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O SUAS e a centralidade na família: problematizando a imprecisão do conceito

The Brazilian System of Social Assistance and family centrality: problematizing in accuracies of the concept

Resumo:

O artigo analisa imprecisões e dilemas conceituais do uso da centralidade da família como um dos eixos estruturantes da política de assistência social e do SUAS. Por meio de análise bibliográfica e documental, destaca tensões e contradições relativas à indefinição conceitual do termo. A análise ressalta o potencial contraditório de seu emprego no trabalho social com famílias, podendo contribuir tanto para garantia de direitos como para culpabilização de usuários por suas condições de vida.

Palavras-chave:
Política de Assistência Social; Matricialidade sociofamiliar; Trabalho social com famílias; Vínculos; Violação de direitos

Abstract:

The article analyzes in accuracies and conceptual dilemmas in the use of family centrality as one of the structuring axes of social assistance policy and the Brazilian System of Social Assistance. Through bibliographic and documentary analysis, it points out tensions and contradictions related to the conceptual vagueness of the term. The analysis highlights the contradictory potential of its use in social work with families, which can contribute both to guaranteeing rights and blaming users for their living conditions.

Keywords:
Social Assistance Policy; Socio-family matriciality; Social work with families; Bonds; Violation of rights

Introdução

A assistência social brasileira experimentou avanços consideráveis a partir da Constituição Federal de 1988. Reconhecida pela primeira vez como política pública no campo da seguridade social, passou a compor o elenco de direitos sociais constitutivos da cidadania, o que abriu espaço para a reversão do legado assistencialista e benemerente que modelou a trajetória das práticas assistenciais no país. Mas é somente com o estabelecimento da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), em 2004, e a criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em 2005, que uma nova institucionalidade para a área ganha materialidade.

A centralidade na família aparece como uma das diretrizes da PNAS e um dos eixos estruturantes do SUAS, por meio do qual a família é compreendida como núcleo social fundamental para a efetividade das ações dessa política. Tal centralidade representa, por um lado, a perspectiva de ruptura com a lógica segmentada e fragmentada que comandou a política social brasileira desde suas origens (Couto, 2009COUTO, B. R. O Sistema Único de Assistência Social: uma nova forma de gestão da assistência social. In: BRASIL. Concepção e gestão da proteção social não contributiva no Brasil. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Unesco, 2009.). Por outro, como aqui se pretende argumentar, a indefinição conceitual e metodológica sobre a centralidade na família nas normativas do SUAS, em associação à incorporação de outras noções, também difusas e oriundas de diferentes campos disciplinares, abrem flanco para que sejam reatualizadas concepções e práticas profissionais que responsabilizam e penalizam as famílias pobres atendidas.

A argumentação parte do entendimento de que políticas sociais, como a assistência social, não se esgotam em seus aspectos técnico-gerenciais. Antes, constituem um campo complexo, atravessado por diversos conflitos entre grupos e classes sociais, próprios do sistema capitalista (Pereira, 2020PEREIRA, P. A. P. A política social entre Deus e o diabo: determinações e funcionalidades no sistema capitalista. In: MORAES, C. A. S.; SENNA, M. C. M.; FREITAS, R. C. S. (org.). Política social no Brasil: trajetórias, sujeitos e institucionalidades. Curitiba: CRV, 2020. p. 33-50.) e por dinâmicas contraditórias, entre tentativas de promoção de equidade em uma sociedade estruturalmente desigual. As normativas que orientam a política social expressam processos políticos marcados por disputas de poderes e saberes distintos. Nesse sentido, tais ordenamentos não seguem necessariamente um fluxo linear, evolutivo e coerente, mas dão materialidade a determinados acordos, pactos, conflitos e/ou incoerências presentes ao longo do processo de sua formalização (Freeman; Maybin, 2011FREEMAN, R.; MAYBIN, J. Documents, practices and policy. Evidence & Policy, v. 7, n. 2, p. 155-170, 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.research.ed.ac.uk/en/publications/documents-practices-and-policy . Acesso em: 25 set. 2022.
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). No caso da Política Nacional de Assistência Social, há que se considerar ainda que os diversos documentos orientadores foram sendo construídos em diferentes momentos, em que mudanças nas arenas decisórias em torno da política, expressando alternância na hegemonia de projetos societários opostos, podem ter contribuído para imprecisões e incongruências em seu arcabouço normativo.

Essas imprecisões e vieses, ora mais conservadores, ora garantistas, tendem a se amplificar no processo de implementação da política. Isso porque mais do que a simples execução de objetivos, metas e ações, o processo de implementação envolve decisões relevantes, envoltas em cenários de incertezas, ambiguidades e disputas (Justo; Arantes; Senna, 2010JUSTO, A. M.; ARANTES, R. F.; SENNA, M. C. M. Desafios para as avaliações em políticas sociais. Revista Aval, v. 1, n. 5, p. 103-112, 2010. Disponível em: Disponível em: http://www.avalrevista.ufc.br/index.php/revistaaval/article/view/61 . Acesso em: 25 set. 2022.
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). Nessa condição, os chamados agentes implementadores tendem a ressignificar o desenho da política, a partir da discricionariedade que adotam e que, no limite, transformam a própria política (Lotta; Pavez, 2010LOTTA, G.; PAVEZ, T. Agentes de implementação: mediação, dinâmicas e estruturas relacionais. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, São Paulo, v. 15, n. 56, p. 109-125, 2010. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.12660/cgpc.v15n56.3205 . Acesso em: 25 set. 2022.
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). Discricionariedade essa que tende a ser tanto maior quanto mais imprecisos são os conceitos que orientam a política.

