Open-access Situações que precipitam conflitos na relação conjugal: o discurso de mulheres

Resumos

A pesquisa objetivou analisar as situações que precipitam e/ou intensificam conflitos na relação conjugal. Foram entrevistadas 19 mulheres em vivência de violência conjugal. Utilizou-se o Discurso do Sujeito Coletivo como método de organização, que possibilitou encontrar as ideias centrais e gênero como referencial analítico. Síntese: relação de controle e dominação do homem para com a mulher, os ciúmes, a infidelidade do companheiro, a paternidade e maternidade sem planejamento e o uso de álcool e drogas. Tais situações guardam relação com a construção da violência conjugal e/ou permanência da mulher na relação, sendo essenciais as ações de prevenção, a fim de evitar tal fenômeno, bem como suas repercussões para a saúde da mulher e da família. A atuação do profissional enfermeiro é indispensável nos programas de prevenção de agravos, promoção e assistência à saúde das mulheres e famílias, por meio dos equipamentos de saúde e sociais existentes na comunidade.

Violência contra a mulher; Relações familiares; Conflito familiar; Violência de gênero; Enfermagem


This study aimed to analyze the situations that precipitate and/or intensify conflicts in the conjugal relationship. Interviews were held with 19 women experiencing conjugal violence. The Discourse of the Collective Subject was used as the method of organization, making it possible to find the central ideas, and gender was used as the analytical framework. Summary: the women report the man's control and domination of the woman, jealousy, the male partner's infidelity, unplanned fatherhood and motherhood, and the use of alcohol and drugs. These situations are related to the construction of the conjugal violence and/or the woman's remaining in the relationship, with preventive actions being essential so as to avoid this phenomenon and its repercussions on the health of the woman and the family. The work of the professional nurse is indispensable in the programs for harm prevention and for the promotion and assistance of the health of women and families, through social and health service means and facilities existing in the community.

Violence against women; Family relationships; Family conflict; Gender violence; Nursing


La investigación tiene como objetivo el análisis de las situaciones que precipitan y/o intensifican los conflictos en la relación conyugal. Fueran entrevistadas 19 mujeres que viven la violencia conyugal. Se utilizó el Discurso de Sujeto Colectivo, que posibilitó encontrar las ideas centrales y el género como un marco analítico. Síntesis: relación de control y dominación del hombre para con la mujer, celos, la infidelidad de la pareja, la paternidad y maternidad sin plan y el uso de alcohol y drogas. Estas situaciones tienen relación con la construcción de la violencia conyugal y / o la permanencia de la mujer en la relación, así, son esenciales acciones de prevención para evitar tal fenómeno y las consecuencias para la salud de la mujer y de la familia. La función del profesional enfermero es indispensable en los programas de prevención de agravios, promoción y de asistencia a la salud de las mujeres y familias, a través de los equipos de salud existentes en la comunidad.

Violencia contra la mujer; Relaciones familiares; Conflicto familiar; Violencia de género; Enfermería


INTRODUÇÃO

As relações interpessoais são passíveis de conflitos. Todavia, a questão central é a forma como essas desavenças são resolvidas, podendo ser precipitadoras ou intensificadoras de ações desrespeitosas e violentas, com repercussões para a saúde da mulher e de toda família, principalmente para os filhos.

É importante referir que o conflito por si só não é maléfico, pois a diversidade é necessariamente geradora de conflitos, sendo estes inevitáveis e essenciais para o aprimoramento das relações entre as pessoas.1 Os conflitos podem ser positivos ou negativos, dependendo da forma como o encaramos e o resolvemos.2

O diálogo é a maneira mais pacífica de solucionar problemas, pois permite as partes chegarem a um acordo. Estudo sobre as redes de promoção da paz, realizado em São Paulo, SP, Brasil, reforça a importância do diálogo para o enfrentamento dos conflitos e condena o uso de violência.1 Nesse sentido, a violência representa uma forma não pacífica de respondermos a uma determinada situação, prejudicando e anulando a outra pessoa.2

