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Relações sociais de sexo: uma apreensão estrutural

Sexual and social relationships: a structural concern

Resumo:

O propósito do presente artigo é enfocar as relações sociais de sexo à luz da tradição marxista, no intuito de desvendá-las como relações sociais estruturantes no capitalismo. A partir dos relatos de assistentes sociais judiciários, especificamente em processos de retificação de nome e de sexo jurídico, procurou-se propor elementos para aproximações às vivências de sexo como um complexo de relações sociais que o modo de produção capitalista engendra para dominação, exploração e opressão.

Palavras-chave:
Relações sociais de sexo; Relação estrutural; Modo de produção capitalista

Abstract:

The purpose of this article is to focus on sexual and social relationships in the light of the Marxist tradition them as structuring social relationships in capitalism. From the reports of judicial social workers, specifically in processes of name correction and legal sex, we tried to propose elements for approximating the experiences of sex as a complex of social relations that the capitalist mode of production engenders for domination, exploitation and oppression.

Keywords:
Sexual and social relationships; Structural relationships; Capitalist mode of production

Introdução

Este artigo é fruto da pesquisa de mestrado (SANTOS, 2020SANTOS, Thais Felipe Silva dos. A travestilidade e a transexualidade: o Serviço Social e a perícia de retificação de nome e sexo. São Paulo, 2020. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2020.) desenvolvida entre os anos de 2018 e 2020, a qual teve como temática o Serviço Social, em especial o cotidiano profissional de assistentes sociais que atuaram em processos de retificação de nome e sexo jurídico das travestis e transexuais; o estudo buscou problematizar o exercício profissional à luz marxiana e marxista. Conforme aponta Martinelli (1999MARTINELLI, Maria Lúcia (org.). Pesquisa qualitativa: um desafio instigante. São Paulo: Veras, 1999., p. 12), “o construtor da prática não é apenas o profissional que a realiza, mas sim o conjunto dos sujeitos que, articuladamente com a/o assistente social, dão vida e concretude à prática”.

O contexto histórico do qual se fala aqui é o jurídico; nesse terreno, as Varas da Família, uma especificidade da área do Direito, no Poder Judiciário.

Tal demanda não pertence ao Serviço Social das Varas da Família?

No Brasil, é o registro civil que baliza os demais documentos do ser social. E é justamente por meio desse assentamento que se dá a objetivação jurídica, apoiada na estrutura jurídico-normativa da sociedade capitalista; por esse motivo, torna-se primordial que a retificação se dê no registro civil. No caso de a pessoa travesti ou transexual ter contraído casamento, a retificação passará a ser nesse registro, pois este passou a documento principal em razão do casamento e, portanto, será balizador dos demais documentos.

Desde logo, cumpre elucidar que sexo jurídico é aquele contido no assentamento registral. Isto é, em consonância com Ventura (2010VENTURA, Miriam. A transexualidade no tribunal: saúde e cidadania. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. (Coleção Sexualidade, gênero e sociedade).), trata-se do sexo civil indicado no momento de lavratura do registro do recém-nascido, de acordo com os caracteres biológicos do sexo aparente. Por meio das atuais técnicas utilizadas pela Medicina, esse sexo pode ser conhecido mesmo antes do nascimento da criança, e é precisamente sobre ele que se predizem nomes, comportamentos e expressões.

Diante dessa formulação, depara-se com algumas inquietações: uma vez que a indicação da vivência de sexo já é preconcebida por terceira pessoa, a partir de dados biológicos, de onde provém essa “receita” do que é masculino ou feminino? Qual o saber que teria o poder de estabelecer a vivência de sexo de outrem e, a partir dessas predefinições, expectativas para nome, comportamento, aparência, vestimentas, enfim, para o seu lugar na sociedade? A demanda de pessoas travestis e transexuais na luta pela afirmação de direitos em nada tem a ver com a atuação de assistentes sociais nos vários espaços sócio-ocupacionais? Essas são algumas das questões que se colocam e sobre as quais se faz premente o debate.

Mesmo sob esse universo preditivo, existem pessoas que ultrapassam essas normas preestabelecidas e demonstram por meio de sua vivência cotidiana que, de fato, há outras possibilidades que são reveladoras das potencialidades de diversidade que o gênero humano pode assumir.

Dentre os diversos aspectos que emergiram da pesquisa de mestrado, o objetivo do presente artigo é abordar as relações sociais de sexo, bem como propor elementos para se desmistificar que não se trata apenas de uma questão de foro íntimo, mas de uma relação social engendrada pelo modo de produção capitalista, no intuito de fincar seus tentáculos de dominação, exploração e opressão.

O referencial teórico adotado foi a teoria social de Karl Marx e a tradição marxista, pois se compreende que essa base teórica fornece os fundamentos necessários para uma apreensão crítica acerca das relações sociais de sexo no movimento histórico da sociedade. Decerto que não se pretende aqui fechar a questão, mas propor elementos que possibilitem avançar no debate das relações sociais de sexo.

Ademais, considera-se que este artigo tem inserção nos temas prementes que se colocam para a área de Serviço Social, pois as pessoas travestis e transexuais se encontram inseridas na sociedade e podem recorrer a toda gama de serviços e de políticas em que a/o assistente social esteja atuando. Desse modo, incorporam-se novas questões e desafios para o exercício profissional ao cotejar o processo de materialização do Projeto Ético-Político com respostas às necessidades sociais do tempo histórico atual.

