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Rede de cuidados de crianças com necessidades especiais de saúde1 1 Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul - FAPERGS.

Resumos

Pesquisa qualitativa que objetivou descrever a rede de cuidados de crianças com necessidades especiais de saúde, acompanhadas em diferentes níveis de atenção, após a alta hospitalar. Os dados foram produzidos por meio da realização da dinâmica de criatividade e sensibilidade, de Mapa Falante e do Método Criativo Sensível, com cinco famílias de crianças, entre 2009 e 2011. Os discursos dos familiares apontaram que a rede de cuidados dessas crianças é constituída pelas dimensões institucional e familial. A primeira mostrou-se ampla e diversificada, porém dispersa, sendo constituída por diversos profissionais da área da saúde e educação. A segunda é composta por integrantes do núcleo familiar feminino, como mães e avós, e apresenta um cuidado exclusivamente familial. Recomenda-se a ampliação e a consolidação de redes de cuidado de natureza multiprofissional para facilitar o acesso à assistência em saúde e a qualidade de vida dessas crianças e suas famílias.

Saúde da criança; Enfermagem pediátrica; Família; Cuidadores


This is a qualitative study that aimed to describe the care network of children with special health care needs in different levels of the health care system, during the follow-up after discharge. The data were produced through the development of the dynamics of creativity and sensitivity, the speaking map and the creative and sensitive method, involving five children's families between 2009 and 2011. The caregivers' discourse pointed out that these children's care network comprises the institutional and familial dimensions. The first showed to be broad and diverse but scattered, comprising various health and education professionals. The second consists of members of the close female relatives, such as mothers and grandmothers, showing an exclusively familial care. The expansion and consolidation of multiprofessional care networks is recommended to facilitate the access to health care and quality of life for these children and their family caregivers.

Child health; Pediatric nursing; Family; Caregivers


Estudio cualitativo que objetivó describir la red de cuidados de niños con necesidades especiales en salud en los diferentes niveles de atención después del alta hospitalaria. Los datos fueron producidos con la aplicación de la dinámica de creatividad y sensibilidad, el mapa hablante y del método creativo sensible, con cinco familias de estos niños entre 2009 y 2011. Los discursos de la familia señalaron que la red de cuidados se compone de las dimensiones institucional y familiar. La primera se mostró amplia y diversa, aunque dispersa, compuesto por profesionales de salud y educación. Y en la segunda, la asistencia es exclusivamente familiar, con miembros, todas mujeres, como madres y abuelas. Se recomienda la ampliación y consolidación de la red de cuidado con abordaje multidisciplinar, facilitando el acceso a la atención de salud y la calidad de vida estos niños y sus familiares cuidadores.

Salud del niño; Enfermería pediátrica; Família; Cuidadores


INTRODUÇÃO

Crianças com necessidades especiais de saúde (CRIANES) são aquelas que possuem ou estão em maior risco de apresentar uma condição física crônica, de desenvolvimento, comportamento, ou emocional. Essa condição requer um cuidado diferenciado e um número de atendimentos superior ao geralmente requerido por outras crianças.1Rezende JM, Cabral IE. As condições de vida das crianças com necessidades especiais de saúde: determinantes da vulnerabilidade social na rede de cuidados em saúde as Crianças com Necessidades Especiais de Saúde. Rev Pesq Cuid Fundam [online]. 2010 Out-Dez [acesso 2012 Abr 10]; 2(Supl):22-5 Disponível em: http://www.seer.unirio.br/index.php/cuidadofundamental/article/view/773/pdf_68 .
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As CRIANES apresentam demandas de cuidados contínuos que podem ser de natureza temporária ou permanente, e requerem cuidados técnicos especializados, individuais e personalizados. As internações dessas crianças são frequentes e, por vezes, prolongadas, ocasionando o aumento da complexidade diagnóstica.2Góes FGB, Cabral IE. Crianças com necessidades especiais de saúde e suas demandas de cuidado. Rev Pesq Cuid Fundam [online]. 2010 Abr-Jun [acesso 2012 Mai 20]; 2(2):889-901 Disponível em: http://www.sumarios.org/sites/default/files/pdfs/64821_7337.PDF .
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Em geral, tais crianças são sobreviventes dos avanços tecnológicos na área da saúde, que mudaram o perfil epidemiológico da infância. Essas mudanças refletiram-se no declínio das taxas de mortalidade infantil registradas nas últimas décadas, em contraponto com o aumento de doenças crônicas na infância.