No cotidiano, a violência conjugal possui um ciclo vicioso, em três diferentes etapas, iniciando em um período de conflitos, que leva à tensão entre o casal; seguindo pela fase de violência propriamente dita, em que o agressor perde o controle emocional e físico, e após, a fase de reconciliação, quando o agressor mostra-se arrependido e tenta compensar seu comportamento violento, com posturas de carinho e conciliação.3

É muito comum que esse ciclo se repita, cada vez com maior violência e menor intervalo entre as fases, desencadeando problemas para a saúde da mulher, de diversas dimensões e complexidade, que vai desde lesões físicas, como hematomas, até aquelas relacionadas aos aspectos psicoemocionais, tal como depressão e suicídios.4 Nesse sentido, os profissionais que atuam na atenção primária à saúde tem lócus privilegiado de atuação, visto que estão em grande proximidade com a comunidade, o que favorece a identificação de agravos como a vivência de violência. Às enfermeiras, por integrarem as equipes de referência das unidades de saúde, e usualmente assumirem a gerência dessas equipes, cabe a inclusão, em sua rotina, da escuta ativa e o olhar atento em busca da prevenção do problema, a partir dos próprios elementos cotidianos de seu trabalho, seja o histórico de enfermagem, seja o exame físico, ou ainda nos procedimentos realizados para atendimento, proporcionando uma identificação precoce do agravo.5

Além disso, os constantes desentendimentos entre mulheres e seus parceiros trazem repercussões importantes na vida dos filhos, como distúrbios psicológicos, pois a família funciona como um sistema complexo em que os membros são interdependentes dos outros, e os cônjuges são estrutura fundamental, de modo que qualquer desequilíbrio na relação conjugal interfere no equilíbrio da família.6 - 7 A repercussão da violência conjugal para toda a família revela a magnitude do fenômeno.8

Pesquisa realizada com famílias em Brasília, Distrito Federal, Brasil, defende que, para uma boa relação familiar, é indispensável a comunicação no processo de enfrentamento dos conflitos conjugais. No entanto, esse estudo revela que, diante de situações conflituosas, apenas 35% das mulheres e 30% dos homens busca o diálogo como forma de solucionar o problema.7 Fica claro, portanto, que a violência conjugal se constrói a partir de conflitos mal resolvidos, que normalmente são motivos simples, até mesmo banais, mas que com o tempo acentuam-se, resultando em violência conjugal.2 , 4 Diante tal realidade, nos questionamos: que situações do dia a dia contribuem para precipitação e/ou intensificação da violência conjugal?

Reforçando a importância de estudos sobre a temática, a Lei Maria da Penha recomenda a promoção de pesquisas, na perspectiva de gênero, que busquem as causas da violência doméstica e familiar contra a mulher.9 Soma-se ainda o fato de que, desde 1988, a Constituição Federal Brasileira, no parágrafo 8º, art. 226, já sinalizava a necessidade de se criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares.10

Considerando o exposto, teve-se como objetivo do estudo analisar as situações que precipitam/intensificam conflitos na relação conjugal, a partir do discurso de mulheres.

MÉTODOS

Trata-se de uma pesquisa descritiva, qualitativa. O estudo qualitativo se mostra adequado ao objeto proposto, sobretudo por adentrar no universo das famílias, ao se considerar que existem repercussões individuais, familiares e coletivas da vivência da violência conjugal e a importância do entendimento deste fenômeno para a promoção de estratégias para seu enfrentamento. Por ser um método que auxilia a penetrar na complexidade do ser humano, as abordagens qualitativas têm oferecido oportunidades para que os profissionais de saúde compreendam os significados, crenças e valores que norteiam o comportamento humano.11 Neste estudo foram analisadas as situações que precipitam/intensificam conflitos na relação conjugal.

Este estudo encontra-se vinculado à pesquisa-ação intitulada "Enfrentamento da violência conjugal: estratégias para a garantia da segurança e saúde das famílias," financiada pela Fundação de Amparo e Pesquisa da Bahia (FAPESB).12 A pesquisa foi realizada em um bairro da cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Neste bairro existe uma associação que presta apoio à comunidade, promovendo espaços de entretenimento, educação e saúde. Criada em 1992, essa associação se propõe a discutir assuntos ligados à violência doméstica. Essa instituição foi o elo das enfermeiras pesquisadoras com a comunidade, ajudando inclusive na seleção das possíveis colaboradoras. Para garantir a sua privacidade, a chamaremos durante o estudo simplesmente de "associação".