Com base nessas considerações e por meio de levantamento documental e bibliográfico, o artigo se propõe a trazer contribuições à análise crítica da centralidade na família proposta pela política nacional de assistência social no Brasil. Os documentos consultados e analisados na elaboração do artigo foram: a Política Nacional de Assistência Social, a Norma Operacional Básica e sua atualização de 2012, a Tipificação dos Serviços Socioassistenciais, a Lei n. 12.435 e os cadernos do CapacitaSUAS. Este trabalho também é cotejado pelas reflexões em sala de aula, em trabalhos de supervisão às equipes de assistência social e em participação nos cursos de formação do CapacitaSUAS. Aponta possíveis armadilhas que a imprecisão do termo “matricialidade sociofamiliar” tende a produzir para o trabalho social que se pretende garantidor de direitos, propondo uma agenda de pesquisas sobre a temática, posto que os elementos aqui abordados merecem ser aprofundados em estudos posteriores.

1. Breve incursão na trajetória da assistência social no Brasil: da caridade à noção de direitos

A vasta literatura existente sobre a assistência social brasileira tende a afirmar que o percurso histórico desse campo de intervenção tem origem em práticas caritativas de socorro aos chamados desvalidos, conduzidas por damas de caridade e/ou grupos religiosos. Essa é uma tendência que se mantém predominante ao longo da trajetória da assistência social no país, cujas características centrais são compostas ainda pelo predomínio de ações pontuais e assistencialistas, configurando uma não política, isto é, um mecanismo de troca de favores e benemerência e não um direito (Sposati, 2006SPOSATI, A. O primeiro ano do Sistema Único de Assistência Social. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, v. 27, n. 87, p. 96-122, 2006.; Mestriner, 2008MESTRINER, M. L. O Estado entre a filantropia e assistência social. São Paulo: Cortez, 2008.; Coutoet al., 2010COUTO, B. R. et al. (org.). O Sistema Único de Assistência Social no Brasil: uma realidade em movimento. São Paulo: Cortez, 2010.).

As primeiras intervenções sociais promovidas pelo Estado brasileiro nesse campo remontam ao início do século XX, no contexto de transição de uma sociedade agrária e escravagista para um país que se tornava crescentemente urbano e industrial. A partir daí, conformou-se um modelo dual de proteção social que, longe de promover uma equalização maior das desigualdades sociais, acabou por reforçar a segmentação social. Esse modelo se assentou na conjugação entre um tipo de seguro social contributivo, restrito a determinadas categorias de trabalhadores urbanos formais, e um conjunto de ações emergenciais, pulverizadas e descontínuas, destinadas a segmentos sociais extremamente pobres e operando sob uma lógica caritativa, corretiva e reeducadora (Fleury, 2008FLEURY, S. Seguridade social: um novo patamar civilizatório. In: INSTITUTO LEGISLATIVO BRASILEIRO. Os cidadãos na Carta cidadã. Brasília: Senado Federal, 2008.).

Vale dizer que esse padrão de intervenção estatal - que perduraria no país até o final dos anos 1980, com pequenas variações, de acordo com as diferentes conjunturas, regimes políticos e orientações ideopolíticas dos governos em exercício - tinha como referência um dado modelo de família nuclear, cujos papéis na divisão sexual do trabalho estavam bem definidos: ao homem cabia ser o provedor, enquanto a mulher incumbia-se dos cuidados a seus membros. Famílias que não seguiam esse modelo, em geral as negras e mais pobres, eram classificadas como “desestruturadas”, sendo a elas imputadas medidas de controle, disciplinamento e normatização da vida familiar, compatíveis com a política higienista do início do século XX (Costa, 1979COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.).

Como aponta Yazbek (2005YAZBEK, M. C. A pobreza e as formas históricas de seu enfrentamento. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v. 9, n. 1, p. 217-228, jul./dez. 2005., p. 220), “do ponto de vista estatal, a atenção para esses segmentos vai basear-se em uma lógica de benemerência, dependente de critérios de mérito e caracterizada pela insuficiência e precariedade, moldando a cultura de que ‘para os pobres qualquer coisa basta’”.

Yazbek (2005YAZBEK, M. C. A pobreza e as formas históricas de seu enfrentamento. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v. 9, n. 1, p. 217-228, jul./dez. 2005.) chama atenção, nesse sentido, para o caráter secundário da ação estatal na provisão de serviços socioassistenciais. Mesmo durante o regime militar, que perdurou no Brasil por duas décadas, esse padrão não se alterou em seus fundamentos, ainda que tenham ocorrido modernizações nas antigas formas de socorro aos pobres vinculadas à filantropia e à benemerência.

É assim que Couto et al. (2010COUTO, B. R. et al. (org.). O Sistema Único de Assistência Social no Brasil: uma realidade em movimento. São Paulo: Cortez, 2010.) assinalam que a assistência social brasileira foi se conformando como um conjunto de práticas sociais focalizadas nos mais pobres e miseráveis, assumindo caráter emergencial, fragmentado e descontínuo, como uma espécie de “pronto-socorro social”, ao mesmo tempo que profundamente permeada por relações clientelísticas e patrimonialistas.

É no contexto de redemocratização do país que as políticas sociais brasileiras ganham nova configuração e, diante do clamor por democracia com justiça social, as políticas sociais passam a ser foco prioritário para o resgate da imensa dívida social do país. A Constituição Federal de 1988 encampa boa parte das aspirações nesse sentido, reconhecendo um rol de direitos sociais e conferindo um título exclusivo à Ordem Social.