A pesquisa que alicerçou a elaboração deste artigo foi construída por meio de metodologia qualitativa, com enfoque em fonte oral, a fim de conhecer a intervenção realizada por assistentes sociais do Judiciário com atuação em processos da natureza de retificação de nome e sexo jurídico de pessoas travestis e transexuais.

Os resultados obtidos pela pesquisa indicam que o papel da/o assistente social judiciário das Varas da Família na retificação de nome e sexo jurídico é muito mais abrangente e complexo do que se pode supor. Ao problematizar a atuação profissional, emergiram situações que marcadamente são atravessadas pela imposição hetero-cis-patriarcal e redundam em expressões da questão social.

De mais a mais, é importante ressaltar que o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento no 73/2018, o qual determinou parâmetros normativos para a averbação da alteração do prenome, do “gênero”1 1 Vocabulário empregado no supracitado Provimento no 73 (Conselho Nacional de Justiça, 2018). - ou de ambos - no registro de nascimento da pessoa “transgênero”,2 2 Vocabulário utilizado no mencionado Provimento no 73 (Conselho Nacional de Justiça, 2018). realizada por via administrativa, ou seja, diretamente no cartório, por autodeclaração. Contudo, deve-se ressaltar que a via judicial não foi abolida, logo o referido Provimento apenas incluiu outra possibilidade de se efetivar a retificação cartorial.

Por fim, indaga-se: o Provimento constitui uma conquista da autonomia relativa das pessoas travestis e transexuais ou se trata de uma estratégia do capital visando à ampliação do precariado,3 3 Segundo Alves (2013, n. p.), o precariado é “uma nova camada da classe social do proletariado com demarcações [de] categorias bastante precisas no plano sociológico: precariado é a camada média do proletariado urbano precarizado, constituída por jovens-adultos altamente escolarizados com inserção precária nas relações de trabalho e vida social”. O autor aponta que entrevistas realizadas mostraram pessoas transgêneras com inserção em universidades; no entanto também revelaram que, apesar da formação, elas são ocupantes de postos de trabalho precários, em decorrência de sua identidade de gênero. em resposta às transformações operadas com a restruturação produtiva, a partir da lógica de acumulação capitalista expansionista, ao se considerar que pessoas travestis e transexuais podem ocupar postos de trabalho de baixa remuneração, devido à repercussão da sua vivência de sexo frente ao conjunto da sociedade?

Oliveira (2015OLIVEIRA, Mariana. Diversidade sexual e mundo do trabalho: uma análise a partir da experiência de trabalhadores gays e lésbicas do setor de telefonia/telecomunicações do Rio de Janeiro. 2015. 98 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.), ao analisar o mundo laboral e a vivência de trabalhadores e trabalhadoras gays e lésbicas do setor de telecomunicações, aponta que há grande concentração de contingente de força de trabalho de pessoas LGBT como resultante da homofobia - e deve-se acrescentar também a transfobia, o racismo e a gordofobia -, diante das discriminações no mercado de trabalho de modo geral. Ressalta-se que essa é uma área de trabalho com baixa remuneração e de invisibilização, entre outros aspectos, pois, além de transparecer “o preconceito do público em relação ao trabalhador gay ou à trabalhadora lésbica, fica menos evidente quando a relação não é direta, mas mediada por um telefone” (OLIVEIRA, 2015OLIVEIRA, Mariana. Diversidade sexual e mundo do trabalho: uma análise a partir da experiência de trabalhadores gays e lésbicas do setor de telefonia/telecomunicações do Rio de Janeiro. 2015. 98 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015., p. 68).

Posto isso, passa-se a abordar no próximo tópico as relações sociais de sexo que alicerçam o modo de produção capitalista.

1. Relações sociais de sexo

Antes de adentrar as relações sociais de sexo, cabem algumas explicações preliminares.

Denomina-se aqui vivência de sexo a maneira pela qual a pessoa se põe no mundo para ver e ser vista; isso porque se considera que, no século XXI, debater sobre a perspectiva masculino/feminino não atinge a amplitude das muitas possibilidades que abarcam as dimensões do ser social que se define como travesti, transexual, drag queen,4 4 Drag queen: refere-se a homens que se vestem de mulher de forma exagerada; não necessariamente se reconhecem como alguém desse outro gênero. Suas vestimentas estão atreladas a apresentações artísticas e ativismos; ao contrário da crença social, grande parte deles não é homossexual (JESUS, 2012). crossdressers,5 5 Crossdresser: sujeito que “sente prazer em usar roupas femininas, identifica-se como homem e geralmente tem uma vivência heterossexual com uma parceira” (JESUS, 2012, p. 12). não binário,6 6 Não binário: “são pessoas cuja identidade ou expressão de gênero não se limitam às categorias ‘masculina’ ou ‘feminina’. Na dúvida, quando uma pessoa se denomina não binária, é importante sempre perguntar como quer ser identificada. Ela não é, necessariamente, sinônimo de transgênero ou transexual” (BAIOFF, 2018, n. p.). transformista,7 7 Transformista: assim como drag queens e drag kings, refere-se a indivíduos que se vestem com roupas do gênero oposto, movidos por fins artísticos, porém de forma menos extravagante (BAIOFF, 2018, n. p.) entre outros. É, portanto, somente nas tramas das relações sociais que a vivência de sexo adquire concretude: é ser e ser visto, uma alteridade indispensável à sua objetivação.