Do mesmo modo que em outros países, no Brasil houve uma mudança no perfil de sobrevivência das crianças. Pesquisa realizada com crianças egressas de uma Unidade de Terapia Intensiva Neonatal constatou que 16% delas possuíam necessidades especiais de saúde.3Arrué AM, Neves ET, Mathias CV, Jantsch LB, Pieszack GM, Naidon AN. Niños con necesidades especiales de salud egresados de cuidados intensivos neonatal. Evidentia [online]. 2014 [acesso 2014 Fev 25]; 11(45): Disponível em: http://www.index-f.com/evidentia/n45/ev8091.php .
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Entretanto, ainda são necessárias investigações acerca da natureza de suas demandas de saúde, condições de sobrevivência e rede de cuidados desse novo grupo infantil.

As necessidades especiais das CRIANES incluem cuidados de saúde complexos, que precisam ser realizados em âmbito domiciliar por seus cuidadores.4Neves ET, Cabral IE. Empoderamento da mulher cuidadora de crianças com necessidades especiais de saúde. Texto Contexto Enferm. 2008 Jul-Set; 17(3):552-60. As famílias enfrentam constantes peregrinações em busca de atendimento especializado e requerem uma rede de cuidados multiprofissional capaz de contribuir para seu processo de empoderamento.

Nesse contexto, a família cria suas próprias redes em busca desse cuidado especializado, a fim de garantir a assistência adequada às CRIANES. Deste modo, as redes de cuidados compõem-se em ações de cuidado no processo de saúde e doença. Essas redes são individualizadas e são definidas pelo seu tamanho, densidade e composição, permitindo o desenvolvimento de diversas funções, que vão desde as campanhas sociais até o apoio emocional, promovendo o suporte necessário que serve como guia cognitivo e de conselhos. Essa rede de cuidados também pode contribuir com recursos materiais e serviços, oferecendo bens materiais e acesso a novos contatos, além de incluir as pessoas em outras redes de convívio como forma de compartilhamento de experiências.5Gutierrez DMD, Minayo MCS. Família, redes sociais e saúde: o imbricamento necessário. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero, 8, Florianópolis, 2008. Anais... Florianópolis: UFSC, 2008. p. 4.Disponível em: http://universaleducacaoecultura.webs.com/documents/Fam%C3%83%C2%ADlia,%20redes%20sociais%20e%20sa%C3%83%C2%BAde.pdf
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Em face à problemática da dispersão das redes de cuidados das CRIANES, após a alta hospitalar, faz-se necessário fortalecer as redes que amparam as CRIANES e seus familiares, tanto as redes institucionais como as redes sociais. Desta forma, torna-se imprescindível a articulação dos serviços de saúde e as redes que formam vínculos com as CRIANES, em prol da visibilidade desse grupo e de suas demandas de saúde.

A partir desta problemática questionou-se como se configura a rede de cuidados de crianças com necessidades especiais de saúde após a alta hospitalar? Frente ao exposto, esta pesquisa objetivou descrever a rede de cuidados de crianças com necessidades especiais de saúde em diferentes níveis de atenção após a alta hospitalar.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com abordagem participativa, tendo feito um recorte da pesquisa maior intitulada "Crianças egressas da terapia intensiva neonatal: caracterização das necessidades especiais de saúde e do acesso aos serviços de seguimento em saúde em Santa Maria, RS - Pesquisa CRIANES".

O presente artigo refere-se à segunda fase em que foram produzidos os dados qualitativos da pesquisa supracitada. Os sujeitos foram os familiares cuidadores das crianças egressas da Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTI-Neo), procedentes do município de Santa Maria-RS e cadastradas no banco de dados da pesquisa "CRIANES" (2002-2006).

A coleta de dados foi realizada no período de 2009 a 2011. Participaram 11 sujeitos oriundos de cinco núcleos familiares das CRIANES sorteadas. Por se tratar de um banco de dados com crianças nascidas entre 2002-2006 sorteou-se uma CRIANES referente a cada ano e realizou-se o contato inicial com as famílias.

