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O Serviço Social na previdência posto à prova: desafios ao projeto profissional

The Social Work in social security in testing: challenges to the professional project

Resumo:

Este artigo analisa o legado histórico da “Matriz Teórico-Metodológica do Serviço Social na previdência social” para a construção de um projeto profissional “renovado”, particularmente no contexto atual, marcado pela reorganização dos processos de trabalho no INSS e pela disputa da direção social desse projeto na previdência social brasileira. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e documental, fundamentada pela tradição crítica marxista e por seu método histórico-dialético.

Palavras-chave:
Serviço Social; Previdência social; Projeto profissional; Disputas

Abstract:

This article analyzes the historical legacy of the “Theoretical-Methodological Matrix of Social Work in Social Security” for the construction of a “renewed” professional project, particularly in the current context, marked by the reorganization of work processes at the INSS and the dispute over the social direction of this project in brazilian social security. This is a bibliographical and documentary study, based on the marxist critical tradition and its historical-dialectical method.

Keywords:
Social Work; Social security; Professional project; Disputes

Introdução

O Serviço Social, na previdência social brasileira, foi instituído durante o período estado-novista do governo de Getúlio Vargas (1937-1945), por meio da Portaria n. 52, do Conselho Nacional do Trabalho (CNT), datada de 6 de setembro de 1944, sendo a previdência social o primeiro espaço sócio-ocupacional no qual se inseriu a categoria de assistentes sociais no Brasil, conforme defende Jesus (2023JESUS, J. C. L. de. O Serviço Social na previdência social brasileira: as ofensivas do capital e as resistências coletivas. São Paulo: Dialética, 2023.). O pioneirismo desse serviço previdenciário não se limita só a esse fato histórico, mas também por ser a previdência social a primeira política pública no Brasil a incorporar em seus documentos oficiais as novas legislações nacionais da profissão à época. Ou seja, o dispositivo de regulamentação da profissão, instituído pela Lei n. 8.662, bem como o Código de Ética Profissional, regulamentado pela Resolução CFAS n. 273, ambas datadas do ano de 1993, a partir de um documento seminal, denominado de Matriz Teórico-Metodológica do Serviço Social na previdência social, tendo sido publicada no ano seguinte, em 1994.

Ao publicar a sua Matriz e, a partir dela, reafirmar os compromissos sócio-históricos e ético-políticos estabelecidos pelo Serviço Social brasileiro, o Serviço Social na previdência e, consequentemente, a categoria de assistentes sociais que atuava nele reafirmavam uma série de compromissos. Comprometiam-se com um novo projeto profissional, estabelecendo uma explícita ruptura com as influências teóricas, com o pensamento e com as práticas conservadoras, as quais dominaram o Serviço Social na previdência ao longo de décadas, sendo consolidadas durante 15 anos, após a instituição do segundo Plano Básico de Ação (PBA) do Serviço Social na previdência, editado em 1978. Nesse sentido, a Matriz reafirma que:

[...] o presente Paradigma reflete a vontade política de reversão pela reconstrução do fazer profissional do Serviço Social de forma que não seja mero interlocutor em si mesmo, mas que se posicione no interior da Instituição. Isto levou à construção de uma proposta que remete ao embate das relações concretas constitutivas da própria Previdência Social. Uma posição que emerge da prática, realimenta-se na teoria para estar caminhando na direção de uma nova prática, e que, portanto, contém um poder dialético [...]. A linha teórico-metodológica assumida rompe com a linha da idealização adotada no Plano Básico de Ação-PBA-1978, construindo uma proposta dentro de outro patamar de reflexão de outras bases ético-legais, fundamentos, estratégias e ações norteadas por princípios concretos da realidade que exige do profissional o enfrentamento do desafio de novas respostas. Elas fluem de como se dá a Previdência Social enquanto direito do trabalhador, um direito constitucional (Brasil, 1994BRASIL. Matriz teórico-metodológica do Serviço Social na previdência social. Brasília: MPAS, 1994., p. 5).

Exatos 30 anos se passaram entre a publicação da Matriz e o tempo em que este artigo foi escrito, ousando-se aqui reafirmar que o paradigma ético-político trazido pela Matriz, em 1994, ainda norteia as ações profissionais de parte expressiva da categoria de assistentes sociais que trabalha no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Contudo, pra não dizer que não falei das flores, na quadra histórica dessas três décadas de compromissos firmados por ocasião da Matriz, o contexto atual vem sinalizando para uma inflexão preocupante do seu projeto profissional e que, inclusive, desafia a sua condição de “projeto hegemônico”1 1 Parte-se aqui da compreensão de hegemonia da lavra gramsciana. Embora não tenha construído uma formulação ideal em “conceito” daquilo que vem a ser “hegemonia”, inclusive pelas condições objetivas e adversas encontradas no período em que a produziu intelectualmente, no cárcere, Antônio Gramsci (1891-1937) nos apresenta um pensamento sobre o que considera ser a hegemonia, a partir de sua obra Cadernos do cárcere. Em síntese, para Gramsci (2014), a hegemonia pode ser compreendida como um processo de “direção moral e intelectual”, e que atua no campo da formação de um consenso que visa à constituição de uma legitimidade política. dentro da previdência social.

Assim, um dos importantes objetivos deste artigo é resgatar o significado sócio-histórico da Matriz como proposta de projeto profissional para o Serviço Social na previdência. É também o de estabelecer as mediações necessárias sobre a sua direção social estratégica, a partir do atual contexto de profundas mudanças institucionais no âmbito do INSS, no qual se evidenciam, inclusive, divergências e posturas individuais por parte de frações da categoria de assistentes sociais no instituto, indicando que o paradigma defendido pela Matriz se encontra em disputa. Este artigo se fundamenta no método materialista histórico-dialético, por sua perspectiva crítica e pela análise da totalidade do objeto aqui pesquisado. É também produto de pesquisa bibliográfica e documental. A bibliografia é composta por produções teóricas vinculadas à tradição crítica marxista e a documentação selecionada resulta de dados institucionais fornecidos pelo INSS.

