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BANCO DE LEITE HUMANO: DESAFIOS E VISIBILIDADE PARA A ENFERMAGEM

RESUMO

Objetivo:

analisar o processo de implantação do banco de leite humano de um hospital universitário do Estado do Espírito Santo e discutir suas implicações para a enfermagem capixaba.

Método:

pesquisa histórico-social, cujas fontes primárias foram depoimentos de oito enfermeiras, documentos dos acervos da Divisão de Enfermagem. A análise de conteúdo temático e o referencial teórico de Pierre Bourdieu permitiram mediar as dimensões objetivas e subjetivas do mundo social.

Resultado:

evidenciou-se que o banco de leite foi idealizado em 1993 e implantado em 1994, por três enfermeiras e uma médica. Em sua trajetória histórica contou com a participação de enfermeiras envolvidas em relações de saber-poder demarcadas por violências simbólicas e resistências ao poder médico hegemônico da época.

Conclusão:

conclui-se que a implantação do banco de leite não aconteceu como previa a política pública para esse fim, resultado de um complexo jogo de poder, envolvendo os profissionais da saúde e a própria instituição.

DESCRITORES:
Enfermagem; Bancos de leite humano; História da enfermagem.

ABSTRACT

Objective:

analyze the implementation process of the human milk bank of a university hospital in the state of Espírito Santo and discuss the implications of this deployment to the regional nursing practice.

Method:

in this historical and social search the primary sources were interviews conducted with eight nurses, and documents from the nursing section. The thematic content analysis and the theoretical framework of Pierre Bourdieu allowed mediation of the objective and subjective dimensions of the social world.

Results:

it was evidenced that the milk bank was designed in 1993 and implemented in 1994 by three nurses and a doctor. In its historical path, the human milk bank had the participation of nurses involved in knowledge-power relations marked by symbolic violence and resistance to the hegemonic medical power of the time.

Conclusion:

it was concluded that the implementation of a human milk bank did not happen as anticipated by the public policy of the time, which was the result of a complex power game involving health professionals and the institution itself.

DESCRIPTORS:
Nursing; Human milk banks; History of nursing.

RESUMEN

Objetivo:

analizar el proceso de implantación del banco de leche humano de un hospital universitario del Estado de Espírito Santo y discutir las implicaciones de esa implantación para la enfermería local son los objetivos de este estudio.

Metodo:

es una Investigación histórico-social. Las fuentes primarias fueron testimonios de ocho enfermeras, documentos del acervo de la División de Enfermería. El análisis de contenido temático y el marco teórico de Pierre Bourdieu permitió mediar en las dimensiones objetivas y subjetivas del mundo social.

Resultados:

el banco de leche fue concebido en 1993 y ejecutado en 1994 por tres enfermeras y una médica. En su trayectoria histórica, el bancos de leche humano contó con la participación de enfermeras implicadas en relaciones de saber-poder demarcadas por violencias simbólicas y resistencias al poder médico hegemónico de la época.

Conclusión:

la implantación del bancos de leche humano no aconteció como previa la política pública para ese fin, resultado de un complejo juego de poder involucrando los profesionales de la salud y la propia institución.

DESCRIPTORES:
Enfermería; Bancos de leche humano; Historia de la enfermería.

INTRODUÇÃO

Este estudo teve como objeto o processo de implantação e consolidação do serviço de Banco de Leite Humano (BLH) no Hospital Universitário Cassiano Antônio de Morais (HUCAM), da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). O recorte temporal inicia em 1993, ano em que foi idealizado o BLH/HUCAM, e termina no ano de 1998, quando consolida-se o reconhecimento das atividades desse serviço, deslanchando um projeto de construção da sua terceira e atual área física.

No Brasil, ao longo do século XX, ocorreram transformações econômicas que fizeram a sociedade brasileira adotar o modelo urbano-industrial, ressocializando o homem-operário e impondo um modelo burguês de família, em que a mulher é parte ativa no mercado de trabalho. Nesse modelo de sociedade de consumo, no que tange a área da saúde materno-infantil, o aleitamento materno passa a ser desestimulado e a mamadeira surge como símbolo de modernidade e urbanismo. Esse fenômeno é reforçado no meio científico, que a entendia como alternativa terapêutica ideal para a alimentação do lactente, na década de 1970.11 Almeida JAG. Amamentação: repensando o paradigma [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Instituto Fernandes Figueira - Fundação Oswaldo Cruz, Programa de Pós-Graduação; 1998.

2 Almeida JAG. Amamentação: um híbrido natureza-cultura. Rio de Janeiro (BR): Fiocruz; 1999.
-33 Demitto MO, Bercini LO, Rossi RM. Uso de chupeta e aleitamento materno exclusivo. Esc Anna Nery [Internet]. 2013 Jun [cited 2015 Jul 01]; 17(2):271-76. Available from: http://www.scielo.br/readcube/epdf.php?doi=10.1590/S1414-1452013000200010&pid=S1414-81452013000200010&pdf_path=ean/v17n2/v17n2a10.pdf&lang=pt
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No cenário da alimentação infantil, ficou registrado o avanço avassalador dos leites industrializados no Brasil, e as precárias condições de saúde das crianças lactentes. Na década de 1980, houve um enfrentamento entre o marketing das fórmulas infantis e campanhas pró-aleitamento materno e os artigos científicos em defesa da amamentação. Na década de 1990, o desmame comerciogênico prevaleceu como alternativa ao ganho de peso infantil.11 Almeida JAG. Amamentação: repensando o paradigma [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Instituto Fernandes Figueira - Fundação Oswaldo Cruz, Programa de Pós-Graduação; 1998.,44 Rodrigues AP, Padoim SMM, Guido LA, Lopes LFD. Pre-natal and puerperium factors that interfere on self-efficacy in breastfeeding. Esc Anna Nery [Internet]. 2014 Jun [cited 2016 Mar 01]; 17(2):257-61. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452014000200257&lng=en&nrm=iso&tlng=en
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-55 Ministério da Saúde (BR), Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição. Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno. Brasília (DF): MS; 1991.

