e II, ou seja, são médicos financiados pelos municípios exclusivamente.

Ainda sobre o profissional médico, reitera-se a análise em Duarte (2022DUARTE, A. H. C. Avaliação da implementação do Programa Consultório na Rua na região sul do país. 2022. Tese (Doutorado em Serviço Social e Política Social) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2022.), além da demanda de ampliação da equipe na implementação do programa, há especificamente a necessidade da categoria médica na equipe, considerando as dificuldades que são encontradas para atendimento médico das PSR nas Unidades Básicas de Saúde nos territórios, mesmo acompanhadas do CnaR. A falta de médico tem gerado barreiras para a equipe de CnaR na resolutividade das necessidades de saúde da PSR, pois essa resolutividade também depende de ofertas e ferramentas específicas do profissional médico.

De acordo com Nogueira (1997NOGUEIRA, R. P. O trabalho em saúde. In: SANTANA, J. P. de (coord.). Desenvolvimento gerencial de Unidades Básicas de Saúde do Distrito Sanitário: Projeto Gerus, Ministério da Saúde: Fundação Nacional de Saúde. Brasília, 1997. p. 182-186.), o processo de trabalho em saúde possui uma direcionalidade técnica, tratando-se de uma atividade humana plural que resulta do compartilhamento de conhecimentos científicos por um conjunto de categorias profissionais e de indivíduos. Porém, o autor ressalta como a categoria médica ainda controla o processo de trabalho em saúde a partir de sua autoridade técnica e social. Isso contribui para que a direcionalidade técnica no processo de trabalho em saúde encontre-se “fraturada” para os trabalhadores e para a população usuária do serviço, conformando um contexto de fragmentação dos atos em saúde, em que há uma tendência à especialização das áreas, bem como o acúmulo de novas tecnologias e de variedades dos serviços.

Nesse sentido, a necessidade do profissional médico no CnaR apontada pelos sujeitos desta pesquisa expõe as barreiras de acesso que a PSR encontra nas redes de atenção à saúde, o que dificulta o processo de resolutividade das ações de maneira compartilhada. Nessa perspectiva, acreditamos que a contemplação das equipes com a categoria médica, em todas as modalidades, fortaleceria ainda mais os objetivos do programa, no que compete à garantia do acesso aos tratamentos de saúde de forma equânime e resolutiva, como já apontam outros estudos (Machado, 2021MACHADO, M. P. M. As práticas dos consultórios na rua: perspectivas para o monitoramento e avaliação do campo. 2021. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.; Engstrom; Teixeira, 2016ENGSTROM, E. M.; TEIXEIRA, M. B. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 6, p. 1839-1848, jun. 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232015216.0782016. Acesso em: 10 out. 2021.
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).

Sendo o profissional médico a principal categoria capaz de diagnosticar e prescrever tratamentos em saúde, consideramos que sua presença na equipe mínima de qualquer modalidade pode auxiliar no enfrentamento das iniquidades de saúde dessa população, além de auxiliar no processo de educação permanente dos demais médicos no contexto do SUS e avançar na problematização dos dilemas postos, sejam eles éticos, técnicos ou sociais. Nesse sentido, o médico do CnaR não elimina o compartilhamento do cuidado com os demais médicos da rede local de saúde, pois a justificativa pela presença do médico na equipe mínima envolve as dificuldades com os outros médicos e trabalhadores de saúde.

Dessa forma, embora as equipes estejam completas e tenham sido avaliadas como satisfatórias, atendendo aos parâmetros oficiais, os resultados demonstram a necessidade de ampliação das equipes, principalmente de a categoria médica ser contemplada na equipe mínima.

2.4 Carga horária

De acordo com a Portaria n. 122 de 2011, o CnaR deve funcionar 30 horas semanais, no mínimo. Embora a legislação não obrigue o programa a funcionar no período noturno, a orientação é que funcione em períodos conforme as necessidades da população. Em relação ao indicador carga horária, somente três CnaR afirmaram funcionar 30 horas semanais, incluindo um período noturno, por isso esses CnaR foram avaliados como satisfatórios. Outros 13 também afirmaram cumprir 30 horas semanais, mas não incluem o período noturno, sendo considerados pouco satisfatórios. Outros dois serviços não responderam (NR) a essa questão.