No caso da assistência social, o texto constitucional confere, pela primeira vez, seu estatuto de política pública, dentro da noção, também inédita, de seguridade social, ao lado das políticas de saúde e de previdência social. Reconhecida como uma responsabilidade estatal e dirigida a todos que dela necessitarem, a assistência social transita da perspectiva caritativa para o paradigma de direitos, viabilizada por meio de um sistema descentralizado e participativo, com comando único, fundo de financiamento em cada esfera de governo e conselhos deliberativos compostos paritariamente entre governo e sociedade civil.

Mas a inscrição no texto constitucional não garante a implementação de suas diretrizes. O processo de reformas que se seguiu foi marcado por um cenário extremamente adverso, seja devido ao contexto de austeridade permanente adotado como resposta do capital à crise estrutural, seja ainda pelo avanço do ideário neoliberal, com incorporação de cortes de gastos sociais, privatizações e seletividade. Especificamente em relação à assistência social, é possível afirmar que as diretrizes constitucionais só ganharam materialidade a partir de 2004, com a instituição da PNAS e a implantação do SUAS, um ano depois.

De fato, a PNAS e o SUAS introduzem significativas inovações institucionais na assistência social, organizando a oferta de serviços, programas, projetos e benefícios a partir de uma lógica sistêmica e integrada, envolvendo a gestão partilhada dos três entes federativos e a participação da sociedade civil. A PNAS articula o SUAS por meio de diversos eixos estruturantes, dentre os quais figura a matricialidade sociofamiliar. E é sobre ela que se debruçam as considerações aqui tecidas, buscando problematizar possíveis armadilhas que essa expressão pode desencadear na construção de uma política de proteção social voltada à garantia de direitos.

2. Centralidade na família: imprecisões conceituais na configuração do SUAS

É possível afirmar que a vinculação entre proteção social e famílias configura uma regularidade histórica de longa duração. Tendo como ponto de partida a constituição dos chamados Welfare States europeus no segundo pós-guerra, Esping-Andersen (1991ESPING-ANDERSEN, G. As três economias políticas do Welfare State. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 24, p. 85-116, 1991.), ao construir uma tipologia para identificar diferentes regimes políticos de Welfare State, toma as relações estabelecidas entre Estado, mercado e família como uma das dimensões analíticas, identificando variações entre os países em relação aos graus de desmercadorização e de desfamiliarização na provisão social. Todavia, conforme aponta Pereira (2009PEREIRA, P. A. P. Do Estado social ao Estado antissocial. In: PEREIRA, P. A. P. et al. (org.). Política social, trabalho e democracia em questão. Brasília: Programa de Pós-Graduação em Política Social (UnB), 2009. v. 4, p. 209-234.), durante o auge da economia capitalista no segundo pós-guerra, com garantia de pleno emprego e da oferta de políticas sociais universais, pareceu que a família seria descartável no modelo de Estado de Bem-Estar gestado pelos países centrais.

Esse quadro se altera a partir dos anos 1970, quando o ciclo virtuoso entre crescimento econômico, acumulação capitalista e políticas sociais abrangentes é interrompido pela crise estrutural do capitalismo, deixando visíveis o desemprego em massa e o aumento da pobreza e das desigualdades sociais. Esse contexto de mudanças tem favorecido a adoção de um modelo misto de proteção social, denominado pluralismo de bem-estar, caracterizado, em linhas gerais, pela “ação compartilhada do Estado, do mercado (incluindo as empresas) e da sociedade (organizações voluntárias, sem fins lucrativos, a família ou rede de parentesco) na provisão de bens e serviços que atendam às necessidades humanas básicas” (Pereira, 2009PEREIRA, P. A. P. Do Estado social ao Estado antissocial. In: PEREIRA, P. A. P. et al. (org.). Política social, trabalho e democracia em questão. Brasília: Programa de Pós-Graduação em Política Social (UnB), 2009. v. 4, p. 209-234., p. 199).

No Brasil, diferentemente dos países centrais, a família “sempre fez parte integral dos arranjos de proteção social brasileiros [...] pela participação (principalmente feminina) dos membros da unidade familiar nas tarefas de apoio aos dependentes e na reprodução de atividades domésticas não remuneradas” (Pereira, 2004PEREIRA, P. A. P. Mudança social, política social e o papel da família: crítica ao pluralismo de bem-estar. In: SALES, M. A.; MATOS, M. C.; LEAL, M. C. (org.). Política social, família e juventude: uma questão de direitos. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004., p.29).

Do ponto de vista da proteção social, a família nunca deixou de ser unidade protetora e provedora de serviços, devido, em grande parte, ao trabalho não remunerado das mulheres (Ipea, 2016IPEA. Economia dos cuidados: marco teórico-conceitual. Rio de Janeiro, 2016. Relatório de pesquisa.). O Estado acabou ocupando um papel subsidiário às famílias, atuando apenas quando comprovada a debilidade da instituição familiar para prover os cuidados necessários a seus membros. Tais ações culminavam com trabalhos emergenciais, pontuais, voltados a situações-problema, com ações disciplinadoras e normatizadoras (Mioto, 2006MIOTO, R. C. T. Novas propostas e velhos princípios: a assistência às famílias no contexto de programas de orientação e apoio sociofamiliar. In: SALES, M. A.; MATOS, M. C.; LEAL, M. C. (org.). Política social, família e juventude: uma questão de direitos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.).