A representação da alimentação da criança significava um sério agravo à saúde pública, o que levou o Ministério da Saúde, na década de 1980, assumir a reversão do desmame como uma das principais estratégias para reduzir a morbimortalidade infantil.22 Almeida JAG. Amamentação: um híbrido natureza-cultura. Rio de Janeiro (BR): Fiocruz; 1999.,55 Ministério da Saúde (BR), Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição. Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno. Brasília (DF): MS; 1991.

6 Grazziotin AL, Grazziotin MCB, Letti LAJ. Disposal of human milk donated to a human milk bank before and after measures to reduce the amount of milk unsuitable for consumption. J. Pediatr [Internet]. 2010 Abr [cited 2015 Jul 01]; 86(4):290-94. Available from: www.scielo.br/pdf/jped/v86n4/a08v86n4.pdf
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-77 Pacheco STA, Cabral IE. Alimentação do bebê de baixo peso no domicílio: enfrentamentos da família e desafios para a enfermagem. Esc Anna Nery [Internet]. 2011 Jun [cited 2015 Jul 01]; 15(2):314-22. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452011000200015&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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À época, iniciativas de caráter institucional e de ações de Estado, a exemplo da promoção do aleitamento materno, foram acompanhadas por mobilizações sociais em prol do fomento à amamentação natural. Assim, algumas mães se organizaram e criaram um movimento denominado Grupo de Mães Amigas do Peito, fundado em 1980, na cidade do Rio de Janeiro. Essas mobilizações e mudanças sociais contribuíram para a ação do Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno (PNIAM), do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN) que, a partir de 1981, passou a coordenar e disciplinar a implantação dos BLH, no Brasil, com objetivo de reduzir a morbimortalidade infantil e melhorar a qualidade de vida das crianças brasileiras.88 Carvalho KEG, Carvalho MEG, Cavalcanti SH, Araújo EC. História e memórias do banco de leite humano do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (1987-2009). Rev. Bras. Saude Mater. Infant [Internet]. 2010 Dez [cited 2015 Jul 01]; 10(4):314-22. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-38292010000400008&lng=en
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-99 Rea MF. Reflexões sobre a amamentação no Brasil: de como passamos a 10 meses de duração. Cad. Saúde Pública. December 12, 2003; 19(1 supplement):S37-45.

Para melhor evidenciar as vantagens do leite humano, estudos nacionais e internacionais destacam a superioridade do leite materno.1010 Conceição CS, Alves VH, Silva LR, Martins CA, Mattos DV, Rodrigues DP. Quality care of the bank of human milk: the perception of users. Rev enferm UFPE online [Internet]. 2013 May [cited 2015 May 20]; 07(5):1271-78. Available from: http://www.revista.ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/view/4280/pdf_2589
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A eficácia da amamentação e/ou o uso de leite humano, por meio de bancos de leite, conferem benefícios nutricionais e não nutricionais para a criança em todas as fases de sua vida, merecendo por isso, especial atenção em alguns países, para o início e a duração da amamentação.1111 Nisi GD, Arslanoglu S, Ambruzzi AM, Biasini A, Profeti C, Tonetto P, et al. Survey of Italian human milk banks. Journal of Human Lactation. J Hum Lact [Internet]. 2015 Feb [cited 2016 Mar 28]; 31(2):294-300. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25722356
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-1212 Tuthill EL, McGrath JM, Graber M, Cusson RM, Young SL. Breastfeeding self-efficacy: a critical review of available instruments. J Hum Lact [Internet]. 2015 Aug [cited 2016 Mar 28]; 32(1):01-11. Available from: https://www.researchgate.net/publication/281484116_Breastfeeding_Self-efficacy_A_Critical_Review_of_Available_Instruments
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Evidências científicas registram aumento maior do intelecto em crianças amamentadas em relação ao de crianças em uso de fórmula infantil, reforçando um dos benefícios a longo prazo na saúde humana. Para tanto, faz-se importante atentar para as intervenções precoces no pós-parto, pois influenciam na eficácia da amamentação.1313 Pontes MB, Santos TCF. A inserção das enfermeiras na implantação das políticas de aleitamento materno: o caso do Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes - HUCAM (1992-1994). Enferm Atual. 2009; 50(2): 13-16.