De acordo com Escorel (1999ESCOREL, S. Vidas ao léu: uma etnografia da exclusão social. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.), muitas pessoas em situação de rua não se sentem seguras em dormir no período da noite, pelo alto risco de sofrerem algum tipo de violência. Por isso, muitos utilizam o período noturno para atividades sociais, como se alimentar, realizar atividades laborais, já o dia, reservam ao período de descanso por julgarem mais seguro. Segundo o Manual de cuidado à saúde junto à população em situação de rua do Ministério da Saúde (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual de cuidado à saúde junto à população em situação de rua. Brasília: Ministério da Saúde, 2012.), a violência aparece como fator de risco à situação de rua, pois a PSR necessita estar sempre alerta, principalmente durante a noite. Dessa forma, deve lidar constantemente com a privação de sono, visto que durante a noite a PSR prefere e necessita ficar acordada. Realidade muito semelhante também foi encontrada a partir dos estudos de Aguiar e Iriart (2012AGUIAR, M. M.; IRIART, J. A. B. Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Saúde Pública, v. 28, n. 1, jan. 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2012000100012. Acesso em: 10 out. 2021.
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).

Diante dessa realidade, é legítimo que o atendimento que inclua ao menos um período noturno estará mais próximo ao objetivo do programa, no que se refere à diretriz da equidade no atendimento, buscando priorizar e respeitar as necessidades de saúde e os riscos associados. Por isso, aqueles CnaR que afirmaram incluírem o atendimento no período noturno foram mais bem avaliados.

Segundo Borisow (2018BORISOW, I. da C. O Consultório na Rua e a atenção básica à população em situação de rua. 2018. Tese (Doutorado em Ciências) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.), em seu estudo sobre a fase de transição, no âmbito nacional, do CdeR para o CnaR, vários CnaR passaram a funcionar a partir do horário padrão diurno das unidades da atenção básica, sem outras considerações, mesmo com o risco de que as equipes de CnaR só reconhecessem e encontrassem determinados ou possíveis usuários do serviço somente no período noturno. Reitera-se a análise em Duarte (2022DUARTE, A. H. C. Avaliação da implementação do Programa Consultório na Rua na região sul do país. 2022. Tese (Doutorado em Serviço Social e Política Social) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2022.) que o CnaR não tem sido implementado com o horário de funcionamento a partir de um estudo da realidade e da necessidade local da PSR, sendo influenciado direta ou indiretamente pelas políticas nacionais preponderantes.

Por isso, processos de monitoramento e avaliação de políticas e programas que incluam a escuta dos implementadores e agentes sociais diretamente envolvidos têm uma função importante para dar subsídios a essas decisões operacionais na implementação, pois podem tensionar e desafiar a existência de lógicas institucionais previamente concebidas, como o horário de funcionamento dos serviços, buscando sempre respeitar as características locais e regionais, bem como as necessidades da PSR.

2.5 Planejamento de ações

A respeito do atributo 4, Sistemas operacionais e fluxos, destacamos aqui o indicador de planejamento de ações, no qual perguntamos sobre a construção do roteiro utilizado no dia a dia das equipes. De acordo com Brasil (2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual de cuidado à saúde junto à população em situação de rua. Brasília: Ministério da Saúde, 2012., p. 36), devem-se considerar os pontos de atendimento, os diferentes perfis de grupo e observar “os critérios para a gestão de riscos eminentes no atendimento in loco”. Por isso, perguntamos aos sujeitos se na construção do roteiro constam as seguintes variáveis: os pontos de atendimento; se ponderam os riscos do atendimento; se consideram os perfis dos usuários; e se definem ações de busca ativa.

De acordo com os critérios da avaliação, 12 CnaR foram avaliados como satisfatórios; cinco CnaR foram avaliados como pouco satisfatórios; e um CnaR foi avaliado como insatisfatório.

Apesar de esse indicador, em sua maioria, indicar resultados satisfatórios, foi o que mais apresentou respostas diferentes entre os mesmos trabalhadores das equipes. E a não ponderação dos riscos do atendimento apareceu nas respostas de 11 CnaR.

A divergência das respostas entre as equipes é um elemento importante a ser destacado no âmbito da discricionariedade dos sujeitos na implementação. De acordo com Cavalcanti (2007CAVALCANTI, P. A. Sistematizando e comparando os enfoques de avaliação e de análise de políticas públicas: uma contribuição para a área educacional. 2007. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007., p. 231): “todo o processo de implementação, independentemente do tipo de controle que sobre ele é exercido, envolve um grau de discricionariedade”. Portanto, a discricionariedade dos implementadores locais é mais um elemento de imprevisibilidade no processo de implementação.

