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O PROTAGONISMO DE MULHERES IDOSAS NA DENÚNCIA DA VIOLÊNCIA: UMA TEORIA FUNDAMENTADA

RESUMO

Objetivo:

interpretar a vivência do empoderamento de idosas para realização da denúncia de violência intrafamiliar e desenvolver modelo teórico que o explicite.

Método:

estudo qualitativo, realizado por meio da Teoria Fundamentada nos Dados. Entre os meses de fevereiro de 2018 e janeiro de 2020, realizaram-se entrevistas semiestruturada com 21 idosas que registraram Boletins de Ocorrência. Também, entrevistaram-se nove profissionais atuantes em Delegacia de Defesa da Mulher da Polícia Civil do Estado de São Paulo, Brasil, localizada em município de médio porte do interior paulista.

Resultados:

o fenômeno identificado “Protagonizando o enfrentamento da violência”, a partir das categorias, revelou que as mulheres idosas vivenciam múltiplas condições de vulnerabilidade decorrentes da situação de dependência, conflitos nas relações e condições de vida desfavoráveis, mesmo assim, os impactos dessa violência geram a necessidade de tomada de atitude frente a ela e ao empoderamento para a denúncia. Após a denúncia, vivenciam a complexidade da mesma e encontram formas para lidar com a situação.

Conclusão:

a realização da denúncia de violência por mulheres idosas deriva do processo de empoderamento individual, impulsionado pela decisão em interromper os abusos, mesmo com possíveis consequências, despertando, assim, consciência crítica a partir da autopercepção do contexto de vida.

DESCRITORES:
Abuso de idosos; Notificação de abuso; Notificação; Violência contra a mulher; Envelhecimento; Empoderamento

ABSTRACT

Objective:

to interpret the experience of empowering elderly women to report domestic violence and develop a theoretical model that explains it.

Method:

a qualitative study, carried out using Grounded Theory. Between February 2018 and January 2020, semi-structured interviews were conducted with 21 elderly women who filed police reports. Also, nine professionals working at the Women’s Defense Station of the Civil Police of the State of São Paulo, Brazil, located in a medium-sized city in the countryside of São Paulo, were interviewed.

Results:

the phenomenon identified as “Taking the lead in coping with violence”, based on the categories, revealed that elderly women experience multiple conditions of vulnerability resulting from the situation of dependency, conflicts in relationships and unfavorable living conditions. Even so, the impacts of this violence generate the need to take action against it and to be empowered to report it. After reporting it, they experience the complexity of it and find ways to deal with the situation.

Conclusion:

violence reporting by elderly women derives from the individual empowerment process, driven by the decision to stop the abuse, even with possible consequences, thus awakening critical awareness based on self-perception of the context of life.

DESCRIPTORS:
Elder abuse; Mandatory reporting; Notification; Violence against women; Aging; Empowerment

RESUMEN

Objetivo:

interpretar la experiencia de empoderamiento de mujeres mayores para denunciar la violencia intrafamiliar y desarrollar un modelo teórico que la explique.

Método:

estudio cualitativo, realizado utilizando la Teoría Fundamentada. Entre los meses de febrero de 2018 y enero de 2020 se realizaron entrevistas semiestructuradas a 21 ancianas que registraron denuncias policiales. También fueron entrevistados nueve profesionales que trabajan en la Estación de Defensa de la Mujer de la Policía Civil del Estado de São Paulo, Brasil, ubicada en un municipio mediano del interior de São Paulo.

Resultados:

el fenómeno identificado “Iniciando la lucha contra la violencia”, a partir de las categorías, reveló que las mujeres adultas mayores viven múltiples condiciones de vulnerabilidad derivadas de la situación de dependencia, conflictos en las relaciones de pareja y condiciones de vida desfavorables, aun así, los impactos de esta violencia generan la necesidad de tomar acciones frente a ella y empoderarse para denunciarla. Después de la denuncia, experimentan su complejidad y encuentran formas de afrontar la situación.

Conclusión:

la denuncia de la violencia por parte de mujeres mayores deriva del proceso de empoderamiento individual, impulsado por la decisión de detener el abuso, incluso con posibles consecuencias, despertando así una conciencia crítica basada en la autopercepción del contexto de vida.

DESCRIPTORES:
Abuso de ancianos; Notificación obligatoria; Notificación; Violencia contra la mujer; Envejecimiento; Empoderamiento

INTRODUÇÃO

O envelhecimento é responsável por profundas transformações sociais e econômicas em todo o mundo. Embora vivenciado de forma gradual por países desenvolvidos, ocorreu de modo rápido e desordenado em países como o Brasil11. Wang S. Spatial Patterns and Social-Economic Influential Factors of Population Aging: A Global Assessment from 1990 to 2010. Soc Sci Med [Internet]. 2020 [cited 2023 Aug 20];253:112963. Available from: https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2020.112963
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. Esse modo, somadas às alterações morfofisiológicas, psicológicas e sociais do envelhecimento, geraram transformações que fazem da velhice período de maior vulnerabilidade, acentuado por doenças, pobreza, marginalização e isolamento.

