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O neoliberalismo na América Latina: 40 anos de impactos na classe trabalhadora

Neoliberalism in Latin America: 40 years of impacts on the working class

Resumo:

Nos últimos 40 anos, o neoliberalismo tem intensificado a superexploração e a precarização das condições de trabalho e vida das classes trabalhadoras no mundo. Neste trabalho, analisamos seus impactos nos países latino-americanos a partir de três eixos: a “questão social”, o mundo do trabalho e as políticas sociais. Através de pesquisa documental e bibliográfica, destacamos as transformações na intervenção estatal e nas políticas sociais da região, em especial o minimalismo e a assistencialização que elas sofrem.

Palavras-chave:
Neoliberalismo; América Latina; “Questão social.”; Trabalho; Assistência social

Abstract:

Over the past four decades, neoliberalism has intensified the overexploitation and precariousness of the working and living conditions of the working classes worldwide. In this study, we analyze its impacts on Latin American countries based on three axes: the “social issue”, the world of work, and social policies. Through documentary and bibliographic research, we highlight the transformations in state intervention and social policies in the region, especially the minimalism and the increasing assistance they experience.

Keywords:
Neoliberalism; Latin America; “Social question.”; Work; Social assistance

Introdução

Este artigo analisa as consequências sociais do atual padrão neoliberal de especialização produtiva nos países latino-americanos, em termos de três questões fundamentais. Por um lado, as mudanças no entendimento e no trato da “questão social”, por outro, as características e as transformações do mundo do trabalho e, finalmente, o tipo de políticas sociais que são desenvolvidas dentro desses marcos e as mudanças na perspectiva universalista das anteriores.

Nas últimas décadas, a América Latina tem vivido sob a vigência de um novo padrão de reprodução do capital, classificado como exportador de especialização produtiva (Marini, 1982MARINI, R. M. Sobre el patrón de acumulación de capital en Chile. Cuadernos Cidamo, v. 7, p. 1-31, 1982.; Osorio, 2004OSORIO, J. Crítica de la economía vulgar. Reproducción del capital y dependencia. México: Universidad Autónoma de Zacatecas, 2004.; 2012OSORIO, J. América Latina: o novo padrão exportador de especialização produtiva - estudo de cinco economias da região. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012.; Sotelo, 2021). Esse padrão, privilegiando a exportação de mercadorias para as quais a região possui vantagens naturais, tende a acentuar o caráter primário-exportador de suas economias. Nesse processo, o Estado ganha especial importância, uma vez que, por meio de sua atuação, ao financiar, alterar legislações e disponibilizar subsídios, “é possível ajudar o capital para que seu trânsito pelo ciclo seja mais fluido e favorável a suas necessidades” (Osorio, 2012OSORIO, J. América Latina: o novo padrão exportador de especialização produtiva - estudo de cinco economias da região. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 72).

A reestruturação capitalista neoliberal, a qual representa uma mudança para um modelo econômico que favorece a liberdade do mercado e a diminuição do papel do Estado (Behring, 2002BEHRING, E. R. La reestructuración neoliberal en América Latina: un análisis crítico. México: Siglo XXI, 2002.), é colocada como uma resposta às necessidades do modo de produção capitalista e suas contradições intrínsecas para a reprodução incessante do capital. Em face da queda das taxas de lucro, da concentração monopolista, do desenvolvimento tecnológico e das crises, o aprofundamento da dependência e da superexploração da força de trabalho é a única resposta possível.

A categoria de superexploração é apresentada para analisar como, em economias periféricas e dependentes, a exploração da força de trabalho é maximizada além dos padrões normais,1 1 Cf. Thays Fidelis em palestra “A reprodução da força de trabalho em Marx: a normalidade nos países centrais e a anormalidade nos países periféricos”, disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=9PFm0w-vDTk. com o objetivo de extrair mais-valor do trabalho do que em contextos de desenvolvimento capitalista mais avançado (Marini, 1979MARINI, R. M. Dialéctica de la dependencia. 4. ed. Ciudad de México: Era, 1979.).2 2 Vale destacar que, com a reestruturação capitalista neoliberal, considera-se que as formas de superexploração se expandem globalmente, mas sob formas operativas, enquanto na América Latina se reproduz como uma dinâmica estrutural (Marini, 1979; Sotelo, 2021). Segundo o autor, há três mecanismos que a definem: o aumento da intensidade do trabalho; a prolongação da jornada de trabalho; e a redução e a apropriação do consumo do trabalhador. Para isso, é necessária uma série de superestruturas que garantam tanto a subsunção real do trabalho ao capital como a legitimação das relações sociais capitalistas.

O Estado se apresenta como uma superestrutura especial que possui uma relação umbilical com o capital, sendo um campo superestrutural diretamente vinculado à estrutura. Tem-se, portanto, uma relação de codeterminação entre as unidades reprodutivas materiais e o Estado, cuja estrutura de governança permite que os defeitos estruturais do sistema sejam contidos em favor da dinâmica expansionista do capital (Mészáros, 2011MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria de transição. São Paulo: Boitempo, 2011.; Paniago, 2012PANIAGO, M. C. S. Mészáros e a incontrolabilidade do capital. 2. ed. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.).

O desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo - desenvolvido por Trotsky (1978TROTSKY, L. A revolução permanente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.) e amplamente debatido entre as/os estudiosas/os da teoria marxista da dependência -, que descreve como diferentes regiões do mundo se desenvolvem a ritmos variados e como coexistem simultaneamente níveis diversos de desenvolvimento econômico e tecnológico, leva os países dependentes latino-americanos a uma situação de desenvolvimento particular, no qual esteja garantida sua posição subordinada às exigências da reprodução e da acumulação do capital mundializado. Esse desenvolvimento diferenciado exige uma conformação particular do Estado que coadune com a particularidade dos processos de reprodução e acumulação de capital dependentes.

Nesse contexto, nos perguntamos sobre os efeitos que esse padrão neoliberal tem sobre a reprodução social da classe trabalhadora e sobre as políticas sociais que são desenvolvidas para sustentar tanto a reprodução ampliada do capital quanto a contenção da organização social. Diante dessas questões, argumentamos que a reconfiguração neoliberal tem consequências não só na perspectiva e no trato da “questão social”, mas também nas condições de trabalho e de vida das classes trabalhadoras, determinadas cada vez mais por formas de superexploração e condições de precariedade.

Argumentamos igualmente que, para conter essas condições, vêm sendo desenvolvidas políticas sociais que negam a totalidade da reprodução social e que se voltam ao atendimento pontual e atomizado das expressões da “questão social” - num sentido contrário ao Projeto Ético-Político do Serviço Social. Como uma das principais respostas, impulsionados por alguns organismos internacionais, especialmente o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), instauram-se os programas de transferência monetária condicionada (PTMC) em diversas políticas sociais, aprofundando as ações estatais de corte reducionistas e focalizadas, com uma forte ênfase na responsabilização das pessoas pela sua condição de pobreza e pela sua reprodução.

Como metodologia, utilizamos fontes teóricas, estudos empíricos e dados, com o objetivo de caracterizar três eixos, correspondentes a diferentes níveis de abstração. Em primeiro lugar, resgatamos a metamorfose da “questão social” durante a fase neoliberal (tendo como contraponto a fase fordista-keynesiana anterior3 3 Cf. Thays Fidelis em sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulada: As “funções ideológicas” das políticas sociais nos regimes de acumulação fordista-keynesiano e flexível. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=3708983. ), e como isso impactou na ressignificação das políticas sociais em geral. Em segundo lugar, analisamos as transformações no mundo do trabalho, levando em conta o aprofundamento da dinâmica da precariedade como forma de superexploração. Por fim, reconstruímos as formas assumidas pelas políticas sociais na América Latina diante do padrão neoliberal, mostrando o lugar ocupado aqui pelas formas de focalização e assistência, em especial os PTMC.

1. A “questão social” e as políticas sociais sob o neoliberalismo

A “questão social” vem sendo objeto de estudo no Serviço Social brasileiro desde o processo de reconceituação, em especial a partir da década de 1980, quando a categoria profissional dá um salto qualitativo na produção de conhecimento. Iamamoto (2003IAMAMOTO, M. A questão social no capitalismo. Revista Praia Vermelha, Rio de Janeiro, n. 8, p. 56-83, jan./jun. 2003., p. 66) contribui imensamente para o tema quando afirma que: “foram as lutas sociais que romperam o domínio privado nas relações entre capital e trabalho, extrapolando a ‘questão social’ para a esfera pública, exigindo a interferência do Estado para o reconhecimento e a legalização de direitos e deveres dos sujeitos sociais envolvidos”.

O Estado burguês, por sua relação de codeterminação com o capital (Mészáros, 2011MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria de transição. São Paulo: Boitempo, 2011.), deve agir de modo complementar para garantir a reprodução e a acumulação do capital em suas diversas fases: padrão concorrencial-Estado liberal, padrão fordista-Estado keynesiano e padrão flexível-Estado neoliberal (Harvey, 1993HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1993.), nos países de capitalismo central. Nos países dependentes latino-americanos, as fases são: agrário-exportadora, industrial-desenvolvimentista e financeiro-flexível, tendo as formas que lhes correspondem os Estados oligárquico, populista e neoliberal. Retomamos essa relação entre capital e Estado, porque em cada fase desses pares o enfrentamento à “questão social” sofre variações.

Seja nos países de capitalismo central, seja nos de periférico e respeitando as particularidades da fase do capital nas distintas formações sociais, o Estado burguês em sua fase keynesiana/populista constrói estratégias de enfrentamento à “questão social” através da sua fragmentação em expressões que possam ser administradas por meio de políticas sociais. Estas são construídas de diversas formas, sendo o “modelo padrão” o Estado de Bem-Estar Social europeu dos chamados “Anos Dourados” - na fase fordista-keynesiana.

As políticas sociais latino-americanas surgem na transição para a fase desenvolvimentista-populista, quando se tem o processo de industrialização, além da conformação de uma nova estrutura de classes sociais, momento em que as classes fundamentais capitalistas (burguesia e proletariado) se mostram constituídas (Bambirra, 2019BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. 4. ed. rev. Florianópolis: Insular, 2019.). Nesse processo, os movimentos sociais das primeiras décadas do século XX passam a exigir a politização da “questão social”, momento em que começam a se estruturar as políticas sociais - ainda que apenas para parcela da classe trabalhadora. Esse processo nada fácil nem curto foi acompanhado por uma institucionalização de algumas profissões (como o Serviço Social) que lidam com suas expressões.