Mas é no contexto de avanço do neoliberalismo dos anos 1990 que a família é crescentemente valorizada como instância responsável pela proteção de seus membros. Durante os anos 1990, os serviços de assistência social no Brasil concorreram por recursos com o Programa Comunidade Solidária e com programas de transferência de renda que tinham como foco a pobreza extrema. Apesar de o sistema de proteção ser pautado na família, as ações implementadas eram direcionadas aos segmentos por faixa etária (crianças, jovens, idosos) e a grupos em situações de maior vulnerabilidade devido a deficiências ou a experiências de violências (mulheres vítimas de violência doméstica, trabalho infantil, entre outros). Em anos recentes, com a crise estrutural do capitalismo e as políticas de austeridade que incluem a intensificação dos mecanismos de privatização e a mercantilização dos serviços sociais, recai para a família o cuidado dos seus membros dependentes (Mioto, 2015MIOTO, R. C. T. Política social e trabalho familiar: questões emergentes no debate contemporâneo. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 124, out./dez. 2015.).

A implantação do SUAS resgata os princípios constitucionais da seguridade social, enfatizando a primazia do Estado na condução da política de assistência social. Essa ênfase está relacionada, em grande medida, à tradicional preponderância das entidades privadas sem fins lucrativos na prestação de serviços e no acesso ao financiamento público.

Ao mesmo tempo que a responsabilidade do Estado na provisão da proteção social é evocada, o SUAS assume a centralidade na família como um de seus eixos estruturantes. Essa centralidade traz, em sua base, a concepção de que as demais necessidades e públicos da assistência social estão, de algum modo, vinculados à família, seja no momento de utilização de programas, projetos e serviços da assistência social, seja no início do ciclo que gera a necessidade de atenção dessa política pública.

Apesar de reconhecer a existência de diversos arranjos familiares, a definição de família nos documentos que orientam a PNAS é imprecisa, trazendo elaborações que remetem a visões conservadoras, a-históricas e concorrentes com outras mais progressistas. A título de exemplo, pode-se citar o trecho contido na NOB-SUAS de 2005, que define família como “núcleo afetivo, vinculada por laços consanguíneos, de aliança ou afinidade, onde os vínculos circunscrevem obrigações recíprocas e mútuas, organizadas em torno de relações de geração e de gênero” (Brasil, 2005BRASIL. Conselho Nacional de Assistência Social. Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB-SUAS). Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Conselho Nacional de Assistência Social, 2005., p. 17). Como afirma Teixeira (2009TEIXEIRA, S. M. Família na política de assistência social: avanços e retrocessos com a matricialidade sociofamiliar. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v. 13, n. 2, p. 255-264, jul./dez. 2009.), a definição de família é alargada pela política, ao mesmo tempo que há reforço das funções que se esperam ser cumpridas por ela: o cuidado e a socialização de seus membros, independentemente de seu formato ou das condições materiais e subjetivas de existência.

Mioto (2015MIOTO, R. C. T. Política social e trabalho familiar: questões emergentes no debate contemporâneo. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 124, out./dez. 2015.) apresenta uma consideração importante para a compreensão desse conceito de família. De acordo com a autora, no processo de consolidação do capitalismo industrial, separou-se, em teoria, a unidade familiar dos processos produtivos, colocando-a como instância privada, o que acarretou uma visão da família desvinculada do trabalho e das relações econômicas. Mioto (2015MIOTO, R. C. T. Política social e trabalho familiar: questões emergentes no debate contemporâneo. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 124, out./dez. 2015.) explica que, na perspectiva funcionalista, Parsons apresentou a família como o lugar dos afetos e de processos de socialização, o que foi incorporado amplamente por estudiosos de outras matrizes teóricas. Assim, a questão econômica acaba sendo objeto dos estudos somente quando se aborda o consumo e relacionado às famílias pobres, que não possuem condições materiais de cumprir com as funções idealizadas. Segundo Carloto e Mariano (2010CARLOTO, C. M.; MARIANO, S. A. No meio do caminho entre o privado e o público: um debate sobre o papel das mulheres na política de assistência social. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 451-471, maio/ago. 2010., p. 454):

Esse pressuposto, combinado com o quesito de classe, constitui boa parte da base conceitual das políticas sociais, incluindo-se os programas e os serviços de assistência social. A lógica produzida entende que as famílias pobres precisam de orientação, informação e educação para esse cuidar. [...]Se é verdade que a família é considerada um dos pilares da proteção social brasileira, também é correto afirmarmos que esse princípio apresenta-se de forma cabal na assistência social.

Assim, pelos documentos analisados, fica implícito que a família tem de dar conta de prover financeiramente o sustento de seus membros, bem como estabelecer e manter vínculos afetivos e relações não permeadas por violência, além de cuidar da higiene e da educação de crianças e adolescentes, sem negligenciar o convívio com a família extensiva. Persiste, desse modo, um modelo idealizado de família nuclear heterossexual com filhos, sem conflitos geracionais e de gênero, no qual imperam afeto e proteção recíprocos, com a mulher representando o sustentáculo dessa dinâmica.