Em razão da maior longevidade e perpetuação das desigualdades sociais entre homens e mulheres, é possível observar grande suscetibilidade à fragilidade em mulheres idosas. Assim, associadas a fatores socioculturais, essas condições aumentam a vulnerabilidade dessa parcela populacional a fenômenos como a violência22. Mrejen M, Nunes L, Giacomin K. Envelhecimento populacional e saúde dos idosos: O Brasil está preparado? Estudo Institucional n.10 [Internet]. São Paulo, SP(BR): Instituto de Estudos para Políticas de Saúde; 2023 [cited 2024 Feb 25]. Available from: https://ieps.org.br/estudo-institucional-10/
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A violência é um tema que ultrapassa a esfera judicial, com impactos diretos à saúde pública, acompanhando a história dos seres humanos e das sociedades. Em diferentes formas de manifestação, sofre influência de fatores sociais, culturais, econômicos e políticos33. Rivara F, Adhia A, Lyons V, Massey A, Mills B, Morgan E, et al. The Effects of Violence on Health. Health Aff [Internet]. 2019 [cited 2023 Aug 20];38(10):1622-9. Available from: https://doi.org/10.1377/hlthaff.2019.00480
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. É conceituada internacionalmente pelo uso premeditado de poder ou força física, real ou por coação, contra um indivíduo, grupo ou comunidade, resultando em danos físicos e psicológicos, desenvolvimento anormal, privação ou morte44. World Health Organization (WHO). Global Status Report on Violence Prevention 2014 [Internet]. 2014 [cited 2023 Aug 11]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789241564793
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Embora a maior incidência de violência, por diversos determinantes, esteja relacionada aos homens, mulheres vivenciam a violência não letal em diferentes níveis de gravidade e complexidade, impactando vidas e condições de saúde. Estima-se que 80% das vítimas de violência familiar e por parceiro íntimo sejam do sexo feminino, observando-se maior susceptibilidade à reincidência das agressões pelo mesmo perpetrador55. Decker MR, Wilcox HC, Holliday CN, Webster DW. An Integrated Public Health Approach to Interpersonal Violence and Suicide Prevention and Response. Public Health Rep [Internet]. 2018 [cited 2023 Jul 16];133(1):65S-79S. Available from: https://doi.org/10.1177/0033354918800019
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Contudo, a coexistência de elementos associados à diferença entre os gêneros implica altos índices de subnotificação. Em geral,39,86% das mulheres vítimas de violência reportam situações de abuso físico e sexual e apenas 7,09% realizam a denúncia a fontes oficiais, como polícia, serviços de saúde e assistência social. Ao considerar as manifestações não físicas da violência, essa proporção de denúncia é ainda menor66. Palermo T, Bleck J, Peterman A. Tip of the Iceberg: Reporting and Gender-Based Violence in Developing Countries. Am J Epidemiol [Internet]. 2014 [cited 2023 Jul 16];179(5):602-12. Available from: https://doi.org/10.1093/aje/kwt295
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Na velhice, esses elementos se somam às alterações e à ressignificação das experiências, a partir de alterações internas e sociais promovidas ao longo da vida. Neste contexto, é possível observar que a violência nessa fase é, muitas vezes, invisibilizada até por movimentos sociais, ignorando a interseccionalidade entre gênero e questões geracionais. Deste modo, ao passo que a violência contra mulheres jovens é analisada a partir da construção dos papéis sociais, em idosas, as disparidades entre homens e mulheres são menos valorizadas77. Ramos Bonilla G. Una revisión sistemática de literatura sobre la violencia contra mujeres mayores en América Latina y el Caribe: ¿se ha alcanzado una perspectiva interseccional? Anthropologica [Internet]. 2021 [cited 2023 Jul 16];39(47):29-71. Available from: https://doi.org/10.18800/anthropologica.202102.002
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Destaca-se, ainda, que, além da invisibilidade social do problema, diferentes condições vivenciadas por mulheres idosas implicam o silenciamento da violência. Embora experenciem décadas de abusos, apresentam dificuldades em significar e denunciar formalmente a agressão88. Damaceno DG, Alarcon MFS, Sponchiado VBY, Chirelli MQ, Marin MJS, Ghezzi JFSA. Mulheres idosas vítimas de violência: O protagonismo nas denúncias. Ex Aequo [Internet]. 2020 [cited 2023 Jul 16];41:61-70. Available from: https://doi.org/10.22355/exaequo.2020.41.04
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. Assim, o enfrentamento da violência por essa população requer o desenvolvimento de ações que impulsionem a transformação de condições de vulnerabilidade à violência, apoiando-as nessa tomada de decisão99. Goldblatt H, Band-Winterstein T, Lev S, Harel D. “Who Would Sexually Assault an 80-Year-Old Woman?” Barriers to Exploring and Exposing Sexual Assault Against Women in Late Life. J Interpers Violence [Internet]. 2020 [cited 2023 Sep 11];37(5-6):2751-75. Available from: https://doi.org/10.1177/0886260520934440
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Nesse sentido, o investimento no empoderamento dessa população se mostra fundamental ao enfrentamento, o que envolve o desenvolvimento da consciência crítica acerca da realidade individual, desigualdades de poder e da capacidade de mobilização.

Embora seja possível observar a tendência de desenvolvimento de estudos sobre a violência contra as mulheres, casos relacionados às mulheres idosas recebem pouca atenção na literatura científica, especialmente considerando as possibilidades de enfrentamento da situação1010. Hoppe SJ. Traditional Values and Domestic Violence: An Examination of Older Women’s Attitudes and the Ability to Care for Oneself. J Elder Abuse Negl [Internet]. 2020 [cited 2024 Feb 25];32(5):471-88. Available from: https://doi.org/10.1080/08946566.2020.1830216
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,1111. Meyer SR, Lasater ME, García-Moreno C. Violence Against Older Women: A Systematic Review of Qualitative Literature. PLoS One [Internet]. 2020 [cited 2024 Feb 25];15(9):e0239560. Available from: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0239560
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. Assim, este estudo partiu do questionamento: como as mulheres idosas vivenciam o protagonismo na denúncia de violência intrafamiliar? Logo, a presente investigação objetivou interpretar a vivência do empoderamento e desenvolver modelo teórico que o explicite.