Devido à perversa associação entre a superexploração da força de trabalho (como condição de reprodução e acumulação do capital nos países dependentes) e a passivização das lutas sociais (como resultado de um histórico de corporativismo sindical e repressão político-institucional aos movimentos sindicais) que determinam a particularidade da “questão social” no Brasil (Santos, 2012SANTOS, J. S. Particularidades da “questão social” no Brasil: mediações para seu debate na “era” Lula da Silva. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 111, p. 430-449, jul./set. 2012.), as políticas sociais foram sendo constituídas de modo focalizado e paulatino.

Quando há uma mudança de fase, ou seja, quando há uma modificação no regime de acumulação fordista/desenvolvimentista para o flexível, surgem novas exigências para o Estado, visando garantir a reprodução e a acumulação do capital. Harvey (1993HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1993., p. 140) nomeia esse novo regime de acumulação como flexível, sendo o contraponto da rigidez fordista, pois ele se “se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo”.

As exigências da acumulação flexível aparecem na América Latina, traduzidas nas dez medidas (baseadas no texto do economista John Williamson) criadas pelo BM, FMI e Tesouro dos Estados Unidos (EUA), o que ficou conhecido como Consenso de Washington - as dez medidas são: disciplina fiscal; redução dos gastos públicos; reforma tributária; juros de mercado; câmbio de mercado; abertura comercial; investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições; privatização das estatais; desregulamentação (afrouxamento das leis trabalhistas); e direito à propriedade intelectual. Elas começaram a ser implementadas nos países latino-americanos a partir da década de 1970, podendo ser observadas:

[...] primeiramente, após o golpe de estado de Pinochet ao governo eleito de Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, no Chile. Em seguida, com os triunfos de Thatcher, em 1979, na Inglaterra, e de Reagan, em 1980, nos Estados Unidos, seguidos em quase toda a Europa central (Alemanha, França, Espanha etc.), ganha[m] hegemonia no mundo capitalista dos países centrais, principalmente no ocidente. México, Argentina, Colômbia, Peru vão dar continuidade à hegemonia neoliberal na América Latina, com o Brasil ingressando plenamente na sua programática após o triunfo de Collor em 1989 (Montaño; Duriguetto, 2010MONTAÑO, C.; DURIGUETTO, M. L. Estado, classe e movimento social. São Paulo: Cortez, 2010., p. 194).

Dada a relação de codeterminação entre capital e Estado, este passa por uma reconfiguração, mantendo suas principais funções, à medida que suas novas diretrizes atendam às novas demandas de reprodução e acumulação do capital, agora financeirizado. Assim, o Estado neoliberal tem como horizonte a implementação do Consenso de Washington e, para isso, os ideólogos burgueses criam uma cultura da crise (Mota, 2015MOTA, A. E. Cultura da crise e seguridade social. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2015.). Mesmo que essa cultura, negando a crise estrutural do capital (Mészáros, 2009MÉSZÁROS, I. La crisis estructural de la política. In: BORGIANNI, E.; MONTAÑO, C. (org.). Coyuntura actual, latinoamericana y mundial: tendencia y movimientos. São Paulo: Cortez, 2009.), utilize-se do conceito de crise para legitimar as transformações societárias necessárias à nova fase de acumulação do capital.

Dentre essas transformações, a contrarreforma do Estado toma centralidade devido à sua relação umbilical com o capital. O Estado deve, nessa fase, direcionar todos os seus esforços para as estratégias de retomada das taxas de lucro dos “anos dourados” (países centrais) e do período desenvolvimentista (países dependentes) - retirando-se ao máximo do âmbito social. Cria-se, para isso, uma falácia de crise do Estado, visando à retirada das políticas sociais do orçamento público - falácia já amplamente debatida, com destaque para Behring e Boschetti (2011BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2011.) e Montaño (2008MONTAÑO, C. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008.).

Como apontado no início desta seção, o trânsito da “questão social” do âmbito privado para o público exigiu a interferência do Estado para o reconhecimento e a legalização de direitos e deveres dos sujeitos sociais. Com o par acumulação financeira/flexível e Estado neoliberal, a “questão social” é empurrada de volta para o âmbito privado e para sua equiparação à pauperização. Esse processo se dá, essencialmente, de forma concomitante à precarização das políticas sociais, à (re)mercantilização dos serviços sociais e à (re)filantropização das respostas às expressões da “questão social” (Montaño, 2003MONTAÑO, C. (org.). Servicio social crítico: hacia la construcción del nuevo proyecto ético-político profesional. São Paulo: Cortez, 2003.).

A precarização resulta na assistencialização, transformando o cidadão-usuário de políticas sociais em cliente - a precarização é o primeiro passo para a privatização das políticas sociais, pois ao disponibilizar “pobres políticas sociais para os pobres”, apresentam-se duas opções: ou tais serviços são comprados no mercado ou os indivíduos ficam à mercê da caridade e da filantropia. A (re)mercantilização se dá mediante a venda dos serviços sociais antes oferecidos de modo público e gratuito pelo Estado, como a Educação e a Saúde; observando a lucratividade na transformação de tais serviços em mercadorias e utilizando-se do argumento de crise fiscal estatal, esses e outros serviços são colocados no mercado e vendidos ao consumidor. A (re)filantropização transfere para a sociedade civil a responsabilidade por aquelas pessoas que não conseguem comprar os serviços no mercado e que têm acesso somente aos serviços precários, focalizados e descentralizados oferecidos pelo Estado. Assim, há um apelo pela ajuda mútua mediante práticas voluntárias de caridade e filantropia.