As participantes foram 19 mulheres residentes na referida comunidade, que atenderam aos seguintes critérios de inclusão: ser maior de 18 anos, estar em situação conjugal e ter história de vivência de violência conjugal. Identificando as mulheres que se encaixavam nos critérios de inclusão, estas foram convidadas a participar da entrevista, que ocorreu em uma sala da referida associação.

Esta pesquisa seguiu referenciais básicos de autonomia, não maleficência, beneficência e justiça e outros aspectos éticos dispostos na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde que regulamenta as práticas em pesquisas com seres humanos.13 Sendo, assim, foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (UFBA), com o parecer n. 42/2011.

A coleta de dados foi iniciada após a aprovação do CEP, sendo utilizada a entrevista, com formulário semiestruturado, possibilitando assim, o entrevistador inserir outras questões que surgissem e fossem pertinentes durante a coleta.14 A entrevista foi norteada pelo direcionamento inicial: "fale sobre os motivos que levam você e seu companheiro a brigas". A coleta ocorreu entre março e maio de 2012.

Para organização dos dados foi utilizado o método do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC). Neste método, o pensamento coletivo não está ligado ao somatório dos pensamentos individuais (representação numérica percentual), mas, ao discurso da coletividade, ao imaginário social, às representações sociais, ao pensamento preexistente. A proposta do DSC visa, antes de tudo, realizar as devidas correlações que a coletividade traz em seu discurso e que carregam os valores intrínsecos, próprios da cultura, que estão presentes no cotidiano dos sujeitos sociais.15 - 16

Seguindo os pressupostos do método, algumas etapas devem ser cumpridas, como referidas a seguir: 1) Realizar toda a transcrição das falas resultantes da entrevista; 2) Analisar o material verbal coletado, extraindo-se de cada um dos depoimentos orais as seguintes figuras metodológicas: Ideias Centrais (IC) e suas respectivas Expressões Chave (ECH); e 3) Compor os vários discursos-síntese, denominados Discurso do sujeito coletivo, a partir das IC e ECH.16

A IC é entendida como um nome ou expressão que permitem traduzir o essencial do conteúdo discursivo explicitado pelos sujeitos em seus depoimentos. É, portanto, a maneira sintética e precisa para descrever ou revelar o sentido e o tema das Expressões Chave de cada um dos depoimentos orais.15 Resumidamente, a IC diz sobre o quê o sujeito fala. Já a ECH é exatamente a fala do sujeito. Ressalta-se ainda que um discurso possa revelar várias IC e ECH. Assim, seguindo esses preceitos, após a transcrição da fala, foram extraídas as ideias convergentes e compostos os discursos coletivos que foram analisados sob o referencial analítico de gênero.

RESULTADOS

As mulheres entrevistas se caracterizaram por ser, na sua maioria, jovens, negras, com baixa escolaridade, dependentes economicamente dos pais ou companheiros e convivendo com filhos e em união estável com o companheiro. Vale ressaltar a presença do uso de drogas lícitas e ilícitas pelas entrevistadas e também pelos seus cônjuges.

O estudo revelou que a relação de controle e dominação do homem para com a mulher, o ciúmes, a infidelidade do companheiro, a paternidade e maternidade sem planejamento e o uso de álcool e drogas, consistem em situações que precipitam e/ou intensificam conflitos na relação conjugal, a partir do discurso das mulheres. Tais achados estão ilustrados a partir das ideias centrais sínteses apresentadas a seguir.

Ideia central síntese A: relação de controle e dominação do homem para com a mulher

Nesta ideia central síntese, é possível perceber a relação de controle e dominação que o homem estabelece sobre a mulher no relacionamento conjugal, relação esta, que é permeada por questões de gênero e que culminam na violência conjugal.