Além da introdução e de sua conclusão, este artigo está organizado em três eixos. O primeiro trata de resgatar o contexto histórico e as determinações que forjam a construção da Matriz dentro da previdência social brasileira. O segundo refere-se ao cenário atual, e a desafios e limites do acesso aos direitos da classe trabalhadora junto ao INSS, em tempos de uso ostensivo das tecnologias da informação e da comunicação nesse órgão público. Por fim, o terceiro eixo versa sobre os desafios contemporâneos, engendrados entre os compromissos ético-políticos, assumidos historicamente pelas(os) assistentes sociais na previdência social brasileira, e os imperativos institucionais, com as mudanças nos processos de trabalho e os impactos para a direção social do Serviço Social na previdência.

1. O sentido da Matriz: recuperação histórica e sua condição de paradigma profissional

Mas, afinal, quando se fala sobre a Matriz, o que de fato se está compreendendo? O que se está evocando e reivindicando? E qual sentido a Matriz possui, não apenas para o Serviço Social na previdência, mas também para o próprio Serviço Social brasileiro?

A Matriz não é um documento qualquer. Ela é produto de um tempo histórico, legado de uma construção coletiva e crítico-reflexiva. Sua inspiração se constitui ainda ao final dos anos 1970, a partir dos debates estabelecidos por ocasião do III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS), o histórico “Congresso da Virada”, realizado em São Paulo, em 1979. Nesse evento, estiveram presentes algumas assistentes sociais da previdência, a exemplo de Rita de Cássia Revoredo de Paranaguá (in memoriam), Leila Maria Vieira Bugalho (in memoriam) e Maria do Socorro Reis Cabral, constituindo-se, por ocasião daquele momento, um fecundo diálogo que apontava para a necessidade de uma ruptura com o conservadorismo na profissão. Essas profissionais, ao regressarem aos seus locais de trabalho, passaram a discutir, junto às suas companheiras do Serviço Social na previdência, o conteúdo daqueles ricos debates. São, então, inspiradas a produzir coletivamente respostas efetivas às demandas da classe trabalhadora junto à previdência social, mesmo no contexto perigoso da ditadura civil-militar. Essas experiências e propostas profissionais renovadas questionavam a influência funcionalista dentro do Serviço Social na previdência, o qual, naquele momento, era guiado por um documento denominado Plano Básico de Ação (PBA)2 2 Faleiros (2008, p. 88), ao analisar o referido documento, conclui que ele “revela e desvela o modelo conservador/modernizante funcionalista, de solução de problemas focado na relação instituição/cliente e na busca de produzir um funcionamento social ou individual considerado adequado ao sistema previdenciário e ao sistema social dominante”. Ou seja, é um modelo baseado nos interesses institucionais, não na realidade e nas demandas legítimas da classe trabalhadora, que busca o acesso aos seus direitos junto à previdência social brasileira. do Serviço Social na Previdência, instituído em 1978, e que já não dava mais conta de compreender nem de responder à dinâmica da realidade, bem como às demandas da classe trabalhadora brasileira.

No estado de São Paulo, por exemplo, as equipes profissionais passaram a debater estratégias de “fortalecimento do coletivo” (Brasil, 1994BRASIL. Matriz teórico-metodológica do Serviço Social na previdência social. Brasília: MPAS, 1994., p. 24), enquanto em Minas Gerais se discutia outra proposta profissional inovadora: a chamada “socialização das informações” (Brasil, 1994BRASIL. Matriz teórico-metodológica do Serviço Social na previdência social. Brasília: MPAS, 1994., p. 22-23). Já na Região Nordeste do país, as equipes de assistentes sociais da previdência articulavam suas ações profissionais vinculadas às(aos) trabalhadoras(es) rurais, em função da própria característica sociocultural e de trabalho daquela região. A aproximação com movimentos sociais, associações, sindicatos, cooperativas, colônias foi, necessariamente, o “cimento”, a argamassa fundamental para fortalecer o alicerce da construção coletiva e do diálogo mais orgânico com a classe trabalhadora, contribuindo para compreender melhor as suas reais necessidades de proteção social em relação à previdência social no Brasil. Nos anos 1980 esse trabalho se adensa, passando a ser sistematizado, registrado, particularmente pelas experiências de trabalho desenvolvidas pelas(os) assistentes sociais da previdência no estado de Minas Gerais. Essa sistematização se deu por relatórios técnicos de trabalho, mas também por discussões e pela realização de eventos da categoria durante a década de 1980 (Jesus, 2023JESUS, J. C. L. de. O Serviço Social na previdência social brasileira: as ofensivas do capital e as resistências coletivas. São Paulo: Dialética, 2023.). A perspectiva crítica, presente em uma proposta de ação profissional voltada à cidadania e à proteção social da classe trabalhadora, aprofunda-se a partir da promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988, sendo impulsionada e, dialeticamente, impulsionando os movimentos sociais que reivindicavam mais direitos, maior participação social, democracia e cidadania no país.

Nos anos 1990, quando se esperava que as conquistas de 1988 fossem ser implementadas e consolidadas, tem-se a eleição de Fernando Collor de Mello para a presidência da República do Brasil, ainda em 1989. Collor foi responsável por introduzir o ideário neoliberal de Estado no país, contribuindo sobremaneira para o arrefecimento das conquistas constitucionais, inclusive na política de previdência social. Mas o cenário do Serviço Social na previdência era bem outro. No início dos anos 1990, o Serviço Social na previdência reafirmava essa política como um direito de seguridade social, de proteção social e de cidadania para as(os) trabalhadoras(es) no Brasil, além de cobrar do Estado o seu papel de protagonista, bem como a sua responsabilização na garantia de direitos. Deve-se também reconhecer o protagonismo do Serviço Social na previdência no enfrentamento do debate nacional acerca da disputa em torno de um projeto de previdência para o país, entre os que defendiam o seu caráter público e universalizante e aqueles que queriam um modelo privatizante, baseado na experiência chilena, conforme recorda Yazbek (2008YAZBEK, M. C. Análise da matriz teórico-metodológica do serviço social no INSS (1995), considerando a política previdenciária, suas determinações sócio-históricas e o projeto hegemônico do Serviço Social. In: BRAGA, L.; CABRAL, M. do S. R. (org.). O Serviço Social na previdência: trajetória, projetos profissionais e saberes. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 115-136., p. 134). Assim, mesmo no cenário neoliberal dos anos 1990, é no ano de 1994 que as(os) assistentes sociais da previdência passam a consolidar a sua posição profissional coletiva, através da publicação da Matriz.