MÉTODO

Trata-se de pesquisa qualitativa, de abordagem interpretativa, realizada por meio da Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), na vertente straussiana, que visa explicar os fenômenos por meio das experiências dos indivíduos, extraindo percepções, sentidos e interações sociais. Nesta abordagem, consideram-se a dimensão humana e os aspectos sociais que se relacionam, possibilitando a elaboração de teoria explicativa que emerge das relações estabelecidas entre os diferentes conceitos descobertos por meio de procedimentos sistemáticos de coleta e análise de dados ancorados nos preceitos do interacionismo simbólico1212. Strauss A, Corbin J. Pesquisa Qualitativa: Técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2nd ed. Porto Alegre, RS(BR): Artmed; 2008..

A pesquisa teve como cenário uma Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), da Seccional da Polícia Civil do Estado de São Paulo, de um município com população estimada de 238.602 habitantes, sendo 52,11% do sexo feminino. Com 19,3% da população total composta por pessoas idosas, apresenta Índice de Envelhecimento (IE) de 76,81313. Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE). Painel SEADE população: Projeção da População [Internet]. 2023 [cited 2024 Feb 25]. Available from: https://populacao.seade.gov.br/
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Na TFD, a coleta de dados foi realizada por meio da amostragem teórica, que possibilitou o desenvolvimento de conceitos que direcionaram os pesquisadores a novos questionamentos e elaboração de hipóteses que foram respondidas na nova coleta de dados. Portanto, a análise dos dados determinou o tamanho da amostra1212. Strauss A, Corbin J. Pesquisa Qualitativa: Técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2nd ed. Porto Alegre, RS(BR): Artmed; 2008..

O grupo amostral foi definido durante o percurso da coleta de dados e a análise realizada até emergir as hipóteses aprofundadas durante as coletas subsequentes. Na presente investigação, a amostra teórica foi composta por três grupos amostrais e 30 participantes (Figura 1).

Figura 1 -
Amostragem teórica. Marília, São Paulo, 2022.

Ao considerar o objetivo do estudo, a seleção dos participantes que integraram o primeiro e segundo grupos amostrais utilizou como critério de inclusão: ter mais de 60 anos, ter sido atendida por profissionais da DDM e ter sofrido algum tipo de violência. Excluíram-se mulheres com impossibilidade de comunicação verbal e déficit cognitivo que prejudicassem a realização das entrevistas identificados no atendimento inicial da pesquisadora ou equipe de pesquisa. O terceiro grupo amostral foi composto pelos profissionais da DDM, sendo considerado como critério de inclusão: estar lotado na DDM, durante o período da coleta, e atender diretamente mulheres idosas em situação de violência. Para este grupo, excluíram-se aqueles com menos de seis meses de atuação no local.

A inclusão dos participantes do primeiro grupo amostral, após aprovação ética, ocorreu por indicação dos profissionais da DDM. As primeiras entrevistas foram conduzidas com mulheres cujos filhos/netos foram os agressores (12 idosas). Em seguida, por meio do processo de análise comparativa constante, foi possível elaborar a hipótese: “A vivência da denúncia se diferencia a depender do tipo de relação com o agressor”, que apontou a necessidade de continuidade da investigação, direcionando para o segundo grupo amostral. Assim, a amostragem foi realizada de maneira intencional, com a seleção das participantes feita pelos profissionais da delegacia. Não ocorreram recusas, porém uma entrevista foi excluída, devido ao déficit cognitivo apresentado por uma idosa, o que inviabilizou a realização.

Ao seguir a coleta e análise de dados contínua, a hipótese “a interação vítima-profissional da delegacia de polícia se apresenta como uma variável importante para a realização ou não do registro da ocorrência” conduziu para o terceiro grupo amostral, composto pelos profissionais da DDM. Essa hipótese emergiu das entrevistas, uma vez que a maioria das idosas vivenciaram o enfrentamento da violência de modo solitário e oculto da família e amigos, devido a sentimentos como vergonha e culpa. Portanto, o tratamento e o estabelecimento de relação de confiança entre as idosas e os profissionais da delegacia interferiram no registro de denúncia. Para a composição desse grupo amostral, entrevistaram-se os profissionais do serviço, não houve exclusões e recusas.

Os dados foram coletados de fevereiro de 2018 a janeiro de 2020 por duas doutorandas experientes em pesquisa qualitativa, contando com o auxílio de uma assistente técnica bolsista e da supervisora a qual também é pesquisadora experiente. As pesquisadoras, então, acompanharam os profissionais da delegacia, durante as investigações, como forma de aculturação no cenário estudado.

A coleta de dados ocorreu, após o aceite das participantes, por meio de entrevista individual, em sala privativa na delegacia. O local, a data e o horário foram estabelecidos previamente pelas participantes e confirmados com antecedência em contato telefônico.