A produção dos dados qualitativos foi desenvolvida com base no Método Criativo Sensível (MCS),6Cabral IE. Aliança de saberes no cuidado e estimulação da criança-bebê: concepções de estudantes e mães no espaço acadêmico de enfermagem. Rio de Janeiro (RJ): Editora da Escola de Enfermagem Anna Nery; 1999. com a realização de cinco Dinâmicas de Criatividade e Sensibilidade (DCS) - Mapa Falante,4Neves ET, Cabral IE. Empoderamento da mulher cuidadora de crianças com necessidades especiais de saúde. Texto Contexto Enferm. 2008 Jul-Set; 17(3):552-60. durante visita domiciliária, realizada após contato telefônico prévio a cada uma das famílias das CRIANES sorteadas. O MCS conjuga técnicas consolidadas da pesquisa qualitativa, tais como entrevista coletiva, observação participante e discussão grupal, associadas às DCSs. Estas etapas são desenvolvidas durante o encontro grupal, sendo que a questão geradora de debate guia a entrevista coletiva. A observação (linguagem do corpo, gestual, etc.) é feita durante o encontro, e é registrada pelo(s) auxiliar(es) de pesquisa em um diário de campo, e a discussão grupal se desenrola durante a DCS. Os sujeitos expressam-se por meio da produção artística (desenho das redes de acompanhamento das CRIANES após a alta hospitalar), respondendo à questão geradora do debate que foi apresentada ao grupo, possibilitando a criação de um espaço dialógico, dialético e plural entre os sujeitos e o pesquisador.6Cabral IE. Aliança de saberes no cuidado e estimulação da criança-bebê: concepções de estudantes e mães no espaço acadêmico de enfermagem. Rio de Janeiro (RJ): Editora da Escola de Enfermagem Anna Nery; 1999.

Para o desenvolvimento das DCSs foram utilizadas as seguintes questões geradoras: tendo como ponto de partida a sua casa, quais são os serviços de saúde em que você leva a [nome da CRIANES]? Quais são as pessoas ou instituições que ajudam? Em que lugares você vai com a CRIANES?

Com a finalidade de caracterizar os sujeitos envolvidos no estudo, realizou-se uma entrevista prévia a realização do encontro com os familiares cuidadores das CRIANES. O encontro foi gravado em áudio e, posteriormente, as falas foram transcritas na íntegra.

Os dados qualitativos, obtidos através dos áudios gravados das entrevistas e das discussões grupais, foram transcritos e analisados por meio da análise de discurso (AD) francesa,7Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 10ª ed. Campinas (SP): Pontes; 2012. que busca não apenas conhecer a língua, mas compreendê-la enquanto trabalho simbólico e parte do trabalho geral, constitutivo do homem e sua história. Assim, pode-se conhecer aquilo que faz do homem um ser especial, com sua capacidade de significar e significar-se.7Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 10ª ed. Campinas (SP): Pontes; 2012.

A análise dos dados ocorreu em três momentos. No primeiro momento foi realizada a transcrição dos discursos dos sujeitos, sendo acrescido movimento aos mesmos, por meio da utilização de recursos ortográficos, que representam a etapa da materialidade linguística. No segundo momento foram selecionadas as situações-limite, sendo estas extraídas do texto das transcrições das dinâmicas na íntegra e incluídas nos quadros analíticos, para compor o corpus da pesquisa, caracterizando a etapa de organização dos dados para a análise. No terceiro momento - análise e interpretação - foram empregadas as ferramentas analíticas próprias da AD, como a metáfora, a polissemia e a paráfrase, a fim de extrair-se o sentido do texto. Os seguintes recursos ortográficos foram utilizados para dar materialidade linguística ao texto, representando o movimento do discurso: /: pausa reflexiva curta; //: pausa reflexiva longa; ///: pausa reflexiva muito longa; ...: pensamento incompleto; #: interrupção da enunciação de uma pessoa; [ ] - completar o pensamento verbal enunciado no mesmo dizer; '...': aspas simples, que indicam a fala ou texto de alguém citado dentro da enunciação de outrem; e (...) que indica que houve um corte retirado na fala dos sujeitos.

A pesquisa foi conduzida de acordo com os preceitos éticos e legais exigidos pela Resolução 196/96 e os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Salienta-se que os nomes próprios atribuídos aos sujeitos são fictícios, garantindo o anonimato. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição sob o número 0003.0.243.000-08.

RESULTADOS

Apresenta-se inicialmente o quadro 1, com a caracterização das CRIANES participantes do estudo, suas necessidades especiais de saúde (NES), suas demandas de cuidado e quem são os familiares cuidadores.

Quadro 1.
Caracterização das CRIANES e seus familiares cuidadores. Santa Maria-RS, 2013

O discurso falado e imagético dos familiares cuidadores de CRIANES tornou possível conhecer o trajeto percorrido por essas famílias em busca de assistência qualificada para seus filhos.