Essa noção se torna ainda mais preocupante quando se observa o corte de classe, de gênero e de raça que define o público-alvo de programas, serviços e benefícios da assistência social. Importante que os estudos e as intervenções com as famílias atendidas pela assistência social partam das suas particularidades na realidade concreta brasileira, e não de modelos idealizados. As relações de classes generificadas e racializadas, considerando a formação social, política e econômica do país, vão prover unidade às dimensões das experiências sociais das famílias (Davis, 2016 apudMcNally, 2023MCNALLY, D. Interseções e dialética: reconstruções críticas na teoria da reprodução social. In: BHATTACHARYA, T. (org.). Teoria da reprodução social: remapear a classe, recentralizar a opressão. São Paulo: Elefante, 2023.; Freitas; Mesquista; Ceará-Silva, 2020FREITAS, R. C. S.; MESQUITA, A. A.; CEARÁ-SILVA, G. Política social, famílias e relações de gênero: reflexões e proposições. In: SENNA, M. de C. M. S.; FREITAS, R. C. S; MORAES, C. A. S. (org). Política social no Brasil: sujeitos, trajetórias e institucionalidades. Curitiba: CRV, 2020.).

Embora o desenho da PNAS postule que os usuários da assistência social sejam todos aqueles que dela necessitem, é possível afirmar que é sobre as famílias pobres que recai a quase totalidade das ações previstas pela política. Se, por um lado, essa perspectiva possibilita a incorporação de segmentos sociais que historicamente estiveram excluídos dos mecanismos públicos de proteção social, por outro, traz a necessidade de problematizar criticamente o quanto ela reforça um modelo idealizado de família, que tende a perpetuar preconceitos e estigmas, e gerar práticas discriminatórias e punitivistas para as famílias pobres.

3. Centralidade na família e direitos socioassistenciais

Ao lado da centralidade da família, as categorias território, vulnerabilidade social e risco social configuram os principais sustentáculos da arquitetura institucional do SUAS. Isso quer dizer que a organização de serviços e benefícios leva em consideração esses três elementos, que, associados, criam as justificativas para implantação da rede institucional pública estatal. Pelo estabelecimento de critérios normativos, a partir dos “diagnósticos territoriais”, gestores levantam vulnerabilidades e riscos1 1 Um debate mais aprofundado sobre os termos vulnerabilidade e risco social no âmbito da política de assistência social pode ser encontrado em Senna; Paiva e Oliveira (2022). de determinado território para então disponibilizarem programas, projetos e serviços que atendam às demandas de determinada população. Em uma perspectiva de pensar a política como “causa-efeito” e “problema-solução”, as categorias de vulnerabilidade e risco são dois grandes guarda-chuvas, em que se estabelecem hierarquizações das problemáticas vivenciadas por sujeitos e famílias. A vulnerabilidade está relacionada às situações que acometem os indivíduos e famílias:

decorrentes da pobreza, privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos, dentre outros) e, ou, fragilização de vínculos afetivos - relacionais e de pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiências, dentre outras) (Brasil, 2004BRASIL. Política Nacional de Assistência Social. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Conselho Nacional de Assistência Social, 2004., p. 33).

Nessa definição, vulnerabilidade está associada, principalmente, às questões das famílias pobres, que vivenciam a falta de renda e ausência de serviços públicos. Encaixam-se também as fragilizações dos vínculos e situações de discriminações. Esses seriam, portanto, os destinatários dos serviços da proteção social básica ofertados nos CRAS (Centros de Referência de Assistência Social).

Situações de risco estão relacionadas às probabilidades de algo acontecer com os sujeitos. A PNAS então define que sua intervenção em situações de risco está relacionada às violações de direitos. O risco vira, assim, sinônimo de violação de direitos e vai conformar os serviços de Proteção Social Especial ofertados nos CREAS (Centros de Referência Especializado de Assistência Social), nos Centros POP (Centros de Referência Especializado para População em Situação de Rua) e nas diversas modalidades de acolhimento, institucional e familiar.

O caderno do CapacitaSUAS, volume 1, de 2008, apresenta a seguinte definição para risco e vulnerabilidade social:

São diversos os fatores que configuram situações de risco e vulnerabilidade social: a ausência ou precariedade de renda; o desemprego e o trabalho informal e inseguro; o acesso frágil ou inexistente aos serviços sociais públicos; a perda ou fragilização de vínculos de pertencimento e de relações socio-familiares; as mais diversas discriminações e preconceitos a que estão sujeitos indivíduos, famílias, coletividades, grupos e classes sociais. [...] A desigualdade social e a pobreza inerentes à sociedade capitalista contemporânea engendram diferentes modalidades de desproteção social que exigem atenção estatal para o seu enfrentamento (Brasil, 2008BRASIL. CapacitaSUAS. Brasília: MDS; Instituto de Estudos Especiais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2008. v. 1: SUAS: configurando os eixos de mudança., p. 45).

Nessa passagem, o documento associa vulnerabilidades e riscos às questões estruturais da sociedade capitalista e que resultam em desproteções. No mesmo caderno, faz-se menção ao fato de que as situações de vulnerabilidade também são violações de direitos. Porém, essa noção parte da perspectiva de que existem graus diferentes dessas violações, que conduzem a fragilidades ou rompimento das relações familiares e comunitárias, levando, portanto, à diferença hierarquizada de serviços, ou seja, da proteção básica e da proteção especial, esta última ainda distinguindo de média e de alta complexidades.

No Caderno 1 do CapacitaSUAS (Brasil, 2013BRASIL. CapacitaSUAS. Brasília: MDS; Centro de Estudos e Desenvolvimento de Projetos Especiais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2013. Caderno 1. Assistência social: política de direitos à seguridade social.), ao discutir os direitos socioassistenciais que devem ser garantidos pela política de assistência social, o texto deixa nítido que os direitos humanos inspiram os direitos socioassistenciais, os quais vão delimitar as seguranças afiançadas na proteção social executada pela assistência social.