As pessoas travestis e as/os transexuais são as que transcenderam o cisgênero - ou seja, a estrutura atribuída ao sexo biológico na sociedade capitalista - e exteriorizaram outras possibilidades de vivência para o ser social.

Cisgênero, de acordo com o apontado por Jesus (2015JESUS, Jaqueline Gomes de. Cidadania LGBTTTI e as políticas públicas: identificando processos grupais e institucionais de desumanização. In: BENTO, Berenice; SILVA, Antônio Vladimir Félix (org.). Desfazendo gênero: subjetividade, cidadania, transfeminismo. Natal: EDUFRN, 2015. p. 341-358., p. 347), refere-se “à condição da pessoa cuja identidade de gênero está de acordo com o que lhe foi atribuído socialmente, com base em marcadores de gênero”. Além disso, essa é a terminologia utilizada para nomear pessoas que têm suas práticas sociais - ou como se optou por chamar aqui, vivência de sexo - de acordo com as expectativas sociais atribuídas ao seu sexo de nascimento.

Entretanto, não se pode esquecer que o sexo também é uma construção social, portanto partilha-se do entendimento externado por Bozon (2018BOZON, Michel. Mudanças na sexualidade, permanência do sexismo. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, ano 11, n. 127, fev. 2018. Seção Gênero.) ao enfatizar que as diferenças baseadas no sexo biológico acabam por ser legitimadas por processos sociais, quando, na verdade, constituem diferenças construídas social e historicamente.

Diante do exposto, entende-se que identidade de gênero acaba por enquadrar as pessoas travestis e transexuais sob o sistema binário de sexo, ou seja, masculino e feminino, bem como se concorda com Ferreira (2018FERREIRA, Guilherme Gomes. Vidas lixadas: crime e castigo nas narrativas de travestis e transexuais brasileiras. Salvador: Devires, 2018.) quando este evidencia que, para que uma pessoa seja considerada mulher ou homem, é necessário que apresente um conjunto de gestos, comportamentos e atitudes que serão interpretados pelos demais membros da sociedade como feminino ou masculino. No entanto, a despeito de essa necessidade estar vinculada a um determinado sexo, somente para as pessoas travestis e transexuais esses mesmos atos são considerados performáticos, de “identidade de gênero”.

Ainda segundo Ferreira (2018FERREIRA, Guilherme Gomes. Vidas lixadas: crime e castigo nas narrativas de travestis e transexuais brasileiras. Salvador: Devires, 2018., p. 72, grifo do autor), “é como se as pessoas trans ‘repetissem/imitassem’ o gênero, de modo a considerar o gênero que possuem uma fantasia ou menos material que o gênero das pessoas cis”.

Nesse sentido, e por essa razão, adota-se aqui a expressão “vivência de sexo” em contraposição aos termos “identidade de gênero”.

A falta de um vocabulário próprio para designar as potencialidades de diversidade que o gênero humano pode assumir tem rebatimentos em ações ativistas, as quais denunciam as relações hetero-cis-patriarcais. Concorda-se com Prado e Machado (2012PRADO, Marco Aurélio Máximo; MACHADO, Frederico Viana. Preconceito contra homossexualidades: a hierarquia da invisibilidade. São Paulo: Cortez, 2012. (Coleção Preconceitos, v. 5).) ao concluírem que não se trata de uma “querela teórica”, mas de uma definição estratégica.

Do ponto de vista social, entende-se que essa forma de nomear adquire importância para o fortalecimento da luta política e para a reflexão sobre o impacto das relações sociais de sexo estruturantes do sistema capitalista, especialmente no que concerne a pessoas travestis e às/aos transexuais, mas não só.

Posto isso, passa-se a abordar as relações sociais de sexo.

Ao refletir sobre pessoas travestis e transexuais como formas de vida que evidenciam a possibilidade de transcender as vivências hetero-cis-patriarcais, também se colocam sob análise as relações sociais estabelecidas no âmbito da sociedade capitalista, questionando-as à luz do materialismo histórico-dialético.

Se, por um lado, parece tratar-se de uma particularidade que emerge da vivência do ser social, em contrapartida, questiona-se a estrutura estabelecida que prescreve padrões de comportamento, bem como nomes e características para os seres sociais. Faz-se necessário questionar: por que as travestis e as/os transexuais são consideradas/os vivências particulares? Quem ou o que estabeleceu para o ser social parâmetros para a vivência de sexo? A quem interessa (e com quais propósitos) atribuir diferenças aos seres sociais? Em última análise, problematiza-se também o lugar de privilégio na riqueza socialmente produzida.

Esses questionamentos à ordem estabelecida promovem fendas nas regras sociais dicotômicas e binárias centradas no masculino e no feminino e que ocultam a diversidade como possibilidade do ser social ao fomentar o discurso hetero-cis-patriarcal nas balizas biológicas, conforme salientado por Jesus, Carbonieri e Nigro (2017JESUS, Dánie Marcelo de; CARBONIERI, Divanize; NIGRO, Cláudia Maria Ceneviva (org.). Estudos sobre gênero: identidades, discurso e educação - Homenagem a João W. Nery. Campinas: Pontes Editores, 2017.).