14 Costa LKO, Queiroz LLC, Queiroz RCCS, Ribeiro TSF, Fonseca MSS. Importância do aleitamento materno exclusivo: uma revisão sistemática da literatura. Rev Ciênc. Saúde [Internet]. 2013 Jan [cited 2016 Mar 28]; 15(1):39-46. Available from: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rcisaude/article/view/1920
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-1515 Erin JH, Rachel F, Emily S, Linda N, Marie C. Breastfeeding self-efficacy, mood, and breastfeeding outcomes among primiparous women. J Hum Lact [Internet]. 2015 Mar [cited 2016 Mar 28]; 31(3):511-18. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25829478.
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Por essa razão, ao longo dos anos, os BLHs sofreram flutuações importantes, passando de uma estrutura de apoio às excepcionalidades do desmame comerciogênico, à implantação da primeira unidade no País - Instituto Fernandes Figueira/Fundação Oswaldo Cruz, em 1943 - para suprir as necessidades de crianças que não podiam se alimentar com fórmulas lácteas. Esse primeiro BLH funcionava como centro especializado, responsável pelas atividades de coleta, processamento e controle de qualidade do leite humano, ordenhado para posterior distribuição sob prescrição do médico ou de nutricionista.11 Almeida JAG. Amamentação: repensando o paradigma [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Instituto Fernandes Figueira - Fundação Oswaldo Cruz, Programa de Pós-Graduação; 1998.-22 Almeida JAG. Amamentação: um híbrido natureza-cultura. Rio de Janeiro (BR): Fiocruz; 1999.,1313 Pontes MB, Santos TCF. A inserção das enfermeiras na implantação das políticas de aleitamento materno: o caso do Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes - HUCAM (1992-1994). Enferm Atual. 2009; 50(2): 13-16.

Podemos constatar, numa sumária cronologia que, no Brasil, ocorreu uma expansão de BLH, a partir da primeira iniciativa, chegando a 47 unidades na década de 1980. Vale destacar que, no final da década de 1980, o Estado do Espírito Santo possuía dois BLHs que, assim como nos demais bancos do país, ainda tinham o propósito de ofertar o leite humano somente em situações de emergência, sendo vedada sua utilização nos casos, cuja solução era possível com o uso do leite artificial, sendo essa sempre a primeira alternativa. O BLH, pioneiro no Estado do Espírito Santo, tinha sua sede na Santa Casa de Misericórdia, e foi criado em 1988. Ao longo de 17 anos esse banco funcionou com muitas dificuldades e uma estrutura inadequada.88 Carvalho KEG, Carvalho MEG, Cavalcanti SH, Araújo EC. História e memórias do banco de leite humano do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (1987-2009). Rev. Bras. Saude Mater. Infant [Internet]. 2010 Dez [cited 2015 Jul 01]; 10(4):314-22. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-38292010000400008&lng=en
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,1313 Pontes MB, Santos TCF. A inserção das enfermeiras na implantação das políticas de aleitamento materno: o caso do Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes - HUCAM (1992-1994). Enferm Atual. 2009; 50(2): 13-16.

A partir de 1985 começa a se perceber, no Brasil, um novo panorama para os BLHs, por meio das recomendações técnicas para funcionamento desses.22 Almeida JAG. Amamentação: um híbrido natureza-cultura. Rio de Janeiro (BR): Fiocruz; 1999. Um convênio celebrado em 1986, entre o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN) e a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), fortalece a expansão desse serviço que finaliza na década de 1990, com 104 unidades. Esse convênio torna o BLH do Instituto Fernandes Figueira, sob a coordenação do doutor João Aprígio, um Centro de Referência Nacional para Banco de Leite, com o propósito de promover, proteger e apoiar o aleitamento materno. Com a reestruturação do PNIAM, em 1993, criou-se a Comissão Central de BLH, vinculada ao Ministério da Saúde, e responsável pelo assessoramento na formulação e implementação de políticas para esse setor.11 Almeida JAG. Amamentação: repensando o paradigma [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Instituto Fernandes Figueira - Fundação Oswaldo Cruz, Programa de Pós-Graduação; 1998.

2 Almeida JAG. Amamentação: um híbrido natureza-cultura. Rio de Janeiro (BR): Fiocruz; 1999.

3 Demitto MO, Bercini LO, Rossi RM. Uso de chupeta e aleitamento materno exclusivo. Esc Anna Nery [Internet]. 2013 Jun [cited 2015 Jul 01]; 17(2):271-76. Available from: http://www.scielo.br/readcube/epdf.php?doi=10.1590/S1414-1452013000200010&pid=S1414-81452013000200010&pdf_path=ean/v17n2/v17n2a10.pdf&lang=pt
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4 Rodrigues AP, Padoim SMM, Guido LA, Lopes LFD. Pre-natal and puerperium factors that interfere on self-efficacy in breastfeeding. Esc Anna Nery [Internet]. 2014 Jun [cited 2016 Mar 01]; 17(2):257-61. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452014000200257&lng=en&nrm=iso&tlng=en
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-55 Ministério da Saúde (BR), Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição. Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno. Brasília (DF): MS; 1991.

Diante dessa problemática, elaborou-se os seguintes objetivos: analisar o processo de implantação do BLH/HUCAM no Estado do Espírito Santo e discutir as implicações dessa implantação para a enfermagem capixaba.

Com essa iniciativa, o presente estudo, cadastrado no Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira (Nuphebras), contribui com a compreensão da inserção da enfermeira nas ações de promoção do aleitamento materno. Desse modo, fortalecendo, igualmente, as iniciativas dirigidas à reconstrução da história da enfermagem no Estado do Espírito Santo, nos aspectos da prática assistencial, articulada com a docência e a pesquisa em enfermagem.

MÉTODO

Trata-se de um estudo qualitativo, do tipo histórico-social. O corpus documental do estudo compôs-se de documentos escritos e depoimentos orais. Os documentos escritos estão constituídos por ofícios, memorandos, portarias, normas e rotinas sobre o funcionamento do serviço de BLH, relacionados ao recorte temporal do estudo. Esses documentos estavam arquivados em pasta-ofício na Divisão de Enfermagem do HUCAM e foram selecionados no período de janeiro a dezembro 2013.

