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Teletrabalho no serviço público previdenciário: repercussão na saúde dos(as) trabalhadores(as) do INSS do Rio Grande do Sul

Teleworking in the public social security service: repercussions on the health of INSS workers in Rio Grande do Sul

Resumo:

As repercussões do teletrabalho na saúde do(a) trabalhador(a) é a diretriz transversal deste artigo, destacada pelas mudanças do trabalho, através do gerencialismo no INSS. Por meio de um estudo com servidores(as), demonstra-se que a prática de gestão e as tecnologias são novas ameaças diante do acirramento de contradições no teletrabalho. Refletem diretrizes neoliberais que incidem nas condições de trabalho na saúde dos(as) trabalhadores(as) e na população usuária da previdência social.

Palavras-chave:
Serviço público; Saúde do trabalhador; Teletrabalho

Abstract:

The repercussions of teleworking on the worker’s health is the transversal guideline of this article, highlighted by the changes in work, through managerialism in the INSS. Through a study with civil servants, it is demonstrated that management practices and technologies are new threats in the face of the intensification of contradictions in teleworking. They reflect neoliberal guidelines that affect working conditions, the health of workers and the population using social security.

Keywords:
Public service; Worker’s health; Teleworking

Introdução

Este artigo traz ao debate o teletrabalho e os reflexos na saúde de trabalhadores(as) do serviço público da previdência social. No cenário em que a seguridade social brasileira vem enfrentando alterações na sua organização e no modo como tem delineado a execução de viabilização de direitos, a implementação do teletrabalho não pode ser analisada de forma dissociada do uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs) e do modelo gerencial dentro do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), e sem considerar de maneira imprescindível o modus operandi da instituição no contexto social, econômico e político no país.

Com o gerencialismo a todo vapor dentro do serviço público, os processos de trabalho no INSS têm sido corroídos pelos diversos elementos que caracterizam a ideologia gerencialista em seu caráter mais nuclear. Dentre eles, está a precarização, com a pressão de suas(seus) trabalhadoras(es) por metas e produtividade, numa tentativa recorrentemente fracassada que busca dar conta de milhões de processos enfileirados virtualmente. Gaulejac (2007GAULEJAC, V. de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Tradução: Ivo Storniolo. Aparecida: Ideias e Letras, 2007.) considera que, dentro dessa ideologia, todos os registros da vida social são atingidos.

Soma-se a esse cenário a crise sanitária vivenciada nos anos de 2020 e 2021, que gerou e tem gerado reflexões críticas sobre o que significa o processo de trabalho invadir as esferas familiar e domiciliar. É nesse cenário que o teletrabalho se incorpora, dentro das transformações e dos avanços tecnológicos, mas que poderá fragmentar o coletivo, precarizar o trabalho e adoecer o(a) trabalhador(a), ocasionando, dentre diversos fatores, afastamento do trabalho - contexto que coloca em xeque o direito à saúde e ao trabalho saudável.

Torna-se indispensável melhor análise sobre quais outros fatores que possivelmente ameaçam a garantia dos direitos do(a) servidor(a) que está em casa, por exemplo, no que tange às condições de trabalho, que envolvem: ergonomia, consumo de energia, acesso à internet e equipamentos que respondam às necessidades que a função exige. Outro elemento importante de observar na realidade do teletrabalho é a possível dificuldade de caracterizar e notificar quando um acidente de trabalho ou adoecimento relacionado ao trabalho ocorre em esfera domiciliar. É preciso identificá-lo e configurá-lo como tal, a fim de buscar e assegurar os direitos que lhe são correspondentes como um(a) servidor(a) que se encontra nessa modalidade. Alia-se tudo isso ao assédio moral e, mais recentemente, a um “novo” formato de assédio, o qual vem sendo denominado, especialmente no âmbito jurídico, como “teleassédio”1 1 Goldschmidt e Andreola (2014/2015) abordam o assédio moral virtual, defendendo que este é observado de duas formas: o teleassédio ocorre no ambiente e na relação de teletrabalho. Logo, o assédio moral eletrônico pode se dar no ambiente do próprio local da empresa e se concretiza por meios eletrônicos. ou “assédio moral eletrônico”, que, cada vez mais, tem acontecido na instituição.

Assim, este artigo apresenta as repercussões do teletrabalho, na vida e na saúde das(os) servidoras(es) do INSS após 2018 no Rio Grande do Sul, com vista a contribuir com estratégias ampliadas de promoção de saúde e para o processo de organização coletiva de defesa de seus direitos.

Para tal, a metodologia pautou-se num estudo qualitativo2 2 O estudo atendeu a todos os preceitos da ética em pesquisa, sendo aprovado no Comitê de Ética sob o número CAAE: 57947922.4.0000.5334. de caráter exploratório e descritivo, na perspectiva do materialismo histórico-dialético, pela amplitude da perspectiva crítica e de totalidade histórica, elemento essencial para compreender além das aparências. Optou-se pela amostragem em snowball (bola de neve), que ocorre de forma intencional, pois a população pesquisada é de servidores que atuam diretamente, ou na maior parte do tempo de trabalho, fora do ambiente formal institucional. Como critério, para inclusão dos participantes, optou-se por servidores(as) que estão em teletrabalho, pelo programa de gestão institucional - ainda que em formato híbrido -, lotados(as) em diversas agências de previdência social (APS), com cargos diversos, de forma que contemplasse as nove gerências executivas (GEX) presentes em todo o estado do Rio Grande do Sul. A exclusão se deu no fator de o(a) servidor(a) não estar no teletrabalho. Utilizou-se como instrumento um roteiro-guia de entrevista semiestruturada, dando base de condução durante a entrevista com os(as) servidores(as) que participaram da amostra, cujos resultados compõem o presente artigo, o qual está constituído em três momentos. Inicialmente, discorre-se sobre gerencialismo como prática de gestão: o serviço público precarizado no INSS; num segundo momento, trata-se das tecnologias que modernizam e precarizam no INSS; e, por fim, adentra-se na saúde do(a) trabalhador(a) sob novas ameaças diante do acirramento de contradições no teletrabalho, e demonstram-se os reflexos na saúde dos(as) teletrabalhadores(as) previdenciários(as).