Apresenta-se, a seguir, a enunciação de duas cuidadoras, ao descrever sua produção artística (PA):

(...) aqui [aponta o desenho] eu saindo da minha casa (...) e levei o Guilherme no postinho [Unidade Básica de Saúde] (...) É que deu uma convulsão nele... (...) Quando dá as convulsões, daí os primeiros socorros que dão é no posto de saúde (...) para depois mandarem para o hospital (...)Tem a universidade federal, a [nome da universidade] lá que a gente leva para que ele se trate com a neurologista e a gastro [gastroenterologista] e [onde ele] faz fisioterapia uma vez por semana (...) (Vera).

[...] é, assim, eu acho / o PA [pronto atendimento], o [nome do hospital], esses aqui são os pontos de saúde dele. Ah!! Aqui na escolinha tem também (...). Ele tem acompanhamento do neuro [neurologista] (...) e que é do SAF [Serviço de atendimento fonoaudiológico], o otorrino [otorrinolaringologista] (...). E as doutoras e o pediatra, que é tudo no HU [Hospital Universitário] (...) (Ana).

Na figura 1, a seguir, ilustra-se uma rede de cuidados pouco articulada, na qual a família representou apenas os serviços de saúde institucionais frequentados pela criança.

Figura 1.
DCS Mapa Falante. Desenho de Ana, avó de João. Santa Maria-RS, 2012

Os cuidadores das CRIANES necessitam percorrer diversos serviços de atendimento à saúde, como a unidade básica de saúde, os serviços de pronto-atendimento, e a universidade como referência para atendimento ambulatorial e para acompanhamento em diversas especialidades médicas. Além disso, fazem parte da rede institucional de saúde da CRIANES os profissionais da saúde fisioterapeutas e fonoaudiólogos.

Na PA dos familiares de Manoela, figura 2, pode-se observar, além de uma rede institucional, também uma rede familial ampla, porém dispersa geograficamente.

Figura 2.
DCS Mapa Falante. Desenho de André, pai de Manoela. Santa Maria-RS, 2012

A dispersão geográfica e os vários serviços que a criança acessa são apresentados na figura 2 e nas enunciações a seguir:

não, [a fisioterapia] é na APAE. (...) O colégio! [aponta o desenho] Que ela adora! (Marina). E para André: é o doutor [nome do pediatra]. (...) não é com tanta frequência [que a CRIANES frequenta]. Na fisioterapia nós recebemos bastante orientação, nos primeiros tratamentos (...) (André).

Os familiares citam diversos serviços e profissionais de saúde, dentre os quais se destacam: equipe médica, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, dentista, pedagogo, além dos professores das CRIANES que frequentam a escola.

(...) a [Terapeuta ocupacional] vem uma vez na semana. (...) Na terça-feira, a Isabela vai lá pro...// [nome da escola da CRIANES] (...) Ela vai no dentista / todas as quartas-feiras.(...) E aqui também na quarta logo após tem a ACDV, // que é a Associação dos Deficientes Visuais com a [nome da pedagoga] (...) E tem mais, na sexta-feira ela tem na [nome da universidade] terapia ocupacional de novo. /// (...) (Luísa).

Quando questionados sobre como conciliam os vínculos empregatícios e os cuidados da CRIANES, constata-se abandono do trabalho para se dedicar exclusivamente ao cuidado da criança:

parei [de trabalhar] (...) porque depois que eu assumi ele, aí que eu comecei a levar mais na fono [fonoaudióloga], ele ia uma vez por semana na fono [fonoaudiológa] antes de eu começar a cuidar. E daí ela [a nora] disse que queria trabalhar, que ia trabalhar, então eu disse: 'eu saio do serviço e cuido ele e tu vai trabalhar porque eu tenho [recurso - aposentadoria do marido] (...), então eu tenho pra sobreviver (...)'(Ana).

Segundo Ana, avó de João foi necessário abdicar de seu emprego para cuidar integralmente da criança, possibilitando, assim, que os pais pudessem trabalhar para garantir os recursos para financiar os custos gerados pelas demandas de cuidado das CRIANES.

Ao relatarem sobre a utilização dos serviços de atenção primária pela CRIANES, os familiares enunciaram: tem, tem. Mas a gente... # (...) mora perto do PA [Pronto Atendimento Municipal] e a gente vai direto lá. (...) (André). E quanto ao acesso às unidades básicas de saúde: porque o que acontece nessas Unidades Básicas de Saúde é que tu tem que ir com antecedência, tirar [pegar] ficha cedo, às vezes tu vai e não consegue [atendimento]. Então, a gente acaba desistindo (Marina).