Foram coletados depoimentos orais de oito enfermeiras que atuaram nos serviços de maternidade, unidade de tratamento intensivo neonatal, ambulatórios de pediatria e de ginecologia e obstetrícia do HUCAM. Todas participaram de forma direta ou indireta na implantação do BLH.

No tocante aos depoimentos orais, foi adotado como critérios de inclusão das colaboradoras do estudo: ter atuado nos serviços de maternidade, na unidade de tratamento intensivo neonatal, nos ambulatórios de pediatria, e no de ginecologia e obstetrícia do HUCAM e ter participado direta ou indiretamente da implantação do Banco de Leite, no período de 1993 a 1998. Para o recrutamento dos agentes, em um primeiro momento, realizaram-se buscas nas escalas de serviço dos profissionais de saúde. Após a identificação dos agentes, solicitou-se ao Departamento de Recursos Humanos do hospital, os endereços e contatos telefônicos, segundo os quais foram agendadas as entrevistas.

Na identificação dos depoimentos foi utilizada a letra inicial do nome, autorizada por cada depoente, seguida pelo número correspondente à ordem sequencial das entrevistas. As entrevistas foram gravadas por meio digital e, posteriormente, foram transcritas e validadas pelos agentes, por intermédio da leitura e autorização verbal e escrita para o uso da mesma. O tempo médio das entrevistas foi de duas horas, em locais de escolha das entrevistadas, sendo escolhido predominantemente o domicílio e, em alguns casos, o próprio BLH/HUCAM. As entrevistas realizadas foram norteadas por um roteiro com perguntas abertas sobre o tema em questão. O roteiro abarcou questões gerais para todos os entrevistados, bem como uma cronologia dos acontecimentos ocorridos no período investigado e considerados relevantes em relação ao objeto de estudo.

As fontes secundárias foram constituídas do acervo bibliográfico produzido sobre a temática, para suporte à descrição desta pesquisa. Na análise do corpo documental foram desenvolvidos procedimentos ativos de interrogação dos documentos, numa postura independente da versão oficial, para melhor derivar os achados desses documentos. Para assegurar a confiabilidade dos resultados, foi valorizado o conjunto documental e não os documentos isoladamente.

O cenário foi o Hospital Universitário Cassiano Antônio de Morais, construído em 1938, situado no município de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo. Foi inaugurado em 1942, como Sanatório Getúlio Vargas, sendo cedido, em 1967, à UFES sob a designação de Hospital das Clínicas e, na década de 1980, foi denominado HUCAM, por meio da Resolução n. 12/1980 do Conselho Universitário. Contava à época de sua ampliação, em 1980, com 265 leitos operacionais, sendo a maternidade referência para alto risco, com 40 leitos, 30 de obstetrícia e dez de ginecologia, além da sala de parto com quatro leitos. Possuía uma equipe de enfermagem composta por 48 profissionais de nível médio e três enfermeiras para atender a maternidade, além da equipe que atendia a Unidade de Terapia Intensiva com 24 leitos neonatais.1313 Pontes MB, Santos TCF. A inserção das enfermeiras na implantação das políticas de aleitamento materno: o caso do Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes - HUCAM (1992-1994). Enferm Atual. 2009; 50(2): 13-16.

Os dados foram analisados usando o conceito de conteúdo temático.1616 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo (BR): Hucitec; 2000. O referencial teórico-filosófico de Pierre Bourdieu nos permitiu a compreensão da mediação entre as dimensões objetivas e subjetivas do mundo social, pois a estruturação das práticas das enfermeiras no espaço do hospital na luta pelo reconhecimento de seu capital científico não resultou de processo mecânico de "fora para dentro", tampouco de processo conduzido de forma autônoma pelos sujeitos individuais. O resultado positivo originou-se de estratégias (práticas sociais) estruturadas, consoantes com a posição social de quem as produziu, uma vez que são impregnadas pela subjetividade do indivíduo, suas preferências, aspirações e formas de perceber e apreciar o mundo, enfim, do habitus.1717 Bourdieu P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo (BR): Editora UNESP; 2004.

18 Bourdieu P. Para uma sociologia da ciência. Lisboa (PT): Edições 70; 2004.
-1919 Bourdieu P. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. São Paulo (BR): Zouk; 2004.

Os conceitos de habitus e campo serão usados neste estudo, mais diretamente voltados às ações remissíveis ao "fazer ciência" e aos agentes envolvidos nesse processo. Assim, também é importante o conceito de "capital científico", como uma espécie particular de capital simbólico e os vários usos que, igualmente, variados agentes acabam por fazer das ciências.1717 Bourdieu P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo (BR): Editora UNESP; 2004. Nessa perspectiva, pode-se problematizar um tipo de percepção usual de encarar a produção científica como algo que se origina e se reproduz "em si". Questionando esse tipo de visão, Bourdieu chega à seguinte hipótese: "[...]entre esses dois polos [conteúdo textual de uma produção e contexto social], muito distanciados, entre os quais se supõe, um pouco imprudentemente, que a ligação possa se fazer, existe um universo intermediário, que chamo campo literário, artístico, jurídico ou científico, isto é, o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas. A noção de campo está aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias".18:20

Este estudo foi realizado em conformidade com a Resolução n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UFES com parecer número 970.725 e autorizado pela direção do HUCAM.