Os direitos humanos são inspiradores de interpretações do que devem ser os direitos socioassistenciais para efetivar cada uma das seguranças sociais. Caso não se explicitem os conteúdos dessas seguranças, em suas expressões até mesmo cotidianas, de modo a permitir antever a qualidade esperada na atenção a ser prestada, vamos permanecer sem referências ou padrões sendo subordinados às interpretações subjetivas deste ou daquele dirigente (Brasil, 2013BRASIL. CapacitaSUAS. Brasília: MDS; Centro de Estudos e Desenvolvimento de Projetos Especiais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2013. Caderno 1. Assistência social: política de direitos à seguridade social., p. 53).

Percebe-se a tentativa de aprofundar a perspectiva crítica em relação à suposta obviedade na definição de direitos humanos, buscando reduzir o grau de discricionariedade de cada operador da política. E, dessa forma, balizar mais objetivamente o modo de operar com a polêmica referência dos direitos humanos que, por sua gênese, são frequentemente associados a uma abordagem exclusivamente liberal (Bussinger, 1997BUSSINGER, V. V. Fundamentos dos direitos humanos. Serviço Social & Sociedade,São Paulo: Cortez, n. 53, p. 9-45, 1997.).

Ao enunciar os direitos humanos, a política de assistência social amplia seu escopo de atuação histórica, voltada somente à população mais empobrecida. Busca, assim, garantir segurança de acolhida, convívio e sobrevivência a todos aqueles que necessitem de serviços e benefícios, independentemente da condição socioeconômica.

Essa aproximação com o debate dos direitos humanos é um avanço significativo para a criação de uma rede de serviços públicos, com ampliação do escopo protetivo, que se dirige a todos os cidadãos e as cidadãs que estejam em situação de direitos violados, e não só pela ausência de renda e de formas de sobrevivência econômica. Porém, a política de assistência social trouxe esse debate para ser operado junto à matricialidade sociofamiliar. Isso estabeleceu dilemas na própria condução do trabalho com famílias e para a proteção dos direitos humanos, que merecem ser problematizados.

Em primeiro lugar, a divisão da política em níveis hierarquizados de proteção social tende a fragmentar os direitos, como se fome, pobreza e vulnerabilidades socioeconômicas fossem “violações menores” que as formas de violências, especialmente a doméstica. Essa divisão acompanha o debate hegemônico dos direitos humanos que, apesar de considerar os direitos econômicos e sociais importantes, acaba por privilegiar os direitos civis e políticos para a proteção dos cidadãos. Nesse sentido, a divisão e a hierarquização de serviços podem gerar uma fragmentação no olhar para as dinâmicas familiares e nas intervenções dos trabalhos com as famílias. Seu enfrentamento implica buscar aportes teóricos e metodológicos que, ao abordar as violências intrafamiliares, não desconsiderem (ou minimizem) aspectos estruturais que incidem nas famílias e em suas relações. Isso quer dizer que o trabalho entre os níveis de proteção social básica e especial deveria ter garantia de integralidade, compondo ainda com serviços especializados de outras áreas, já que as violações de direitos não se encerram em atendimentos isolados nem se esgotam na política de assistência social (Garcia; Nunes; Cordon, 2021GARCIA, J.; NUNES, C.; CORDON, M. Creas: uma identidade ainda em construção. In: SOUZA, F. V. F. (org.). Assistência social em debate: interfaces de uma política em construção. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2021.). Em muitos espaços de avaliação com profissionais do SUAS, há reclamações da falta de articulação e trocas entre as unidades de proteção social básica e especial, e das fragmentações nos atendimentos com outros serviços socioassistenciais. Essa é uma realidade histórica das configurações das políticas brasileiras, de fragmentação e desarticulação, que não atendem à integralidade das necessidades dos cidadãos (Schutz; Mioto, 2010SCHUTZ, F.; MIOTO, R. C. T. Intersetorialidade e política social: subsídios para o debate.Sociedade em Debate, Pelotas, v. 16, n. 1, p. 59-75, jan./jun. 2010.).

Quando a proteção aos direitos humanos é transportada para o trabalho social com famílias nos equipamentos de proteção social especial, como o CREAS, o que se privilegiam são as violações de direitos relacionadas às dinâmicas familiares, o que é importante e devem ser encaminhadas a serviços especializados da rede intersetorial. Entretanto, não se deve desconsiderar a existência de outras formas de violações de direitos, como aquelas cometidas por agentes do Estado, ou a falta de infraestrutura básica nos locais de moradia, por exemplo, entre outras problemáticas que corroboram as dinâmicas violentas, que não aparecem nos instrumentos de coletas de dados obrigatórios da vigilância socioassistencial. Em pesquisas realizadas com alguns CREAS entre 2012 e 2019, Garcia, Nunes e Cordon (2021GARCIA, J.; NUNES, C.; CORDON, M. Creas: uma identidade ainda em construção. In: SOUZA, F. V. F. (org.). Assistência social em debate: interfaces de uma política em construção. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2021.) identificaram ausência de projetos de intervenção, indicadores e metas construídos pela equipe, o que remete à falta de planejamento e de respostas às requisições do nível gerencial.

