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Instrumentalidade, razão moderna e fetichismo: um resgate ontológico

Instrumentality, modern reason and fetishism: an ontological rescue

Resumo:

O objetivo deste ensaio é elucidar a ontogênese da instrumentalidade e sua relação com razão moderna e fetichismo. Recorre-se ao materialismo histórico-dialético, pautado na ontologia do ser social, para desvelar categorialmente a instrumentalidade. Seguidamente, aborda-se o influxo da racionalidade formal-abstrata e fetichista sobre tal categoria. Constata-se que a desfetichização realizada pela razão dialética é a única capaz de se contrapor ao fetichismo da razão formal-abstrata.

Palavras-chave:
Instrumentalidade; Razão; Fetichismo; Método; Ontologia

Abstract:

The aim of this essay is to elucidate the ontogenesis of instrumentality and its relationship with modern reason and fetishism. Appeal to historical-dialectical materialism, based on the ontology of social being, is used to categorically unveil instrumentality. It then looks at the influence of formal-abstract and fetishistic rationality on this category. It is found that the de-fetishization carried out by dialectical reason is the only one capable of counteracting the fetishism of formal-abstract reason.

Keywords:
Instrumentality; Reason; Fetishism; Method; Ontology

Introdução

[...] Quero um conto, um canto, um ponto na trajetória do devenir
Para um futuro mais belo.
Futuro que vislumbro na cor dourada do sol da janela dos Arquivos
Arquivo casa onde eu morei e que em mim mora.
Quero escrever um conto ao silêncio dos documentos.1 1 Excerto do poema de Beatriz Nascimento, intitulado “Quero escrever um conto”, disponível na coletânea Todas [as] distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultural Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2024.
(Beatriz Nascimento, 1984)

O impulso ao debate a seguir ocorre mediante a necessidade de investigação da categoria instrumentalidade, esta como um campo de mediação de diversas racionalidades, a exemplo da razão formal-abstrata e da razão dialética (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022.). A análise da ontogênese da categoria mencionada permite-nos apreender o seu complexo categorial essencial por meio do método marxiano pautado numa ontologia histórico-social, com o intuito de evidenciar o ser-precisamente-assim do objeto (Lukács, 2018LUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018. v. 14.). Assim, o objetivo deste escrito é elucidar a ontogênese da instrumentalidade e sua relação com razão moderna e fetichismo.

[...] a perspectiva de análise que orientou a abordagem da temática encontra seus fundamentos em uma ontologia do ser social pautada no trabalho, já que o trabalho, enquanto objetivação fundante do ser social, contém em si determinações materiais e ideais, as quais incorporam não apenas o fazer, mas o porquê, o para que e o quando fazer, ou seja, a intencionalidade das ações humanas (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 14, grifos da autora).

Logo, os questionamentos do “porquê, para que e quando fazer” se relacionam intrinsecamente ao modo de produção em que a instrumentalidade está inserida. Com foco no capitalismo, analisaremos a relação entre razão moderna e fetichismo, visto que o desenvolvimento histórico-social imprime diferentes formas de ser da instrumentalidade. A sociabilidade burguesa, nesse ínterim, se utiliza da categoria mencionada, de modo a fortalecer a razão formal-abstrata como mistificadora da realidade em consonância com o fetiche da mercadoria.

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho, como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores (Marx, 2017MARX, K. O Capital: crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017. Livro I., p. 147).

A racionalidade burguesa, pautada no mundo das mercadorias, obnubila a realidade, dificulta a elucidação das categorias do real, para esconder os determinantes da exploração capitalista. Logo, sobre a instrumentalidade pairam a razão formal-abstrata e o fetichismo como mantenedores do status quo burguês. No entanto, também surgem formas de razão antagônicas, exemplificamos a razão dialética.

Tal fato traz uma questão de importância fulcral ao Serviço Social: a instrumentalidade como mediação entre teoria e prática no exercício profissional. Ressaltamos que devido ao curto espaço deste escrito, por ora não adentraremos no debate específico sobre a influência de diferentes racionalidades na instrumentalidade do Serviço Social, tampouco sobre sua relação com o instrumental técnico-operativo da profissão.2 2 Para detalhamento deste debate, consultar Trindade (2001) e Guerra (2013). Desta feita, realizaremos breves considerações sobre a relação entre teoria e prática no âmbito da razão formal-abstrata em contraposição à razão dialética.

Para melhor sistematização, além da argumentação da Introdução, sumariamos o texto nos itens a seguir: Ontogênese da instrumentalidade, em que abordaremos concisamente o complexo ontológico-categorial constituinte dela; Razão moderna e fetichismo, no qual analisaremos as principais influências filosóficas ao debate da razão formal-abstrata como característica da racionalidade burguesa, eminentemente fetichista. Em suma, nas Considerações finais, sintetizaremos a relação entre instrumentalidade, razão moderna e fetichismo, bem como levantaremos a discussão sobre a razão dialética.