RESULTADOS

Implantação do Banco de Leite Humano do Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes e o surgimento de um novo lócus de atuação da enfermeira

A retomada da inserção da enfermeira na assistência direta ao cliente, tendo em vista fortalecer o reconhecimento e o espaço profissional, constituiu recurso de suma importância no planejamento de medidas para incrementar a prática da amamentação. Sem negligenciar a prática administrativa e, associando atividades assistenciais e educativas, algumas enfermeiras buscaram novos caminhos para melhorar sua posição no HUCAM. O depoimento a seguir evidencia a percepção da necessidade de qualificação dessas profissionais para melhor assumirem as ações pró-aleitamento materno: [...] em 1992 já havia no ambulatório do HUCAM, um início de trabalho. Nós estávamos começando a mexer com aleitamento materno... na verdade, o ambulatório de pediatria já tinha um grupo. Quando surge essa neonatologista, que estava vindo transferida da cidade do Rio de Janeiro para a cidade de Vitória, ela fica sabendo de um treinamento na cidade de Santos com três vagas; para ela, para mim e precisava de um profissional da maternidade, que foi uma enfermeira assistencial recém-formada [...] (MC8).

A inserção das enfermeiras no programa de aleitamento materno do HUCAM parece ter começado bem antes da criação do Banco de Leite Humano, como podemos evidenciar nos fragmentos das falas a seguir: [...] eu me lembro que, na década de 1980, lendo um trabalho do professor José Martins, eu me interessei pelo aleitamento materno e fui conhecer em Campinas, seu trabalho [...] Foi uma iniciativa própria por eu achar que precisava de atualização [...] (MC8); [...] eu queria me especializar em obstetrícia e, lendo um edital, vi o primeiro curso de pós-graduação no IFF/RJ [Instituto Fernandes Figueira/ Rio de Janeiro] em Banco de Leite Humano e aleitamento materno [...]. Trabalhava na maternidade e queria fazer algo diferente pelos clientes [...] (MB7).

A apropriação desse capital funcionou como moeda que propicia a quem a detém um poder de influência sobre o campo em questão.1818 Bourdieu P. Para uma sociologia da ciência. Lisboa (PT): Edições 70; 2004.-1919 Bourdieu P. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. São Paulo (BR): Zouk; 2004. Na mesma linha de pensamento, uma das entrevistadas declarou: [...] o trabalho do aleitamento materno para mim foi fundamental, pois me deu este vigor de novo, de trabalhar em equipe [...] (R3).

Observa-se, ainda, na fala da entrevistada, a liderança da enfermeira, no pleito em tela.

[...] na década de 1990, assumi a direção da Divisão de Enfermagem. Me recordo das ações feitas pela maternidade em busca do título Hospital Amigo da Criança [elaboração das normas e rotinas pelas enfermeiras] e me recordo das modificações para a criação do banco de leite humano. Inúmeros memorandos solicitando funcionários para o serviço (E2); Foi uma época de muito trabalho, muitas lutas devido às resistências de inúmeros profissionais [...] (S1).

A iniciativa da criação oficial do BLH/HUCAM resultou na necessidade de reestruturar a área física do Núcleo de Aleitamento Materno (NUAM).2020 Universidade Federal do Espírito Santo. Hospital Universitário Cassiano Antônio de Morais. Memorando, 27 Jul 1995. Diante da necessidade de conquista de um novo espaço, a enfermeira responsável pelo serviço tomou providências no sentido de obter novas instalações, conforme depoimento transcrito a seguir: [...] lembro-me do ofício que a enfermeira fez ao diretor do DAF [Departamento Administrativo e Financeiro] solicitando sala no prédio da pediatria, como área física para implantação do banco de leite [...] (E2).

Outro depoimento é elucidativo no sentido de evidenciar que a conquista do espaço para o BLH representou reconhecimento do trabalho desenvolvido no cotidiano das ações relativas ao aleitamento materno no HUCAM: [...] o BLH não existia. Começa em um espaço bem pequenino, foi crescendo, crescendo. Virou um grande serviço [...] (S4).

A veracidade da informação contida no depoimento supracitado é evidenciada quando, em outubro de 1995, o serviço foi contemplado com a segunda área física, sendo oficialmente reconhecido como um BLH.

Dentre os documentos consultados, o memorando de 12 de julho de 1996, enviado ao Reitor da UFES, deixa claro que houve a participação fundamental dos alunos da Faculdade de Informática no trabalho de informatização do BLH do HUCAM,21 conforme evidenciado no fragmento do depoimento: [...] recordo-me quando a coordenadora do BLH, fez uma parceria com três formandos da Faculdade de Informática para fazerem a informatização do BLH como projeto de Monografia [Trabalho apresentado ao final da graduação] deles. O programa ficou muito bom e até o coordenador da Rede Nacional de BLH veio conhecer [...] (T5).

A incorporação dessa inovação tecnológica estava em consonância com o BLH do Instituto Fernandes Figueiras/FIOCRUZ, serviço de referência nacional, que lançou o primeiro software denominado LacVida. Assim, o BLH do HUCAM, após a obtenção desse recurso para sua informatização. [...] torna-se o primeiro banco de leite no Estado a testar e utilizar o referido software, formalizando um vínculo entre o BLH/HUCAM, BLH/FIOCRUZ e DATA-SUS [...] (MC8).

Com uma área física mais ampla, tornou-se igualmente possível desenvolver as atividades baseadas no tripé constituído pela assistência à gestante e nutriz, processamento de leite humano ordenhado e ensino teórico e prático para a amamentação.