Esses três processos são acompanhados pelo surgimento e pelo aprofundamento do chamado Terceiro Setor, pois ele contribui para:

a) Justificar e legitimar o processo de desestruturação da Seguridade Social e desresponsabilização do Estado na intervenção social [...]. b) Desonerar o capital da responsabilidade de co-financiar as respostas às refrações da “questão social” mediante políticas sociais estatais [...]. c) Despolitizar os conflitos sociais dissipando-os e pulverizando-os, e transformar as “lutas contra a reforma do Estado” em “parceria com o Estado” [...]. d) Criar a cultura/ideologia do “possibilismo” [...]. e) Reduzir os impactos (negativos ao sistema) do aumento do desemprego [...]. f) A localização e trivialização da “questão social” e a auto-responsabilização pelas respostas às suas sequelas (Montaño, 2008MONTAÑO, C. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008., p. 233, grifos do autor).

Destacamos a desresponsabilização do Estado na intervenção social, a desoneração do capital no cofinanciamento das respostas à “questão social”, a despolitização dos conflitos sociais e a autorresponsabilização dos indivíduos pelos problemas sociais. Esses quatro aspectos aprofundam o processo de reversão política que a “questão social” sofre, um processo de “legitimação do desmonte social do Estado, do apassivamento da classe trabalhadora, da despolitização da sociedade civil, da construção da lógica do possibilismo e da criação da ideologia da auto-responsabilização dos sujeitos” (Montaño, 2014MONTAÑO, C. O lugar histórico e o papel das ONGs. In: MONTAÑO, C. (org.). O canto da sereia: crítica à ideologia e aos projetos do “terceiro setor”. São Paulo: Cortez, 2014., p. 93, grifos do autor).

Como veremos nas seções seguintes, esse processo vem resultando em políticas sociais neoliberais que negam o conceito de direitos sociais, transformando-os em programas e benefícios para os comprovadamente indigentes, num processo de centralidade do salário para a reprodução da força de trabalho (em detrimento dos salários indiretos); de negação dos princípios de universalidade, igualdade e gratuidade (típicos de políticas sociais públicas); e de assistencialização das políticas sociais (restringindo as políticas sociais para os “indigentes”).

2. As transformações no mundo do trabalho na América Latina sob o neoliberalismo

A base para a reprodução do capital está na exploração da classe trabalhadora e, por isso, as transformações na estrutura produtiva e em cada modelo político-econômico afetam diretamente as condições de trabalho das pessoas e, por consequência, suas condições de vida. O sistema capitalista não se difunde de forma homogênea e as particularidades que assume estão intimamente relacionadas às características que definem cada formação social.

O capitalismo dependente se reproduz sob a superexploração da classe trabalhadora nas diferentes dinâmicas ao longo da história (Marini, 1979MARINI, R. M. Dialéctica de la dependencia. 4. ed. Ciudad de México: Era, 1979.). Esse mecanismo continua a se desenvolver diante da necessidade dos capitalistas locais de compensar a transferência de valor em suas diferentes modalidades: troca desigual (capital comercial); endividamento; pagamento de royalties e juros (capital financeiro); investimento estrangeiro direto (capital produtivo) (Reyes Nuñez, 2020REYES NUÑEZ, C. El intercambio desigual como fundamento de la heterogeneidad en el sistema mundial capitalista. In: OSORIO, J.; REYES NUÑEZ, C. La diversidad en el sistema mundial capitalista. Ciudad de México: Gedisa, 2020. p. 89-170.; Seibel Luce, 2018SEIBEL LUCE, M. Teoria marxista da dependência, problemas e categorias: uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.).

Embora existam limites para o aprofundamento da exploração - principalmente devido à capacidade de organização da classe trabalhadora -, as transformações do sistema mundial capitalista, desde meados do século XX, e a reestruturação neoliberal em resposta às grandes crises (como a “crise do petróleo” em 1973 ou a “crise financeira” em 2008MARINI, R. M. Proceso y tendencias de la globalización capitalista. In: MARTINS, C. E. (comp.). América Latina, dependencia y globalización. Bogotá: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales; Siglo del Hombre Editores, 2008.) são expressas em uma expansão da superexploração, em diferentes regiões do mundo. Na América Latina, esse mecanismo continuará sendo reproduzido de modo estrutural, enquanto nos países centrais ele assume uma dinâmica operacional, por meio de diferentes formas de precariedade - recaindo principalmente sobre as pessoas migrante, em especial, aprofundando as desigualdades de gênero e étnico-raciais (Sotelo Valencia, 2012bSOTELO VALENCIA, A. Los rumbos del trabajo: superexplotación y precariedad social en el siglo XXI. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México; Porrúa, 2012b.; 2015SOTELO VALENCIA, A. El precariado: ¿nueva clase social? Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, Posgrado en Estudios Latinoamericanos; Buenos Aires: Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, Posgrado en Estudios Latinoamericanos; Fundación de Investigaciones Sociales y Políticas de Buenos Aires, 2015.; 2019SOTELO VALENCIA, A. Trabajo y superexplotación: una revalorización positiva para el siglo XXI. En el trabajo en el capitalismo global. Problemáticas y tendencias. Barcelona: Anthropos, 2019.).