Eu acho que o pior é o machismo. Então, o homem acha que é dono da gente. Ele gosta mesmo é de mandar e às vezes quer mandar em mim. Ele quer me privar das coisas, é horrível. Ele quer que o mundo gire em torno dele. Se eu der testa [discordar] de alguma coisa que ele quer é uma confusão. Ele acha que não tem responsabilidade sobre filho, que é tudo comigo. Quer que eu fique dentro de casa. Ele mesmo diz que se irrita porque eu fico conversando na rua, falando com outras pessoas, e ele diz que mulher que se dá o respeito não pode ficar se mostrando. Ele é muito machista. Fica me esperando na porta do trabalho. Se eu me atraso, já fala que eu ia chegar tal hora, e que de lá pra cá são 'x' minutos, 'eu preferia que você não trabalhasse, ficasse em casa'. Também tem a questão do sexo, ele quer sexo todo dia e eu não gosto, mas muitas vezes eu dizia que não queria, e começava aquela briga, e no fim sempre acabava tendo porque acaba que eu tinha mesmo que aceitar, vou fazer o que se eu sou a mulher dele? Se eu casei, tenho que servir, mas não é minha vontade não (Discurso do Sujeito Coletivo 1 - E1, E3, E5, E6, E8, E10, E12, E13, E15, E18).

Ideia central síntese B: ciúmes

No discurso a seguir, será apresentado como o ciúme leva a conflitos conjugais, que acabam desencadeando a violência.

Eu sou muito ciumenta. Às vezes quando ele pega o telefone, percebo ele muito gaiato e já via que era mulher. Aí eu não me aguentava, pegava o celular e jogava na rua, no chão, para quebrar mesmo [...] eu ficava louca, como se ele fosse mesmo uma posse, acho que é um pouco doentio. Ele sai muito com amigos e eu me acho um pouco descanteada. Ele também é muito ciumento. É muito desgastante. Aquela coisa de ligar o tempo todo, querendo saber onde eu estou, com quem estou, ficar me monitorando, me direcionando no que tenho que fazer, e eu piro com isso. Até das pessoas da minha família ele tem ciúmes. Se converso um tio, um primo ele já chega perto para saber. Aí quando ele chegava que me vê fazendo algo que ele não quer, fica com raiva, me bate, me dá murro, tapa, grita, faz de tudo (Discurso do Sujeito Coletivo 2 - E1, E2, E3, E5, E6, E7, E8, E11, E12 E14, E18).

Ideia central síntese C: infidelidade do companheiro

O discurso a seguir apresentado ilustra como a infidelidade do companheiro incita os conflitos entre os cônjuges e, por conseguinte, a violência conjugal.

Eu sabia dele na rua, com mulheres, mas ele negava, mentia. Já estava com outra fazia meses. Depois disso, ele começou a sacanear com a minha cara: arranjou mulheres, levava para o bar. Saía e passava dias sem ligar, depois chegava com a cara de pau. Aí, eu perdia a paciência. Então, começou a briga constante, porque eu não sou de ficar calada, não aguento muita coisa, e eu disse que sabia de tudo e que ele estava mentindo, me traindo. Nossas brigas são quase todas por causa de mulheres da rua que ele arranja e o estopim foi quando ele engravidou uma amiga minha. Outro dia eu soube que ele estava com uma mulher, fui atrás, mas não vi. Quando ele chegou, fui tirar satisfação, mas ele disse que não tinha nada disso e que a culpa é minha, que fico dando ouvido para o que os outros falam, e ainda me bateu (Discurso do Sujeito Coletivo 3 - E2, E3, E13, E15, E16, E18, E19).

Ideia central síntese D: paternidade e maternidade sem planejamento

O discurso mostra que a maternidade e paternidade sem planejamento levam a conflito entre homens e mulheres, que desencadeiam em situações de violência.