1. Gerencialismo como prática de gestão: o serviço público precarizado no INSS

O gerencialismo tem suas raízes no contexto internacional, nos debates de reforma do aparelho do Estado3 3 De igual modo e no mesmo percurso, Ronald Reagan assume como presidente dos Estados Unidos, com diretrizes ultraconservadoras, provoca disparidade social, contribuindo para uma nova configuração econômica neoliberal. Para melhor aprofundamento da ascensão neoliberal, sugere-se a leitura de Harvey (2014). e no avanço do neoliberalismo. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, o gerencialismo no serviço público pautou-se nas demandas econômicas, direcionado ao empreendedorismo, elemento esse integrador do capitalismo flexível, buscando, entre outros aspectos, a eficiência. Bresser Pereira (1996PEREIRA, L. C. B. Da administração pública burocrática à gerencial. Revista do Serviço Público, ano 47, v. 121, n. 1, jan./abr. 1996. Disponível em: Disponível em: https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/issue/view/84 . Acesso em: 28 fev. 2023.
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, p. 6) sinaliza que, no ano de 1938, já se tem um primeiro sinal do gerencialismo com a criação da primeira autarquia, e expressando a primeira tentativa de inovação na gestão pública.

No intuito de conceituar o termo gestão, cabe explicitar que esta não se expõe como ideologia, mas como se fosse uma prática, ou seja, um protocolo usual, alicerçada sobre o terreno da eficácia da ação, mais que sobre o fundamento das ideias, perpassando as esferas públicas e privadas, como expõe Gaulejac (2007GAULEJAC, V. de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Tradução: Ivo Storniolo. Aparecida: Ideias e Letras, 2007.). Desse modo, a gestão é um formato de administrar ou gerenciar empresas e instituições, bem como todos os seus recursos, inclusive as pessoas que fazem parte desse processo. Dentro dessa dialética da imposição, a diretriz que conduz o modo de comandar agrega formalidades, e executa um conjunto de regras e conhecimentos pautados em resultados, produtividade e controle.

Souza (2016SOUZA, J. dos S. O que é gerencialismo? Grupo de Pesquisas sobre Trabalho, Política e Sociedade, Rio de Janeiro: UFRRJ, 30 out. 2016. Disponível em: Disponível em: http://trabalhopoliticaesociedade.blogspot.com/2016/10/o-que-e-gerencialismo.html . Acesso em: 16 mar. 2023.
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) destaca que, na mesma ótica de empresas privadas, a nova gestão pública surge com foco em resultados e na eficiência, e define os seus usuários como clientes. Embora a finalidade do Plano Diretor da Reforma do Estado PRDE se pautasse em outros elementos além dos mencionados, o rumo da nova gestão pública brasileira apresenta um cenário de fragilidade nas organizações e nos processos de trabalho, sem a eficácia por ora perspectivada. Isso porque, afirma Alves (2021ALVES, G. Gestão de metas e serviço público: a degradação do trabalho no Brasil neoliberal. São Paulo: Projeto Editorial Praxis, 2021., p. 9): “O cerne do neoliberalismo é degradar o serviço público, visando abrir espaço para os interesses da valorização privada do capital”.

O gerencialismo, de acordo com Newman e Clarke (2012NEWMAN, J.; CLARKE, J. Gerencialismo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 353-381, maio/ago. 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/D9rWCZq8yqtBmtCTQSCjnPk/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 8 abr. 2023.
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), coloca-se como uma configuração de natureza calculista que constitui o conhecimento e os manejos sobre as metas organizacionais e os caminhos para alcançá-las. Stecher (2015STECHER, Antonio. La empresa flexible como dispositivo de gobierno. Aportes de la analítica de la gubernamentalidad al estudio de las subjetividades laborales en América latina. Universitas Psychologica, Bogotá, v. 14, n. 5, p. 1779-1794, 2015. Disponível em: Disponível em: https://revistas.javeriana.edu.co/index.php/revPsycho/article/view/10756/13443 . Acesso em: 4 ago. 2023.
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) chama a atenção para esse formato administrativo a partir das novas formas de trabalhar inspiradas no gerencialismo, as quais implementam, no serviço público, conceitos e aspectos ligados à ideia de transição entre a lógica do modelo administrativo-burocrático para o modelo com base na lógica de mercado.

Essas peculiaridades do modelo gerencial transcendem outros abismos, como a desregulamentação do serviço público. As contrarreformas implementadas impactam diretamente a qualidade e a efetividade do serviço oferecido, e têm acumulado a precariedade na sua essência e no próprio acesso às políticas sociais. O INSS tem enfrentado essa realidade de precarização nas suas estruturas físicas, organizacionais e com os(as) servidores(as). Em análise do quadro atual, o gerencialismo torna-se muito mais perverso quando aplicado nos processos de trabalho em uma instituição pública que atua com direitos sociais. A Trabalhadora 4 exemplifica em sua narrativa:

[...] eu gosto de fazer uma analogia, sabe, tenho 18 anos de Instituto, eu entrei altiva, com a cabeça erguida, orgulhosa de estar entrando, eu vesti a camisa, tinha amor, prazer em atender o segurado e infelizmente, no decorrer desses anos - principalmente de 2015 pra cá -, com o desmonte todo da previdência, eu senti que eles, eles? O governo, todos, né, lá de cima tratam o servidor como: eles fazem sentar, aí quando você vê, eles fazem você se ajoelhar e quando você vê, você está estendido e eles passando por cima. Então, hoje, eu estou nessa situação - eu estou deitada e eles estão passando por cima de mim.