Assim é que os assistentes sociais do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, constituindo-se como sujeitos históricos, repensam sua prática e a reconstroem, contribuindo para garantir um novo estatuto de cidadania da população usuária, ao posicionar-se não como meras peças burocráticas da Instituição, mas construtores de uma proposta histórica (Brasil, 1994BRASIL. Matriz teórico-metodológica do Serviço Social na previdência social. Brasília: MPAS, 1994., p. 8-9).

Guiada pelo “método histórico-dialético”3 3 Identificam-se inclusive aqui, na definição de seu “método”, a vanguarda e a ousadia daquelas que elaboraram esse documento, pois para quem havia recém-saído de uma ditadura civil-militar que durou mais de duas décadas, bem como vivenciado a entrada de um período complexo, de forte adesão do Estado brasileiro ao projeto neoliberal, optar explicitamente por esse método foi e é uma demonstração de compromisso e coragem. (Brasil, 1994BRASIL. Matriz teórico-metodológica do Serviço Social na previdência social. Brasília: MPAS, 1994., p. 22), a Matriz, desde o princípio, exalta a posição daquelas(es) assistentes sociais que, no INSS, “conduzem o trabalho com compromisso profissional, colocando seu saber específico a serviço dos usuários da Previdência Social” (Brasil, 1994BRASIL. Matriz teórico-metodológica do Serviço Social na previdência social. Brasília: MPAS, 1994., p. 5). Nesse sentido:

O caráter político da proposta, apoiada em um referencial crítico-dialético, levou os assistentes sociais do INSS a avaliar a sua trajetória na instituição previdenciária e a redefinir seu exercício, buscando uma nova identidade comprometida com o projeto hegemônico da profissão e com os direitos sociais de seu público-alvo (Yazbek, 2008YAZBEK, M. C. Análise da matriz teórico-metodológica do serviço social no INSS (1995), considerando a política previdenciária, suas determinações sócio-históricas e o projeto hegemônico do Serviço Social. In: BRAGA, L.; CABRAL, M. do S. R. (org.). O Serviço Social na previdência: trajetória, projetos profissionais e saberes. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 115-136., p. 133-134).

Foi essa tomada de posição, assumindo pública e explicitamente uma opção em defesa dos interesses de uma determinada classe social (a trabalhadora), de um modelo específico de previdência social (a pública e universalizante), e de uma direção social estratégica de profissão (aquela que materializa o projeto ético-político profissional do Serviço Social brasileiro), que possibilitou a legitimação do Serviço Social na previdência. Essa legitimação não mais se deu pelos interesses institucionais, mas pela legitimidade social conferida a partir e pela classe trabalhadora, sendo esse fato, inclusive, o elemento decisivo para reverter as sucessivas tentativas de extinção que o Serviço Social na previdência passou a enfrentar nesse período, conforme defende Jesus (2023JESUS, J. C. L. de. O Serviço Social na previdência social brasileira: as ofensivas do capital e as resistências coletivas. São Paulo: Dialética, 2023.). A Matriz, dessa forma, constitui-se em um documento completo, atual e em plena consonância com o projeto ético-político profissional do Serviço Social brasileiro.