1. Ontogênese da instrumentalidade

A instrumentalidade surge no solo ontológico do cotidiano como desdobramento da categoria trabalho, este fundante do ser social e de suas objetivações. Assim, o salto ontológico do ser orgânico ao ser social é ocasionado pelo trabalho em que o ser humano põe teleologicamente de acordo com finalidades previamente pensadas e sobre uma objetividade que independe dele (Lukács, 2018LUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018. v. 14.).

A partir do trabalho como síntese entre teleologia e causalidade, conforma-se o ser social, que cria uma série de novas objetivações que promovem a transformação do mundo ao seu redor, bem como de si mesmo através da exteriorização. Isso significa que o ser social se objetiva no mundo e tal objetivação retroage sobre a sua humanidade, conformando a personalidade humana (Costa, 2012COSTA, G. M. da. Indivíduo e sociedade: sobre a teoria da personalidade em Georg Lukács. 2. ed. rev. São Paulo: Instituto Lukács, 2012. 144 p.). Logo, a práxis do processo de trabalho consiste no fio condutor de todas as objetivações humanas, em cada época histórica (Lukács, 2018LUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018. v. 14.). Articulam-se, portanto, as categorias: trabalho, práxis e instrumentalidade (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022.).

A partir da interlocução entre ser humano e natureza, em que o primeiro intervém ativamente de modo a transformar a segunda, o ser humano se põe diante de constantes alternativas de como realizar essa transformação. Um exemplo prático disso seria a construção de uma casa: para construí-la, o ser humano deve escolher entre os materiais disponíveis mais eficazes para sua construção e manutenção, e isso significa que ao ser humano implicam-se alternativas o tempo todo, ocasionando uma série de erros e acertos. Quando ocorre o acerto, este se generaliza e o ser humano passa a se preocupar com outros problemas, tendo que optar entre outras alternativas concretas, se complexificando objetiva e subjetivamente em cada escolha. “[...] a alternativa revela ainda mais nitidamente sua verdadeira essência: ela não é um ato isolado de decisão, mas um processo, uma cadeia ininterruptamente temporal de alternativas sempre novas” (Lukács, 2018LUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018. v. 14., p. 35).

Portanto, a categoria alternativa está intrincada ao desenvolvimento do ser social, visto que possibilita as escolhas diante dos vários dilemas humanos. “A alternativa exerce um papel mediador direcionado pelo dever-ser, que articula desde a prévia-ideação de uma finalidade até os resultados de uma determinada necessidade, diante das inúmeras possibilidades dadas concretamente no real” (Santos, 2018SANTOS, D. R. Ética e Serviço Social: um estudo introdutório a partir de György Lukács. Campinas: Papel Social, 2018., p. 68).

Assim, o ser humano se objetiva no mundo ao tempo em que se exterioriza a si mesmo, e isso resulta no desenvolvimento dos demais complexos sociais sob a categoria da totalidade social, “tais como: a ideologia, a teoria, a filosofia, a política, a arte, o direito, o Estado, a ciência e a técnica” (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 27). Além disso, o ser social apresenta capacidades que permitem a mediação com outros seres humanos, a saber: “a consciência, a linguagem, o intercâmbio, o conhecimento, mediações estas que permitem a sua reprodução como seres sociais, e, portanto, são postas pela práxis” (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 27). Esta como “o conjunto das formas de objetivação dos homens (incluindo o próprio trabalho)” (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 27).

Nesse ínterim, a capacidade teleológica, o mesmo que a prévia ideação, possibilita a “[...] capacidade, a de mobilizar os meios necessários, dando-lhes uma instrumentalidade, orientá-los para o alcance dos objetivos visados e estabelecidos pelo movimento da consciência no processo” (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 26). Assim, a capacidade de pôr finalidades é “[...] parte do modo de ser e de se reproduzir do ser social, o trabalho, mediação entre homem e natureza, tem uma instrumentalidade” (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 25).

Aqui está a ontogênese da instrumentalidade, como desprendimento categorial do trabalho em seu sentido originário, ou seja, além da capacidade de realizar o pôr teleológico primário, na interlocução direta entre ser humano e natureza, o primeiro também é capaz de realizar pores teleológicos secundários, a saber: “O ser social também é o autor consciente das posições teleológicas secundárias, quase não objetivam intervir na natureza materialmente, mas sim na transformação das relações sociais e da consciência dos outros homens” (Santos, 2018SANTOS, D. R. Ética e Serviço Social: um estudo introdutório a partir de György Lukács. Campinas: Papel Social, 2018., p. 69, grifos da autora). A constituição de uma instrumentalidade está diretamente ligada ao desenvolvimento da racionalidade humana. Logo, a instrumentalidade configura-se como:

[...] as propriedades/capacidades das coisas, atribuídas pelos homens no processo de trabalho, convertidas em meios/instrumentos para a satisfação de necessidades e alcance dos seus objetivos/finalidades. Tal capacidade é atribuída pelos homens no processo de produção da sua vida material e espiritual, através do seu pôr teleológico. [...] A instrumentalidade é a capacidade de articularmos estratégias e táticas mais adequadas (ou não) aos objetivos que pretendemos alcançar (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 26).