Visando ao princípio da eficiência, muitas das regras dentro do INSS perpassam as colocações da citação anterior. As múltiplas mudanças nos processos de trabalho; a falta de treinamento para novos serviços que os(as) servidores(as) passam a executar; a ausência de investimento nas estruturas físicas; e a fragilidade da gestão, que sistematicamente é alterada, escancaram a fragilidade de um modo de conduzir o órgão, e evidenciam uma gestão sem o mínimo diálogo sobre o serviço que a instituição disponibiliza.

A organização das alterações ocorridas dentro do INSS se estabelece como prática modernizadora, mas que se reflete de forma significativa na visão e na análise da sociedade, que assiste a um sistema de seguridade social que caminha entre o moderno e o precário, como no caso das tecnologias que são implementadas na instituição, mas que ainda não alcançaram os objetivos propostos. O modelo gerencial do INSS busca progressivamente transformar o Instituto num formato digital e plataformizado. Esse interesse pelas tecnologias da informação e comunicação explica-se por diversos componentes que incluem não somente a ideia do moderno, mas também carregam em si a capacidade de explorar o trabalho por meio da produtividade, na exigência de metas, espoliando o(a) servidor(a), aspecto propulsor da ideologia neoliberal que tem tomado campo no contexto brasileiro através das tecnologias, o que se discute no item seguinte.

2. Tecnologias que modernizam e precarizam no INSS

A implementação das TICs dentro de serviços públicos, como no caso do INSS, representa um processo de “modernização” que vislumbra atualizar instituições, melhorando os serviços e a viabilização do acesso para a população usuária da política. A questão da inovação, buscando a modernidade que o mundo tem oferecido na atualidade, observa Martins (2012MARTINS, J. de S. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. 3. ed. 1. reimp. São Paulo: Contexto, 2012.), é como um ludíbrio que expõe grandes possibilidades de transformação humana e social - em qualquer âmbito - que o capitalismo foi capaz de criar, mas não é capaz de realizar. Ou seja, ainda segundo Martins (2012MARTINS, J. de S. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. 3. ed. 1. reimp. São Paulo: Contexto, 2012., p. 19), “a modernidade anuncia o possível, embora não o realize”, como pode ser constatado no fragmento da fala desse trabalhador do INSS:

[...] a digitalização veio com uma coisa assim: nós vamos resolver o problema do INSS com a digitalização. A digitalização vai criar as condições para que tudo mude e tudo fique melhor para os segurados, e isso não é verdade. O que acontece é a precarização.

Vale enfatizar que se compreende a elevada importância dos avanços tecnológicos para a ciência e para o mundo, e as facilidades proporcionadas por eles para a sociedade. A exemplo disso, destaca-se, inclusive, a possibilidade de realização da própria pesquisa que originou este trabalho, permitindo contatos e entrevistas virtuais por meio de ferramentas on-line, como smartphones, e-mails e plataformas de videoconferências. Com essa ressalva, e longe de se colocar com posicionamento contrário à modernização e às tecnologias que inovam, torna-se relevante explicitar que se aponta como objeto de crítica a maneira que as ditas inovações são implementadas e, principalmente, os reflexos das mudanças na vida da classe trabalhadora. Isso porque essas modernizações tecnológicas que têm ocorrido há alguns anos, sobretudo na gestão pública, provocam modelos de trabalho mais flexíveis, nos quais se abrem brechas para exploração e espoliação dos(as) trabalhadores(as), além de adoecimentos em grande escala na esfera pública.

O INSS alcançou essa fronteira da modernização, mas atingiu também o limite da capacidade laborativa de muitos de seus(suas) servidores(as), dada a desintegração4 4 Utiliza-se o termo “desintegração”, no seu sentido mais amplo dentro dos dicionários da língua portuguesa: significa produzir a desintegração de algo; fazer com que alguma coisa seja decomposta, desintegrada em várias partes; destruir sua unidade, perdendo sua coesão e homogeneidade. Cita-se, por exemplo, a desintegração de uma organização pública. que a própria organização administrativa da autarquia apresenta. Essa afirmação materializa-se em serviços pulverizados - na sua grande maioria -, serviços desconhecidos pelos(as) servidores(as), que, em ocasiões recorrentes, são lotados(as) e realocados(as), sem muito preparo, para a execução de atividades que exigem amplo conhecimento. Esta des-organização é concreta quando se denota que suas chefias são conhecidas apenas através de telas virtuais, e a orientação no cotidiano sobre os próprios processos de trabalho que deem respostas às dúvidas frequentes sobre a execução de tarefas causa sentimento de abandono a quem opera a política. Destaca-se aqui a afirmação deste trabalhador:

Nós, hoje, no INSS, eu vou te dizer, eu fui supervisor por sete anos, o que me pediam eu sabia fazer de todas as áreas do INSS. Hoje, tem gente que me pergunta fora: “como eu faço isso?”. Eu não sei, não sei mais. Mudam tanto, todos os dias mudando ali, nem a gente sabe mais como é que faz alguma coisa no INSS. A gente não tem mais... A gente não sabe mais para quem recorrer. Acabou com a gerência (Trabalhador 6).