De acordo com Lima e D’Ascenzi (2013LIMA, L.; D’ASCENZI, L. Implementação de políticas públicas: perspectivas analíticas. Revista de Sociologia e Política, v. 21, n. 48, p. 101-110, dez. 2013. https://doi.org/10.1590/S0104-44782013000400006. Acesso em: 20 abr. 2021.
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), podemos considerar que o grau de discricionariedade mostra que, por algum motivo, a depender das condições de trabalho, esses implementadores locais têm selecionado algumas alternativas ou não operacionalizado alguma delas.

Para Brasil (2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual de cuidado à saúde junto à população em situação de rua. Brasília: Ministério da Saúde, 2012.), a identificação de fatores de risco à saúde e de fatores de vulnerabilidades nos territórios é elementar para as equipes na construção de diagnósticos e planejamentos. Ainda de acordo com o Manual de cuidado à saúde junto à população em situação de rua (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual de cuidado à saúde junto à população em situação de rua. Brasília: Ministério da Saúde, 2012., p. 54), “o exercício mental de encadear causas de problemas de saúde originadas pelo fator ‘vida na rua’”, pelos trabalhadores de saúde, influencia o desenvolvimento de lógicas específicas para o atendimento da PSR e a implementação de ações de cuidado, que reconheçam a rua como espaço de vida dessas pessoas. Nesse sentido, a identificação dos riscos permitirá a definição adequada das ações e dos procedimentos clínicos, que podem ser realizados no espaço da rua ou que demandam de um suporte de maior densidade tecnológica, reforçando as necessidades da Unidade Básica de Saúde ou de outros serviços como recurso (exemplo: coleta de exames; curativos, administração de medicação, dentre outros). Distribuir a população atendida pelos riscos associados à saúde também é uma estratégia elencada na condução do cuidado em saúde, principalmente para os usuários que apresentam doenças crônicas. Essa estratégia permitirá definir quais serviços de saúde devem ser envolvidos na gestão do cuidado e na construção do projeto terapêutico singular.

Considerações finais

Por meio da participação e do número expressivo dos sujeitos na pesquisa, foi possível afirmar que os atributos do CnaR na região Sul, de forma geral, foram bem avaliados, pois em sua maioria receberam avaliações satisfatórias e pouco satisfatórias. Porém, é imprescindível destacar dois indicadores que mais receberam avaliações insatisfatórias: a educação no trabalho em saúde e a do veículo de transporte. Apesar de os demais indicadores terem recebidos boas avaliações, é preciso considerar também os aspectos de outros três indicadores: da carga horária, da disponibilidade dos recursos humanos e do planejamento de ações.

A partir da análise dos dados, concluímos que esses aspectos estão associados principalmente à falta de nitidez desses elementos nos documentos oficiais de operacionalização do programa. Elementos que são essenciais na aposta que se tem feito na concepção das práticas em saúde mais equânimes e na alteração dos modelos de atenção tradicionais para um modelo assistencial da atenção básica, com a ótica da produção social da saúde.

Dessa maneira, a configuração da desigualdade no acesso e na utilização dos serviços de saúde pela PSR, encontrada nos resultados, tem se apresentado pela não inclusão do atendimento da atenção básica no período noturno; pela falta de exclusividade e autonomia no uso do veículo de transporte pelas equipes; pela escassez de indicadores que identifiquem a vida na rua como um fator de risco à saúde; pela insuficiência de recursos humanos, em destaque a categoria médica; pela disputa de diferentes racionalidades no campo da saúde; pela falta de capacitação continuada dos trabalhadores; e pelos impasses do cuidado compartilhado de forma intersetorial.

Além disso, esses resultados demonstram aspectos relacionados ao peso do desempenho ou suficiência dos sistemas logísticos e operacionais e da gestão do processo de trabalho na implementação do programa. Desse modo, compreendemos que a falta de financiamento é um dos fatores que interferem na materialização desses processos, e está diretamente associada ao neoliberalismo.

Dessa maneira, os dados reiteram que esses indicadores são os determinantes dificultadores do processo de implementação, e exigem uma atenção dos sujeitos envolvidos no desempenho desses aspectos e a consolidação de processos de monitoramento e avaliação institucionais de forma permanente, com o intuito de aprimorar o desenvolvimento do programa à luz de seus objetivos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2024
  • Aceito
    04 Jul 2024
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