A possibilidade de expansão da superexploração e as diferentes modalidades que ela assume não são respostas mecânicas à crise em termos econômicos, mas foram mediadas por uma reconfiguração política global e local que buscou ativamente destruir a estrutura organizacional da classe trabalhadora. Isso fica claro na região, com o avanço de processos ditatoriais violentos em meados do século XX, comandados explicitamente pelos Estados Unidos, como o famoso Plano Condor. A chamada reestruturação neoliberal desenvolveu um padrão de reprodução por especialização produtiva na América Latina, que,

[...] define o novo perfil dessas economias em termos da orientação de seus recursos (capital, trabalho e terra) para as atividades mais rentáveis do mercado mundial, em detrimento da produção e dos mercados internos, provocando fortes movimentos recessivos, crise capitalista e desequilíbrios recorrentes (Sotelo Valencia, 2012aSOTELO VALENCIA, A. Dependencia y superexplotación: la perspectiva de Marini. Revista de la Facultad de Economía, n. 44, p. 17-36, 2012a., p. 33, tradução livre).

Esse padrão representa uma ruptura com o processo de industrialização interna que ocorreu entre as décadas de 1930 e 1960, dando origem a processos diferentes, mas contínuos, de desindustrialização, reprimarização e, dependendo do sinal político, desnacionalização ou, ao contrário, nacionalização de áreas de setores estratégicos. A produção se concentrou em setores agrícolas, de mineração, industriais de baixa composição orgânica e de serviços, em um desenvolvimento produtivo não integrado e dependente de bens tecnológicos, conhecimentos e designs estrangeiros (Osório, 2016OSORIO, J. Teoría marxista de la dependencia. História, fundamentos, debates y contribuciones. Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento, 2016.).

Esse modelo continua se aprofundando com formas de transferência de valor que se reproduzem por meio de: saídas de divisas, investimento estrangeiro direto, pagamentos de patentes e grande endividamento externo. Além disso, em nível local e global, o desenvolvimento tecnológico, o teletrabalho, a mecanização e a inteligência artificial estão deslocando a necessidade de mão de obra em algumas áreas, gerando desemprego e restringindo o processo de produção de valor (Sotelo Valencia, 2015SOTELO VALENCIA, A. El precariado: ¿nueva clase social? Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, Posgrado en Estudios Latinoamericanos; Buenos Aires: Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, Posgrado en Estudios Latinoamericanos; Fundación de Investigaciones Sociales y Políticas de Buenos Aires, 2015.).

Desde o final do século XX, principalmente como consequência desses processos, o mundo do trabalho tem passado por transformações e muitas pessoas sobrevivem cotidianamente realizando múltiplas atividades que, em geral, não são consideradas trabalho do ponto de vista do emprego formal (Sotelo Valencia, 2012aSOTELO VALENCIA, A. Dependencia y superexplotación: la perspectiva de Marini. Revista de la Facultad de Economía, n. 44, p. 17-36, 2012a.; 2012bSOTELO VALENCIA, A. Los rumbos del trabajo: superexplotación y precariedad social en el siglo XXI. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México; Porrúa, 2012b.; 2015SOTELO VALENCIA, A. El precariado: ¿nueva clase social? Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, Posgrado en Estudios Latinoamericanos; Buenos Aires: Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, Posgrado en Estudios Latinoamericanos; Fundación de Investigaciones Sociales y Políticas de Buenos Aires, 2015.). Essas transformações são, também, mecanismos de superexploração. Para seu desenvolvimento, foi necessário destruir tanto a organização da classe trabalhadora quanto os próprios empregos.

O desemprego, que caracterizou as décadas de 1980 e 1990, mais tarde assumiu a forma de subemprego. A classe trabalhadora desempregada, como um exército industrial de reserva, acaba fornecendo as condições para a exploração redobrada da classe trabalhadora empregada, atual e futura. O desemprego se aprofundou nos países da região desde a década de 1980 até o início do século XXI, conforme demonstrado pela análise de Jaime Ros (2005ROS, J. El desempleo en América Latina desde 1990. Ciudad de México: Cepal, 2005., p. 7, tradução livre) para a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal):

A taxa de desemprego aumentou durante a década de 1990, atingindo, em média, um nível da ordem de 10% da força de trabalho e, em alguns países da América do Sul, esse indicador de fato disparou. [...] A média ponderada da taxa de desemprego urbano aumentou de 6,9% em 1990 para 10,6% em 2003, a mais alta da história da região.

Esse fenômeno ocorreu de forma diferenciada nos países da região, de acordo com as diferentes tendências assumidas pelo padrão de especialização em cada caso: na América do Sul, com centralidade na reprimarização e na manufatura industrial; e no México e na América Central, com centralidade nos serviços (Sotelo Valencia, 2021SOTELO VALENCIA, A. Subimperialismo y dependencia en América Latina: el pensamiento de Ruy Mauro Marini. Ciudad de México: Clacso; Universidad Nacional Autónoma de México, 2021.). Assim:

Em 2002, as taxas de desemprego variaram entre 2% e 3% no México e na Guatemala, 9% e 10% no Chile e no Peru, e 16,5%, 17% e 19,7% na Colômbia, no Uruguai e na Argentina. Essa disparidade tem um padrão geográfico distinto. Todos os países da América do Sul registraram aumentos no desemprego, enquanto a maioria dos países da América Central e do Caribe apresentou reduções no desemprego (Ros, 2005ROS, J. El desempleo en América Latina desde 1990. Ciudad de México: Cepal, 2005., p. 8, tradução livre).