Nossa relação ficou em crise quando a criança nasceu por conta da minha gravidez, que não foi planejada. Ele ficou, assim, agressivo. A primeira vez que ele me bateu foi quando descobriu que eu estava grávida. Aí tudo se transformou, mudou. Acho que a vida dele ficou atribulada. Me batia dia todo, muito xingamento comigo, me esculhambava, dizia que o filho não era dele. Ele fez muita coisa ruim, colocou arma em minha cabeça, me deixou presa em casa, saia e depois voltava, e mais porrada. Depois que a gente teve filhos, ficou pior, porque antes ele só queria curtir, depois, viu que teria que ter responsabilidades e ele não queria. Então começou aquela agonia, a relação ruim, ele reclamava de tudo, falava que eu deveria ter me cuidado [gravidez] e muitos pensamentos diferentes na criação do filho. Tudo isso fazia com que ele me batesse mais. A gente não tem nem tempo pra lazer. Dois a dois não tem, porque eu tenho que cuidar dos meus filhos e não gosto de deixar eles com outra pessoa, aí ele diz para deixar com vizinhos, conhecidos, mas eu tenho responsabilidade. Então eu ficava em casa com eles [filhos] e ele sai (Discurso do Sujeito Coletivo 4 - E2, E4, E5, E7, E12, E14, E19).

Ideia central síntese E: uso de álcool e drogas

O discurso remete a vivência com o companheiro usuário de álcool e drogas, deixando claro que há uma associação entre o uso de drogas licitas e ilícitas com a violência conjugal e dificuldades financeiras.

Na verdade, ele bebe demais e usa muita droga, cocaína mesmo. Era assim: ele dormia na rua, passava três dias fora. Eu não sabia que ele era usuário de drogas, antes de me envolver com ele. A primeira vez que eu descobri que ele usava droga, foi quando ele chegou em casa cheio de drogas e começou a me bater sem motivos, e a gente lutou no meio da rua, todo mundo vendo. Ele trabalhava e ganhava bem, mas não adiantava. Tudo de dinheiro que ganha, gasta com isso de beber e usar droga. Começamos a ter dificuldade, até dinheiro para remédio não tinha, uma vez quando um filho adoeceu. Ele já foi preso por tráfico de drogas. Isso me aborrece muito, e faz com que a gente brigue demais, e aí é só sofrimento. Do início para hoje tudo mudou muito. Droga muda as pessoas (Discurso do Sujeito Coletivo 5 - E1, E2, E3, E4, E5, E9, E13, E15, E16, E18).

DISCUSSÃO

O estudo mostrou que a construção social de mulheres e homens está permeada pela desigualdade de gênero, contribuindo para a violência na relação conjugal. Conforme o discurso das mulheres, o homem pensa ser o detentor do saber, do poder e da razão, se acha dono da mulher, e que esta lhe deve subserviência e obediência, sem poder expressar seus desejos, vontades e pontos de vista, sem poder jamais discordar do que o seu companheiro pensa.

O lugar social da mulher ainda é percebido como restrito a esfera privada, exigindo atitudes de obediência e submissão. Isso ocorre porque "a sociedade, ao destinar papéis de submissão e passividade para a mulher, cria espaço para a dominação masculina, onde o processo de mutilação feminina é lento, gradual e considerado legítimo".17:27 Inclusive, até meados do Século XX, os crimes passionais não eram julgados e ainda possuíam aceitação da sociedade. Embora o feminismo, há décadas, lute pela igualdade e direitos das mulheres, as diferenças de papéis entre os sexos ainda estão vivas e latentes na sociedade, causando diversas consequências para quem vivencia esta situação.18 - 19

Ainda, com relação à construção social desigual entre os gêneros, o estudo mostra que o homem sente-se 'dono' da mulher, impondo controle sobre como a mesma deve se comportar, o modo de vestir e sobre suas amizades. Dessa forma, a mulher perde sua liberdade, seu direito de ir e vir, decidir o melhor para si, afastando-se das pessoas que vivem ao seu redor. Esse contexto nos faz refletir acerca da chamada violência psicologia, definida pela Lei Maria da Penha como conduta que causa dano emocional e diminuição da autoestima, que degrade a mulher ou controle suas ações, fazendo uso de ameaça, constrangimento, chantagem.9 Essas situações, permeadas pelo ciúme, leva ao desgaste da relação do casal e até mesmo à violência conjugal.