Nas diversas formas de sociabilidade, a instrumentalidade se desenvolve de maneiras distintas. No capitalismo, por exemplo, a instrumentalidade é perpassada pela contradição intrínseca entre capital e trabalho, entre as capacidades humanas e as forças produtivas. Isso significa que a sociabilidade burguesa implica uma trava ao desenvolvimento humano devido a esse processo contraditório, o que resulta no fenômeno da alienação (Lukács, 2018LUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018. v. 14.). Isso implica que, em determinadas condições histórico-sociais, os seres humanos tornam-se meios/instrumentos uns dos outros. A sociabilidade burguesa apresenta o ponto mais elevado desse processo em virtude da transformação dos seres humanos em mercadoria.

O exemplo mais desenvolvido de conversão dos sujeitos em meios para a realização de fins de outros é o da compra e venda da força de trabalho como mercadoria, de modo que a instrumentalidade, convertida em instrumentalização das pessoas, passa a ser condição de existência e permanência da própria ordem burguesa, via instituições e organizações sociais criadas com este objetivo. Tais relações são produzidas por determinada racionalidade que se torna hegemônica e sustenta determinado projeto de sociedade (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 28).

2. Razão moderna e fetichismo

A transformação radical da base econômica da sociedade, na transição entre feudalismo e capitalismo, gera novas formas de racionalidade. Na Era Moderna, ou seja, no advento do capitalismo; das classes sociais fundamentais, burguesia e proletariado; da Revolução Industrial; e da Revolução Francesa surgem pensadores, a exemplo de Kant e Hegel. Esses filósofos se pautam numa racionalidade centrada no capitalismo.

Pela via da razão foi possível ao homem liberar-se das concepções religiosas fundamentadas na razão divina, encetando uma nova maneira de conceber o mundo. Esta mesma razão indica ao homem seu horizonte e limites e porta a capacidade de explicitar os processos que constituem e são constitutivos e constituintes da estrutura social, iluminando suas condições e possibilidades de autonomia. É certo que estamos tratando de uma determinada concepção de razão que, situada como oposição à ignorância do homem sobre sua história, funda um “novo” período na história da humanidade: a era moderna. [...] Construída na intersecção de diversas tradições culturais, esta razão tem sido objeto de diferentes abordagens no interior da Filosofia ocidental e conquista diversos atributos. De “pura” a “instrumental”, a história da razão moderna encontra sua unidade na perspectiva antropocêntrica que a funda (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 79-80).

A racionalidade como propriedade da razão pode se constituir de diversas formas, em que se constata a contraposição entre razão instrumental e razão dialética; a primeira como mistificadora da realidade e a segunda fazendo o papel inverso, desvelando o real. Com o intuito de descortinar o pensamento da modernidade, investiga-se “as duas pilastras que sustentam o pensamento filosófico da modernidade: o sistema ético-filosófico kantiano e a filosofia especulativa de Hegel” (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 84, grifos da autora).

Kant empreende uma filosofia transcendental pautada na incognoscibilidade do ser, ressaltando elementos racionais e metafísicos, em que a sensibilidade humana ganha prioridade em relação ao real (Lukács, 2018LUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018. v. 14.). Assim, baseia-se numa racionalidade moral dos atos humanos. O dever ético realiza-se como um fim em si mesmo, sem conexão com o resultado prático das ações humanas. Evidencia-se a relação entre moralidade e racionalidade, na conexão entre dever e livre-arbítrio, em que cada ser humano deve escolher o certo como seu dever (Santos, 2018SANTOS, D. R. Ética e Serviço Social: um estudo introdutório a partir de György Lukács. Campinas: Papel Social, 2018.).

O pensamento kantiano prioriza o âmbito do conhecer em relação ao ser, mediante a pergunta fundamental: “O que posso conhecer?”. Tal pensador realiza três críticas, a saber: a Crítica da Razão Pura, da Razão Crítica e do Juízo, bem como põe a razão humana no centro da investigação em contraposição à razão divina; afirma que os objetos são carentes de sentido, este somente poderia ser dado pelo sujeito. Desta feita,

[...] o conhecimento é produto de uma única faculdade: a razão. Com Kant inaugura-se uma filosofia transcendental, síntese entre o empirismo inglês e o racionalismo francês, concebendo uma nova filosofia: o criticismo subjetivista. [...] o subjetivismo kantiano consiste em afirmar prioridade do sujeito sobre o objeto no processo de conhecimento, fundando a razão subjetivista, cujo conhecimento a priori do sujeito, dentro dos limites da experiência, é chamado de transcendental. Com isso, o filósofo do Iluminismo enaltece o protagonismo do sujeito no processo do conhecimento do fenômeno, já que a coisa em si, o noumenon, segundo ele, não nos é dada a conhecer (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 28-29).

Hegel denota a filosofia idealista objetiva. A filosofia especulativa hegeliana critica Kant, visto que considera seu método de conhecimento somente uma “opinião”, que seria uma forma inferior de conhecimento em relação ao pensamento especulativo. Tal forma de pensamento origina a razão dialética (depois virada de cabeça para baixo por Marx). No método dialético hegeliano, o sujeito deve apanhar as contradições e realizar sínteses. “A razão funciona no sentido de apreender a unidade dos opostos, num movimento que parte da tese incorpora a antítese e realiza a síntese” (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 90).