Para caracterizar os participantes dos diferentes grupos amostrais, utilizou-se de questionário contendo dados socioeconômicos e informações sobre a relação vítima-agressor. Para as entrevistas com as idosas, empregou-se roteiro semiestruturado com as seguintes perguntas: como ocorreu a denúncia da violência? Quais foram os motivos que levaram à decisão de denunciar? Como foi para a senhora realizar essa denúncia? Qual foi o significado de enfrentar essa situação? No terceiro grupo amostral, o enfoque foi dado às indagações: de que forma as denúncias de violência são feitas por mulheres idosas? Existem diferenças na realização e no atendimento entre mulheres idosas e jovens? Quais são essas diferenças e por que ocorrem?

As entrevistas nos três grupos amostrais foram registradas em áudio gravado, transcritas na íntegra e analisadas, respeitando a circularidade dos dados e o método de comparação constante. Cada entrevista teve a duração média de 35 minutos (50 minutos das idosas e 20 minutos dos profissionais). A saturação dos dados foi alcançada quando se observaram a repetição dos dados e a ausência de novas informações relevantes para responder ao objetivo do estudo1414. Belgrave LL, Seide K. Grounded Theory Methodology: Principles and Practices. In: Liamputtong P, editor. Handbook of Research Methods in Health Social Sciences [Internet]. Singapore: Springer; 2019 [cited 2023 Aug 30]. p.299-316. Available from: https://doi.org/10.1007/978-981-10-5251-4_84
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O material obtido foi organizado e codificado com o apoio do software NVivo, versão 11 Plus, o que contribuiu com o processo de análise dos dados. Na vertente straussiana da TFD, o processo de análise dos dados ocorre em fluxo contínuo, flexível e circular, sendo dividido em três fases: codificação aberta, axial e seletiva1212. Strauss A, Corbin J. Pesquisa Qualitativa: Técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2nd ed. Porto Alegre, RS(BR): Artmed; 2008.,1414. Belgrave LL, Seide K. Grounded Theory Methodology: Principles and Practices. In: Liamputtong P, editor. Handbook of Research Methods in Health Social Sciences [Internet]. Singapore: Springer; 2019 [cited 2023 Aug 30]. p.299-316. Available from: https://doi.org/10.1007/978-981-10-5251-4_84
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Na codificação aberta, os dados são analisados minuciosamente para identificar dimensões e propriedades dos conceitos, além de nomear códigos substantivos. A codificação axial envolve o reagrupamento dos dados ao relacionar categorias e subcategorias. Na etapa de codificação seletiva, as categorias emergentes são refinadas e comparadas, buscando identificar a categoria central ou fenômeno. Nessa fase, os conceitos foram conectados à categoria central para permitir a análise das relações12,12. Strauss A, Corbin J. Pesquisa Qualitativa: Técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2nd ed. Porto Alegre, RS(BR): Artmed; 2008. 1515. Velloso ISC, Tizzoni JS. Critérios e estratégias de qualidade e rigor na pesquisa qualitativa. Cienc Enferm [Internet]. 2020 [cited 2023 Aug 30];26:28. Available from: https://doi.org/10.29393/CE26-22CEIS20022
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Na abordagem straussiana, apresenta-se um modelo que identifica o fenômeno central, o contexto, as condições intervenientes e causais, as estratégias e consequências1212. Strauss A, Corbin J. Pesquisa Qualitativa: Técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2nd ed. Porto Alegre, RS(BR): Artmed; 2008..

A confiabilidade da presente investigação foi alcançada por meio dos critérios de credibilidade, transferibilidade, dependabilidade e confirmabilidade. Neste estudo, a validação da interpretação dos dados ocorreu por meio do retorno e dos contatos subsequentes com as idosas entrevistadas, apresentação das análises preliminares em congresso internacional, validação com o grupo de pesquisadores envolvidos e validação da teoria com os profissionais da delegacia que fizeram parte do estudo, por meio de apresentação dos resultados e reflexões acerca das interrelações que culminaram no modelo teórico, o que foi realizado em maio de 2022, afirmando a credibilidade1515. Velloso ISC, Tizzoni JS. Critérios e estratégias de qualidade e rigor na pesquisa qualitativa. Cienc Enferm [Internet]. 2020 [cited 2023 Aug 30];26:28. Available from: https://doi.org/10.29393/CE26-22CEIS20022
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A transferibilidade foi assegurada por meio da clara explicação do contexto investigado, incluindo as descrições dos participantes e do cenário de pesquisa. A dependabilidade foi obtida a partir da descrição rigorosa de cada etapa do percurso da presente investigação. Por fim, a confirmabilidade foi alcançada por meio da verificação gradativa, durante a coleta de dados, corrigindo e minimizando possíveis vieses e suposições da pesquisadora principal1515. Velloso ISC, Tizzoni JS. Critérios e estratégias de qualidade e rigor na pesquisa qualitativa. Cienc Enferm [Internet]. 2020 [cited 2023 Aug 30];26:28. Available from: https://doi.org/10.29393/CE26-22CEIS20022
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A pesquisa contou com a autorização da direção administrativa da Delegacia Seccional da Polícia, sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da instituição proponente. Na apresentação dos dados, visando preservar o anonimato, as idosas foram identificadas pela letra I, e os profissionais da Polícia Civil por PC, seguida do numeral que representa a ordem da entrevista. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), respeitando os preceitos da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.