Estudo realizado em Recife, Pernambuco, Brasil mostrou que o ciúme está entre os principais motivos pontuados pelo descontrole emocional e frustrações do relacionamento, com grande importância na contribuição da violência. Dentre os motivos que desencadeiam a violência conjugal, o ciúme aparece como sendo o terceiro fator que mais gera violência na vida de um casal. Esse ciúme na maioria das vezes é gerado pela desconfiança e insegurança, o que pode levar a crimes ditos passionais.20

No que tange ao ciúme por parte das mulheres, o discurso mostra que estas se sentem marginalizadas ou postas de escanteio pelo fato do companheiro manter outras relações sociais. Dessa forma, é perceptível que as mulheres confundam o poder de controle e posse (ou ciúmes patológico) como sendo ciúmes, e embora ambos se pareçam, existem diferenças. O ciúme patológico é um transtorno afetivo grave, que corrói e destrói o relacionamento e os sentimentos; é uma perturbação em que o protagonista agressor se sente constantemente ameaçado.21 É interessante notar, ainda, que as manifestações do ciúme normal e patológico diferem entre os sexos. Para as mulheres, o motivador é o medo da infidelidade emocional, enquanto os homens ficam mais aflitos pela infidelidade sexual de suas parceiras.22

Vale considerar que, na cultura brasileira, tem-se um padrão variado de moralidade e normas para a (in)fidelidade, já que os homens podem trair, porém as mulheres não. Pesquisa sinaliza que a descoberta da infidelidade feminina acirra a violência contra a mulher por parte do parceiro.23 Os resultados deste estudo corroboram com a pesquisa realizada sobre dinâmica da violência doméstica com 30 casais que residem no sul do país revelou que a desconfiança de traição feminina atua como um dos maiores estopins para as discussões e para os episódios de violência.24

Infelizmente, a expressão dos atos violentos praticados pelos cônjuges podem inclusive resultar em morte. Pesquisa sobre crime passional realizada com infratores presos revelou que a motivação para o homicídio se deu por conta da traição por parte das mulheres.25 Um estudo realizado com homens HIV positivos em Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil, mostra a vulnerabilidade das mulheres com relações extraconjugais para a vivência de violência e chama atenção que tal infidelidade feminina pode ser imaginária.26 Neste sentido, a violência conjugal manifesta-se não só por conta da traição da mulher, mas também pela sua suspeita, ainda que infundada.

No que tange a relação extraconjugal por parte dos homens, o discurso de mulheres revela a prática de infidelidade masculina. Estudo realizado em Brasília, Distrito Federal, Brasil, constatou elevada prevalência de relacionamentos extraconjugais pelo companheiro, próximo dos 48%, sendo essa taxa similar a dos países onde a poligamia é validada.23

Para muitos homens, a traição é vista como um direito do provedor, sendo natural o envolvimento em relações extraconjugais. Nessa perspectiva, o fato de ser homem garante o direito à infidelidade, muitas vezes, de forma explícita e negando o direito de questionamento da mulher, a qual deve entender que a traição faz parte do 'instinto' masculino.26 No entanto, nesse estudo, o discurso revela que as mulheres não aceitam as relações extraconjugais de seus companheiros. Ao não acatar a infidelidade masculina, compreende-se uma transgressão da mulher aos papeis socialmente aceitos, o que se constitui fator precipitador/intensificador da violência na relação conjugal.

Outra situação que acirra os conflitos conjugais são os filhos fora do casamento, resultado da relação extraconjugal. Destaca-se no discurso das mulheres essa preocupação, sobretudo pela parentalidade que o homem poderá ter com a criança e o vinculo eterno que se fará com sua mãe, por conta do suporte emocional e financeiro que um filho requer. Esse evento nos leva a refletir sobre a paternidade e/ou maternidade sem planejamento. Vale salientar que a gravidez também pode ocorrer em casais em união estável, sem que fosse planejada, situação que também gera conflitos e, portanto expõe a mulher à vivência de violência conjugal.