As escalas de serviço elucidam que os profissionais não eram exclusivos para o Banco de Leite, em sua maioria dividiam tarefas entre a maternidade e o BLH. Em 1996, a enfermeira responsável técnica pelo serviço BLH/HUCAM, na Rede Nacional de BLH, foi designada pela Divisão de Enfermagem para assumir exclusivamente a coordenação do serviço de BLH, com a incorporação de mais seis auxiliares de enfermagem na equipe, conforme registro no Livro de Relatório da Divisão de Enfermagem de 1996,2222 Universidade Federal do Espírito Santo. Hospital Universitário Cassiano Antônio de Morais. Livro de Registro da Divisão de Enfermagem, 1996. reforçado pelo depoimento da chefe de enfermagem da época: [...] me recordo como foi difícil liberar a enfermeira para atuar exclusiva no BLH, e nem erámos poucos na época, mas as pessoas não davam valor a este trabalho e achavam que ficariam ociosas [...] (E2).

O reconhecimento do trabalho do BLH no HUCAM também foi extensivo à sociedade e à Secretaria Estadual de Saúde (SESA). Essa assertiva encontra respaldo no fragmento do depoimento abaixo, ao relembrar que a equipe do BLH/HUCAM promovia o treinamento de recursos humanos em todo o Estado, além de ser convidada a opinar em questões relativas à amamentação: [...] o BLH foi crescendo. Inicialmente não tinha muito valor dentro do HUCAM, mas treinávamos os profissionais de instituições da saúde do Estado junto com a SESA [Secretaria de Estado da Saúde]. Qualquer problema com a amamentação o BLH resolvia, e só existia a enfermagem no serviço [...] (T5).

Ademais, constata-se, ainda, a solicitação ao HUCAM para treinamento de funcionários do Hospital Santa Casa de Misericórdia, em 1995. Instituição essa, pioneira no Estado em Banco de Leite Humano: "[...] solicito ao NUAM treinamento da equipe de profissionais da Santa Casa de Misericórdia de Vitória para a IHAC [Iniciativa Hospital Amigo da Criança]".23:3

Não obstante, o BLH/HUCAM apesar de ter capacitado profissionais de diversas instituições, não obteve o título de Banco de Leite Humano de Referência Estadual, que gerou bastante insatisfação na equipe de enfermagem que lá atuava, conforme evidenciado no documento encaminhado pela coordenação do BLH à direção da Divisão de Enfermagem do HUCAM: "[...] Fomos desagradavelmente surpreendidas com a decisão [...] do Sr. Secretário de Saúde do Estado do Espírito Santo, que indicou o BLH do HDDS [Hospital Dr. Dorio Silva.], recém inaugurado, como referência estadual. Nossa surpresa deve-se ao fato de que, "[...] segundo portaria do MS, ser atribuído às unidades que se diferenciam das demais pelas atividades assistenciais e consultoria técnica [...]. Diante dos fatos, a responsável pela coordenação do departamento materno infantil da SESA informou que a decisão teve caráter emergencial[...]".24:5

Embora não tenha sido contemplado com o título de Banco de Leite Humano de Referência do Estado do Espírito Santo, o BLH/HUCAM, concebido dentro da realidade daquele Estado e que prestava assistência gratuita, tornou-se um pronto atendimento no manejo clínico para lactação, promovendo ações coletivas com vistas à educação em saúde, nos seus aspectos de promoção e prevenção, além de comtemplar as ações curativas. Paralelamente, promoveu cursos para gestantes, nutrizes, bem como outros eventos para a comunidade.

O BLH do HUCAM foi percebido pelas enfermeiras como um espaço em que a sua autoridade científica nas questões relativas ao aleitamento materno foi reconhecido por seus pares no interior do hospital e pela sociedade do Espírito Santo em geral: [...] foi um ganho muito grande para nós enfermeiros, pois tivemos a oportunidade de ajudar as mães e ver um retorno positivo. Fomos muito valorizados por estas mulheres, fizemos muitas modificações nas rotinas [...] (ML6).

Observa-se em consulta aos registros nos relatórios do HUCAM que, no ano de 1997, apesar da redução de funcionários pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), o HUCAM conseguiu ter um período de significativa evolução institucional, técnico-científica e, também, gerencial, pois se ampliaram as consultas ambulatoriais e houve aumento expressivo da demanda de internação na maternidade e na ginecologia e pediatria, contribuindo para a visibilidade das ações do BLH. É pertinente registrar que em 1997 o BLH incorporou novos servidores de nível médio e mais uma enfermeira assistencial, totalizando uma equipe de dez profissionais: duas enfermeiras, cinco auxiliares e três técnicos de enfermagem. Nesse mesmo período, sua área física passou por sucessivas modificações com vistas ao desenvolvimento de suas atividades.1313 Pontes MB, Santos TCF. A inserção das enfermeiras na implantação das políticas de aleitamento materno: o caso do Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes - HUCAM (1992-1994). Enferm Atual. 2009; 50(2): 13-16.

Os investimentos realizados em área física e infraestrutura do BLH/HUCAM culminaram na construção da terceira e atual área física desse setor, em parceria com o Banco do Brasil, inaugurada no ano de 2000.