RESULTADOS

A pesquisa incluiu 30 participantes, sendo 21 idosas e nove profissionais da DDM. A maioria das idosas estavam na faixa etária de 60-64 anos, eram iletradas ou com ensino fundamental incompleto, aposentadas e casadas ou amasiadas. Quanto à relação com o agressor: a maioria era mães ou avós (doze), parceiras/cônjuge (seis) e as demais (três) apresentavam outro tipo de relação próxima aos agressores.

No tocante aos profissionais da delegacia que compuseram o terceiro grupo amostral, a maioria era do gênero mulher, formado em direito, na faixa etária dos 30-35 anos e atuavam na delegacia de defesa da mulher há pelo menos nove meses.

A análise e integração dos dados possibilitaram a compreensão acerca das dimensões que envolvem o processo de denúncia de violência interpessoal por mulheres idosas, revelando o fenômeno “Protagonizando o enfrentamento da violência”. Esse fenômeno se relaciona a cinco categorias e 14 subcategorias as quais foram organizadas por meio da conexão entre os componentes paradigmáticos, contexto, condições causais e intervenientes, estratégias e consequências, conforme apresentado na Figura 2.

Figura 2 -
Diagrama integrativo do fenômeno “Protagonizando o enfrentamento da violência”. Marília, SP, Brasil, 2022.

O fenômeno “Protagonizando o enfrentamento da violência” revela que a vivência da denúncia de violência por mulheres idosas deriva do processo de empoderamento individual, sendo evidenciada a interdependência entre os significados atribuídos ao papel social (mulher, esposa, mãe, avó) e o enfrentamento da situação de violência. A decisão em interromper os abusos e, consequentemente, a realização da denúncia de, mesmo com possíveis consequências, apresentam-se, portanto, intimamente conectadas ao despertar de uma consciência crítica, a partir da autopercepção do contexto de vida e da tomada de decisão de que não quer mais vivenciar os abusos, considerando força, necessidade de sobrevivência e independência construídas no próprio processo de envelhecimento. Assim, essa tomada de decisão decorre da junção de diferentes elementos empoderadores que a fortalecem para retomada do protagonismo da própria vida.

O empoderamento para realização da denúncia, neste sentido, origina-se da intersecção do amadurecimento do papel e da identidade enquanto mulher, proporcionado pelo envelhecimento, e do estabelecimento de uma rede social que apoia e valida o posicionamento frente à violência. Contudo, frente à inexistência de uma rede de apoio sólida, a “função social” enquanto mãe/avó, esposa e relações de interdependência com o agressor fortalecidas pelo patriarcado, acarretam a manutenção da vulnerabilidade a novas situações de violência. Deste modo, embora a denúncia represente a retomada da autonomia, as interações com os indivíduos que compõem a rede de relações e a construção da identidade social implicam a perpetuação das situações abusivas, ainda que sob novas formas de manifestação.

Na categoria Vivenciando múltiplas condições de vulnerabilidade para a violência”, observa-se que essas mulheres comumente vivenciam relações de dependência com o agressor, tanto financeira como de cuidados e, por vezes, também é a pessoa responsável pelo cuidado do agressor, como demonstrado na subcategoria “Apresentando condições de dependência”.

Ele que cuida de mim. Se eu tirar ele daqui, fica pior, porque quem que me leva na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) (I16);

Desde quando nasceu, ele [agressor] nunca teve saúde, foi devido ao meu marido judiar muito de mim, então, diz que passa tudo para criança. Ele judiava muito, então, eu chorava muito e era muito deprimida, até hoje eu sou. Então, diz que sai tudo na criança. (I3).

É possível identificar, ainda, a existência de relações familiares conflituosas e que essas mulheres viveram condições desfavoráveis ao longo das vidas, apresentado pelas subcategorias “Experenciando relações familiares conflituosas” e “Vivendo condições desfavoráveis ao longo da vida”.

Eu já venho de sofrimento também, desde pequena eu fui criada sem pai, então, se eu quisesse comer, eu tinha que trabalhar, senão eu não comia, então, eu vendo aquele sofrimento meu desde pequena, agora depois de velha também; não aguento mais, tem hora que a gente se senta e só fica pensando (I12);

Essas mulheres mais antigas normalmente eram dependentes, as idosas eram dependentes, então, elas achavam que elas tinham que suportar tudo, inclusive serem violentadas! Elas sofriam todo tipo de violência, física, psicológica, em função de se manter o núcleo familiar também (PC9).

A realização da denúncia da violência pelas mulheres idosas ocorre a partir do reconhecimento da necessidade de agir frente à situação de violência. Assim, observa-se que o componente condição causal, na categoria “Compreendendo a necessidade de tomar uma atitude”, representa as motivações para realizar a denúncia. É possível perceber, então, que embora as agressões, nas diferentes naturezas, possam ter sido vividas ao longo dos anos, a denúncia é realizada a partir do momento em que percebem que as situações vivenciadas representam uma violência, bem como demonstrado na subcategoria “Reconhecendo a situação de violência ao longo da vida”. Isso pode ser encontrado nas seguintes falas:

Eu assisto reportagem e eu vejo o que acontece nelas, filho com faca no pescoço da mãe, e você acha que a gente não vai tomar atitude? Nós vamos tomar atitude, sim! Nós não vamos ficar nessa situação, porque dó dele eu não posso ter. Tudo que eu pude fazer, eu fiz, agora eu não posso mais (I12);

E aí você abre os olhos para muitas coisas que, às vezes, a vida toda você enxergou diferente, aí eu fiz (I15).