2. O cenário atual de atendimento às demandas da classe trabalhadora no INSS

As profundas e constantes mudanças institucionais, bem como aquelas ocorridas na própria legislação previdenciária nacional, vêm alterando expressivamente os processos de trabalho do conjunto de servidores públicos do INSS e, particularmente, das(os) assistentes sociais que atuam nesse órgão governamental. Isso ocorre em uma lógica perversa de reestruturação produtiva e de inspiração neoliberal, a qual também tem impactado diretamente nos processos político-organizativos dessas(es) trabalhadoras(es). Ainda que se reconheça que tais mudanças, de marcante traço conservador, processadas no âmbito da previdência social, não representem necessariamente uma “novidade”,4 4 Se levarmos em consideração o próprio lastro histórico que conforma essa política social no Brasil, a previdência social, reconhecida oficialmente a partir do Decreto n. 4.862, de 24 de janeiro de 1923, desde os anos 1930, passou por um conjunto de diversas alterações em seus critérios de concessão de benefícios e de reconhecimento de direitos aos seus segurados, o que foi classificado, por Oliveira e Teixeira (1985, p. 58), como um período de “orientação contencionista”. o que passa a ocorrer com a previdência social brasileira, a partir de 2016,5 5 Aqui se demarca o período político iniciado com a assunção do então vice-presidente da República, Michel Temer, à presidência do Brasil, após um processo político de conciliação dos interesses das frações burguesas do grande capital nacional e internacional, culminando com um “golpe de Estado de novo tipo” (Behring, 2019, p. 44), que teve como uma de suas consequências a deposição de Dilma Rousseff da presidência da República. As consequências negativas para as políticas sociais e, particularmente, para a previdência social, foram notadas desde o primeiro dia de Temer na presidência do Brasil, em um balanço dos três primeiros meses de sua gestão, como analisam Jesus e Lopes (2017). e, consequentemente, com a gestão do seu órgão operacionalizador, é um nítido processo de aprofundamento do seu caráter “gerencialista” (Behring, 2003BEHRING, E. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003.), fortalecendo a lógica de “mercado” e do “seguro” dentro do INSS (Cartaxo, 2008CARTAXO, A. M. B. Estratégias de sobrevivência: a previdência e o Serviço Social. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.; Silva; Souza, 2021SILVA, M. L. L. da; SOUZA, M. O. As contradições na implementação dos serviços digitais e do teletrabalho no Instituto Nacional do Seguro Social. In: NOVAIS, L. C. C.; SALVADOR, E. (org.). Política social e cooperação no Centro-Oeste brasileiro. Embu das Artes: Alexa Cultural, 2021. p. 161-178.). A adoção, por parte do governo Temer (2016-2018), do chamado “projeto INSS Digital”, ainda em 2017, vem contribuindo para aprofundar o ideário neoliberal de Estado no Brasil, particularmente em relação à previdência social. Sua proposta central baseia-se em uma transformação radical do processo de atendimento às demandas da população usuária junto ao INSS, através da total digitalização de seus serviços (Brasil, 2017BRASIL. Projeto INSS digital: um novo modelo de atender. Brasília: INSS, 2017.). Em outras palavras, fundamentando-se em uma drástica redução no quadro de servidores públicos no órgão e sem nenhuma perspectiva nem interesse de o repor, a gestão do INSS passou a delegar a responsabilidade do atendimento de seus serviços e benefícios aos próprios usuários, por meio do “autoatendimento” promovido a partir do atendimento virtual. Todavia, essa proposta deixa de considerar o perfil médio do público usuário que busca o atendimento nas Agências da Previdência Social (APS) em todo o país. Muitos deles se caracterizam por serem trabalhadoras(es) pauperizadas(os), idosas(os), pessoas com deficiência, com baixa ou nenhuma escolaridade, sem acesso material às tecnologias ou, ainda, sem o conhecimento necessário para utilizá-las, identificando-se aí os grupos que engrossam as fileiras dos chamados “excluídos digitais” no Brasil, os quais representam 15,3% da população brasileira ou 28,2 milhões de pessoas de 10 anos ou mais de idade, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNAD; IBGE, 2022PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRA DE DOMÍCILIO CONTÍNUA (PNAD CONTÍNUA); INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2021. Rio de Janeiro: IBGE, 2022. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101963_informativo.pdf . Acesso em: 20 fev. 2023.
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), referentes ao ano de 2021.

Ressalta-se que os três principais motivos que foram indicados na pesquisa do PNAD e IBGE (2022PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRA DE DOMÍCILIO CONTÍNUA (PNAD CONTÍNUA); INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2021. Rio de Janeiro: IBGE, 2022. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101963_informativo.pdf . Acesso em: 20 fev. 2023.
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) para a materialização da exclusão digital no Brasil foram a “falta de interesse em acessar a Internet (29,3%), o serviço de acesso à Internet era caro (28,8%) e nenhum morador sabia usar a Internet (27,1%)” (PNAD; IBGE, 2022PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRA DE DOMÍCILIO CONTÍNUA (PNAD CONTÍNUA); INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2021. Rio de Janeiro: IBGE, 2022. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101963_informativo.pdf . Acesso em: 20 fev. 2023.
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, p. 6, grifos meus). Somente esses motivos foram responsáveis por 85,2% do total de pessoas que não acessavam a internet em 2021. Se for feito ainda o recorte dos excluídos digitais, levando-se em consideração as variáveis “idade” e “região” em que vivem, a exclusão digital passa a ser ainda mais cruel, como uma das expressões da “questão social” no Brasil. A pesquisa revela que, enquanto nas faixas etárias mais jovens, o percentual de utilização da internet fica em torno de 80% a 90%, a partir dos 60 anos de idade (ou seja, entre as(os) idosoas(os), esse percentual cai praticamente pela metade (57,5%). Já quando se fala na questão regional, observa-se que os maiores desafios estão concentrados nas regiões Norte e Nordeste do país, as quais possuem percentuais de acesso à internet inferiores à média nacional, a qual ficou definida em 84,7%.

Em 2021, os resultados desse percentual de pessoas que acessaram a Internet das Regiões Norte (76,3%) e Nordeste (78,1%) permaneceram inferiores aos alcançados nas demais, apesar de o aumento, entre 2019 e 2021, ter sido maior nessas Grandes Regiões (6,3 p.p. e 8,1 p.p., respectivamente) (PNAD; IBGE, 2022PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRA DE DOMÍCILIO CONTÍNUA (PNAD CONTÍNUA); INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2021. Rio de Janeiro: IBGE, 2022. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101963_informativo.pdf . Acesso em: 20 fev. 2023.
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, p. 7).

Ainda sobre a questão regional e de localidade territorial (área urbana e área rural), no que se refere ao acesso a equipamentos para a utilização da internet, temos o seguinte e desafiante cenário:

No total de domicílios, aqueles em que havia microcomputador representavam 41,4%, em 2019, e 40,7%, em 2021. De 2019 para 2021, esse percentual caiu de 45,6% para 44,9%, em área urbana, enquanto, em área rural, a diminuição foi de 13,8% para 12,8%. A existência de tablet é menos comum nos domicílios que o computador. Nos domicílios do País, de 2019 para 2021, o percentual daqueles em que havia tablet passou de 11,6% para 9,9%. Em área urbana, esse indicador passou de 12,8% para 11,0% e, em área rural, de 3,5% para 2,8% (PNAD; IBGE, 2022PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRA DE DOMÍCILIO CONTÍNUA (PNAD CONTÍNUA); INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2021. Rio de Janeiro: IBGE, 2022. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101963_informativo.pdf . Acesso em: 20 fev. 2023.
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, p. 4).

A gravidade no que tange à negação de direitos por parte do INSS, que tem direta relação com a opção pelo atual modelo de atendimento digital, bem como pelo “perfil” do público usuário do Instituto, reflete os alarmantes dados apresentados no Quadro 1, referentes aos requerentes do Benefício de Prestação Continuada (BPC) destinado às pessoas com deficiência em situação de pobreza.