DISCUSSÃO

Os serviços de saúde, até 1980, atuavam de maneira desfavorável ao aleitamento materno, desencadeando novos debates quanto ao papel do profissional de saúde. A necessidade de ampliação do número de BLH, no Brasil, trouxe à tona a carência de domínio científico nessa área. As autoridades nacionais e internacionais se dedicaram à busca de estratégias de incentivo à amamentação em serviços de saúde e hospitais. Nesse sentido, o Ministério da Saúde disponibilizou cursos de amamentação para todo o Brasil, principalmente a partir de 1985.1313 Pontes MB, Santos TCF. A inserção das enfermeiras na implantação das políticas de aleitamento materno: o caso do Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes - HUCAM (1992-1994). Enferm Atual. 2009; 50(2): 13-16.

Vale ressaltar que a enfermagem no HUCAM, na década de 1990, não era diferente das demais regiões brasileiras, pois as enfermeiras eram preparadas para assumir posições de chefia, ficando responsáveis por inúmeras atividades de cunho administrativo e bastante distante do cuidado direto ao cliente. Priorizavam funções relacionadas à manutenção do hospital e aos cumprimentos de normas e rotinas, ao invés da assistência clínica. Essa subutilização das enfermeiras legitimou um poder social ligado às posições estratégicas de força dentro de um campo científico que fez com que essas delegassem suas funções assistenciais para outras categorias profissionais da enfermagem.1313 Pontes MB, Santos TCF. A inserção das enfermeiras na implantação das políticas de aleitamento materno: o caso do Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes - HUCAM (1992-1994). Enferm Atual. 2009; 50(2): 13-16.

A busca por capital científico foi apontada pelas enfermeiras como justificativa para obtenção de reconhecimento profissional e, certamente, com respaldo na assertiva de que as pessoas se distribuem no campo, conforme o volume do capital e o peso desse capital.

Em 1993, o Instituto Fernandez Figueira (IFF/FIOCRUZ-RJ) ofereceu um curso de especialização lato sensu em Aleitamento Materno e Banco de Leite Humano. A participação de uma enfermeira, nesse curso, foi fundamental para a capitalização de conhecimento especializado e, com isso, teve atuação destacada na implantação do BLH no HUCAM. Esse processo contou com o apoio do BLH de Referência Nacional, conforme fragmentos: "[...] tendo em vista a recente formação do Núcleo de Aleitamento Materno [NUAM] da Universidade Federal do Espírito Santo [...] vimos por intermédio deste manifestar interesse de enviar um representante do NUAM para o curso oferecido por sua Instituição [...]".25:4

O reconhecimento da necessidade de uma profissional enfermeira acumular capital científico para atuar na implantação do BLH é exemplar no sentido de evidenciar que a posição na estrutura das relações de força que definem o campo, ou seja, a estrutura da distribuição de capital específico é orientada por uma avaliação consciente das oportunidades objetivas de lucros, pois "[..] a estrutura do campo é, grosso modo, determinada pela distribuição de capital científico num dado momento".17:20 Cumpre ainda assinalar que o curso de especialização em aleitamento materno e banco de leite humano foi oferecido apenas uma vez no Brasil. Participaram desse curso seis profissionais de saúde, entre eles três enfermeiras, sendo uma delas do HUCAM.1313 Pontes MB, Santos TCF. A inserção das enfermeiras na implantação das políticas de aleitamento materno: o caso do Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes - HUCAM (1992-1994). Enferm Atual. 2009; 50(2): 13-16.

O BLH do HUCAM foi idealizado em 1993, em parceria com a UFES, por meio do estágio de enfermagem em pediatria. Nessa parceria, coordenada pela professora do Departamento de Enfermagem da UFES, especialista em enfermagem pediátrica, criou-se como campo de estágio o ambulatório de amamentação que, com sua ampliação, tornou-se em 2 de junho de 1993, o NUAM, que estendeu suas atividades do nível ambulatorial para o hospitalar.1313 Pontes MB, Santos TCF. A inserção das enfermeiras na implantação das políticas de aleitamento materno: o caso do Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes - HUCAM (1992-1994). Enferm Atual. 2009; 50(2): 13-16.,2525 Universidade Federal do Espírito Santo. Pró - Reitoria de Extensão. Ofício n./93 - PROEXT. Pró - Reitoria de Extensão. Oficio n./93 - PROEXT. Vitória (ES), 26 Jun 1986.

Os registros mostram que a criação do NUAM se deu como um importante evento no âmbito da universidade, cuja solenidade aconteceu no auditório do IC2, com a presença do reitor à época, do representante da UNICEF, dos secretários de saúde estadual e municipais, dos prefeitos de três municípios, dos chefes de departamento do hospital, dos docentes dos cursos de medicina, enfermagem e odontologia da UFES e dos profissionais técnico administrativos.2121 Universidade Federal do Espírito Santo. Hospital Universitário Cassiano Antônio de Morais. Memorando, 12 Jul 1996.

Esse evento social configura-se um reflexo de poder simbólico para a enfermagem do HUCAM, por reunir pela primeira vez nesse hospital, em um evento materno-infantil, autoridades e demais profissionais, fortalecendo e tornando-se um vetor de reprodução e perpetuação da dominação. A presença de ilustres agentes ressignificou o aleitamento materno, uma vez que temos os fatos sociais como produto de um meio social que jamais são neutros, mas é onde se pode perceber que a hierarquia e o poder sempre estarão presentes. Os fatos científicos são interpretados como sociais, negociados dentro de um campo (científico) de lutas, por meio de seu capital científico.1717 Bourdieu P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo (BR): Editora UNESP; 2004.

18 Bourdieu P. Para uma sociologia da ciência. Lisboa (PT): Edições 70; 2004.
-1919 Bourdieu P. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. São Paulo (BR): Zouk; 2004.