Os serviços de atenção primária apareceram nos discursos dos familiares como referência pela proximidade geográfica da residência, entretanto, de difícil acesso para conseguir atendimento e resolutividade para a CRIANES:

[...] a Patrícia não. Só quando é uma gripezinha assim, uma coisinha. Porque é difícil a gente marcar ficha ali, porque ou tem que madrugar, tem que ir três horas, quatro horas da madrugada para poder conseguir alguma coisa, daí então ela, a Patrícia, a gente pega e já vai direto para o HU [Hospital Universitário], né? (Júlia).

Além disso, a fragilidade do quadro clínico da criança faz com que os familiares cuidadores procurem pronto-atendimentos devido à necessidade de assistência imediata. E, em geral, as intercorrências com a criança acontecem fora do horário de expediente das unidades básicas de saúde.

Em relação aos pontos da rede de cuidados responsáveis pelo lazer e a cultura das CRIANES, os familiares mencionaram:

é na pracinha [risos]. Na igreja é nas quartas e domingo (Júlia); E: É! Porque a gente, assim: no período de férias ela vem todos os dias conosco para cá [referindo-se à escola de dança] (...). A gente esqueceu de dizer que ela vai à missa!! Vou botar a igreja aqui! (...) vai à missa e fica na frente...# (André).

Os familiares descreveram, na rede institucional de apoio da criança, ferramentas de lazer e cultura, tais como a praça de recreação e a igreja. Para uma das CRIANES foi incluída uma escola de dança, por ser o ambiente de trabalho de seus pais, onde a criança possui contato com outras pessoas, além de ser estimulada pelas atividades de dança.

Quanto aos pontos de referência sociais na rede de cuidados que dão suporte aos familiares cuidadores, emergiram: somos nós mesmos, aqui. (...) É (...). O meu filho. A avó mora aqui do lado, né? [risos]. (...) daí a tia, que também ela vai lá nos tios dela, também (Júlia).

Percebeu-se que o cuidado é exclusivamente familial; muitas CRIANES têm apenas um cuidador principal ou que divide o cuidado com alguns familiares mais próximos, geralmente do sexo feminino e do núcleo familiar, como irmãs, tios, avós e madrinhas: Isabela, a vó, e a bisa [vó], .../ nós aqui. (...) a minha filha, os guris [os tios]. (...)Porque o meu irmão tá lá e tá cantando uma música para ela e ela canta, o meu filho também, o meu marido também vai, conta uma história, todo mundo [o núcleo familiar] participa (Luísa).

Verificou-se, portanto, que a rede de cuidados das CRIANES é constituída pelas dimensões institucional e familial. A primeira mostrou-se ampla e diversificada, porém dispersa, constituída por diversos profissionais da área da saúde e educação. A segunda conta com integrantes do núcleo familiar mais próximo e o cuidado é exclusivamente familial. A rede de lazer e socialização é restrita à pracinha de recreação, e a missa é referência de espiritualidade.

DISCUSSÃO

A dimensão institucional da rede de cuidados às crianças com necessidades especiais de saúde

A pesquisa apontou a natureza dos vínculos como determinante na funcionalidade da rede, significando que, quanto mais fortes são os vínculos, mais forte é a rede.8Leal JR, Cabral IE, Perreault M. Experiência Brasil-Canadá no cuidado social e na saúde da criança com necessidades especiais: aproximações e distanciamentos. Interfaces Brasil/Canadá. 2010; (11):95-119. Outro fator relevante no processo de intensificação dos vínculos é a convivência com os serviços e as pessoas envolvidas nos cuidados da criança.Visualiza-se uma rede de cuidados apoiada na família e nas instituições de saúde de nível terciário.9Neves ET, Andres B, Silveira A, Arrué AM. A rede social de cuidados de uma criança com necessidade especial de saúde. Rev Eletr Enf [online]. 2013 Abr-Jun [acesso 2013 Mai 21]; 15(2):533-40 Disponível em: http://dx.doi.org/10.5216/ree.v15i2.17064. .
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A relação entre a saúde das pessoas e o estabelecimento de uma rede social estável e ativa é expressiva, pois a rede exerce influência sobre a saúde dos indivíduos e é influenciada pelo estado de saúde da pessoa.1010 Andreani G, Custódio ZAO, Crepaldi MA. Tecendo as redes de apoio na prematuridade. Rev Aletheia. 2006; (24):115-26.