Com esse entendimento, parece-nos, Hegel recupera não apenas o protagonismo da realidade no processo do conhecimento, como atribui à razão, entendida na sua vinculação com os fatos reais, uma função totalizadora, relevante no estabelecimento da “continuidade na mudança”. Mais ainda, Hegel vê na razão um mecanismo que nega o dado da realidade ou, num outro sentido, nega o que é para trazer o que pode ser. A inteligibilidade é o “vir-a-ser” e este é a racionalidade (cf. Hegel, 1992, p. 52). Porém, conforme observa Lukács, a realidade para Hegel permanece “maculada com as nódoas da determinação” (1989, p. 33) limitando os homens à apreensão da estrutura do objeto, pela via da razão, sem que, contudo, possam modificá-lo (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 91, grifos da autora).

Além disso, a filosofia especulativa de Hegel põe a política na centralidade de sua argumentação. “Hegel demonstrou uma conexão com a esfera da política, tendo em vista que a vontade racional universal se configurava nos elementos políticos como as leis, a comunidade, e as instituições políticas existentes à época” (Santos, 2018SANTOS, D. R. Ética e Serviço Social: um estudo introdutório a partir de György Lukács. Campinas: Papel Social, 2018., p. 42). Isso implica que os interesses dos indivíduos deveriam estar de acordo com as relações sociais objetivas em que cada ser humano está engendrado, o que significa um apologismo ao capitalismo. Porquanto, o ser humano deveria se adaptar a tal modo de produção, visto que seria impossível transformá-lo radicalmente.

Nesse processo, configura-se como essencial o papel do Estado como ápice da racionalidade universal, do Espírito Absoluto, orientador das ações éticas dos sujeitos. “Hegel defendia a vinculação da ética à política, cabendo ao Estado a garantia da vivência ética” (Santos, 2018SANTOS, D. R. Ética e Serviço Social: um estudo introdutório a partir de György Lukács. Campinas: Papel Social, 2018., p. 43). “[...] o Estado que, além de fundar a sociedade civil, deve garantir a universalidade, por intermédio de duas instituições: a Burocracia (classe média) e a Câmara Alta (proprietários fundiários do morgadio) por meio das quais o ‘Espírito Absoluto’ se realiza” (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 91).

Os procedimentos da razão, como potencializadores da capacidade de a consciência alcançar os fundamentos últimos para arrancar daí as condições de possibilidades dos fatos, fenômenos e práticas é, em Hegel, a manifestação da razão dialética. Somente ela possibilita a síntese entre necessidade e acaso e converte-se em possibilidades concretas de transformação. Porém, aquela identidade imediata entre sujeito e predicado impede o sujeito hegeliano (o pensamento) de ultrapassar a mera constatação da história (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 92, grifos da autora).

A racionalidade dos dois filósofos se consubstancia numa apologética à ordem burguesa. A partir da decadência ideológica da burguesia3 3 “[...] No ano de 1830, tem início a crise decisiva. [...] Na França e na Inglaterra, a burguesia conquistara o poder político. A partir de então, a luta de classes assumiu, teórica e praticamente, formas cada vez mais acentuadas e ameaçadoras. Ela fez soar o dobre fúnebre da economia científica burguesa. Não se tratava mais de saber se este ou aquele teorema era verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo, se contrariava ou não as ordens policiais. O lugar da investigação desinteressada foi ocupado pelos espadachins a soldo, e a má consciência e as más intenções da apologética substituíram a investigação científica imparcial” (Marx, 2017, p. 86). e do surgimento da classe trabalhadora para-si, antagônica ao capitalismo, surgem as bases para o erguimento de uma nova racionalidade, pautada na superação da problemática do conhecimento, ou seja, da dicotomia entre subjetividade e objetividade: a teoria social marxiana. O método marxiano recupera a centralidade da objetividade em detrimento da centralidade da subjetividade (Tonet, 2013TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013., p. 65). Ao contrário da filosofia kantiana, que põe entraves ao conhecimento e se pergunta: “O que posso conhecer?”, o método marxiano desvela a realidade, porque parte das premissas: “O que é o ser? O que é a realidade?”.

Faltava aos modernos o conceito de práxis. Não meramente como um conceito gnosiológico, mas como uma categoria ontológica, um produto da própria realidade madura da sociabilidade, produzida pelo capitalismo maduro. A práxis, como veremos mais adiante, é exatamente o conceito que traduz a forma como se articulam subjetividade e objetividade, sob a regência desta última, em todas as atividades humanas (Tonet, 2013TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013., p. 73).

A categoria práxis ocupa lugar central para a apreensão da realidade. Embora o materialismo histórico-dialético supere as limitações dos métodos mistificadores da realidade, as condições estruturais burguesas permitem o surgimento de diversas vertentes teóricas fetichizadoras da realidade ao longo do século XX. A preocupação com a essência dos objetos, mesmo que supostamente inalcançável, como no caso kantiano, é transformada na preocupação limitadora em como conhecer e atuar sobre a realidade. A especialização das ciências, com a divisão entre Ciências da Natureza e Ciências Sociais, permite uma ainda maior mistificação da realidade, pois o recorte em disciplinas especializadas proporciona a desistorização e deseconomização da realidade, numa tentativa de esconder o fundamento da sociabilidade burguesa pautada no mais-valor.