Quadro 1.
Alguns motivos de indeferimento do BPC para pessoas com deficiência no Brasil

Os três motivos destacados no Quadro 1, a exemplo de “Não cumprimento de exigências”, “Não comparecimento para Perícia Médica” e “Não comparecimento para Avaliação Social”, estão visceralmente relacionados ao modelo de virtualização do atendimento do INSS. Isso porque a comunicação entre as(os) requerentes e o Instituto passou a ser mediada pelas tecnologias, por meio de internet e aplicativos (“Meu INSS”). Levando-se em consideração que muitas(os) dessas(es) requerentes não possuem habilidade suficiente, conhecimento, acesso às tecnologias e à própria internet, a comunicação estabelecida entre o INSS e os usuários passou a ser limitada e dificultada. Observa-se ainda, no referido quadro, que o número de indeferimentos subiu substancialmente no ano de 2021, em comparação ao ano anterior (2020), chegando, em alguns casos, a um crescimento ainda mais alarmante no ano de 2022, quando o processo de digitalização do atendimento no INSS se aprofunda. Nesse sentido, a não visualização dos prazos de cumprimento de exigências administrativas, bem como sobre datas, horários e locais de realização das avaliações sociais e das perícias médicas no INSS por parte das(os) requerentes, tem levado a um crescimento exponencial do número de indeferimentos desse tipo de benefício, além de favorecer a ação de intermediários e estimular a comercialização dos direitos e a judicialização, conforme concluem Silva e Souza (2021SILVA, M. L. L. da; SOUZA, M. O. As contradições na implementação dos serviços digitais e do teletrabalho no Instituto Nacional do Seguro Social. In: NOVAIS, L. C. C.; SALVADOR, E. (org.). Política social e cooperação no Centro-Oeste brasileiro. Embu das Artes: Alexa Cultural, 2021. p. 161-178.).

Assim, é possível concluir que a adoção indiscriminada e em larga escala da modalidade virtual de atendimento, sendo 100% digital, sem a possibilidade de acesso por parte das(os) usuárias(os) ao atendimento presencial nas agências do INSS, leva milhões de brasileiras(os) a ter os seus direitos negados já a partir das dificuldades iniciais de acesso ao atendimento presencial, ou seja, de nem sequer poder solicitar o benefício pleiteado junto a esse órgão público. O fato se agrava ainda mais quando a pessoa que requer um benefício junto ao INSS se encontra em situação de pobreza, é idosa, mora nas regiões Norte e Nordeste do país, na zona rural ou em áreas periféricas dos grandes e médios centros urbanos, não tendo a necessária infraestrutura de acesso ao mundo digital.

Nesse cenário, o Serviço Social na previdência não tem passado incólume a tais processos. As mudanças institucionais, por pressão e imposição ou por adesão acrítica e “voluntária”, têm levado parte da categoria profissional dos assistentes sociais a não apenas assumir e concordar com essas alterações, mas também a defendê-las, operacionalizá-las e geri-las. Essa postura profissional, frente a uma nítida e insidiosa corrosão do sistema público de previdência social no Brasil, ao longo dos últimos anos, tem sido adotada em nome do culto ao personalismo de valores e interesses individuais, o que esbarra frontalmente no projeto societário historicamente defendido na Matriz, conforme será analisado a seguir.

3. Disputas de projeto profissional e aprofundamento da tendência regressiva ética do Serviço Social na previdência

O exame prévio das duas seções anteriores é necessária para compreender e analisar criticamente o atual momento vivenciado pelo Serviço Social na previdência social brasileira. O projeto profissional, intencionado pela Matriz e pelas forças renovadoras que a inspiraram no lastro das últimas três décadas, tem esbarrado em um cenário de aprofundamento do projeto neoliberal na previdência social brasileira e, consequentemente, na própria gestão do INSS. Mesmo com a derrota eleitoral de Bolsonaro, em 2022, tem-se contemporaneamente um contexto bastante desafiador. O governo Lula, que deu face nova e recuperou, dentro de uma perspectiva progressista, parte expressiva das políticas sociais fundamentais e seus respectivos Ministérios, a exemplo do Meio Ambiente, dos Direitos Humanos, da Igualdade Racial, dos Povos Indígenas, das Mulheres e da Saúde, ainda não conseguiu imprimir a mesma mudança na previdência social.6 6 Não obstante algumas posições importantes defendidas pessoalmente pelo próprio ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, a exemplo da reversão da contrarreforma da previdência, realizada durante o governo Bolsonaro; da redução de juros bancários para aposentados que contraem o crédito consignado; da realização de concursos públicos; bem como de sua defesa pelo retorno do atendimento presencial e humanizado nas agências da previdência social, no INSS, grande parte dos projetos de reestruturação produtiva e gerencialistas, adotados durante os governos Temer e Bolsonaro, ainda continuam a ser desenvolvidos.