O contexto da pandemia da covid-19 e a necessidade de responder às pessoas que ficaram sem cobertura trabalhista expuseram claramente um fenômeno que já vinha se delineando há algum tempo, o crescimento da informalidade do trabalho (Giraudo; Branca, 2022GIRAUDO, M.; BRANCA, A. Mediações sciotécnicas nas políticas públicas durante a pandemia da covid-19 na província de Córdoba (Argentina) em 2020. Informe Econômico (UFPI), v. 45, n. 2, p. 51-78, 2022.). As taxas de desemprego não caíram em função de empregos assalariados bem remunerados e com direitos trabalhistas, mas em virtude de arranjos de trabalho informais, em que as condições são totalmente desprovidas de proteção social, segurança no emprego e benefícios, como seguro-saúde, pensões, bônus de Natal, férias ou indenização por demissão.

Como analisado por Espejo (2022ESPEJO, A. Informalidad laboral en América Latina: propuesta metodológica para su identificación a nivel subnacional. Cepal, Santiago: Naciones Unidas, n. 55, 2022.) em um documento da Cepal, a informalidade do trabalho não é algo específico desse último período. Trata-se de um fenômeno estrutural na história da região e, desde a década de 1980, tornou-se central após as transformações geradas pelo novo padrão de especialização; a crise da dívida; o avanço do setor primário e a expansão do setor terciário, dos serviços e das microempresas, que concentram mais da metade do emprego total.

A informalidade também foi marcada pela descentralização e pelo offshoring da produção, em que as empresas se desenvolveram sob formas de subcontratação de outras unidades e forças de trabalho em condições precárias, burlando a legislação trabalhista e tributária. Dessa maneira, os empregadores economizam custos e melhoram sua competitividade, explorando ainda mais a classe trabalhadora. Esse modelo se aprofundou na década de 1990, quando 61% dos empregos gerados eram informais (Espejo, 2022ESPEJO, A. Informalidad laboral en América Latina: propuesta metodológica para su identificación a nivel subnacional. Cepal, Santiago: Naciones Unidas, n. 55, 2022.).

Embora um processo de formalização estivesse ocorrendo durante a primeira década do século XXI, a taxa média de informalidade na região permaneceu em torno de 51%, desde 2012 até o período 2017-2019 (Maurizio, 2021MAURIZIO, R. Empleo e informalidad en América Latina y el Caribe: una recuperación insuficiente y desigual. Genebra: OIT, 2021.). Com a pandemia da covid-19, houve um aumento do desemprego, que foi substituído logo em seguida por um aumento da taxa de emprego. No entanto, esse aumento não representou o retorno aos postos de empregos com direitos trabalhistas, pois entre 60% e 80% se deu como emprego informal logo após a pandemia (Espejo, 2022ESPEJO, A. Informalidad laboral en América Latina: propuesta metodológica para su identificación a nivel subnacional. Cepal, Santiago: Naciones Unidas, n. 55, 2022.).

Essas condições de informalidade e sua consequente precariedade ocorrem de forma diferenciada, de acordo com a desigualdade social interna da classe trabalhadora e marcadores de gênero, étnicos, raciais, etários e territoriais: “A taxa de emprego informal é maior entre as mulheres (54,3%), na população jovem (62,4%) e entre a população idosa (78%), e está concentrada principalmente nas áreas rurais (68,5%)” (OIT apudEspejo, 2022ESPEJO, A. Informalidad laboral en América Latina: propuesta metodológica para su identificación a nivel subnacional. Cepal, Santiago: Naciones Unidas, n. 55, 2022., p. 7, tradução livre).

A precariedade no trabalho é também resultado da precariedade da política social para o trabalho, podendo ser observada na falta de políticas para empregos de mulheres e dissidentes, que têm menos acesso a empregos formais, recebem menos pelos mesmos empregos, são impedidos de acessar posições melhores e afetados pelo trabalho doméstico não remunerado (Valenzuela, 2022VALENZUELA, M. E. Hacer del trabajo doméstico un trabajo decente: invertir en cuidado. Una agenda común: hoja de ruta y recomendaciones para políticas públicas. Lima: OIT, 2022.).

Por fim, não podemos deixar de apontar um indicador preocupante para considerar a precariedade da classe trabalhadora: o trabalho infantil. Embora, de acordo com dados da Cepal (2022CEPAL. Panorama social de América Latina y el Caribe. La transformación de la educación como base para el desarrollo sostenible. Santiago: Naciones Unidas, 2022. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.cepal.org . Acesso em: 28 jun. 2024.
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), esteja diminuindo, ainda há uma população considerável de crianças trabalhadoras na região latino-americana que se encontra em condições de informalidade, sem nenhum direito trabalhista e, em geral, sem acesso à educação. Soma-se a isso a ainda preocupante situação da (in)segurança alimentar e nutricional (Cepal, 2024CEPAL. Coyuntura laboral en América Latina y el Caribe: desafíos y oportunidades para la inclusión laboral de las personas jóvenes y la redistribución del trabajo de cuidados. Santiago: Naciones Unidas, 2024.; Branca, 2023BRANCA, A. Despojo y precarización en América Latina: entre el neodesarrollismo y el neoliberalismo. In: OROZCO, R. et al. (coord.). Viejas y nuevas derechas en América contrainsurgencia, despojos y sentidos comunes. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso), 2023. p. 233-260.).

Esses indicadores, entre tantos outros associados ao chamado fenômeno da uberização e aos projetos de contrarreformas trabalhistas e previdenciárias, expressam um modelo em que a superexploração da classe trabalhadora é o mecanismo preferido para a manutenção da reprodução do capital local, bem como a acumulação concentrada e a reprodução ampliada do capitalismo imperialista que permanece em novas formas. As referidas contrarreformas se difundem socialmente sob a falácia de ampliação de postos de empregos como contrapartida da redução de direitos. No entanto, o que se tem é uma política social de emprego neoliberal que amplia os empregos precarizados e sem direitos trabalhistas.