Já na subcategoria “Percebendo os impactos físicos e mentais da situação de violência”, observou-se que a identificação dos comprometimentos na saúde física e mental demonstrou ser determinante para o enfrentamento da situação abusiva. Deste modo, a tomada de decisão em realizar a denúncia ocorre, muitas vezes, somente após o adoecimento, principalmente psíquico.

Estou depressiva mesmo, tomando os remédios desde dezembro. Eu me sinto depressiva (voz embargada), porque, assim, eu não vejo futuro(I18);

Olha a que ponto a gente chega. Você chega ao ponto da loucura também. Ele me atrapalha no serviço, bagunça tudo aqui, a gente perde muito ânimo. Eu tenho depressão. Eu, consequência disso, tive um Acidente Vascular Cerebral (AVC), acho que foi em 2017 (I10).

Nesse sentido, os profissionais da delegacia identificam que a denúncia da violência por mulheres idosas demora a acontecer, diferindo do que é observado em mulheres mais jovens.

Então, elas aguentam ali até não poder mais. Então, acho que é isso, que é por isso que elas demoram mais a pedir ajuda (PC4).

Essa decisão, também, ocorre a partir de dois fatores motivacionais: a autopreservação e a possibilidade de facilitar a internação para tratamento do agressor abordado na subcategoria “Decidindo realizar a denúncia”. É possível identificar, então, que, para essas idosas, a denúncia representa a retomada do controle sobre a própria vida. Logo, percebem que a realização da denúncia é fundamental na autopreservação. Contudo, quando identificam que o agressor apresenta necessidades de saúde, o Boletim de Ocorrência é registrado, não com o intuito de obter benefícios próprios, mas como forma de auxiliar o tratamento do filho agressor, por meio da internação compulsória. Desta maneira, mesmo que identifiquem o sofrimento, o que motiva a denúncia é a possibilidade de contribuir para reabilitação do filho/neto usuário de droga e/ou com transtornos mentais.

Lógico, se você não tomar uma atitude, você morre. E vai chegar um dia que ele vai falar para mim: a minha mãe estava certa, quem estava errado era eu. Só que eu não vou atrás, você me perdoa, mas eu não vou atrás, não, porque eu tenho vergonha na minha cara. Quem apanha, não esquece (I6);

Então, é o caso do [nome do filho], eu fiz o Boletim de Ocorrência dele para ajudar a internar, que isso aí eu fui orientada pela assistente social do hospital espírita e pela própria advogada. Ai, filha, que vocês puderem ajudar para internar meu filho, nossa! Pelo menos, é uns anos de vida que ele tem, porque cadeia não adianta (I5);

Eu tive que ir lá no juiz, tive que ir atrás para o bem dele, não é, para o bem dele, e ele quis fazer isso, e o fim foi esse, filha(I2).

Todavia, independentemente das causas que as levaram a tomar essa decisão, para a sua consolidação, vivenciaram situações que as empoderaram para a denúncia. Nesse sentido, no componente paradigmático estratégia, representado pela categoria Identificando situações empoderadoras para a denúncia” e suas subcategorias, foi possível identificar a sinergia entre elementos reforçadores que contribuíram nesse processo decisório. A subcategoria “Relacionando o amadurecimento oriundo do envelhecimento ao empoderamento para a denúncia” revela que as idosas percebem que o envelhecimento promove seu amadurecimento pessoal, modificando a aceitação do comportamento do agressor e alterando sua interação com os indivíduos a sua volta.

A gente tem os estágios da vida, chega uma hora a gente amadurece em tudo. Que as pessoas dizem que você envelheceu né, não é não, você amadureceu! (I15);

O sofrimento é demais, é muito sofrimento mesmo. Eu estou com 69 anos, era para estar descansando, passeando, com uma vida bastante calma (I10).

Na subcategoria “Encontrando apoio na espiritualidade”, observa-se que, em um cenário em que a denúncia é vivenciada de modo, muitas vezes, solitário e “oculto”, é na relação com suas crenças que se sentem fortalecidas para enfrentar a situação de violência.

Todo mundo tem problemas, eu não sou a única, mas para tudo tem jeito. A gente faz as nossas orações, não é pedir, mas sim que a gente tenha sabedoria para enfrentar, porque problema todo mundo tem. Só precisamos de sabedoria para enfrentar o problema, e eu acho que eu estou conseguindo (I18);

Não tenho medo de dormir sozinha, porque eu tenho meu amigo que é Deus, eu durmo em paz, sim, porque eu tenho certeza de que ninguém vai chegar aqui na minha casa, eu tenho fé muito grande em Deus (I7).

Já a subcategoria “Reconhecendo sua força” mostra as relações intrapessoais das idosas a partir do reconhecimento da capacidade de enfrentar o agressor e interromper com a situação de violência. De tal forma, o empoderamento para a denúncia mostra ser um reflexo de sua relação intrapessoal e ressignificação de sua identidade.

Depois do amor a Deus, o amor-próprio, porque, com dignidade, a gente tem que impor respeito para as pessoas, né? Não é porque é marido ou viveu 40 anos junto que tem direito de fazer certas coisas (I15).

Contudo, diferentes condições interferem na realização da denúncia. Assim, a categoria “Vivenciando a complexidade da denúncia”, do componente condição interveniente, demonstra que o processo da denúncia é permeado por elementos que favorecem e/ou dificultam a denúncia. Por sua vez, na subcategoria “Percebendo o (des)apoio na denúncia da violência”, observa-se que essa vivência sofre importante impacto da relação entre as idosas e sua rede de apoio.