Especificamente em relação ao Serviço Social na previdência, há que se salientar algumas necessárias críticas. Primeiro, ainda não houve a reversão da extinção das funções da gestão técnica do Serviço Social nas Gerências Executivas do INSS nos estados, promovida pelo governo Bolsonaro, através do Decreto n. 10.955, de 14 de março de 2022, o que mantém a desestruturação da coordenação das ações profissionais no nível local e dificulta o diálogo com a sociedade, além de concentrar poderes decisórios na cúpula da gestão técnica em Brasília, representando a exaltação de um centralismo antidemocrático para esse serviço. Segundo, foram mantidas pelo atual governo as gestões técnicas da Divisão de Serviço Social (DSS) e Coordenação dos Serviços Previdenciários (Coserp), sediadas na Direção Central do INSS, em Brasília. Ressalta-se que os gestores técnicos dessas unidades gestoras foram nomeados ainda nos governos Temer e Bolsonaro. E não é apenas isso. Trata-se aqui de profissionais com características “carreiristas”, que transitaram livremente e sem nenhum tipo de constrangimento por gestões administrativas e técnicas dos governos anteriores, e que, no atual governo Lula, têm dado continuidade e materialidade aos projetos institucionais daqueles governos, a exemplo dos chamados “programas de gestão”, “do teletrabalho” e da “teleavaliação”, dos “acordos de cooperação técnica”, das “indicações antidemocráticas” de representações técnicas e dos desvios de função, sendo, inclusive, complacentes e apoiadores da “análise de requerimentos administrativos” por parte de assistentes sociais, o que vai de encontro à posição que, há mais de uma década, o conjunto CFESS/Cress7 7 Recorda-se aqui da posição adotada pelo CFESS sobre esse tema, ao publicar o Documento Base, o qual tem servido de subsídio para a luta e a resistência das(os) assistentes sociais na previdência contra o desvio de função dentro do INSS. Para uma análise mais detalhada do documento, indica-se a leitura de CFESS (2010), bem como as contribuições de Jesus (2023). (Conselho Federal de Serviço Social/Conselho Regional de Serviço Social) vem adotando. Terceiro, são gestões antidemocráticas, centralistas, que não aceitam críticas nem o contraditório. Gestões que promovem o assédio moral institucionalizado, como o observado em 2023 quando, pela primeira vez na história do Serviço Social na previdência, após a manifestação de centenas de assistentes sociais do INSS em todo o Brasil, por meio de um abaixo-assinado que exigia do governo Lula a imediata exoneração desses gestores técnicos e a organização de um processo democrático para a indicação de novas representações técnicas, com ampla participação da base da categoria profissional, observou-se que quase 1.500 assistentes sociais do INSS receberam, com assombro e indignação, um e-mail institucional8 8 O ocorrido mereceu destaque em matéria do jornal Extra, integrante do conglomerado de comunicações do Grupo Globo, sendo fruto da denúncia pública apresentada pela Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social (FENASPS), entidade nacional que representa os servidores do INSS. A matéria chama atenção para o fato de que o INSS, em nota, afirmou não ter acesso aos documentos citados (abaixo-assinado e e-mails) e que, portanto, não iria “se posicionar” (Silva, 2023). Todavia, vale ressaltar que, na última reunião do Comitê Gestor Permanente dos Serviços Previdenciários, realizada por ocasião do dia 12 de junho de 2023 - ironicamente, no “Dia dos Namorados”, revelando que o “clima de amor” não estava no ar -, os responsáveis pelo envio do e-mail assediador, os quais estavam presentes e conduzindo aquela reunião, fizeram a leitura do abaixo-assinado em sua totalidade e, posteriormente, reiteraram os ataques à mobilização das(os) assistentes sociais do INSS, bem como à sua entidade sindical, conforme se comprova na Ata da Reunião, disponível para consulta no Sistema Eletrônico de Informações (SEI), processo n. 35014.335707/2022-83. Assim, prova-se que a resposta do INSS ao jornal Extra é falsa e que o órgão já tinha ciência do fato. dessas gestões técnicas. O conteúdo do e-mail trazia uma explícita ameaça de punição, inclusive com abertura de processo criminal e menção de “prisão” para os que ousassem subscrever o abaixo-assinado, em uma nítida demonstração de autoritarismo, truculência e tentativa de intimidação desses profissionais. Essas são as mesmas pessoas que, há quase um ano, não convocam reuniões para o Comitê Gestor Permanente dos Serviços Previdenciários,9 9 Este Comitê foi instituído a partir do Termo de Acordo de Greve n. 01/2022, resultado da mobilização e da luta das(os) trabalhadoras(es) do INSS por ocasião da greve deflagrada nacionalmente por elas(eles) em 2022. Sua função seria discutir os processos de trabalho dos serviços previdenciários (Serviço Social e Reabilitação Profissional), tendo paridade de participação entre representantes da gestão e das(os) trabalhadoras(es). No entanto, em um comitê que é “permanente”, há quase um ano as reuniões não são convocadas e, desde o princípio, as(os) representantes da gestão do INSS atropelam os processos democráticos ao não submeter as pautas, desconsiderando o seu caráter “deliberativo”. nem trazem para este espaço os temas que são sua matéria de análise e deliberação. Mesmo diante da denúncia de assédio moral, ainda sem resposta oficial por parte do INSS, em vez de se promover uma célere e séria apuração dos gravíssimos fatos denunciados, vê-se justamente o oposto, a partir de uma nítida ação de proteção dos assediadores, transformando-os em “vítimas de perseguição”, deslegitimando as falas e a denúncia das reais vítimas, na sua imensa maioria formada por mulheres. Ao contrário, observa-se que, além de proteger os assediadores, a gestão do INSS condecora-os com premiações e promove-os a funções de gestão mais elevadas, demonstrando aí o tipo de compromisso que a instituição possui atualmente para combater o assédio institucional dentro do órgão.