Marx (2011MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução e notas: Nélio Schneider. Prólogo: Hebert Marcuse. São Paulo: Boitempo, 2011. (Coleção Marx-Engels)., p. 25) aduz que:

Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram.

É importante frisar que essa construção da história parte de conhecimentos que são transmitidos tendo em vista a sociabilidade humana, portanto estão condicionados pela realidade. Todavia, não é um fazer repetitivo, ao contrário, pois a realidade é permeada de contradições que possibilitam rupturas, resistências e lutas no cotidiano e, por conseguinte, a criação do novo, por meio de vivências concretas que permitem interpelar o instituído.

As travestis e transexuais, em diálogo com a tradição marxista, fazem história ao questionarem o binarismo de sexo e a apreensão biologicista e a-histórica sobre o sexo, promovendo, dessa forma, indagações e concretizando a ruptura com o estabelecido pelo modo de produção capitalista.

O ser social que se posta frente à/ao assistente social judiciário - e não só - com as demandas necessárias de retificação de nome e sexo jurídico expõe a relação jurídico-normativa estabelecida pela classe dominante por meio do Estado, sendo este o representante da burguesia. Recuperam-se Marx e Engels (2007MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Tradução: Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.), que salientam que as ideias dominantes de uma época são aquelas da classe dominante, visão de mundo que se expressa no arcabouço jurídico-normativo por ela engendrado, a fim de replicar o seu poder por todas as áreas da vida social.

Na sociedade em que se vive atualmente, a burguesia e o proletariado compõem as classes sociais fundamentais em disputa. A burguesia, ao dominar os meios de produção e, consequentemente, a produção material da vida, molda também formas de pensar para garantir a sustentação de seus próprios interesses.

Faz-se importante frisar que a produção social da vida se dá na esfera do cotidiano, na produção imediata dos meios sociais necessários à existência, em determinado momento histórico, caracterizado por certo grau de desenvolvimento das forças produtivas. Essa estrutura econômica, que constitui uma totalidade, sobredetermina todas as dimensões da existência, abarca, invariavelmente, as relações políticas, sociais, intelectuais e culturais, ou seja, a totalidade de relações que configuram a sociedade.

Em consonância com o apontado por Marx (2008MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução: Florestan Fernandes. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008.), na produção geral da vida, os seres sociais entram em relações determinadas pelo modo de produção.

Portanto, os seres sociais, para manterem a própria existência, entram em relação entre si e com a natureza. Especificamente na sociedade capitalista, essa relação é mediada pela compra e venda de mercadorias. Assim, para os não possuidores dos meios de produção, a força de trabalho constitui a única mercadoria de que dispõem, a qual é mercantilizada a fim de lhes prover a sobrevivência. Segundo Machado (2018MACHADO, Gustavo. Marx e a história: das particularidades nacionais à universalidade da revolução socialista. São Paulo: Sundermann, 2018., p. 117), “a continuidade de uma mesma forma de organização social somente é possível na exata medida que esta é capaz de repor seus pressupostos”.

Basta olhar ao redor para perceber que a maior parte dos produtos que cercam os indivíduos foi adquirida - direta ou indiretamente8 8 Indiretamente quando o bem foi um presente, pois, ainda que confeccionado para tal, os produtos que possibilitaram essa criação passaram pelo mercado; ou ainda, quando se faz algum produto para atender a uma necessidade, os meios que lhe deram origem também passaram pelo mercado. - por uma relação de troca. Por ora, somente o oxigênio, e sob certas condições,9 9 Diz-se em certas condições porque a pandemia de covid-19 mostrou que o oxigênio é item mercantilizado e pode representar o crivo entre a vida e a morte. ainda não foi apropriado pelo modo de produção. Portanto, “o modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual” (MARX, 2008MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução: Florestan Fernandes. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 47).

A produção da vida material é mediada pelo trabalho. Este é, ao mesmo tempo, econômico e social: econômico porque gera riqueza e social porque faz do ser social o produtor de sua própria história ao estabelecer um caráter coletivo social da atividade do trabalho, suplantando uma “vinculação entre os membros de uma espécie que já não obedece a puros determinismos orgânicos-naturais”, segundo ressaltam Netto e Braz (2007PAULO NETTO, José; BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2007. (Biblioteca Básica de Serviço Social, v. 1)., p. 34).

Não é intenção aqui empreender uma análise pormenorizada da categoria trabalho, mas apontá-la como mola propulsora das atividades do social.

Gouvêa (2016GOUVÊA, Marina Machado de Magalhães. Imperialismo e método: apontamentos críticos visando a problemas de tática e estratégia. 2016. 279 f. Tese (Doutorado em Economia Política Internacional) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.) adverte que, para o ser social, o ato de estar vivo significa elaborar produtos que anteriormente não existiam e criar novas necessidades, e, ao final desse processo, nem o ser social nem a genericidade humana serão os mesmos, pois a realidade será transformada. A autora assevera:

A mera constatação da necessidade de manter-se vivo não diferencia, contudo, o ser humano dos demais seres vivos. Mas o enunciado vai muito além: não deve ser entendido de maneira unidirecional. O que nos diferencia dos demais seres vivos é nossa maneira de manter-nos vivos, isto é, a forma especificamente humana de reprodução material da vida (teleológica), que nos permite “estar em condições de viver”: a produção. Não é o que necessitamos para reproduzir-nos, mas o como o obtemos [que diferencia o ser natural do ser social] (GOUVÊA, 2016GOUVÊA, Marina Machado de Magalhães. Imperialismo e método: apontamentos críticos visando a problemas de tática e estratégia. 2016. 279 f. Tese (Doutorado em Economia Política Internacional) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016., p. 121).