O foco nas relações de violências domésticas e familiares, descolado de outras dimensões estruturantes das violências, tende a reforçar o lugar da assistência social no controle e na punição das famílias pobres, dimensão bastante rechaçada no nível do discurso, sobretudo pelo Serviço Social como campo de produção de conhecimento e de práticas. Há que se reconhecer, porém, que são essas famílias que efetivamente chegam aos serviços públicos e acabam sendo responsabilizadas pela justiça de modo desigual, o que corrobora a noção de direitos humanos da sociedade capitalista, em que há igualdade formal dos sujeitos de direitos, mas diferenças materiais entre classes sociais (Casalino, 2024CASALINO, V. Os direitos humanos à luz de O capital: elementos para uma aproximação.Verinotio: Nova Fase, v. 29, n. 1, p. 336-366, jan./jun. 2024.).

4. Sobre fragilidade e rompimento de vínculos

A organização dos serviços que operam os direitos socioassistenciais na política de assistência social se faz de forma hierarquizada, em emulação ao Sistema Único de Saúde (SUS). Assim é que a PNAS prevê a distinção entre Proteção Social Básica (PSB), referente à garantia de direitos constitucionais considerados elementares, e Proteção Social Especial (PSE), destinada a casos em que há alguma violação de direitos, muito embora tal locução não esteja definida na política, mas referida, de modo preponderante, por um rol descritivo de situações, momentos do ciclo de vida e ocorrência de violências, elencado nas normativas que regem a política.

Sem definir o que se compreende por violação de direitos, a proteção social básica possui serviços para prevenir situações de vulnerabilidade e risco por violações de direitos, além do fortalecimento de vínculos. A proteção social especial é designada para reconstruir vínculos e enfrentar situações de risco, por violação de direitos. “Prevenir” e “enfrentar” são duas palavras que acompanham a divisão de proteções. Uma vem para fortalecer os vínculos, a outra, para reconstruir ou resgatar aquilo que está fragilizado ou rompido.

A PNAS ressalta o nível de vulnerabilidade em que se encontram as famílias que deverão ser atendidas no âmbito do que designa Proteção Social Especial, classificada como de Média Complexidade e de Alta Complexidade. Os serviços da primeira categoria são destinados a famílias e indivíduos que ainda mantêm preservados seus vínculos familiares e comunitários, a despeito de terem seus direitos violados. Já os serviços de alta complexidade oferecem proteção integral àqueles que perderam suas referências familiares e comunitárias ou que, por estarem em situação de ameaça, necessitam ser afastados temporariamente desse convívio.

Embora cientes de que o objetivo precípuo de normativas não consiste em aprofundar conceitos, e sem pretender desqualificar a necessidade de critérios de organização e elegibilidade, cabe indagar o quanto tais distinções servem mais à dimensão gerencial da política, estabelecendo parâmetros teórico-técnicos norteadores de intervenções profissionais, no âmbito dos diversos serviços e programas que a integram.

Empiricamente, a partir de distintas atividades das autoras e do autor deste ensaio, as práticas apontam - embora não de maneira unívoca - para a diferença entre fragilidade e ruptura, recorrendo à constatação se o usuário tem condições de residir com algum familiar ou se precisa de assistência integral quanto às necessidades básicas de moradia e alimentação, como pessoas vivendo em situação de rua ou quando há premência de oferta de acolhimento institucional.

Tais concepções nos remetem à abordagem da questão tal como proposta por Serge Paugam (1999PAUGAM, S. Fragilização e ruptura dos vínculos sociais: uma dimensão essencial de desqualificação social. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 60, p. 41-59, jun. 1999.), ao referir fragilização e ruptura de vínculos sociais como elementos essenciais do que denomina processo de desqualificação social, a partir de seus estudos em parte do continente europeu, principalmente da realidade francesa.

Em que pesem a relevância histórica e a contribuição de tal influência no processo de elaboração dos documentos normativos contemporâneos da política de assistência social no Brasil, consideramos necessária uma aproximação mais detida da categoria vínculos, a fim de buscar referências outras que nos permitam problematizar como redundam em práticas também diferentes.

5. Vínculos como categoria empírica e de análise

Ressaltando a necessidade de adoção de uma perspectiva de abordagem às famílias em sua complexidade - em que sejam considerados seus processos de estabelecimento, manutenção, modificação e rompimento de relações, vínculos e alianças -, trata-se aqui de problematizar as bases sobre as quais se assentam as relações e os vínculos familiares, em contrapartida aos desafios que precisam ser enfrentados na tentativa de superação da situação que as trouxe à política de assistência social.

Contudo, também aí residem dificuldades e armadilhas relacionadas à definição minimamente precisa da categoria “vínculos”. Não obstante, o recurso a tal categoria traz a fecundidade de ser aplicável a famílias de distintos estratos socioeconômicos, superando, em parte, a constante limitação das práticas de analisar quase exclusivamente famílias pobres.

O emprego do termo no âmbito de políticas públicas destinadas a famílias, de maneira a evitar o reforço à estigmatização e ao controle de usuários, remete a outros desafios, dentre os quais merecem destaque em nossa argumentação: (a) consideração da perspectiva daqueles/as a quem se destinam, abordando a questão universalidade versus especificidade como dimensões não mutuamente excludentes e mesmo complementares; (b) realização de estudos que contemplem a diversidade de arranjos familiares, dentre os potenciais usuários, como insumo importante à concepção, ao monitoramento e à avaliação de programas e políticas sociais; (c) consideração crescente das mudanças na conformação das relações de gênero e no exercício dos papéis sociais referentes ao lugar das famílias na proteção social. Daí se depreende o quanto ainda resta a pesquisar e a produzir sobre tal categoria.