A expressiva falta de suporte na maioria dos serviços provoca, de imediato, o sentimento de insegurança aos(às) trabalhadores(as), pois a responsabilidade efetiva da tarefa que é executada recai diretamente sobre eles. Essa preocupação com o desconhecido no processo de trabalho, que outrora se tinha o conhecimento, destaca-se no panorama da instituição como elemento estressor na vida laboral.

Na busca de equilíbrio da relação que envolve demandas versus serviços prestados, o plano de ampliação da tecnologia informacional apresentado em 2016 implementa o INSS digital, por meio da plataforma “Meu INSS”, projeto que esvazia as agências da previdência e remove atendimentos presenciais, abrindo caminhos, inclusive, para terceirizações de serviços que deveriam estar sendo disponibilizados pela instituição. Ainda no caminho de expansão tecnológica, disponibilizou-se o canal de atendimento 135, criado para a ampliação de acesso, mas que burocratiza a viabilização, pois, para muitas demandas, torna-se necessário o atendimento presencial com um(a) servidor(a) do INSS, uma vez que, através de ligações, muitas vezes, torna-se improvável que o(a) segurado(a) consiga resolver sua demanda.

É na conjuntura dessas inovações tecnológicas que a autarquia regulamenta a Instrução Normativa n. 98, de 19 de dezembro de 2018, que dispõe sobre o regime de teletrabalho como programa de gestão. Assim, o que se percebe é que esse processo acaba também por representar a inócua substituição da defasagem de trabalhadores(as) no quadro de recursos humanos da instituição pela tecnologia do teletrabalho, para dar conta de um sistema previdenciário que tem excluído e colocado seus segurados na fila virtual, interminável e desesperançosa.

A realidade por ora detectada no INSS aponta para uma expressiva massa de trabalhadores(as) exauridos(as) não somente pela sobrecarga de trabalho, como também pela ineficiência de diversos sistemas que demarcam lentidão, atrasos na execução das tarefas e extrema carga de estresse. Corroborando essas considerações, explicitam-se fragmentos da narrativa de um técnico do seguro social, o qual se identifica aqui como Trabalhador 3. Em sua análise, aponta a dificuldade de execução do trabalho devido a um dos sistemas utilizado:

[...] o CNIS5 5 A abreviação CNIS corresponde ao Cadastro Nacional de Informações Sociais, o qual se configura como sistema oficial de banco de dados do governo federal, criado em 1989. Possui como finalidade condensar dados e informações de vínculos empregatícios e previdenciários das trabalhadoras e dos trabalhadores. não está funcionando, tá, vou esperar um pouco, daqui a meia hora, voltou, começo a trabalhar um pouco, daqui a pouco cai de novo, trancou o serviço no meio, eu tava numa análise, eu perco o raciocínio, tudo atrapalha, então, em vez de eu trabalhar só cinco horas por dia, seis horas por dia pra fazer a minha meta, eu trabalhava as mesmas oito horas e isso começa a te gerar uma carga de estresse, que tu começa a perder o controle, a carga de estresse, ela fica tão grande, que tem coisa que tu diz: que inferno que isso não funciona (Trabalhador 3).

Denota-se que a modernização não aprimorou os sistemas, desconsiderando a realidade dos locais e os processos de trabalho. Contudo, é necessário alertar que, no cenário atual, a exclusão do acesso aos direitos previdenciários tem sido expressiva. Observa-se que a população - na sua considerável parcela, analfabeta digital - tem esbarrado em extremas dificuldades de acesso aos direitos oferecidos pela política previdenciária. Essa fragilização de serviço se dá não somente pelo desconhecimento ou falta de manejo das plataformas do mundo digital, mas também, muitas vezes, pela falta de acesso à internet.6 6 Dados recentes divulgados e disponibilizados pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) apontaram para o aumento em domicílios com acesso à internet nos anos de 2019 e 2021. Entretanto, o Brasil ainda apresenta 35,5 milhões de pessoas sem acesso à internet.

O exemplo que se explana aqui vai ao encontro da afirmação que o Trabalhador (3) também apontou em entrevista. Ao ser questionado sobre o modo de gestão, ainda que ele se identifique com o perfil adequado para o teletrabalho, considera que as APS não deveriam ser esvaziadas, pois destaca que os segurados foram distanciados de forma brusca de dentro das agências, e aponta a necessidade de haver duas vias. Assim, mesmo que haja a possibilidade de execução do teletrabalho e o uso de meios digitais para acessar benefícios, alguns serviços deveriam ser no formato presencial, pois, conforme o Trabalhador 3 indica, “o público ficou à deriva”.

Nesta mesma linha de ponderação, o Trabalhador 7 compartilha do mesmo olhar e reforça o posicionamento acerca da implementação de tecnologias em busca da modernização, mas destaca que essa mudança possui os mais diversos contrapontos, como menciona:

Essa questão do acesso à informação se tornou melhor a uma parcela da sociedade que não está excluída digitalmente, né? Claro que os excluídos ficaram mais excluídos. Já estavam excluídos do acesso à informação, né? E hoje piorou. Então, esse é um ponto negativo. Uma parcela da população ficou excluída de acesso à informação. Não só isso. O que é pior ainda, de acesso aos serviços.

Alves (2021ALVES, G. Gestão de metas e serviço público: a degradação do trabalho no Brasil neoliberal. São Paulo: Projeto Editorial Praxis, 2021.) reitera que, no caso das instituições públicas, essa nova precarização amplia a degradação do serviço público e reverbera nos serviços que são oferecidos à população. É nesse panorama que se tem a precariedade das condições de trabalho dos(as) trabalhadores(as) públicos(as) federais, situação da qual emergem outras problemáticas, como o adoecimento físico e mental. Para Harvey (2014HARVEY, D. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2014., p. 79), a teoria neoliberal da mudança tecnológica se sustenta nos poderes coercitivos da competição, “[...] e se torna um fetiche: a crença de que para todo e qualquer problema há um remédio tecnológico”.