Embora a legislação do Sistema Único de Saúde (SUS) garanta o direito e o acesso à saúde de forma igualitária, os familiares das CRIANES, muitas vezes, se deparam com a dificuldade de acesso aos serviços de saúde e com falhas no sistema de referência e contrarreferência. O acesso aos serviços de saúde revela-se seletivo e focalizado nos serviços especializados, evidenciando uma contradição entre a legislação e a legitimidade social do direito à saúde.1111 Klassmann J, Kochia KRA, Furukawa TS, Higarashi IH, Marcon SS. Experiência de mães de crianças com leucemia: sentimentos acerca do cuidado domiciliar. Rev Esc Enferm USP. 2008; 42(2):321-30. Isto fere os princípios de integralidade e universalidade de acesso preconizados pelo SUS.1212 Neves ET, Silveira A. Desafios para os cuidadores familiares de crianças com necessidades especiais de saúde: contribuições da enfermagem. Rev Enferm UFPE [online] 2013 Mai [acesso 2013 Jun 12]; 7(5):1458-62 Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/viewArticle/3229 .
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As necessidades de saúde das CRIANES são complexas e requer o atendimento de diversos profissionais, localizados em lugares distintos, o que exige do cuidador dedicação exclusiva e exaustiva ao cuidado. O cuidador precisa administrar uma rotina diversificada de atendimentos e consultas que é complexa e em locais distantes geograficamente.1313 Neves ET, Cabral IE, Silveira A. Rede familial de crianças com necessidades especiais de saúde: implicações para a enfermagem. Rev Latino-Am Enfermagem [online]. 2013 Mar-Abr [acesso 2013 Jun 12]; 21(2):[09 telas] Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v21n2/pt_0104-1169-rlae-21-02-0562.pdf .
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Em relação aos serviços de saúde que compõem a rede institucional da CRIANES, são acessados, preferencialmente, os locais que prestam atendimento de nível terciário, em detrimento aos serviços de nível primário. Isso demonstra as dificuldades de acesso aos serviços de saúde para dar continuidade ao tratamento de saúde na pós-alta hospitalar da criança.

Estudo realizado em Santa Maria-RS, em 2009, identificou que os familiares de CRIANES buscam o atendimento hospitalar, quando não encontram espaços junto à comunidade.9Neves ET, Andres B, Silveira A, Arrué AM. A rede social de cuidados de uma criança com necessidade especial de saúde. Rev Eletr Enf [online]. 2013 Abr-Jun [acesso 2013 Mai 21]; 15(2):533-40 Disponível em: http://dx.doi.org/10.5216/ree.v15i2.17064. .
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O mesmo resultado foi identificado em uma pesquisa desenvolvida em 2011, em que familiares de CRIANES fizeram referência ao despreparo dos serviços primários de saúde para receber estas crianças, levando os familiares a buscar serviços terciários.1414 Zamberlan KC, Neves ET, Silveira A. institutional care network of children with special health care needs. J Nurs UFPE. 2012 Mai; 6(5):1015-23.

As condições de acesso aos serviços das UBSs são consideradas difíceis pelos familiares e são poucos os atendimentos disponibilizados por turno. Em outro estudo sobre a temática,1515 Souza ECF, Vilar RLA, Rocha NSPD, Uchoa AC, Rocha PM. Acesso e acolhimento na atenção básica: uma análise da percepção dos usuários e pro?ssionais de saúde. Cad Saúde Pública. 2008; 24(Sup1):100-10. os pacientes mencionaram o número insuficiente de profissionais para atender a demanda dos usuários que dependem do serviço, associado à falta de organização do trabalho.

Nos Estados Unidos da América (EUA), essa realidade também é vivenciada, já que 48,8% dos familiares de CRIANES relataram dificuldade de acesso aos serviços médicos e 31%, aos demais serviços.1616 Kuo DZ, Cohen E, Agrawal R, Berry JG, Casey PH. A national profile of caregiver challenges among more medically complex children with special health care needs. Arch Pediatr Adolesc Med. 2011 Nov; 165(11):1020-6.Porém, diferentemente da realidade brasileira, nos EUA não há um serviço de saúde público e universal.

Para as CRIANES, os cuidadores optam por acessar um pronto atendimento para situações que poderiam ser resolvidas nas UBS. Os usuários recorrem a outros serviços, tais como os pronto-atendimentos para tratar casos agudos como se fossem urgências. Este fato ocorre, porque as famílias esperam a resolução imediata do caso, apesar da espera prolongada nos serviços de pronto-atendimento.1515 Souza ECF, Vilar RLA, Rocha NSPD, Uchoa AC, Rocha PM. Acesso e acolhimento na atenção básica: uma análise da percepção dos usuários e pro?ssionais de saúde. Cad Saúde Pública. 2008; 24(Sup1):100-10.