Com a economia vulgar - cujo perfil apologético em face da ordem burguesa é inequívoco -, o que surge é “uma disciplina profissional de estreita especialização e temática muito limitada, que renuncia de antemão a explicar os fenômenos sociais e se propõe, como sua tarefa essencial, fazer desaparecer do campo da economia o problema da mais-valia” (Lukács, 1968LUKÁCS, G. La peculiaridad de lo estetico . Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1966. Livro I., p. 471). Vale dizer: a economia se instaura como ciência social, disciplina autônoma e particular, que se atém somente a um “nível” do “todo” que é a sociedade (burguesa). E é à margem da economia assim constituída que se articula a sociologia - se, inicialmente, com Comte e Spencer, alenta a pretensão de ser uma “ciência universal da sociedade” (Lukács), logo se especializa, num processo de estruturação autônoma (centrando-se sobre outro “nível” daquele “todo”) que seria similarmente reproduzido pelas outras ciências sociais peculiares e especializadas. De fato, a base da sociologia, como ciência social, consiste na “escrupulosa desvinculação dos fenômenos sociais de sua base econômica”. Esta base é a mesma das outras ciências sociais - de modo que cada uma delas trabalha um “nível”, permanecendo a articulação com o “todo” um problema teoricamente desprezível e/ou metodologicamente irresoluto (Netto, 2007NETTO, J. P. Capitalismo monopolista e Serviço Social. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2007., p. 138-139).

O afastamento das categorias ontológicas do real, especialmente da elucidação da base econômica da produção capitalista, leva a racionalidade desse modo de produção a duas direções diferentes, ambas conservadoras, a saber: o historicismo alemão, de Dilthey, e a sociologia compreensiva, de Max Weber; por outro lado, o positivismo lógico francês, pensamento originado em Comte e desenvolvido por Durkheim (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022.).

Os pontos em comum entre tais manifestações da racionalidade burguesa estão no pressuposto de laicização da ciência e na limitação do conhecimento ao âmbito da aparência fenomênica. Tal perspectiva concebe a ciência de forma racionalista e agnóstica, elidindo o debate e a elucidação da essência dos objetos. Dentre tais correntes, o positivismo francês ganha proeminência no capitalismo, tal que: “atribui-se ao Positivismo francês, sobretudo às elaborações de Émile Durkheim, a gênese e desenvolvimento de um ‘paradigma’, que tem na razão formalizadora o seu fundamento de determinação” (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 96).

Ao pensamento de Émile Durkheim (1858-1917), uma das figuras mais expressivas do Positivismo, pode ser tributada a institucionalização do paradigma da racionalidade formal-abstrata na análise das estruturas sociais, na medida em que suas concepções teóricas e metodológicas encerram a pretensão, não apenas de estabelecer uma explicação totalizadora da sociedade, mas, sobretudo, de orientar uma programática de ação sobre a sociedade (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 97, grifos da autora).

O pensamento durkheimiano centra-se na análise dos fatos sociais, recorre à experimentação e à observação para abstrair o real e construir teoricamente o objeto. Assim, os fatos sociais seriam exteriores, anteriores e superiores ao indivíduo, ganham significado mediante a junção das individualidades nos grupos sociais ou instituições. O método de Durkheim considera a sociedade tal como um organismo, em que cada parte deve se vincular eficientemente para haver um funcionamento adequado do todo. A Sociologia é concebida como ciência das instituições e a investigação social centra-se em apanhar as regularidades dos grupos que se espelham nos indivíduos (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022.).

A recorrência a conceitos de diferentes matizes permite a Durkheim combinar o racionalismo das formações capitalistas com valores e princípios morais que antecedem a esta ordem social (cf. Martins, 1986, p. 56-8); apontar o capitalismo como um fato social, decorrência natural do progresso; propor formas de coação e disciplina sociais, cujo substrato localiza-se na moral. [...] Sob essas bases é possível atribuir à Sociologia o estatuto de Ciência Social Aplicada, necessária tanto à superação do estado de anomia da sociedade quanto à justificação e legitimação da ordem capitalista (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 103).

As acepções durkheimianas fundam um paradigma de racionalidade que se ajusta à sociabilidade burguesa. O pensamento analítico-formal oferece um conjunto de procedimentos instrumentais e manipulatórios que influenciarão posteriores formulações sociológicas. A racionalidade formal-abstrata é tributária das formulações de Durkheim e fornece um modelo heurístico de naturalização das relações sociais, com vista à coesão social (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022.).

A crítica ao paradigma positivista é realizada em dois sentidos opostos: tanto através do historicismo de Dilthey, que renega a suposta neutralidade axiológica positivista, como pela tradição marxista, que elucida a relação dialética entre sujeito e objeto, com prioridade do último. Hoje, tais paradigmas apologéticos do capital continuam a se desenvolver, ocasionando a destruição da razão sob a perspectiva neoirracionalista, que “dissolve sua perspectiva universalista, exclui a necessidade do conceito, nega a objetividade, obscurece as mediações, promove a subjetivação das contradições, transformando-as em elementos exógenos ao sistema (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 110).