Independente de planejar ou desejar a gravidez, estudos mostram ser comum à prática de violência pelos cônjuges. Dados do Ministério da Saúde apontam que aproximadamente 13% das mulheres relatam aumento da frequência e/ou severidade da violência no referido período. Outro estudo revela que, durante a gravidez, a prevalência de violência tanto física, quanto sexual varia entre 1% a 20%.27 Uma pesquisa realizada com 960 mulheres atendidas em unidades públicas de saúde em Recife, Pernambuco, Brasil, demonstrou aumento da violência durante a gestação.28

Considerando as expressões e repercussões da violência para a saúde da mulher, é necessário um olhar por parte dos profissionais de saúde para o reconhecimento do agravo. No caso das gestantes, é necessário conhecimento acerca dos riscos de complicações, sobretudo pela vivência de violência, tais quais: depressão, baixa autoestima, sangramentos vaginais frequentes, ameaça de trabalho de parto prematuro, dentre outros.29 Percebe-se que a gravidez vulnerabiliza a mulher para a violência conjugal, sendo necessária uma melhor compreensão acerca do fenômeno.

Existe uma série de motivos para a ocorrência de violência no período gestacional, tais como: recusa da gestante em manter relações sexuais com o parceiro; aversão ao corpo gravídico que pode levar o homem a se desinteressar pela mulher, buscando relacionamentos extraconjugais; carência da mulher por não sentir atenção por parte do companheiro; desinteresse do companheiro pela gestação e dúvida sobre a paternidade.30 Complementando tais motivos, o discurso das mulheres revelou ainda o fato de o companheiro não querer filhos, não se sentindo, portanto, responsável por ele.

As divergências na formação dos filhos também foram mencionadas como situações conflitantes, sendo claro que as questões de gênero apresentam forte contribuição: primeiro, o homem atribuindo à mulher, a questão da anticoncepção. Na ótica masculina, é dever dela se proteger de uma gestação, e depois, o cuidado para com os filhos. Ainda persiste a crença social que à mulher cabe o cuidado ao lar, ao esposo e aos filhos, sendo essas atividades consideradas por muitos como intrínsecas ao papel feminino, uma vez que a mulher nasce e se prepara para ser mulher-esposa-mãe.31 Por não aceitar tais papéis, essas situações acabam gerando conflitos e, por consequência, a vivência de violência no relacionamento conjugal.

Estudo quantitativo realizado com casais no interior do Rio Grande do Sul-RS revelou que é pouco o tempo que o casal disponibiliza para momentos a dois, sendo que os filhos são desencadeares de conflitos conjugais, pois, os mesmos perdem a intimidade e privacidade.32 Ao mesmo tempo em que os filhos podem interferir no relacionamento conjugal, causando conflitos, em outro estudo eles foram apontados pelas mulheres como sendo fator de reconciliação.19 Pesquisa4 revela ainda uma associação entre ter filhos e a permanência da mulher na relação permeada pela violência conjugal. Estudo revelou que muitas mulheres com história de violência conjugal desistiram da separação e voltaram a conviver com o companheiro por priorizarem os filhos.32

É importante ressaltar que a questão financeira/econômica é um dos principais problemas desencadeadores da violência conjugal,33 sendo que o desemprego por si só não constitui fator de risco para a violência conjugal. Assim, no discurso nota-se o comprometimento econômico por conta do uso de drogas lícitas e ilícitas. Ao invés do parceiro usar o dinheiro para algo que seja de bem comum da família, acaba gastando com o vício e tal consumo coloca em risco a situação financeira familiar, estando ainda associada à prática de crimes para conseguir sustentar a droga. O consumo de bebidas alcoólicas pelos parceiros é uma das principais causas que leva o companheiro a cometer um delito.20 - 34

Chama atenção que as mulheres declaram ser o uso da droga/álcool o evento gerador da violência conjugal, considerando que isento do mesmo, a relação conjugal é mais saudável. Mulheres pesquisadas declararam que ao beber, os companheiros se transformam, agredindo-as, de início verbalmente, evoluindo para outros tipos de violência.35 - 36 Mulheres que denunciaram seus companheiros por violência conjugal já entendiam tal associação, quando declararam o que o marido a agride quando se encontra sob o efeito do álcool.37 - 38 Neste sentido, a suspensão de bebidas alcoólicas constitui elemento que favorece a harmonia na convivência do casal, uma vez que, neste período, as agressões são suspensas.35