Ainda que parte da categoria das(os) assistentes sociais no INSS venha aderindo a tais práticas e projetos institucionais, a partir daquilo que Jesus (2023JESUS, J. C. L. de. O Serviço Social na previdência social brasileira: as ofensivas do capital e as resistências coletivas. São Paulo: Dialética, 2023.) vem denominando de “tendência regressiva ética”, esse número ainda se constitui em uma minoria diante do conjunto dessas(es) profissionais. Basta analisar a adesão a uma das piores iniciativas de retrocesso para o Serviço Social na previdência: a teleavaliação.10 10 Instituída pela Lei n. 14.176/21, a teleavaliação consiste em um atendimento virtual, a distância, mediado pelas tecnologias, no qual as(os) assistentes sociais e as(os) usuárias(os) que requerem o BPC destinado às pessoas com deficiência não se encontram mais presencialmente. Dados institucionais,11 11 Dados não públicos, contidos no despacho administrativo DSS/INSS, de 27 de outubro de 2023, referente ao processo n. 35014.379068/2023-49. fornecidos pela Divisão de Serviço Social à FENASPS, indicam que, em 2023, dos 1.439 assistentes sociais do INSS, apenas 143 estavam realizando a teleavaliação, o que representa 10% do total de profissionais no órgão. Ainda segundo esses dados, a maioria dos que realizam a teleavaliação (58; 41%) está vinculada à Superintendência Regional Norte e Centro-Oeste (SRNCO). Já quando se analisam os dados comparativos entre o número total de assistentes sociais e os profissionais que aderiram à teleavaliação, o percentual de participação é ainda mais irrisório. A SRNCO ainda ocupa o primeiro lugar, mas agora com 30% (58), seguida da Superintendência Regional Sudeste III (correspondente ao estado do Rio de Janeiro), com 17% (17), da Superintendência Regional Sudeste II (referente aos estados de Minas Gerais e Espírito Santo), com 11% (15) e da Superintendência Regional Sudeste I (correspondente ao estado de São Paulo), com 8% (14). As Superintendências Regionais com a menor taxa de adesão à teleavaliação são a Nordeste e a Sul, respectivamente, com 3% (15) e 4% (11), bem abaixo da média nacional, estimada em 10% de adesão. Assim, conforme demonstrado, mesmo em face do assédio institucional e das precárias condições de trabalho a que muitas vezes estão submetidos, as(os) assistentes sociais da previdência, em sua maioria, permanecem resistindo à escalada de projetos conservadores dentro do INSS. Contudo, embora estas se constituam em propostas e práticas profissionais minoritárias dentro da categoria profissional na previdência social, elas revelam algumas tensões e disputas internas, fazendo-nos lembrar de que “[...] mesmo um projeto que conquiste hegemonia nunca será exclusivo” (Netto, 2006NETTO, J. P. A construção do projeto ético-político do Serviço Social. In: MOTA, A. E. et al (org.). Serviço Social e saúde: formação e trabalho profissional. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 141-160., p. 145). Ou seja, este projeto profissional continua em constante e intensa disputa por sua direção social hegemônica.

Considerações finais

Ao completar 30 anos de sua publicação, a Matriz Teórico-Metodológica do Serviço Social na previdência social brasileira merece ser não apenas festejada, mas, principalmente, lida, estudada e incorporada ao exercício profissional cotidiano das(os) assistentes sociais brasileiras(os), sobretudo para aquelas(es) que atuam na previdência social. Seu método, seus compromissos, valores e ações estratégicas revelam a sua importância e atualidade nesses tempos tão estranhos, de projetos institucionais conservadores, da exaltação exacerbada do individualismo acima dos interesses coletivos e do “colaboracionismo”, inclusive de parte da categoria profissional das(os) assistentes sociais, em relação a projetos antipovo e antipúblico que se desenvolvem dentro do INSS.

A incidência do ideário neoliberal e suas propostas de reestruturação produtiva, que buscaram transformar o INSS em um exemplo “gerencialista” no serviço público, nunca saíram de cena. Os impactos desse projeto também são sentidos na vida da classe trabalhadora, sobretudo das(os) mais pauperizadas(os) que, muitas vezes, dependem dos serviços e dos benefícios operacionalizados pelo INSS para sobreviver. É também observada uma lógica institucional de assédio, cooptação e dominação político-ideológica, que passa a influenciar as(os) suas(seus) servidoras(es) e, dentre elas(eles), as(os) assistentes sociais. Embora tenha aumentado a adesão de frações dessa categoria profissional à parte das propostas institucionais, as quais colidem frontalmente com o projeto profissional defendido a partir da Matriz, é importante destacar que a maioria das(os) assistentes sociais no INSS segue na defesa de sua direção social estratégica. Nesse sentido, a luta pelo legado da Matriz deve se constituir em uma ação permanente e inegociável!