A abordagem sobre as modernizações no INSS não pode passar despercebida nem distante do conhecimento da população. A temática do teletrabalho, ampliada por meio das facilidades propiciadas pelos avanços da onda tecnológica, deve ser colocada, sem dúvida, como objeto de análise e reflexão. Não há espaço para indiferença à inovação da qual essa modalidade faz parte, pois a forma como tem sido materializada é o que flexibiliza, precariza e pode adoecer o(a) trabalhador(a), sendo esta a discussão a seguir.

3. Saúde do(a) trabalhador(a) sob novas ameaças diante do acirramento de contradições no teletrabalho

A configuração de novos aspectos na saúde da trabalhadora e do trabalhador resulta das transformações do capital e dos processos de trabalho vigentes na contemporaneidade. Hegemonicamente, por décadas, as doenças advindas do trabalho e por meio dele pautavam-se unicamente na corporeidade. Os danos à saúde identificados pelo trabalho eram físicos, o que implicava algum tipo de comprometimento nos membros do corpo. Os novos arranjos no mundo do trabalho foram causando algumas mutações na ordenação laboral como um todo, e a mente passou cada vez mais a sofrer os reflexos das cobranças exacerbadas, da competitividade, do controle e da pressão pela execução do trabalho demandado.

Compreender a relação saúde-doença e trabalho é responder à necessidade de análise crítica dessa categoria dentro da historicidade que envolve fatores sociais, políticos e econômicos. A saúde do(a) trabalhador(a) entrelaça todos esses elementos, principalmente com o avanço e o reconhecimento que o tema tem alcançado. De acordo com Mendes e Wunsch (2011MENDES, J. M. R.; WUNSCH, D. S. Serviço Social e a saúde do trabalhador: uma dispersa demanda. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 107, set. 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-66282011000300005 . Acesso em: 28 nov. 2021.
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), essa amplitude que se deu, principalmente, por decorrência da nova ordem do capital sobre o trabalho implica um olhar mais atento sobre as novas modificações já mencionadas na forma de trabalhar, requerendo, para tanto, compreender o que significa o impacto na saúde e na vida das(os) trabalhadoras(es), inclusive daquelas(es) que atuam na esfera do serviço público flexível, as(os) quais têm exercido as atividades baseadas em desempenho de produtividade de meta. ­Byung-Chul Han (2015HAN, B.-C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.) alerta que os adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal.

Para muitos(as) dos(as) servidores(as) entrevistados(as), a nova forma de trabalhar apresentou-se com grande potencial, mas também com ilusões. Assim, a fim de romper com essas ilusões, numa melhor reflexão, que envolve o debate e a identificação da relação que há no processo trabalho-saúde-doença, inclui-se, indiscutivelmente, o trabalho como determinante social de saúde. É essencial compreender a saúde como condição de trabalho e, a partir disso, dialeticamente, a análise e a percepção dele como fator que pode ser adoecedor - independentemente da forma ou do regime em que esse trabalho é executado -, sendo esse adoecimento um impeditivo para a atividade laboral e de qualidade de vida para além da jornada.

São com essas considerações que, no subtítulo seguinte, revelam-se as implicações na saúde dos(as) servidores(as) entrevistados(as), explicitando estratégias buscadas para manter o alcance das metas, administrando a rotina e toda a pressão recebida para corresponder ao que é exigido pelo INSS.

3.1 Os reflexos na saúde dos(as) teletrabalhadores(as) previdenciários(as)

O teletrabalho firmou-se como uma nova forma de trabalhar, o qual, contudo, atinge o modo de viver e, consequentemente, a saúde de muitos(as) teletrabalhadores(as). Esta afirmação se materializa nas narrativas dos(as) servidores(as), que destacam os mais diversos agravos, como insônia, que repercute diretamente na qualidade do sono, aspectos físicos, Burnout,7 7 Burnout, resultado dos termos burn (queimar) e out (por inteiro), caracteriza-se como um quadro de adoecimento que ocorre em decorrência de um estresse físico e emocional que passa de uma situação pontual a uma incorporação no modo de trabalhar, cronificando-se com o passar do tempo. É também conhecido como Síndrome do Esgotamento Profissional. ansiedade, depressão, sofrimento pelo medo e insegurança de não atingir a meta. Esses(as) mesmos(as) trabalhadores(as) sofrem o receio diante da possibilidade de retorno ao trabalho presencial pelo não cumprimento de metas.

Tendo como referência a fala dos(as) trabalhadores(as) entrevistados(as), explicita-se o que o Trabalhador 1 destacou ao ser questionado sobre reflexos do teletrabalho na sua saúde:

Olha, eu acho assim, esse negócio do remoto, ele me custou assim, eu não tive mais uma boa noite de sono depois que comecei a trabalhar no remoto, nunca mais. Coisas assim, de acordar no meio da noite e não conseguir dormir mais. Porque às vezes tem que avançar, mas daí tu tá cansado e aí vai tentar dormir para tentar acordar mais cedo. Aí vai dormir e acorda no meio da noite. Então o sono ficou muito ruim, o humor, né?

A autogestão do trabalho, com o manejo do próprio tempo, permeada de aspectos como a meta, não permite que o(a) servidor(a) mantenha distante a preocupação em dar conta da responsabilidade pactuada ao assinar o termo de adesão ao programa de gestão. E por essa pactuação e pela subjetividade na vivência do teletrabalho, a saúde mental coloca-se como ponto central nessa realidade. Ocultamente, os sinais, como perda do sono e ansiedade, passam a ser constantes no cotidiano da vida e do trabalho.