O BLH/HUCAM foi o terceiro serviço dessa natureza a ser criado no Estado do Espírito Santo/Brasil, no ano de 1994, sendo o único no Estado a ter uma enfermeira como responsável técnica na Rede Nacional de BLH. É pertinente acrescentar que a posição ocupada pela enfermeira no âmbito da Rede expressa o reconhecimento de sua autoridade científica no trato das questões relativas ao aleitamento materno no espaço do HUCAM.

Em outro depoimento, ficou explícito que a obtenção do espaço para o BLH/HUCAM se fez mediante muitas lutas da equipe. A apropriação desse capital funcionou como moeda que propicia a quem a detém um poder de influência sobre o campo em questão.1818 Bourdieu P. Para uma sociologia da ciência. Lisboa (PT): Edições 70; 2004.-1919 Bourdieu P. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. São Paulo (BR): Zouk; 2004.

A conquista de novo espaço para funcionamento desse serviço, aliada à sua oficialização, consagra nova ordem nas ações de aleitamento materno e, por conseguinte, a reordenação de posições e poder no interior do HUCAM. Numa tentativa de análise, cumpre recordar que "[...] o princípio da eficácia de todos os atos de consagração, não é outro, se não o próprio campo".19:25

Após instalação de área física em melhores condições, embora ainda não ideal, a enfermeira do BLH/HUCAM conseguiu obter materiais permanentes e equipamentos, como computadores, vidrarias, maquinários e mobílias através da direção do HUCAM, da Reitoria da UFES e de doações de instituições privadas.

As novas instalações do BLH/HUCAM foram implantadas em áreas de destaque na estrutura do HUCAM, evidenciando o prestígio atribuído a este espaço e, por extensão, aos agentes que ocupavam o mesmo.1111 Nisi GD, Arslanoglu S, Ambruzzi AM, Biasini A, Profeti C, Tonetto P, et al. Survey of Italian human milk banks. Journal of Human Lactation. J Hum Lact [Internet]. 2015 Feb [cited 2016 Mar 28]; 31(2):294-300. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25722356
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Essa interpretação ganha contornos mais expressivos quando se tem em mente que a enfermeira responsável pelo BLH/HUCAM permaneceu na liderança do serviço, mesmo após a utilização de um novo espaço e a chegada de uma médica para o serviço, o que traduzia um ganho simbólico para a enfermagem do HUCAM. Note-se que os espaços apropriados pelos agentes constituem propriedades que o situam e têm valor simbólico no espaço social, pois "[...] o espaço é um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce".19:154-5 Podemos inferir que, para os enfermeiros em particular, o BLH/HUCAM foi o campo de maior expressão da enfermagem no Estado do Espírito Santo em relação à autoridade do conhecimento, na medida em que, nesse setor, o seu trabalho técnico foi reconhecido dentro da equipe de saúde e da sociedade civil.

O reconhecimento acerca da importância desse serviço pela sociedade se deu, em parte, em função da importância do leite materno e da amamentação, transmitido por mulheres de uma geração a outra, levando-as a superar dificuldades.2626 Moreira MA, Nascimento ER, Paiva MS. Social representations concerning the breastfeeding practices of women from three generations. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2013 Jun [cited 2015 Sep 05]; 22(2):433-41. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072013000200020&lng=pt&nrm=iso&tlng=en
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Logo, para aquelas crianças que, por diferentes situações, não podiam contar com leite materno por meio da amamentação, tinham no BLH a alternativa para obter o leite materno e seus benefícios.

CONCLUSÃO

Este estudo mostrou que, em sua trajetória, o HUCAM alcançou êxito na implantação de um BLH, o que constitui historicamente um importante ganho para o Estado do Espírito Santo, pois o BLH reflete uma política pública que trata das questões relativas à amamentação e visa melhorar as condições de saúde materno-infantil.

É muito importante acrescentar que a criação de um BLH, ligado ao Ministério da Saúde, representou relevante conquista para o HUCAM. O processo de implantação BLH/HUCAM fomentou uma política institucional que se configurou como ganho simbólico para a enfermagem, onde se manteve uma enfermeira na sua coordenação, mesmo quando o olhar da amamentação no campo científico mudou seu foco. Dessa forma, uma enfermeira permaneceu no BLH/HUCAM como porta-voz autorizada de sua equipe, o que se configurou como importante ganho para a enfermagem.

Constatamos que a trajetória do BLH/HUCAM demonstra que esse setor foi e ainda é um espaço de atuação da enfermagem que incentiva e promove o aleitamento materno por meio das mais variadas ações clínicas e educativas, além da coleta, processamento e distribuição do leite humano pasteurizado com garantia de um controle de qualidade. Assim, o reconhecimento do papel do enfermeiro nas ações de aleitamento materno, materializado pela criação do Banco de Leite, deu visibilidade à atuação do enfermeiro, mediante sua autoridade profissional no sentido de enunciar o discurso legítimo nas questões inerentes à amamentação.

Foi possível constatar que a enfermagem implementou novas formas de cuidar, particularmente no cenário do aleitamento materno, buscando novos saberes, práticas e soluções frente às causas do desmame precoce, ou seja, houve a reatualização do habitus profissional e ocuparam um espaço, a princípio, desvalorizado pelas demais equipes de saúde. Ao superar uma filosofia burocrática de trabalho, orientada para atender a um modelo curativista/intervencionista e assumir uma visão fisiológica do assistir, as enfermeiras demonstraram plena capacidade para adaptar-se a mudanças.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2015
  • Aceito
    24 Maio 2016
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