Nesse sentido, a produção material da vida não diz respeito somente a bens materiais para atender às necessidades humanas, mas também implica o desenvolvimento das forças produtivas, a capacidade criadora do ser social e a objetivação prática que movimenta “distintos complexos de determinações, reproduzindo as relações sociais de produção” (GOUVÊA, 2016GOUVÊA, Marina Machado de Magalhães. Imperialismo e método: apontamentos críticos visando a problemas de tática e estratégia. 2016. 279 f. Tese (Doutorado em Economia Política Internacional) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016., p. 124), bem como as relações sociais de sexo, que ora interessam ao debate.

Portanto, concorda-se com Martins (1982MARTINS, José de Souza. Sobre o modo capitalista de pensar. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1982., p. 9) quando este infere que o “modo capitalista de pensar” enseja uma visão de mundo que se encontra inserida na produção de mercadorias que reiteram a dominação, a exploração e a opressão, ao mesmo tempo que promovem a “coisificação das relações sociais e da desumanização do homem”. Trata-se de um “modo de pensar necessário à reprodução do capitalismo, à reelaboração das suas bases de sustentação - ideológica e sociais” (MARTINS, 1982MARTINS, José de Souza. Sobre o modo capitalista de pensar. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1982., p. 9).

O capitalismo, ao engendrar relações sociais de sexo, atribuiu convenções que são assumidas como feminina ou masculina; estabeleceu, dessa maneira, o controle do corpo e impôs contornos para a dominação-exploração patriarcal, conforme enfatizado por Cisne (2015CISNE, Mirla. Gênero, divisão sexual do trabalho e serviço social. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2015.).

Ela manteve um relacionamento por 9 meses com um rapaz, no entanto, ocorreu o rompimento em meados de 2017, visto que ele não soube lidar com os seus preconceitos e da sociedade.

Léo - entrevista concedida à autora (SANTOS, 2020SANTOS, Thais Felipe Silva dos. A travestilidade e a transexualidade: o Serviço Social e a perícia de retificação de nome e sexo. São Paulo, 2020. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2020., p. 114).10 10 Todos os nomes atribuídos às/aos participantes da pesquisa são fictícios, de modo a não possibilitar propositadamente a sua identificação.

Alude-se ao relato de assistente social em atuação em processo de retificação de nome e sexo jurídico de pessoas transexuais. De sua narrativa, emerge uma história em que o/a profissional relata o rompimento do relacionamento de uma transexual com o seu companheiro porque este se viu premido pelas relações sociais impostas pelo modo de produção e a elas acabou por se submeter, a despeito de seus sentimentos.

Considerando o que se tem discutido neste artigo, a situação suprarreferida demonstra o poder que as relações sociais de sexo exercem sobre o ser social. Do fragmento em comento emergem discriminação, sexismo, machismo e abjetificação da pessoa trans, que não pode ser vista em sociedade como digna de receber afeto e de conviver socialmente com a pessoa com a qual se relaciona. Fica, portanto, o questionamento: as escolhas que se fazem realmente se limitam apenas à esfera da subjetividade?

A estrutura de classes que fomenta o sexismo atua no sentido de preservar a ordem social estabelecida das relações hetero-cis-patriarcais, de modo a criar formas de dominação-exploração-opressão e hierarquizar os seres sociais.

As opressões cotidianas a que pessoas travestis e transexuais estão expostas/os acabam por discriminá-las/os e marginalizá-las/os, inserindo-as/os em terreno de permanente enfrentamento. A narrativa expressa evidencia que o interesse econômico da classe dominante produz uma forma de pensar e de agir que se espraia pelo conjunto da sociedade, de maneira naturalizada e indubitável, conforme já exposto neste artigo.

Nesse sentido, Cisne (2014CISNE, Mirla. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez, 2014., p. 23) atenta para o fato de que “economia e política encontram-se [...] dialeticamente articuladas na dinâmica da determinação e reprodução das classes sociais”.

Iasi (2013IASI, Mauro Luis. O direito e a luta pela emancipação humana. In: FORTI, Valéria Forti; BRITES, Maria Cristina. Direitos humanos e serviço social: polêmicas, debates e embates. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 171-193. (Coletânea Nova de Serviço Social)., p. 177) adverte que as relações sociais são constitutivas da realidade capitalista e “não podemos escolher viver em uma realidade alternativa”.

Se, por um lado, em uma primeira visada, as vivências de sexo despontam como questão de foro íntimo, que mobilizam as denominadas “pautas identitárias”, por outro um olhar mais acurado denota que se trata de um fenômeno multidimensional, para o qual convergem diversas determinações impostas pelo modo de produção capitalista.

Diante de tudo o que foi abordado até o presente momento, resta impossível pensar o sujeito isolado de suas relações sociais, haja vista que, seja em contato com a natureza, seja em contato com outros seres, haverá processos de interação, ruptura, reposição da vida social e resistência.