Referências

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  • 1
    Parte-se aqui da compreensão de hegemonia da lavra gramsciana. Embora não tenha construído uma formulação ideal em “conceito” daquilo que vem a ser “hegemonia”, inclusive pelas condições objetivas e adversas encontradas no período em que a produziu intelectualmente, no cárcere, Antônio Gramsci (1891-1937) nos apresenta um pensamento sobre o que considera ser a hegemonia, a partir de sua obra Cadernos do cárcere. Em síntese, para Gramsci (2014GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. v. 3.), a hegemonia pode ser compreendida como um processo de “direção moral e intelectual”, e que atua no campo da formação de um consenso que visa à constituição de uma legitimidade política.
  • 2
    Faleiros (2008FALEIROS, V. de P. Tecnocracia e assistencialismo no capitalismo autoritário: o Serviço Social na previdência social dos anos 1970. In: BRAGA, L.; CABRAL, M. do S. R. (org.). O Serviço Social na previdência: trajetória, projetos profissionais e saberes. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 63-114., p. 88), ao analisar o referido documento, conclui que ele “revela e desvela o modelo conservador/modernizante funcionalista, de solução de problemas focado na relação instituição/cliente e na busca de produzir um funcionamento social ou individual considerado adequado ao sistema previdenciário e ao sistema social dominante”. Ou seja, é um modelo baseado nos interesses institucionais, não na realidade e nas demandas legítimas da classe trabalhadora, que busca o acesso aos seus direitos junto à previdência social brasileira.
  • 3
    Identificam-se inclusive aqui, na definição de seu “método”, a vanguarda e a ousadia daquelas que elaboraram esse documento, pois para quem havia recém-saído de uma ditadura civil-militar que durou mais de duas décadas, bem como vivenciado a entrada de um período complexo, de forte adesão do Estado brasileiro ao projeto neoliberal, optar explicitamente por esse método foi e é uma demonstração de compromisso e coragem.
  • 4
    Se levarmos em consideração o próprio lastro histórico que conforma essa política social no Brasil, a previdência social, reconhecida oficialmente a partir do Decreto n. 4.862, de 24 de janeiro de 1923, desde os anos 1930, passou por um conjunto de diversas alterações em seus critérios de concessão de benefícios e de reconhecimento de direitos aos seus segurados, o que foi classificado, por Oliveira e Teixeira (1985OLIVEIRA, J. A. de A.; TEIXEIRA, S. M. F. (Im)previdência social: 60 anos de história da previdência no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985., p. 58), como um período de “orientação contencionista”.
  • 5
    Aqui se demarca o período político iniciado com a assunção do então vice-presidente da República, Michel Temer, à presidência do Brasil, após um processo político de conciliação dos interesses das frações burguesas do grande capital nacional e internacional, culminando com um “golpe de Estado de novo tipo” (Behring, 2019BEHRING, E. Ajuste fiscal permanente e contrarreformas no Brasil da redemocratização. In: SALVADOR, E.; BEHRING, E.; LIMA, R. de L. de (org.). Crise do capital e fundo público: implicações para o trabalho, os direitos e a política social. São Paulo: Cortez, 2019. p. 43-65., p. 44), que teve como uma de suas consequências a deposição de Dilma Rousseff da presidência da República. As consequências negativas para as políticas sociais e, particularmente, para a previdência social, foram notadas desde o primeiro dia de Temer na presidência do Brasil, em um balanço dos três primeiros meses de sua gestão, como analisam Jesus e Lopes (2017JESUS, J. C. L. de; LOPES, F. A. S. de M. As ações do governo Temer e suas implicações para as políticas de previdência e assistência social: o que está por vir? In: JORNADA INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS (JOINPP): 1917/2017: UM SÉCULO DE REFORMA E REVOLUÇÃO, 8., 2017, São Luís. Anais [...]. São Luís: Universidade Federal do Maranhão (UFMA), 22 a 25 ago. 2017.).
  • 6
    Não obstante algumas posições importantes defendidas pessoalmente pelo próprio ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, a exemplo da reversão da contrarreforma da previdência, realizada durante o governo Bolsonaro; da redução de juros bancários para aposentados que contraem o crédito consignado; da realização de concursos públicos; bem como de sua defesa pelo retorno do atendimento presencial e humanizado nas agências da previdência social, no INSS, grande parte dos projetos de reestruturação produtiva e gerencialistas, adotados durante os governos Temer e Bolsonaro, ainda continuam a ser desenvolvidos.
  • 7
    Recorda-se aqui da posição adotada pelo CFESS sobre esse tema, ao publicar o Documento Base, o qual tem servido de subsídio para a luta e a resistência das(os) assistentes sociais na previdência contra o desvio de função dentro do INSS. Para uma análise mais detalhada do documento, indica-se a leitura de CFESS (2010CFESS. Documento Base: subsídio dos assistentes sociais da Bahia e Sergipe para orientar a luta dos assistentes sociais do INSS. Brasília, 16 jan. 2010. Disponível em: Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/documento_base_bahia_sergipe_inss.pdf . Acesso em: 10 mar. 2024.
    http://www.cfess.org.br/arquivos/documen...
    ), bem como as contribuições de Jesus (2023JESUS, J. C. L. de. O Serviço Social na previdência social brasileira: as ofensivas do capital e as resistências coletivas. São Paulo: Dialética, 2023.).
  • 8
    O ocorrido mereceu destaque em matéria do jornal Extra, integrante do conglomerado de comunicações do Grupo Globo, sendo fruto da denúncia pública apresentada pela Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social (FENASPS), entidade nacional que representa os servidores do INSS. A matéria chama atenção para o fato de que o INSS, em nota, afirmou não ter acesso aos documentos citados (abaixo-assinado e e-mails) e que, portanto, não iria “se posicionar” (Silva, 2023SILVA, G. FENASPS denuncia assédio moral supostamente sofrido por assistentes sociais do INSS. Extra, Rio de Janeiro, 20 jun. 2023. Disponível em: Disponível em: https://extra.globo.com/economia/servidor-publico/coluna/2023/06/fenasps-denuncia-assedio-moral-supostamente-sofrido-por-assistentes-sociais-do-inss.ghtml . Acesso em: 15 mar. 2024.
    https://extra.globo.com/economia/servido...
    ). Todavia, vale ressaltar que, na última reunião do Comitê Gestor Permanente dos Serviços Previdenciários, realizada por ocasião do dia 12 de junho de 2023 - ironicamente, no “Dia dos Namorados”, revelando que o “clima de amor” não estava no ar -, os responsáveis pelo envio do e-mail assediador, os quais estavam presentes e conduzindo aquela reunião, fizeram a leitura do abaixo-assinado em sua totalidade e, posteriormente, reiteraram os ataques à mobilização das(os) assistentes sociais do INSS, bem como à sua entidade sindical, conforme se comprova na Ata da Reunião, disponível para consulta no Sistema Eletrônico de Informações (SEI), processo n. 35014.335707/2022-83. Assim, prova-se que a resposta do INSS ao jornal Extra é falsa e que o órgão já tinha ciência do fato.
  • 9
    Este Comitê foi instituído a partir do Termo de Acordo de Greve n. 01/2022, resultado da mobilização e da luta das(os) trabalhadoras(es) do INSS por ocasião da greve deflagrada nacionalmente por elas(eles) em 2022. Sua função seria discutir os processos de trabalho dos serviços previdenciários (Serviço Social e Reabilitação Profissional), tendo paridade de participação entre representantes da gestão e das(os) trabalhadoras(es). No entanto, em um comitê que é “permanente”, há quase um ano as reuniões não são convocadas e, desde o princípio, as(os) representantes da gestão do INSS atropelam os processos democráticos ao não submeter as pautas, desconsiderando o seu caráter “deliberativo”.
  • 10
    Instituída pela Lei n. 14.176/21, a teleavaliação consiste em um atendimento virtual, a distância, mediado pelas tecnologias, no qual as(os) assistentes sociais e as(os) usuárias(os) que requerem o BPC destinado às pessoas com deficiência não se encontram mais presencialmente.
  • 11
    Dados não públicos, contidos no despacho administrativo DSS/INSS, de 27 de outubro de 2023, referente ao processo n. 35014.379068/2023-49.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2024
  • Aceito
    05 Ago 2024
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