Só que, assim, a irmã dele, que é minha filha, não quer que a gente o tire da casa, ela só quer que interne. Ela fala assim: deixa Deus agir. Eu falei para ela: Ele age, minha filha, mas a gente vai morrer de repente por causa desse monstro (I12);

E eu sofri, viu, mas não achei nenhuma alma para me ajudar, todo mundo deu as costas para mim, só Deus que não! Eu não tenho mãe, não tenho pai, não tenho ninguém, tenho por mim só Deus. Tive que gastar sem poder, fiquei sem nada. Só foi sofrimento, e a família, filha, só me humilhando, só me humilhando. Aí, pronto, foi assim que aconteceu (I4);

Desse modo, constatou-se que a ausência de apoio, principalmente familiar, dificulta a tomada de decisão das idosas de interromper as agressões. Contudo, o apoio de terceiros e, principalmente, o acolhimento recebido pelos profissionais da delegacia, durante a investigação, mostram-se importantes para a continuidade do processo.

Eu já tinha sido orientada pelo psicólogo, mas fazer um BO, aí, é uma coisa muito extrema, eu ficava assim, aí passava aquele dia, melhorava (I15);

Em relação a querer fazer a ocorrência ou não, a senhora pode pensar se quiser [fala do investigador]. Não, eu vou lá com vocês. Não vou me acovardar. Já que teve um filho de Deus que se preocupou comigo, eu não vou acovardar? Eu vou. (I19);

Tem violências aí que mexem com as estruturas, entendeu? Mas, teoricamente, a gente tem que estar preparado e, no momento, podemos até balançar, depois cair depois, mas, no momento, ali é demonstrar força, demonstrar empatia, demonstrar algumas soluções, porque normalmente chegam aqui elas não conseguem ver uma luz no final do túnel (PC5).

Outro elemento importante nesse processo e explícito na subcategoria “Refletindo sua construção identitária e papel social” se refere aos impactos da construção social do papel da mulher. Por conseguinte, foi possível identificar que o processo de denúncia sofre interferência da construção cultural da maternidade e matrimônio.

Ah, eles pedem, e a mãe vê um filho, vê precisando de alguma coisa e não ajuda, não é? Eu ajudo (I20);

Aí, eu fiquei com dó, eu tenho o coração muito mole! Fiquei com dó. Voltou, agradou, pediu perdão e tudo. Aí, falou para mim: Eu não bebo mais, aí eu peguei e fui lá e retirei a queixa, com a irmã dele ainda (I14);

Eu acho que da criação, de uma cultura diferente, da época, elas foram criadas com a ideia de que a mulher, ela tinha que se casar para servir o marido e os filhos. E, aí, eu acredito que seja isso mesmo, uma questão de educação, de cultura, de valores que foram passados das avós para as mães, das mães para elas. Então, elas aguentam ali até não poder mais (PC8).

Associando-se a essa construção identitária, identifica-se, ainda, que os múltiplos sentimentos vivenciados, expressos na subcategoria “Experenciando a multiplicidade de sentimentos”, interferem na realização da denúncia. Assim, o medo dos impactos na vida do agressor e da família, o receio de serem julgadas por terceiros e o sentimento de culpa pela atitude do agressor impactam na decisão de realizar e dar continuidade com a denúncia.

Eu falo para eles que, francamente, não está dando para mim; o que está me pegando na verdade é a menina, porque a menina vai sofrer. Aí que a minha consciência pesa, aí que a coisa pega. Ela é (choro)inteligentíssima, ganhou em segundo lugar no ano passado na escola toda como a melhor aluna, (choro) é esperta, inteligente e educada. Não fala palavrão, é carinhosa, mas, infelizmente, eu vou ter que a deixar (voz embargada), é o que está me pegando (choro) (I18);

Falei assim para o delegado, falei assim ó: “Eu só não vou fazer isso porque ele está por enquanto numa fazenda morando, e ele está registrado, depois ele perde o serviço, ele vai culpar que foi a mãe” (I4);

Filha, ó, se for para jogar meu filho na cadeia, eu prefiro que Deus o tira e que ele morra na rua, porque cadeia não resolve para ele, não (I8).

No componente consequência, representado pela categoria “Lidando com a vida pós-denúncia”, observou-se a coexistência de diferentes desfechos da situação de violência. No primeiro momento, após a denúncia da violência, essas mulheres sentem-se empoderadas para enfrentar o agressor, como demonstrado na subcategoria “Empoderando-se para o enfrentamento do agressor”. Contudo, a “necessidade” de manter os laços familiares acarreta a manutenção das relações de poder entre a vítima e o agressor, uma vez que se responsabilizam pela manutenção da família. Ou seja, embora a denúncia represente a interrupção de determinados abusos, a manutenção dos laços matrimoniais e a vivência de contextos familiares complexos são responsáveis pela perpetuação da violência, mesmo após a denúncia, constituindo a subcategoria “Vivenciando a continuidade da situação de violência”.