Se o modo de produção determina uma forma objetiva de existência, pode-se inferir que as categorias sociais de homem e mulher surgiram por necessidade do capitalismo - no intuito de impor as relações sociais de sexo - e são atreladas aos papéis necessários ao desenvolvimento expansionista do capital. Portanto, segundo Garcia (1999GARCIA, Francisco Montero. Ser social, dominação e violência: um estudo do binômio dominação-violência a partir de uma perspectiva ontológica, com ênfase na questão de gênero. 1999. 281 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1999., p. 221), um macho torna-se homem e uma fêmea torna-se mulher sob um determinado contexto sócio-histórico. Recorda-se aqui também da inferência de Machado (2018MACHADO, Gustavo. Marx e a história: das particularidades nacionais à universalidade da revolução socialista. São Paulo: Sundermann, 2018.) acerca da necessidade de o modo de produção retroalimentar suas bases a fim de se perpetuar.

As relações sociais de sexo indicam a posição do que é tido como feminino e, consequentemente, do conceituado como masculino na sociedade de classes, de modo que permitem refletir sobre a compulsória vivência de sexo moldada nessas bases.

As diferenças são encaradas como desigualdades e produzem níveis de hierarquização, de maneira a promover a classificação entre os seres sociais a partir do eixo masculino, branco, cisgênero, heterossexual e eurocêntrico; imagem essa valorada pelo capital e sobre a qual se aplicam poder e prestígio.

Mas, e os demais seres sociais? Eles serão classificados de forma descendente, ficando sujeitos a desvantagens fomentadas pelo modo de produção e, por conseguinte, com rebatimento na vivência objetiva.

As diferenças tomadas como desigualdades fomentam a hierarquia na classe trabalhadora, com consequente impacto nas relações de produção, tal como apontado por Cisne (2014CISNE, Mirla. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez, 2014., p. 27-30), quando assevera que:

[...] as mulheres brancas ganham salários inferiores aos dos homens brancos e superiores aos das mulheres negras e aos dos homens negros [...] Os homens brancos e heterossexuais possuem muito mais privilégio do que o outro extremo da hierarquia social: a mulher negra, lésbica e pobre.

Os estudos realizados permitem inferir que os princípios de separação e de hierarquização dos seres sociais são legitimados pelo capitalismo visando à maximização da extração de mais-valor e, portanto, o sistema cria e reifica seres sociais por meio das relações sociais de sexo, Dessa forma, atribuem-se valores, variação de tempo, espaço, sobretrabalho diferentes para o ser social, a depender de sua vivência de sexo.

O sexo é estruturante do capitalismo e aponta-se aqui que ele foi apropriado pelo modo de produção capitalista que se dá por meio da atribuição de identidade às vivências sociais. Portanto, tem-se o sexo como construção social, historicizada, que estabelece relações sociais estruturantes.

As relações sociais de sexo têm rebatimentos nas relações de produção, uma vez que ambas estão associadas na e para a acumulação de riquezas capitalistas. Segundo Hirata (2014HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça: interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Revista Tempo Social, São Paulo, v. 26, n. 1, jan./jun. 2014. Dossiê: Trabalho e gênero: controvérsias. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702014000100005 . Acesso em: 24 abr. 2021.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
), as relações sociais de sexo e a divisão social e sexual - inclua-se racial, do trabalho - são esferas imbricadas e indissociáveis. Nesse sentido, o ser social, ao assumir a vivência em conformidade com a cisgenericidade ou transexualidade, tem rebatimentos muito além da mera aparência de escolha subjetiva.

Conforme sublinha Tabet (2014TABET, Paola. Mãos, instrumentos e armas. In: FERREIRA, Verônica (org.). O patriarcado desvendado: três feministas materialistas, Collette Guillaumin, Paola Tabet e Nicole-Claude Mathieu. Recife: SOS Corpo, 2014. p. 101-174., p. 108), “é necessário analisar a divisão sexual do trabalho como relação política entre os sexos”. Além disso, Nogueira (2018NOGUEIRA, Leonardo. As determinações patriarcais-heterossexistas da sociedade capitalista. In: NOGUEIRA, Leonardo et al. (org.). Hasteemos a bandeira colorida: diversidade sexual e de gênero no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2018. p. 29-54., p. 36) alerta acerca de que a divisão sexual do trabalho “conforma papéis e naturaliza estereótipos”.

A seguir, analisa-se outro exemplo:

Ela, pelo que me recordo, sempre trabalhou em serviço temporário, sem registro em carteira de trabalho, precarizado. E ela conseguiu ter um trabalho que tenha um mínimo de garantia de direitos a partir do momento que consegue passar num concurso público. [No entanto,] ela vai sofrer aquelas situações que foi o que eu te falei, da questão do holerite ter o nome [registral]; embora eles não usem o crachá, mas, por exemplo, quando ela vai buscar o RH do Estado, ela tem que levar o documento dela, masculino [...]. Essas eram as situações que ela vivenciava. E aí essa questão das condições de trabalho melhorou nesse sentido porque é servidora pública, então, tem um mínimo de garantia de direito, mas, ao mesmo tempo, tinha a questão [do constrangimento], isso para mim, já é uma violência. Você ter que provar que você é você e o seu documento não corresponde à sua identidade. Para mim, isso já é uma violência [...].

Dani - entrevista concedida à autora (SANTOS, 2020SANTOS, Thais Felipe Silva dos. A travestilidade e a transexualidade: o Serviço Social e a perícia de retificação de nome e sexo. São Paulo, 2020. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2020., p. 110).