Nesta mesma direção, o Trabalhador 8 menciona que, devido ao teletrabalho, já teve insônia; contudo, referiu não ingerir medicações para dormir. Já a Trabalhadora 2, na abordagem sobre a repercussão na saúde, destaca:

Na saúde, sim! Porque agora, como te disse, tem essa preocupação, às vezes a noite - tô tomando até remédio pra ver se consigo dormir, porque tenho muita insônia, porque tu fica pensando: Ah! será que eu fiz certo? Ah! Tem que fazer tal coisa, sabe? Tem tais e tais tarefas e aí tem tantas tarefas ainda para cumprir, será que vou conseguir? [ ] então, o psicológico, meu psicológico ficou bem mal.

A qualidade do sono da trabalhadora também é alterada, e ela busca como estratégia a automedicação para corresponder à necessidade do corpo e da mente, e, diga-se ainda, dar respostas às alterações que o teletrabalho tem imposto. Desse modo, estudos demonstram que os distúrbios do sono são identificados principalmente por estarem associados a hábitos alterados no cotidiano, bem como apresenta forte ligação com a ansiedade e a depressão. Sobre isso, a Trabalhadora 2 revela: “Mas aí tô tomando um remédio assim, natural, pra ver se dá uma acalmada nessa ansiedade, andei uma época aí meia depressiva, muitas coisas acontecendo”.Seligmann-Silva (2011SELIGMAN-SILVA, Edith. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez, 2011, 624, p. 532) assinala que os quadros depressivos relacionados ao trabalho, muitas vezes, não são típicos e se revelam com maior sutileza: “A postura de desânimo diante da vida e do futuro aparece como sua principal marca”.

O dilema da relação saúde, doença e trabalho é que o reconhecimento da dor ou o adoecimento físico ainda se apresenta como elemento principal desse processo, ocultando o escalonamento de doenças mentais, tanto no trabalho como fora dele. Sobre isso, Alves (2013ALVES, G. Dimensão da precarização do trabalho: ensaios de sociologia do trabalho. Bauru: Canal 6, 2013., p. 131) considera:

O silêncio (e preconceito) sobre adoecimentos mentais no mundo do trabalho é deveras sintomático. É a fetichização do adoecimento em sua forma magistral. Ao alugar a força de trabalho, o capital implica na sua relação social estranhada não apenas a capacidade física do homem que trabalha, mas também - e hoje, principalmente - a capacidade psíquica.

Os impactos e os efeitos colaterais podem desdobrar-se em inúmeras questões de adoecimentos e, dadas as situações relacionadas com o trabalho, o Burnout foi mencionado. Byung-Chul Han (2015HAN, B.-C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015., p. 27) enfatiza que “a síndrome de Burnout não expressa o si-mesmo esgotado, mas antes a alma consumida”. A Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou a Síndrome de Burnout como doença ocupacional, sendo inserida na Classificação Internacional de Doenças sob o código CID 11. A Trabalhadora 4, que teve Burnout, declara:

Eu… tive um Burnout agora em agosto, dentro do escritório que eu montei pra trabalhar, dentro de casa, porque foi me imposto esse novo trabalho, que eu não me identifico, nunca me identifiquei com esse trabalho, sabe?

O diagnóstico apontado pela servidora foi mediante atendimento médico, a partir do qual foi afastada de suas atividades laborais. Tal constatação do nexo com o trabalho se dá em relevância. Gaulejac (2007GAULEJAC, V. de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Tradução: Ivo Storniolo. Aparecida: Ideias e Letras, 2007., p. 235) corrobora a afirmação de que: “[...] no registro psicossomático, essas provas são difíceis de serem apresentadas”.

[... ] nós trabalhamos à base de ameaças, porque se você não fizer a pontuação, você vai sofrer desconto. Ah! Esse mês você em três meses você é expulso, entendeu? Então, assim, você tá trabalhando com a corda no pescoço. Olha as minhas unhas, são todas roídas. Eu fui diagnosticada com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) [...] eu tive uma crise e fui parar no hospital psiquiátrico (Trabalhadora 4).

A ligação entre perturbações psíquicas e condições de trabalho estressantes ou assediadoras é difícil de demonstrar. Ainda que a situação de saúde da Trabalhadora 4 tenha demandado, diante dos sintomas apresentados, uma abordagem médica, a mesma trabalhadora, ao relacionar os sintomas, identifica de imediato a relação do adoecimento com o trabalho; ela define:

Os sintomas físicos que eu tenho é na frente do computador. Entendeu? A taquicardia que me dá na hora que a gente vai clicar ali, ó, próxima tarefa, a gente clica. Depois que eles passaram a me bloquear, pra que não consiga mais puxar o que eu estou acostumada a puxar, né toda vez que eu vou clicar nesse botão, eu mesma começo a suar, é uma roleta-russa: “o que que vai vir agora?”. Sabe? Eu vou puxar uma coisa que não vou conseguir dar resolução, eu não sei a quem procurar (Trabalhadora 4).

Não divergente dos(as) trabalhadores(as) mencionados(as), a medicalização tem sido utilizada como ferramenta de trabalho, estratégia para manter a saúde. O Trabalhador 3 afirma:

Eu cheguei a me medicar, tomei medicamento pra controlar a ansiedade, porque isso gera uma carga de ansiedade muito grande, e aí pra ti conseguir separar isso da família é complicado. Eu não sei se todo mundo consegue, sabe? Eu consegui. Eu determino, elas estão aqui tomando um chimarrão, a minha pequena tá olhando desenho aqui na televisão e eu tô na sala trabalhando, entende? Tem gente que não consegue trabalhar na sala com barulho, né? É uma questão de se adaptar, eu me adaptei.