[...] a controvérsia sobre a crise de paradigmas nas Ciências Sociais coloca-se em duas frentes. A primeira caracteriza-se pelo debate que vem acompanhando tanto o processo de constituição quanto os de diferenciação pelos quais o paradigma positivista persegue sua hegemonia na comunidade científica. A recorrência a este debate busca denunciar os limites e reducionismos cometidos pela racionalidade instrumental que é imanente a este paradigma. A segunda, de cariz mais amplo, apoia-se na concepção de que a racionalidade instrumental é a racionalidade substantiva da ordem social burguesa. Ao aceitar o paradigma positivista, com sua dimensão instrumental, como a única possibilidade de os homens relacionarem-se com a realidade, põe em questão as promessas de autonomia e liberação dos homens contidas no projeto da modernidade e, como consequência, as formas sociais pelas quais o mundo moderno se plasmou: os modelos socialista e capitalista de sociedade. É este o ponto arquimédico do debate sobre a crise de paradigmas que se configura nos nossos dias: a oposição entre civilização e barbárie que dialeticamente se confrontam nos sistemas sociais do mundo moderno (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 112, grifos da autora).

A racionalidade do projeto burguês, portanto, é utilitarista, racional e operativa. Esta transforma os problemas inerentes ao capitalismo em questões próprias da natureza. A tal crise paradigmática das Ciências Sociais enceta o surgimento de tentativas de reposição do irracionalismo da filosofia alemã, bem como do positivismo francês. A decadência ideológica da burguesia permite o surgimento de neoirracionalismos e neopositivismos, que visam compor a pós-modernidade, especialmente a partir dos anos 1970. Tais teorias privilegiam a ação social e a intersubjetividade em detrimento da objetividade da ciência (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022.). O problema dos paradigmas nas Ciências Sociais é posto por Thomas Kuhn em A estrutura das revoluções científicas.

Kuhn considera que uma ciência encontra-se “madura” quando constituída por um conjunto de leis, regras, princípios e instrumentos, aceitos pela comunidade científica por determinado período. A este conjunto de soluções adotadas como o modelo hegemônico numa comunidade científica determinada, Kuhn denomina paradigma (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 117, grifos da autora).

Assim, o critério de cientificidade é dado pelo próprio paradigma, não pelas determinações essenciais do objeto. A intersubjetividade ocupa lugar central, porquanto a ciência deveria ser legitimada por um modelo hegemônico constituído pela comunidade científica, em que o cientista deve ter a capacidade de adequar os fenômenos às regras preestabelecidas. No positivismo, Ciências Naturais e Sociais possuem a mesma fundamentação, acarretando naturalização da sociedade burguesa. Na perspectiva de Kuhn, as Ciências Sociais são consideradas imaturas perante as naturais, por isso afirma a primeira como “pré-paradigmática” (Guerrra, 2022).

Na tradição marxista, a questão ganha contornos diferentes, pois não há uma dicotomização entre Ciências Naturais e Sociais, tampouco existe uma relativização de seu conteúdo, mas a consideração de suas diferentes nuances mediante a categoria da particularidade, como chave heurística que distingue ambas as ciências. “Se, no plano ontológico, o distanciamento entre natureza e sociedade se constitui, é constitutivo e constituinte do processo histórico, este mesmo processo expressa a unidade entre homem e natureza. Deste modo, Marx concebe uma única ciência, que abarca ao mesmo tempo natureza e sociedade: a ciência da história” (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 122, grifos da autora)

Cientificidade e historicidade possuem uma reciprocidade dialética, porquanto o desenvolvimento histórico-social realizado pelo trabalho como categoria fundante do ser social implica a constatação de que o conhecimento da realidade é dado post festum, ou seja, após o desenvolvimento das relações sociais. Isso significa que o conhecimento é relacional e a ciência pode possuir interesses ideológicos, mesmo sendo distinta do complexo da ideologia (Lukács, 2018LUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018. v. 14.).

[...] para Marx, há pontos de vista científicos que, vinculados a projetos sociais, refletem uma perspectiva de classe determinada. [...] Em face dessas considerações, entendemos que a discussão de paradigmas, tal como foi incorporada pelas Ciências Naturais, não atinge as Ciências Sociais. A tendência de naturalizar a sociedade ou ideologizar a natureza é própria tanto da tradição positivista como de uma determinada vertente do marxismo (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 124-125).

O método marxiano infirma a concepção paradigmática da ciência, tanto por revelar a primazia do objeto em relação ao sujeito no processo de conhecimento como por invalidar a concepção consensualista que surge na discussão paradigmática. Esta, por requerer uma homogeneização da comunidade científica, em que a intersubjetividade e o consenso seriam determinantes para o conhecimento científico, nega as tensões e as contradições da sociedade. Isso significa a invalidade da perspectiva paradigmática para as Ciências Sociais conforme a tradição marxista.