3. A assistência social latino-americana sob o neoliberalismo

Analisar as mudanças contemporâneas na proteção social requer compreender as tendências históricas que guiaram a intervenção estatal na reprodução da força de trabalho e, por isso, é essencial considerar as políticas que orientaram essa intervenção na América Latina.

Desde a segunda metade dos anos 1980, as contrarreformas começaram a se expandir através da participação de organismos financeiros multilaterais, como o BM, o FMI e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Esses organismos, com seus empréstimos condicionados, promoveram reformas baseadas no Consenso de Washington que ficaram conhecidas como reformas de “primeira geração”, pois buscavam combater a inflação, reformar a seguridade social e privatizar empresas públicas rentáveis.

Posteriormente, as políticas do Consenso de Washington foram questionadas, promovidas pela mudança política em vários países, especialmente na América do Sul, onde governos “progressistas” começaram a redefinir o panorama. Além disso, as mobilizações e as lutas sociais expressaram o descontentamento com os efeitos das políticas de ajuste estrutural, que levaram ao aumento da pobreza e da desigualdade.

Esse contexto deu lugar às chamadas reformas de “segunda geração”, centradas na suposta eficácia institucional e na governabilidade, com ênfase na consolidação de redes de seguridade social (incluindo o chamado terceiro setor) e na participação do setor privado em serviços sociais. Os organismos financeiros multilaterais basearam seus programas em quatro diretrizes principais: redução da pobreza, consolidação de redes de seguridade social, estímulo à participação do setor privado em serviços sociais e busca da governabilidade (PNUD, 2016PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO 2016. PNUD no Brasil. Brasília, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.undp.org/pt/brazil/pnud-no-brasil . Acesso em: 28 jun. 2024.
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).

Na América Latina, o paradigma da pobreza se tornou o eixo de políticas e programas sociais. Esse enfoque técnico e teórico desenvolvido pelos organismos multilaterais e adotado pelos Estados se concentrou em atender às manifestações imediatas da “questão social”, como o desemprego e a pobreza absoluta, desvinculando-as do processo de produção e reprodução da riqueza. Os programas setoriais e focalizados na pobreza promoveram mecanismos compensatórios, como transferências de renda, “inclusão produtiva” e fomento ao empreendedorismo como respostas ao desemprego estrutural.

Essas políticas interpretam a superpopulação relativa como um problema natural a ser enfrentado com mecanismos de controle e “reintegração”. As causas dos problemas sociais são individualizadas, atribuindo-se à inserção no mercado de trabalho e às características pessoais, reduzindo a “questão social” a um problema técnico que pode ser resolvido com ações eficientes e eficazes.

A redução da “questão social” à pobreza se articula com a consolidação de redes mínimas de atendimento social, focalizadas nos setores mais empobrecidos, consideradas mais eficazes que as políticas sociais universalistas. Essas redes mínimas, ampliadas com a participação de organizações da sociedade civil e do setor privado, marcam uma mudança na relação público-privada, promovendo a privatização de serviços sociais rentáveis e limitando o acesso a quem pode pagar.

As transformações neoliberais que exigiram transformações no Estado promoveram sob o neoliberalismo a fragmentação sindical, a segmentação produtiva e a desarticulação da proteção social, incentivando o individualismo e fortalecendo a política assistencial como tendência generalizadora. Essa política se consolidou na América Latina como resposta à pobreza e à indigência, mantendo seu alcance massivo e residualidade orçamentária. Essa modalidade de prestação reconfigurou o papel da assistência na matriz de proteção social e redesenhou suas bases institucionais, marcando uma tendência à focalização e à privatização dos serviços sociais com principal ênfase nos programas de transferência monetária condicionada (PTMC).

Em todos os países da América Latina, implementa-se esse tipo de programas com características diversas, mas com um núcleo comum de focalização e condicionalidade para obter o subsídio econômico. Esses programas buscam melhorar o “capital humano” e inserir as pessoas beneficiárias no mercado de trabalho, com ênfase nas mulheres chefes de família. No entanto, isso requer políticas complementares que facilitem essas condições, como a ampliação de espaços de trabalho formais e políticas de cuidado, que não existem sob o neoliberalismo.

Os PTMC ganham destaque entre as estratégias de combate à pobreza na região a partir dos anos 90 do século XX. Nesse cenário, o BM e o FMI passam a exigir, como parte dos empréstimos aos governos latino-americanos, a adoção de uma agenda de combate à pobreza, sendo uma das estratégias recomendadas a implementação de programas de renda mínima (Stein, 2005STEIN, R. H. As políticas de transferências de renda na Europa e na América Latina: recentes ou tardias estratégias de proteção social? 2005. Tese (Doutorado). Departamento de Estudos Latino-americanos, Universidade de Brasília, Brasília, 2005.). Essas prescrições neoliberais para mitigar “os males” dos países latino-americanos implementaram uma série de contrarreformas que transformaram as estruturas dos Estados, promovendo privatizações, liberalização econômica, mercantilização dos serviços públicos, desmantelamento da política social e dos serviços públicos, entre outras características.