As diferenças da separação das instâncias do domicílio e da instituição abrem espaço para reflexão e questionamento no que tange a um dos aspectos cruciais do teletrabalho, que é o afastamento para tratamento de saúde quando a pessoa adoece e está no teletrabalho. No caso do Trabalhador 1, ele mencionou que esse ponto é o seu limite e nunca chegou a trabalhar adoecido. De forma divergente, a Trabalhadora 2 informa já ter trabalhado adoecida, da mesma forma que o Trabalhador 6 executou suas atividades adoecido por muitas vezes. O que se denota é que, em vários casos, os trabalhadores desconsideram esse direito por já estarem em casa, e submetem-se a trabalhar adoecidos. Na experiência do Trabalhador (7), trabalhar diagnosticado com depressão foi uma ação importante, uma vez que esse servidor afirmou que o seu adoecimento mental não teve relação com o trabalho e que executar suas atividades laborais somou-se como ponto positivo durante o processo:

Tive depressão durante o período em que estive no teletrabalho. Eu não me afastei. Eu não me afastei do trabalho porque eu tinha o trabalho como algo bom, como algo que eu conseguia focar e eu julgo que me ajudou (Trabalhador 7).

A narrativa do trabalhador destaca um fator significativo, que é a relevância do trabalho na vida humana, pois o subterfúgio e a ajuda no processo de tratamento da depressão são apontados como estratégias de foco para ajudar na superação do adoecimento. Da Silva (2013DA SILVA, M. da C. C. C. A saúde do servidor público e sua dimensão social. Maceió: Edufal, 2013.) considera que os riscos tradicionais que envolvem o trabalho somam-se a outros elementos, quando as tecnologias invadem os processos de trabalho. No caso do teletrabalho, identifica-se que as expressões no âmbito da saúde do(a) trabalhador(a) são afetadas, pois este traz a solidão do trabalho, o que não somente provoca implicações nas relações de classe, mas também repercute diretamente na saúde mental de quem está distante do coletivo e sob pressão. A Trabalhadora 5, refletindo sobre os impactos do teletrabalho na sua saúde, explicita:

[...] eu tenho insônia e, a insônia, em contrapartida, asseverou que eu tive que ir num neurologista ver uma medicação para regular isso, porque simplesmente não estava mais dormindo. Mas é uma questão que já vinha já. Sempre tive o sono mais complicado e isso parece que acelerou, que ficou maior em função do teletrabalho, porque tu está sempre disponível.

A constatação da perda do sono tem se revelado algo presente na vida dos(as) teletrabalhadores(as) previdenciários(as). No caso da Trabalhadora 5, ela buscou um profissional para prescrição de fármacos que lhe possibilitassem dormir, evitando assim a automedicação. Isso implica muito mais do que uma noite efetiva de sono, mas também alivia outros sintomas físicos. Quando abordada sobre outros fatores, como ergonomia, que refletem na sua saúde, mencionou: “A cervical está sempre prejudicada, porque aqui, bem ou mal, mas não é aquela coisa ideal, né?” (Trabalhadora 5).

As condições apropriadas para o trabalho nem sempre são alcançadas quando se executa o teletrabalho. A importância da ergonomia deve ser considerada não apenas com o intuito da produtividade, mas principalmente pelos fatores da saúde, evitando problemas relacionados a acidentes, dores musculares, entre outros.

Na abordagem sobre trabalhar adoecido, o Trabalhador (3) mencionou:

É, eu nunca me afastei do trabalho, não. Os piores do inverno, que a gente pega aquelas gripes brabas, sabe? Não tenho afastamento, não. Eu nunca peguei atestado, até porque se tu está em casa, tu te medica e vai, entende? Acho que não cheguei ao ponto de ficar tão mal de não conseguir manter uma linha de raciocínio, por exemplo, né? Também sempre tive uma saúde muito boa, entende? Mas, nunca cheguei ao ponto de nunca poder trabalhar por causa de uma dor de cabeça, ou alguma coisa desse tipo, de mal-estar.

A reprodução de comportamentos do(a) trabalhador(a) permeia qualquer esfera, seja presencial, seja no teletrabalho. A necessidade de estar presente no trabalho é carregada de responsabilidade, que cada vez mais pressiona o(a) trabalhador(a) a manter a execução de suas atividades laborais, ainda que a sua saúde esteja comprometida. Contudo, Byung-Chul Han (2015HAN, B.-C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015., p. 27) refere que, “o que torna doente, na realidade, não é o excesso de responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho como um novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho”.

Embora o Trabalhador 3 tenha explicitado a escolha em manter-se trabalhando, a atribuição do presenteísmo manifesta-se para além das questões pessoais. Há, primeiramente, elementos de fundo da instituição, que incluem a forma como ela se organiza e implementa seus processos de trabalho. Assim, entende-se que a gestão do INSS passa por esses moldes, pelos quais a pressão pela produtividade e pelo alcance de metas é uma das questões que, de alguma forma, acabam gerando implicações no modo como o(a) trabalhador(a) se porta, seja em relação ao trabalho, seja no que diz respeito à própria saúde.

Considerações finais

A abordagem sobre a saúde do(a) trabalhador(a), ligada à modalidade do teletrabalho, ainda se mostra pouco pesquisada. Isso porque os estudos têm se apresentado, em grande ênfase, no âmbito jurídico, com questões referentes aos direitos trabalhistas, contudo, evidencia-se grande lacuna no que tange à saúde, não somente física, como também mental.