Se nossa compreensão é correta, a crise de paradigmas não pode ser aceita como “crise dos modelos clássicos de representação da realidade”, como deseja Touraine; tampouco como crise das grandes narrativas, como pretendem os pós-modernistas, mas como contradições inerentes à própria realidade social que, colocadas e recolocadas pelo movimento histórico, rebatem nas elaborações das Ciências Sociais. Há que se considerar, ainda, que a ausência de abordagem histórica e ontológica não é característica apenas das teorias contemporâneas, mas encontra-se vinculada a uma visão de homem e mundo (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 127).

Assim, o projeto societário que subjaz a razão moderna sob o racionalismo formal-abstrato é o projeto burguês. “[...] o que é central na discussão é que a racionalidade instrumental não nos permite avançar na construção do novo, do não instituído, do vir a ser. Ela se coloca na lógica da reprodução da sociedade, do seu status quo” (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 30, grifos da autora).

O pensamento burguês, por seu agnosticismo, ou seja, por não reconhecer a existência de uma essência histórico-concreta e situada historicamente, se manifesta em orientações racionalistas formais, irracionalistas, objetivistas, subjetivistas, positivistas, existencialistas e pragmáticas. Tal pensamento inaugura uma racionalidade que se torna hegemônica, a qual reduz a práxis a um conjunto de regras formais, burocráticas e manipulatórias, baseada na objetividade econômico-social que desconsidera solenemente o protagonismo dos sujeitos (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022., p. 29).

Logo, a racionalidade formal-abstrata se constitui como eminentemente fetichista, visto que reproduz a lógica da ordem burguesa em seu caráter apologético. O fetichismo da mercadoria, impresso na sociabilidade capitalista, também se encontra impregnado nas diversas análises e concepções constituintes da racionalidade formal-abstrata. Com isso, tal racionalidade tem a capacidade de inverter o real, e obnubilar a essência exploradora e desumanizadora do capitalismo.

Considerações finais

A ontogênese da instrumentalidade está inscrita no desenvolvimento do ser social mediante a categoria trabalho. Deste se depreendem diversos complexos categoriais, visto que se configura como modelo da práxis social (Lukács, 2018LUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018. v. 14.). O desenvolvimento histórico-social da instrumentalidade, imerso no contraditório surgimento das classes sociais, permite que tal categoria sofra os influxos de cada formação social específica. Particularmente na sociabilidade burguesa, a instrumentalidade, como campo de mediação a qual perpassa diferentes formas de racionalidade, é submetida ao fetichismo da mercadoria posto na razão moderna.

A racionalidade da burguesia, pautada na razão formal-abstrata, é eminentemente fetichista, visto que mistifica a realidade e permite a apologética do capitalismo. Por meio da razão dialética em consonância com o materialismo histórico-dialético, surge a contraposição ao fetichismo burguês, com o erguimento de uma razão necessariamente desfetichizadora.

[...] a desfetichização conseguida pelo método marxista, a investigação e seus resultados, põe sob uma nova luz o presente e o passado, a inteira existência humana que se acreditava conhecida. Assim se fazem compreensíveis todas as anteriores tentativas de captar essa existência em sua verdade, porque conseguem um sentido completamente novo. A perspectiva de futuro, o conhecimento do presente e a compreensão das tendências que o tem produzido, intelectual e praticamente se encontram assim em uma indissolúvel interação (Lukács, 1966LUKÁCS, G. La peculiaridad de lo estetico . Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1966. Livro I., p. 17, tradução nossa).

Assim, a relação entre instrumentalidade, razão moderna e fetichismo consiste em que tal forma de racionalidade, pautada majoritariamente pela razão formal-abstrata fetichista, incide sobre a instrumentalidade na sociabilidade burguesa, tornando-a utilitarista, pragmática e operativa. Aqui reside a forma de ser burguesa, com o intuito de escamotear a extração de mais-valor como fundamento do capitalismo (Marx, 2017MARX, K. O Capital: crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017. Livro I.).

No âmbito da desfetichização, a razão dialética do método marxiano desvela a relação entre a duplicidade da mercadoria e a duplicidade do trabalho, demonstrando como o valor contido em cada mercadoria é o central para as trocas capitalistas, ou seja, a forma-mercadoria é o “invólucro místico” que esconde o trabalho humano abstrato em suas entranhas. “A determinação da grandeza do valor por meio do tempo de trabalho é, portanto, um segredo que se esconde sob os movimentos manifestos dos valores relativos das mercadorias. Sua descoberta elimina dos produtos do trabalho a aparência da determinação meramente contingente das grandezas de valor, mas não elimina em absoluto sua forma reificada” (Marx, 2017MARX, K. O Capital: crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017. Livro I., p. 150). Ao descobrir o segredo da mercadoria, Marx (2017MARX, K. O Capital: crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017. Livro I.) denota a forma reificada desta, pois é hipostasiada ao lugar de humanidade, enquanto o ser humano é transformado em mercadoria.

O fetichismo, portanto, inunda todos os âmbitos do ser social, inclusive a categoria instrumentalidade. Entretanto, o espaço de manobra de possibilidades engendrado pela razão dialética permite a tentativa de desfetichizar a realidade, ou seja, de revelar o seu ser-precisamente-assim, com o intuito de transformá-la radicalmente (Lukács, 2018LUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018. v. 14.).