Vínculos familiares são expressões de contextos e, portanto, assumirão características próprias, podendo sofrer influências de fatores como o tempo, a cultura e o contexto social em que surgem, se desenvolvem, se transformam ou se rompem. Dito de outra forma, o processo de vinculação não se restringe à dimensão subjetiva ou psicológica dos envolvidos, senão que a extrapola em muito, adquirindo contornos influenciados por aspectos sócio-históricos e mesmo situacionais (Pichon-Rivière, 1998PICHON-RIVIÈRE, E. Teoria do vínculo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.).

A tentativa de definir grupos familiares tendo por referência os modos pelos quais pessoas estabelecem, mantêm, aprofundam e rompem relações sociais ao longo de seu ciclo de vida pode constituir uma fecunda forma de abordagem, em lugar de simplificar o enfoque de vínculos em uma gradação de fortes a frágeis ou rompidos, como dão preferência os textos que balizam a política de assistência social.

Além disso, não se trata apenas de vínculos entre indivíduos, mas também de vínculos “mediados” por papéis e funções, como os/as de cuidado e suporte exercidos/as nas relações familiares, reciprocamente, segundo o ciclo de vida de cada pessoa e do próprio grupo familiar.

O emprego dessa categoria pode auxiliar na tentativa de pensar as relações familiares sem recurso a maniqueísmos, para abordá-las em sua complementaridade, tanto de potencial provedora de proteção como de possível violação de direitos. No entanto, em sentido oposto se presta à classificação, à patologização e à hierarquização de dinâmicas familiares. Como formação e manutenção de vínculos são processos alimentados por diversos matizes - dentre os quais aspectos subjetivos, de referência e identificação, e objetivos, de condições de subsistência -, seu emprego no processo de definição de famílias e na compreensão de suas diversificadas dinâmicas requer cautela e profundidade.

Considerações finais

Normativas, como as que visam regular políticas públicas, são sínteses possíveis de concepções e correlações de forças, em dado momento histórico. Como tais, são pactuadas e “ganham vida” no processo de implementação da política.

A partir de tal perspectiva, o texto apresentou e discutiu aspectos e tensionamentos da adoção da matricialidade sociofamiliar como eixo estruturante da política de assistência social no Brasil, destacando elementos de sua indefinição conceitual, em conjunto com outras noções que lhe são subsidiárias, como vulnerabilidade, risco, violação de direitos e fragilidade e ruptura de vínculos.

No percurso argumentativo adotado, tomando por base documentos normativos da política e estudos anteriores sobre a temática, foram analisados dilemas conceituais que envolvem a proposição da centralidade da família na estruturação de programas e nos serviços ofertados, bem como na definição de critérios de elegibilidade e hierarquização de níveis de atenção, em cuja operacionalização se somam noções com forte potencial de atuar como armadilhas à garantia de direitos preconizada.

Constata-se, em alguns documentos normativos, a tentativa de precisar algumas dessas noções, o que agrega valor ao seu objetivo de dar direção, assertividade e relativa unidade à implementação em nível nacional. Tal crescente precisão contribui para torná-las menos sujeitas à discricionariedade dos operadores cotidianos da política, reduzindo lacunas para atuações no sentido oposto de garantia efetiva de direitos. A valorização de clara demarcação das seguranças afiançadas pela política - como expressões concretas da efetivação de direitos humanos, em contraposição à sua violação - constitui exemplar ilustração da busca de crescente exatidão de diretrizes. Em contrapartida, como se buscou argumentar, a restrição das noções de vulnerabilidade e risco na proteção social especial a questões de violação de direitos, no âmbito intrafamiliar ou comunitário, acaba por desconsiderar aspectos estruturais, e tende a reforçar a responsabilização e o controle das famílias.

Movimento distinto se produz no que se refere ao emprego da noção de vínculos familiares e comunitários. Adotando sua fragilização ou ruptura como critério de alocação de famílias e indivíduos em programas e serviços de maior ou menor complexidade - ao tempo em que as faz corresponder a um pretenso agravamento da violação de direitos e, portanto, da situação a ser enfrentada pela equipe responsável por seu acompanhamento -, permanece indefinida a própria concepção de vínculos com que opera.

Ao examinar documentos orientadores da política, constata-se que seu emprego permanece por demais referido à possibilidade de convívio objetivo na mesma residência, junto a familiares, e de permanência no território geográfico de origem. Nesse sentido, compreendemos a noção de vínculos como subsidiária à adoção da matricialidade sociofamiliar como eixo estruturante da política, operando antes uma função técnico-gerencial que propriamente figurando como orientação teórico-metodológica ou ético-política para seus operadores.

De nossa parte, consideramos que as provocações aqui realizadas consistem em estágio inicial e despretensioso de elencar elementos a aprofundar em nossas agendas de pesquisa.

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    Um debate mais aprofundado sobre os termos vulnerabilidade e risco social no âmbito da política de assistência social pode ser encontrado em Senna; Paiva e Oliveira (2022SENNA, M. C. M.; PAIVA, A. R.; OLIVEIRA, A. C. Sobre os conceitos de vulnerabilidade e risco social na política de assistência social. RAM: Revista de Administração Municipal, n. 310, p. 5-16, 2022. Disponível em: Disponível em: http://lam.ibam.org.br/revista_detalhe.asp?idr=1005 . Acesso em: 25 set. 2022.
    http://lam.ibam.org.br/revista_detalhe.a...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2024
  • Aceito
    24 Jul 2024
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