Este estudo, ainda que direcionado para uma categoria de trabalhadores(as) federais, não se diferencia da realidade e da luta geral da classe trabalhadora. As transformações do capitalismo não têm feito, e nunca fizeram, distinções de categorias nem de profissões. As diretrizes neoliberais e os novos modelos de gestão adotados no INSS têm se mostrado como uma política de corrosão, e as alterações provocadas dentro da autarquia têm refletido nas condições de trabalho e na saúde dos(as) trabalhadores(as). Percebe-se um órgão desconfigurado da sua essência e desorganizado na sua gestão.

O modelo gerencialista que fora adotado na instituição nos últimos anos ainda não foi o foco dos governos para intervenção política, a fim de ser alterado, ou, pelo menos, discutido nos seus mais íntimos elementos, que têm tornado essa forma de administrar, conforme afirma Gaulejac (2007GAULEJAC, V. de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Tradução: Ivo Storniolo. Aparecida: Ideias e Letras, 2007.), uma doença social.

Nos moldes do teletrabalho, essa realidade não se distingue. Esta reflexão corrobora que toda a inovação das tecnologias de informação e comunicação que chegou perspectivando mais tempo para o lazer ou outras questões e menos trabalho inverteu-se de maneira considerável. A necessidade de mais tempo no, ou para o trabalho, implica diretamente menos tempo de tudo que se organiza a partir dele. O repouso entre jornadas, um dos primeiros direitos conquistados, parece sofrer ameaças no contexto das tecnologias, bem como o comprometimento da saúde é colocado em jogo, e há um rompimento da ética do trabalho e das relações que o rege.

As mudanças na vida pessoal se materializam pela dificuldade de dividir as esferas do trabalho da esfera familiar. Essa afirmação é embasada pelo contexto do extrapolamento da jornada laboral, durante o dia e a noite, incluindo nessa tomada de tempo de vida os fins de semanas e os feriados. A grande maioria se utiliza da medicalização como ferramenta de trabalho. Elementos como cansaço extremo, estresse, medo, insegurança, insônia, são mudanças preponderantes, que implicam diretamente na qualidade do sono.

Além disso, ocasiona a sensação da pressão o sentimento de estar devendo, alimentado pela culpa de não estar em frente ao computador executando tarefas. No caso do INSS, a inoperância dos sistemas institucionais reforça ainda mais a situação mencionada. Junto a tudo isso, vive-se, nessa forma de trabalhar, na maioria das vezes, a solidão do trabalho, pois se acarreta menos interação com os colegas, bem como se reforçam o individualismo, o distanciamento social, e origina-se a fragmentação do coletivo, distanciando-se da luta sindical.

Percebe-se a necessidade de avanço em legislações que tratem do teletrabalho no país, na perspectiva de proteção aos direitos dos(as) trabalhadores(as), seja na esfera privada, seja na pública. Independentemente da forma como o trabalho é executado, que o adoecimento no trabalho e por meio dele não se alinhe à normalidade. É necessário resistir, além de reconhecer e difundir a compreensão de que o adoecimento no trabalho não deve nem pode ser naturalizado.

Referências

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    » https://revistas.javeriana.edu.co/index.php/revPsycho/article/view/10756/13443
  • 1
    Goldschmidt e Andreola (2014/2015GOLDSCHMIDT, R.; ANDREOLA, L. S. O assédio moral virtual no meio ambiente de trabalho: assédio moral eletrônico e teleassédio. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 12a Região, Florianópolis, v. 18, n. 27, p. 121-141, 2014/2015.) abordam o assédio moral virtual, defendendo que este é observado de duas formas: o teleassédio ocorre no ambiente e na relação de teletrabalho. Logo, o assédio moral eletrônico pode se dar no ambiente do próprio local da empresa e se concretiza por meios eletrônicos.
  • 2
    O estudo atendeu a todos os preceitos da ética em pesquisa, sendo aprovado no Comitê de Ética sob o número CAAE: 57947922.4.0000.5334.
  • 3
    De igual modo e no mesmo percurso, Ronald Reagan assume como presidente dos Estados Unidos, com diretrizes ultraconservadoras, provoca disparidade social, contribuindo para uma nova configuração econômica neoliberal. Para melhor aprofundamento da ascensão neoliberal, sugere-se a leitura de Harvey (2014HARVEY, D. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2014.).
  • 4
    Utiliza-se o termo “desintegração”, no seu sentido mais amplo dentro dos dicionários da língua portuguesa: significa produzir a desintegração de algo; fazer com que alguma coisa seja decomposta, desintegrada em várias partes; destruir sua unidade, perdendo sua coesão e homogeneidade. Cita-se, por exemplo, a desintegração de uma organização pública.
  • 5
    A abreviação CNIS corresponde ao Cadastro Nacional de Informações Sociais, o qual se configura como sistema oficial de banco de dados do governo federal, criado em 1989. Possui como finalidade condensar dados e informações de vínculos empregatícios e previdenciários das trabalhadoras e dos trabalhadores.
  • 6
    Dados recentes divulgados e disponibilizados pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) apontaram para o aumento em domicílios com acesso à internet nos anos de 2019 e 2021. Entretanto, o Brasil ainda apresenta 35,5 milhões de pessoas sem acesso à internet.
  • 7
    Burnout, resultado dos termos burn (queimar) e out (por inteiro), caracteriza-se como um quadro de adoecimento que ocorre em decorrência de um estresse físico e emocional que passa de uma situação pontual a uma incorporação no modo de trabalhar, cronificando-se com o passar do tempo. É também conhecido como Síndrome do Esgotamento Profissional.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2024
  • Aceito
    06 Ago 2024
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