A rede institucional da CRIANES inclui também pessoas que oferecem suporte no dia a dia, como alguns profissionais da equipe multiprofissional que compõem a rede de cuidados complexos requeridos por estas crianças. Pesquisa desenvolvida com pacientes crônicos apontou que estes citam pessoas, além do grupo familiar, que oferecem suporte para os cuidadores, estabelecendo relações interdependentes e de afetividade.1717 Silveira CL, Budó MLD, Silva FM, Beuter M, Schimith, MD. Rede social das cuidadoras de familiares com doença crônica incapacitante no domicílio: implicações para a enfermagem. Ciênc Cuid Saúde. 2009 Out-Dez; 8(4):667-74. Em geral, o cuidador dedica-se a atender as necessidades da criança, reduzindo sua rede de relacionamentos aos familiares mais próximos e recorrendo à espiritualidade, neste estudo representada pela ida à missa, o que torna a rede de suporte frágil e restrita.1313 Neves ET, Cabral IE, Silveira A. Rede familial de crianças com necessidades especiais de saúde: implicações para a enfermagem. Rev Latino-Am Enfermagem [online]. 2013 Mar-Abr [acesso 2013 Jun 12]; 21(2):[09 telas] Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v21n2/pt_0104-1169-rlae-21-02-0562.pdf .
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A presença da criança na igreja, onde a família recebe conforto, fez emergir o tema do suporte espiritual. A sensação de se sentir acolhida espiritualmente faz com que a família se aproxime de rituais religiosos, que lhe possibilitam esperança e conforto, além da paz interior, que, muitas vezes, não é conseguida de outra maneira.1818 Hayakawa LY, Marcon SS, Higarashi IH, Waidman MAP. Rede social de apoio à família de crianças internadas em uma unidade de terapia intensiva pediátrica. Rev Bras Enferm. 2010 Mai-Jun; 63(3):440-5. Para as pessoas que passam por situações de doença, a religião acaba exercendo o papel de apoio emocional, fortalecendo a esperança, renovando as forças, ajudando-as a viver e a enfrentar as dificuldades.1717 Silveira CL, Budó MLD, Silva FM, Beuter M, Schimith, MD. Rede social das cuidadoras de familiares com doença crônica incapacitante no domicílio: implicações para a enfermagem. Ciênc Cuid Saúde. 2009 Out-Dez; 8(4):667-74.

Dimensão familial da rede de cuidados da criança com necessidades especiais de saúde

O estudo revelou que os familiares precisam desempenhar cuidados complexos a estas crianças no domicílio, mesmo sem o conhecimento prévio e sem as tecnologias disponíveis no âmbito hospitalar. Entre as demandas de cuidados das CRIANES têm-se os cuidados contínuos de natureza complexa que são realizados, rotineiramente, tais como sondagem de alívio, aspiração, alimentação por sonda ou gastrostomia, banho de leito, cuidados com drenos, curativos. Após a alta hospitalar da criança, vários procedimentos passam a ser realizados no domicílio pelo familiar cuidador, o que exige destreza, manejo e adaptação do ambiente domiciliário para o cuidado.4Neves ET, Cabral IE. Empoderamento da mulher cuidadora de crianças com necessidades especiais de saúde. Texto Contexto Enferm. 2008 Jul-Set; 17(3):552-60.

Frente ao diagnóstico da CRIANES, em geral, há um redimensionamento no modo de ser dos sujeitos e seu posicionamento no grupo familiar.1919 Motta MGC, Issi HB, Milbrath VM, Ribeiro NRR, Resta DG. Famílias de crianças e adolescentes no mundo do hospital: ações de cuidado. In: Elsen I, Souza AIJ, Marcon SS. Enfermagem à família: dimensões e perspectivas. Maringá (PR): Eduem; 2011. p.73-85. A família de uma criança com necessidade especial de saúde passa por uma readaptação no seu modo de vida e passa a dedicar-se ao cuidado exclusivo da CRIANES.