É importante referir acerca das implicações do uso de drogas para os filhos. Estudos sobre violência familiar retratam altas taxas de consumo de álcool e drogas pelo perpetrador, sendo que os filhos geralmente são testemunhas da violência entre o casal e, por vezes, alvo de abusos físicos e sexuais. Assim, muitos dos conflitos entre casais se estendem aos filhos.39 -40 Soma-se, ainda, quando, além do vício, existe a ilegalidade do envolvimento com o tráfico, como relatado no discurso, aumentando os riscos e as taxas de morbidade e mortalidade por causas externas. Além disso, o tráfico de drogas tem sido o principal motivo pelo qual mulheres têm sido presas nos últimos anos, muitas vezes por estarem sendo cúmplices de seus companheiros.41

Considerando que a violência é um problema social com sérias repercussões para a saúde, as estratégias de enfrentamento devem orientar-se para a desconstrução de valores sexistas alimentados culturalmente a partir das desigualdades de gênero. Tornam-se essenciais políticas amplas e articuladas que vão ao encontro das diretrizes definidas pela Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, no sentido de combater as discriminações de gênero e garantir o empoderamento das mulheres.42 São necessários espaços para que as mulheres, e também homens, reflitam a cerca da construção social de gênero, que as aprisionam ao papel de dependente e submissa ao homem, e acaba por naturalizar a violência contra a mulher.

O empoderamento feminino para a percepção da vivência de violência é, sem dúvida, o primeiro passo para a desconstrução da ideia que permeia o imaginário da sociedade do poder masculino, configurando-se enquanto importante estratégia para a prevenção e enfrentamento da violência de gênero. Considerando os achados desvelados neste estudo, acredita-se que o empoderamento das mulheres representa um meio de prevenir conflitos conjugais, sobretudo aqueles arraigados na crença do poder masculino, em torno da qual se naturaliza o direito da infidelidade dos homens que, por sua vez, permite compreender o ciúme nas relações conjugais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo revelou que a relação de controle e dominação do homem para com a mulher, o ciúmes, a infidelidade do companheiro, a paternidade e maternidade sem planejamento e o uso de álcool e drogas são situações que geram conflitos conjugais, que acabam por precipitar e/ou intensificar a violência na relação entre o casal.

Essa compreensão é essencial para o processo de enfrentamento do fenômeno, pois oferece subsídios para se pensar ações de prevenção de tais conflitos e consequentemente se promover a redução dos casos de violência conjugal e suas complicações para a saúde, a economia e a sociedade em geral. Neste sentido, considera-se de sumária importância o preparo por parte da equipe de saúde, que atua nos mais diversos espaços, para a associação destas situações com a vivência de violência conjugal pela mulher.

Os profissionais que atuam na atenção primária à saúde devem ser mencionados, considerando que este é um espaço que tem como base a prevenção de agravos e doenças, e a promoção da saúde. Neste contexto, ênfase se faz às enfermeiras, pois são as principais gestoras desses centros e que têm maior vínculo com a comunidade e agentes comunitários de saúde, podendo articular-se com as associações de bairro, escolas, Centros de Referência à Assistência Social, alcóolicos anônimos e Centro de Atenção Psicossocial, para que esses elementos precipitadores e/ou intensificadores sejam trabalhados, buscando uma saída respeitosa, no combate da violência.

Salienta-se ainda a importância de se disponibilizar espaços para que as mulheres, e também seus cônjuges tenham a oportunidade de refletir suas relações e encontrar caminhos para uma vida conjugal respeitosa, favorecendo uma relação familiar permeada pelo diálogo e, assim, pela saúde de toda a família. Incluem-se, nessas ações, o exercício de meios respeitosos para a resolução de conflitos que se apresentam no dia a dia do casal.

Embora tenha apontado situações geradoras de conflitos conjugais, o estudo se limita por não apresentar estratégias outras para sua resolução, que não utilizem de meios desrespeitosos e violentos. Sugere-se, pois a elaboração de estudos que identifiquem e analisem estratégias para resolução de conflitos de forma pacifica e respeitosa e incitem a cultura de paz.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2013
  • Aceito
    20 Mar 2014
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