No âmbito específico do Serviço Social, tal problemática afeta diretamente a profissão, tanto na formação quanto na atuação profissional. Conforme salientamos a priori, não destrinchamos a relação entre instrumentalidade, instrumental técnico-operativo e profissão. Cabe-nos indicar sumariamente as contradições entre teoria e prática provenientes do fetichismo da razão formal-abstrata.

Tal forma de racionalidade resulta em três tendências ao Serviço Social no diálogo entre teoria e prática: a consideração da teoria como uma construção abstrata, em que a repetibilidade da prática é o fundamento da intervenção profissional; a transformação da teoria numa “camisa de força”, na qual os instrumentos devem colocar a “teoria em ação”. A teoria, nesse ínterim, serviria para “construir o objeto”; a terceira consiste em reconhecer a teoria como processo de reconstrução da realidade (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022.).

Apenas a terceira forma mencionada está em consonância com o materialismo histórico-dialético; as demais coadunam com a razão formal-abstrata fetichista que visa escamotear as contradições da sociabilidade burguesa. Nesse ínterim, ressalta-se a importância fulcral da superação do paradigma positivista, bem como das demais formas da racionalidade formal-abstrata burguesa, no âmbito teórico-metodológico, bem como na prática profissional do assistente social (Guerra, 2022GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2022.).

Longe de esgotar o debate sobre a questão da instrumentalidade, elucida-se que a razão dialética é a única capaz de se contrapor ao fetichismo da razão formal-abstrata, em que pode também influir sobre a instrumentalidade. Ademais, comprova-se a atualidade do método materialista histórico-dialético como único capaz de elucidar o real para o seu revolvimento. Tal fato é relevante tanto ao debate sobre o marxismo em geral, em consonância com este ensaio, como também especificamente ao Serviço Social.

Referências

  • COSTA, G. M. da. Indivíduo e sociedade: sobre a teoria da personalidade em Georg Lukács. 2. ed. rev. São Paulo: Instituto Lukács, 2012. 144 p.
  • GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social São Paulo: Cortez, 2022.
  • GUERRA, Y. A dimensão técnico-operativa do exercício profissional. In: SANTOS, C. M.; BACKX, S.; GUERRA, Y. (org.). A dimensão técnico-operativa no Serviço Social: desafios contemporâneos. 2. ed. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2013.
  • LUKÁCS, G. La peculiaridad de lo estetico . Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1966. Livro I.
  • LUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social Maceió: Coletivo Veredas, 2018. v. 14.
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  • SANTOS, D. R. Ética e Serviço Social: um estudo introdutório a partir de György Lukács. Campinas: Papel Social, 2018.
  • TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.
  • TRINDADE, R. P. Desvendando as determinações sócio-históricas do instrumental técnico-operativo do Serviço Social na articulação entre demandas sociais e projetos profissionais. Temporalis, Brasília, ano II, n. 4, jul./dez. 2001. Disponível em: Disponível em: https://cressrn.org.br/files/arquivos/65N06Bp3L00eI373q8j6.pdf Acesso em: 20 jun. 2024.
    » https://cressrn.org.br/files/arquivos/65N06Bp3L00eI373q8j6.pdf
  • 1
    Excerto do poema de Beatriz Nascimento, intitulado “Quero escrever um conto”, disponível na coletânea Todas [as] distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz NascimentoRATTZ, A.; GOMES, B. (org.). Todas [as] distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento. Salvador: Ogum’s Toques Negros, 2015.. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultural Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2024.
  • 2
    Para detalhamento deste debate, consultar Trindade (2001TRINDADE, R. P. Desvendando as determinações sócio-históricas do instrumental técnico-operativo do Serviço Social na articulação entre demandas sociais e projetos profissionais. Temporalis, Brasília, ano II, n. 4, jul./dez. 2001. Disponível em: Disponível em: https://cressrn.org.br/files/arquivos/65N06Bp3L00eI373q8j6.pdf . Acesso em: 20 jun. 2024.
    https://cressrn.org.br/files/arquivos/65...
    ) e Guerra (2013GUERRA, Y. A dimensão técnico-operativa do exercício profissional. In: SANTOS, C. M.; BACKX, S.; GUERRA, Y. (org.). A dimensão técnico-operativa no Serviço Social: desafios contemporâneos. 2. ed. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2013.).
  • 3
    “[...] No ano de 1830, tem início a crise decisiva. [...] Na França e na Inglaterra, a burguesia conquistara o poder político. A partir de então, a luta de classes assumiu, teórica e praticamente, formas cada vez mais acentuadas e ameaçadoras. Ela fez soar o dobre fúnebre da economia científica burguesa. Não se tratava mais de saber se este ou aquele teorema era verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo, se contrariava ou não as ordens policiais. O lugar da investigação desinteressada foi ocupado pelos espadachins a soldo, e a má consciência e as más intenções da apologética substituíram a investigação científica imparcial” (Marx, 2017MARX, K. O Capital: crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017. Livro I., p. 86).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2024
  • Aceito
    22 Jul 2024
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