Quando uma criança adoece, toda a família fica envolvida no processo. Não importa se a doença é aguda ou crônica, nem a assistência requerida, pois criança e a família são impactadas. A família passa a viver a doença da criança e a atrelar sua sobrevivência ao cuidado familial.2020 Rossi CS, Rodrigues BMRD. Típico da ação do profissional de enfermagem quanto ao cuidado familial da criança hospitalizada. Acta Paul Enferm. 2010 Out; 23(5):640-5. As atividades de cuidado desenvolvidas pela família, na maioria das vezes, são executadas de forma solitária e ininterrupta.2121 Brondani CM, Beuter M, Alvim NAT, Szareski C, Rocha LS. Cuidadores e estratégias no cuidado ao doente na internação domiciliar. Texto Contexto Enferm. 2010 Jul-Set; 19(3):504-10. Isso pode ser observado nas enunciações dos familiares que referiram ter deixado de trabalhar e ter uma vida social, em prol da dedicação exclusiva ao cuidado à criança, expondo-se ao desenvolvimento de problemas de saúde físicos e mentais.2222 Earle A, Heymann J. Protecting the health of employees caring for family members with special health care needs. Soc Sci Med. 2011 Jul; 73(1):68-78.

A rede de cuidados familial reduz-se aos cuidadores principais do núcleo familiar e do sexo feminino (mãe, avó, madrinha). O cuidado familial concretiza-se em ações e interações presentes na vida de cada grupo familiar, objetivando o bem-estar, a realização pessoal e o desenvolvimento, por meio da interação dos membros dessa família, de acordo com a compreensão da situação existencial.2323 Elsen I, Penna CMM, Althoff CR, Bub LIR, Patrício ZM. Marcos para prática de enfermagem com famílias. Florianópolis (SC): Ed. UFSC; 1994. Assim, o cuidado familial acaba sendo executado de acordo com os conhecimentos prévios ou os adquiridos no decorrer da prática familiar.

Os familiares cuidadores descreveram as limitações vivenciadas no cuidado à CRIANES, agravadas pela rede social restrita e a vulnerabilidade da criança. Embora o familiar cuidador seja o principal responsável pelo cuidado à CRIANES, a família precisa encontrar suporte nas redes de apoio após a alta hospitalar. Assim, os profissionais da saúde devem estar atentos para o centro do cuidado onde estão à criança e sua família, como seres em condições de vulnerabilidade.2424 Cabral IE. Desafios e perspectivas do cuidar de enfermagem na saúde da criança. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009 Out-Dez;13(4):691-3.

CONCLUSÃO

Para as cinco famílias que integraram o presente estudo, a rede de cuidados revelou-se multifacetada, constituída pelas dimensões institucional e familial. A rede institucional mostrou-se ampla e diversificada, integrada por diversos profissionais da área da saúde e educação. Os serviços de atenção primária foram apontados como de difícil acesso e foram mencionadas dificuldades nos serviços de referência e na contrarreferência. Os serviços de pronto-atendimento são priorizados por sua agilidade e resolutividade, independente do horário dos atendimentos.

A rede familial mostrou estar pautada em um cuidado solitário, muitas vezes, feminino. A família tem sua dinâmica modificada, reconfigurando-se para atender as demandas de cuidados da CRIANES. Como estratégia, os familiares cuidadores criam conexões de suporte social na rede institucional, com a comunidade, a rede de educação, de lazer e apoio espiritual, percorrendo diversos segmentos de saúde, em busca do tratamento adequado.

Essas redes de cuidados são tecidas pelos cuidadores, dependendo de seus conhecimentos pessoais, familiares e da facilidade de acesso aos serviços, muitas vezes, por intermédio de terceiros, o que fere os princípios do SUS como um sistema público de saúde no Brasil. Aqueles que não possuem essas facilidades acabam ficando à mercê da própria sorte, lutando por seus direitos de forma solitária.

Ainda, devido à fragilidade clínica e à complexidade do diagnóstico, as CRIANES necessitam de uma rede de cuidados multiprofissional para o acompanhamento de sua saúde após a alta hospitalar. Diante disso, recomenda-se que os profissionais da saúde conheçam o cotidiano das CRIANES e seus familiares, atentando para a necessidade de acompanhamento na rede primária de atenção, a fim de minimizar as reinternações. Para tanto, é necessário auxiliá-las, desde a alta hospitalar, por meio de redes de cuidados multiprofissionais que proporcionem uma vida com melhor qualidade, não só para as CRIANES, mas também para seus familiares cuidadores, atuando como facilitadoras do empoderamento dessas famílias.

Aponta-se como uma limitação do estudo a dificuldade de localização dos sujeitos, devido aos dados incompletos nos prontuários apresentou-se como uma limitação ao estudo. Além disso, pela demanda de cuidados exigida pela criança, o familiar cuidador necessitou reorganizar toda a sua rotina de cuidados para atender aos pesquisadores em seu domicílio.

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    Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul - FAPERGS.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    22 Out 2013
  • Aceito
    17 Jan 2014
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