É nesse contexto que surgem os PTMC, em que o número total de programas implementados pelo conjunto desses países até 2015 era de 30 (Figura 1), com a coexistência de mais de dois programas em alguns países (como é o caso do Brasil e da Colômbia, por exemplo). Atualmente, mais de 18 países da região contam com programas de transferências condicionadas, e esse processo de institucionalização crescente se manifesta na sua expansão geográfica e na sua densidade institucional. Os programas beneficiam aproximadamente mais de 25 milhões de famílias (cerca de 113 milhões de pessoas), o que representa cerca de 20% da população da América Latina (Cepal, 2017CEPAL. Programas de transferencias condicionadas en América Latina y el Caribe. Santiago: Naciones Unidas, 2017. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.cepal.org . Acesso em: 28 jun. 2024.
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).

Figura 1.
Número de PTMC na América Latina e no Caribe por ano, 1996-2015

O processo de expansão desses programas se articula à dinâmica da luta de classes como um mecanismo de contenção sociopolítica, formando parte da hegemonia política da classe dirigente. É possível afirmar que a política assistencial na América Latina se direcionou para um enfoque de transferências monetárias condicionadas; centradas na pobreza e na geração de capacidades; com uma estrutura que busca integrar as pessoas beneficiárias no mercado de trabalho, sem condições materiais reais; e que dá uma ênfase especial ao capital humano, discurso que busca a culpabilização e a individualização da pobreza. Esse enfoque, que nega a totalidade dos sujeitos, desvincula as necessidades de reprodução da força de trabalho à inserção no mundo do trabalho e acaba por direcionar as políticas sociais a um processo de assistencialização.

Como explicação dessa tendência, concordamos com Sánchez (2023SÁNCHEZ, M. A assistência social na América Latina: uma análise a partir das características gerais do desenvolvimento histórico das formações sociais no capitalismo dependente. 2023. Tese (Doutorado) - Faculdade de Serviço Social, Pós-graduação em Serviço Social, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2023.) quando menciona que essa expansão responde à gestão estatal do “sujeito pobre”, ligado ao crescimento da superpopulação relativa para o capital (Marx, 2017MARX, K. El Capital. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2017. Libro primero.) e, em correlação, à superexploração da força de trabalho (Marini, 1979MARINI, R. M. Dialéctica de la dependencia. 4. ed. Ciudad de México: Era, 1979.) no capitalismo periférico e dependente latino-americano. Ou seja, o determinante estrutural dos PTMC se explica a partir do surgimento, do desenvolvimento e da consolidação ao longo das últimas quatro décadas em vários países da América Latina, independentemente das personificações do capital e das orientações político-ideológicas dos diferentes governos.

Portanto, o elemento comum a todos os países que implementam alguma modalidade desses programas é o crescimento da população excedente para a reprodução do capital, expressado no crescimento e na consolidação de uma massa pobre na população e na imposição desses programas pelos organismos financeiros internacionais, como parte das estratégias do capital para sua reprodução.

Considerações finais

O neoliberalismo, ao metamorfosear a “questão social” (ou seja, ao transformá-la em uma questão privada) e ao implementar a contrarreforma do Estado, vem impactando na reprodução social e da classe trabalhadora nos últimos 40 anos, principalmente através das contrarreformas das políticas sociais: laborais, previdenciárias, assistenciais e de saúde.

Demonstramos neste artigo que a tríade precarização, (re)mercantilização e (re)filantropização das políticas sociais exigidas pela programática neoliberal resulta positivamente para o capital que, além disso, obtém a desoneração no que concerne à contribuição para a reprodução da força de trabalho. O Estado, no mesmo sentido, se desresponsabiliza, impondo aos indivíduos uma autorresponsabilização.

Os indicadores sociais e econômicos da América Latina mostram uma realidade preocupante sobre as condições de vida da população, onde as estratégias e os mecanismos implementados para intervir nessa situação não buscam incidir significativamente nas bases capitalistas nem na lógica de superexploração da força de trabalho, ao contrário, os reforçam.

Nesse sentido, a assistência social se apresenta como o principal meio para contrabalançar, de maneira focalizada e superficial, a deterioração das condições de vida, e os PTMC se posicionam como a principal estratégia política para responder às condições de pobreza nas formações sociais latino-americanas, invadindo e tomando centralidade nas políticas sociais. Os PTMC se estabelecem, portanto, como um mecanismo cuja finalidade reside na contenção sociopolítica dos indivíduos em condição de pobreza, contribuindo para os discursos de culpabilização e individualização dos sujeitos, naturalizando não só sua condição, mas também as relações sociais capitalistas.

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  • 1
    Cf. Thays Fidelis em palestra “A reprodução da força de trabalho em Marx: a normalidade nos países centrais e a anormalidade nos países periféricos”, disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=9PFm0w-vDTk.
  • 2
    Vale destacar que, com a reestruturação capitalista neoliberal, considera-se que as formas de superexploração se expandem globalmente, mas sob formas operativas, enquanto na América Latina se reproduz como uma dinâmica estrutural (Marini, 1979MARINI, R. M. Dialéctica de la dependencia. 4. ed. Ciudad de México: Era, 1979.; Sotelo, 2021SOTELO VALENCIA, A. Subimperialismo y dependencia en América Latina: el pensamiento de Ruy Mauro Marini. Ciudad de México: Clacso; Universidad Nacional Autónoma de México, 2021.).
  • 3
    Cf. Thays Fidelis em sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulada: As “funções ideológicas” das políticas sociais nos regimes de acumulação fordista-keynesiano e flexível. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=3708983.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2024
  • Aceito
    31 Jul 2024
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