Os acontecimentos relatados apresentam algumas das dificuldades da pessoa travesti ou transexual no mundo do trabalho. Verifica-se, pelo descrito no fragmento, a fragilidade do vínculo trabalhista, o qual só se sustenta por meio de concurso público, em que a aparência resta secundarizada diante da competência técnica exigida no certame. Apesar disso, a pessoa sofre o constrangimento de sua documentação pessoal estar em dissonância com sua vivência de sexo, uma vez que há ausência de lei estadual que regule o uso - ao menos do nome social - no holerite para pessoas travestis e transexuais ocupantes de cargos públicos.

No caso em comento, a vivência de sexo vai além da autodeclarada e da aparência, de maneira que ingressa nas condições gerais da sociedade capitalista. Faz-se necessário, portanto, seguir as burocracias impostas pelo Estado, ou seja, ter uma “cidadania regulada”11 11 No sentido de ter, por parte do Estado, o reconhecimento da cidadania por meio de documentos, conforme sublinha Santos (1979). por documentos, para poder assegurar direitos trabalhistas e previdenciários mínimos à parcela da classe trabalhadora. Dessa forma, a/o transexual é exposta/o a constrangimento em um simples ato de trabalho, que é a retirada de seu demonstrativo de pagamento; salienta-se aqui que essa é uma situação que acontece mensalmente, ou seja, essa exposição constrangedora se repete de maneira constante.

Pode-se refletir também acerca de que a ausência de documentação adequada à vivência de sexo é aspecto crucial, pois pode levar à exclusão no mercado de trabalho ou até mesmo à não continuidade do vínculo empregatício. Se, por um lado, a exigência de documentação pode conduzir à informalidade e, por vezes, à prostituição de pessoas travestis e transexuais, por outro a imposição de documentação pode servir para mascarar a transfobia, ao evitar a contratação em decorrência da incongruência entre a vivência de sexo e a documentação.

Evidentemente, existem também outras vicissitudes que se abatem sobre a classe trabalhadora, mas as marcas do corpo certamente agudizam a venda da força de trabalho das pessoas travestis e das/os transexuais.

O ser social não é uma abstração e existem determinantes forjados cujo propósito é engendrar desigualdades a partir de diferenças, com o escopo de dominar, explorar e oprimir.

Por fim, analisa-se este outro exemplo de narrativa externada com base nas relações sociais de sexo no que tange à inserção escolar de pessoa transexual.

Na questão escolar, o preconceito que ela teve que enfrentar o tempo todo. [...] foi uma frase dela: “Se tinha três alunos excelentes na minha sala, eu precisava ser o ultraexcelente; o mais excelente para poder mostrar que a minha transexualidade não era um fator, para me mostrar competente, para me mostrar inteligente. Então, eu precisava sempre me esforçar muito mais que outras crianças, que outros alunos, mesmo até no ensino médio, para poder ter o mínimo de aceitação no processo de socialização”.

Ariel - entrevista concedida à autora (SANTOS, 2020SANTOS, Thais Felipe Silva dos. A travestilidade e a transexualidade: o Serviço Social e a perícia de retificação de nome e sexo. São Paulo, 2020. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2020., p. 108).

Observa-se que a busca da/o usuária/o é pela aceitação de sua forma de ser. No entanto, para tal, é preciso que se coloque como o/a melhor naquilo que está sendo feito, no caso em tela, os estudos. Ao que tudo indica, não se trata de apresentar excelência na aprendizagem, mas, por meio da educação formal, conseguir, minimamente, uma inserção social no conjunto da comunidade escolar.

A política pública de educação também pode constituir um lugar de violação para as travestis e as/os transexuais, uma vez que a instituição escolar contribui para a produção de um corpo escolarizado. Nos termos de Louro (1997LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.), são esperados e cultivados comportamentos e expectativas sociais para meninos e meninas; e a escola, como um dos lugares de socialização do indivíduo, pode reforçar os aprendizados, iniciados na família, sobre vivências de sexo. Esse adestramento passa tanto pelas vestimentas ditas masculinas e femininas, pelo uso do banheiro, como por comportamentos e companhias, o que se expressa como formas de violências.

A adoção de uma prática inclusiva da diversidade poderia contribuir efetivamente para a permanência das pessoas travestis e transexuais nas unidades de educação e, consequentemente, com lastro no mundo do trabalho e na preservação da vida.

Por fim, apreender a totalidade social é distinguir seus traços patriarcais, racistas e sexistas que compõem um sistema capitalista, traços que formam um nó indivisível e que se retroalimenta, conforme expõem Cisne e Santos (2018CISNE, Mirla; SANTOS, Silvana Mara Morais dos. Feminismo, diversidade sexual e serviço social. São Paulo: Cortez, 2018. (Biblioteca Básica de Serviço Social, v. 8).).

2. Considerações finais

A noção de sexo como categoria construída para atender aos ditames do capital passou a ser problematizada na Academia, mas essa ideia é ainda embrionária na sociedade, que, de modo geral, nutre a concepção baseada na biologia. Por isso, considera-se que, no cotidiano, o rompimento com simbolismos e significados socialmente atribuídos ao sexo enseja lutas em diferentes frentes, além de fomentar o questionamento acerca do instituído e abrir múltiplas possibilidades para a diversidade humana.

Sob a forma debatida neste artigo, defende-se que o sexo é historicamente determinado como estratagema do modo de produção capitalista. Este tem, portanto, em seu lastro, o fomento da hierarquização entre os seres sociais, que adquire objetividade em dominação-exploração-opressão, e decorrem dessa classificação múltiplas expressões da questão social.

Finalmente, a travestilidade e a transexualidade são formas de vida que transcendem as vivências hetero-cis-patriarcais e questionam as relações sociais de sexo; têm aparência de uma questão particular, relativa a um determinado grupo, mas que, em essência, revelam a construção das relações sociais de sexo na sociedade capitalista.

Referências

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  • VENTURA, Miriam. A transexualidade no tribunal: saúde e cidadania. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. (Coleção Sexualidade, gênero e sociedade).
  • 1
    Vocabulário empregado no supracitado Provimento no 73 (Conselho Nacional de Justiça, 2018CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento, n. 73, de 28 de junho de 2018. Dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN). Brasília, 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3503 . Acesso em: 25 set. 2020.
    http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?doc...
    ).
  • 2
    Vocabulário utilizado no mencionado Provimento no 73 (Conselho Nacional de Justiça, 2018CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento, n. 73, de 28 de junho de 2018. Dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN). Brasília, 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3503 . Acesso em: 25 set. 2020.
    http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?doc...
    ).
  • 3
    Segundo Alves (2013ALVES, Giovanni. O que é precariado? Blog da Boitempo, 22 jul. 2013. Disponível em: Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2013/07/22/o-que-e-o-precariado . Acesso em: 15 out. 2018.
    https://blogdaboitempo.com.br/2013/07/22...
    , n. p.), o precariado é “uma nova camada da classe social do proletariado com demarcações [de] categorias bastante precisas no plano sociológico: precariado é a camada média do proletariado urbano precarizado, constituída por jovens-adultos altamente escolarizados com inserção precária nas relações de trabalho e vida social”. O autor aponta que entrevistas realizadas mostraram pessoas transgêneras com inserção em universidades; no entanto também revelaram que, apesar da formação, elas são ocupantes de postos de trabalho precários, em decorrência de sua identidade de gênero.
  • 4
    Drag queen: refere-se a homens que se vestem de mulher de forma exagerada; não necessariamente se reconhecem como alguém desse outro gênero. Suas vestimentas estão atreladas a apresentações artísticas e ativismos; ao contrário da crença social, grande parte deles não é homossexual (JESUS, 2012JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceito e termos. Brasília: [s. n.], 2012.).
  • 5
    Crossdresser: sujeito que “sente prazer em usar roupas femininas, identifica-se como homem e geralmente tem uma vivência heterossexual com uma parceira” (JESUS, 2012JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceito e termos. Brasília: [s. n.], 2012., p. 12).
  • 6
    Não binário: “são pessoas cuja identidade ou expressão de gênero não se limitam às categorias ‘masculina’ ou ‘feminina’. Na dúvida, quando uma pessoa se denomina não binária, é importante sempre perguntar como quer ser identificada. Ela não é, necessariamente, sinônimo de transgênero ou transexual” (BAIOFF, 2018BAIOFF, André. Entenda os gêneros e as complexidade da sigla LGBT: a sigla LGBT ganhou várias outras letras. Preparamos um glossário para você entender as diversas definições. Correio Braziliense, Brasília, 30 set. 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/revista/2018/09/30/interna_revista_correio,709490/entenda-os-generos-e-as-complexidade-da-sigla-lgbt.shtml#:~:text=Na%20%C3%A9poca%2C%20o%20movimento%20era,gays%2C%20l%C3%A9sbicas%20e%20simpatizantes . Acesso em: 24 abr. 2021.
    http://www.correiobraziliense.com.br/app...
    , n. p.).
  • 7
    Transformista: assim como drag queens e drag kings, refere-se a indivíduos que se vestem com roupas do gênero oposto, movidos por fins artísticos, porém de forma menos extravagante (BAIOFF, 2018BAIOFF, André. Entenda os gêneros e as complexidade da sigla LGBT: a sigla LGBT ganhou várias outras letras. Preparamos um glossário para você entender as diversas definições. Correio Braziliense, Brasília, 30 set. 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/revista/2018/09/30/interna_revista_correio,709490/entenda-os-generos-e-as-complexidade-da-sigla-lgbt.shtml#:~:text=Na%20%C3%A9poca%2C%20o%20movimento%20era,gays%2C%20l%C3%A9sbicas%20e%20simpatizantes . Acesso em: 24 abr. 2021.
    http://www.correiobraziliense.com.br/app...
    , n. p.)
  • 8
    Indiretamente quando o bem foi um presente, pois, ainda que confeccionado para tal, os produtos que possibilitaram essa criação passaram pelo mercado; ou ainda, quando se faz algum produto para atender a uma necessidade, os meios que lhe deram origem também passaram pelo mercado.
  • 9
    Diz-se em certas condições porque a pandemia de covid-19 mostrou que o oxigênio é item mercantilizado e pode representar o crivo entre a vida e a morte.
  • 10
    Todos os nomes atribuídos às/aos participantes da pesquisa são fictícios, de modo a não possibilitar propositadamente a sua identificação.
  • 11
    No sentido de ter, por parte do Estado, o reconhecimento da cidadania por meio de documentos, conforme sublinha Santos (1979)SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2022
  • Aceito
    28 Maio 2022
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