Às vezes, ele me ofende, aí, eu saio quietinha, não falo nada, vou chorar, vou desabafar sozinha, então isso é difícil. Jesus conhece o meu coração mais do que eu própria... eu não gosto, não amo. E as minhas filhas sabem disso assim, eu falei: “Estou junto por vocês também, pela família”. Porque, quando pai separa, a família fica assim, tumultuada. Então, se eu aguentar isso, eu estou aguentando por Deus. Deus me dá dádiva para eu aguentar (I13);

Com as idosas, tem essa preocupação com a família, com... até com o que os outros vão pensar, com os vizinhos. Para muitas, o divórcio é um tabu ainda, então, elas tendem mais a desistir mais do processo (PC7);

Então, eu me seguro, vou levando, mas essas coisas acabam com o emocional da gente. Você não vê a pessoa com os mesmos olhos mais, se tinha amor, não tem aquele amor mais, é isso que acontece, mas eu tenho meus filhos, tenho meus netos, eles têm que ter uma estrutura em mim. Então, eu tive filhos, eu tive netos e, eu tenho que prestar conta para Deus dessa família, eu vou deixar desandar? (I13).

DISCUSSÃO

Na presente pesquisa, observou-se que a vivência da denúncia por mulheres idosas vítimas de violência, representada pelo fenômeno “Protagonizando o enfrentamento da violência”, configura processo complexo repleto de sentimentos contraditórios e ressignificações que, muitas vezes, frente à inexistência de rede de apoio familiar e/ou serviços especializados, acarretam a manutenção de violências de diferentes naturezas1616. Medtler J, Cunico SD. Violência contra a mulher: onde começa e quando termina? Pensando Fam [Internet]. 2022 [cited 2024 Feb 27];26(1):198-213. Available from: https://pensandofamilias.domusterapia.com.br/index.php/files/article/view/17
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De modo geral, a vida das mulheres idosas que realizam a denúncia é marcada pela interconexão de diferentes fatores que contribuem para ocorrência da violência. Ainda que sejam vítimas de violências em diferentes formas de manifestação, os contextos de vida e abusos apresentam similaridades. A violência contra idosas é, principalmente, perpetrada por filhos, netos, parceiros e ex-parceiros1515. Velloso ISC, Tizzoni JS. Critérios e estratégias de qualidade e rigor na pesquisa qualitativa. Cienc Enferm [Internet]. 2020 [cited 2023 Aug 30];26:28. Available from: https://doi.org/10.29393/CE26-22CEIS20022
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. A vivência de diversas vulnerabilidades mostra-se profundamente relacionada aos abusos. Frequentemente, as pessoas idosas vítimas de violência vivenciam relações de dependência com os agressores, sendo a dependência de cuidado e a financeira a principal responsáveis pela manutenção das relações1717. Oliveira MS, Alarcon MFS, Mazzetto FMC, Marin MJS. Agressores de pessoas idosas: interpretando suas vivências. Rev Bras Geriatr Gerontol [Internet]. 2021 [cited 2024 Feb 25];24(6):e210077. Available from: https://doi.org/10.1590/1981-22562021024.210077
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Na dinâmica intrafamiliar, observa-se a existência de relações familiares conflituosas e abusivas ao longo da trajetória1818. Scrafford KE, Miller-Graff LE, Umunyana AG, Schwartz LE, Howell KH. “I Did it to Save My Children”: Parenting Strengths and Fears of Women Exposed to Intimate Partner Violence. J Interpers Violence [Internet]. 2022 [cited 2024 Feb 25];37(9-10):NP7775-NP802. Available from: https://doi.org/10.1177/0886260520969231
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. Mulheres idosas que sofreram ou sofrem abusos por parceiros podem ser vítimas de novas violências realizadas por descendentes, tendo a negligência, a violência financeira/patrimonial e a psicológica como as mais frequentes1818. Scrafford KE, Miller-Graff LE, Umunyana AG, Schwartz LE, Howell KH. “I Did it to Save My Children”: Parenting Strengths and Fears of Women Exposed to Intimate Partner Violence. J Interpers Violence [Internet]. 2022 [cited 2024 Feb 25];37(9-10):NP7775-NP802. Available from: https://doi.org/10.1177/0886260520969231
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Enfatiza-se, também, que, usualmente, em mulheres idosas, cujos agressores são os parceiros, atuais ou pregressos, os abusos se iniciam logo após o matrimônio, relacionando-os ao papel social enquanto esposa e a representação dela como “propriedade” do marido. Deste modo, é possível observar que a ocorrência de agressões se apresenta, muitas vezes, como resposta desproporcional a situações desfavoráveis1919. Amarijo CL, Figueira AB, Ramos AM, Minasi ASA. Relações de poder nas situações de violência doméstica contra a mulher: tendência dos estudos. Rev Cuid [Internet]. 2020 [cited 2024 Feb 27];11:2. Available from: https://doi.org/10.15649/cuidarte.1052
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Os abusos vividos geram inúmeros impactos nas mulheres idosas, entre eles, sentimentos negativos que as levam a experenciarem desesperança, medo e impotência, acarretando a diminuição da autoestima e autoconfiança, além da culpabilização de si própria pelo ocorrido2020. Brito JCS, Silva EG Jr, Eulálio MC. Agravos à saúde mental de mulheres em situação de violência doméstica. Rev Bras Psicoter [Internet]. 2022 [cited 2024 Feb 25];24(3):113-29. Available from: https://doi.org/10.5935/2318-0404.20220027
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Nesse sentido, a vivência da denúncia da violência representa, para as mulheres idosas, a ruptura e superação, ainda que discretas e momentâneas, desse contexto opressor. O fenômeno “Protagonizando o enfrentamento da violência” denota que esse momento ocorre a partir do despertar da consciência da necessidade de retomada da autonomia acerca da própria vida. Essa vivência requer, então, nova interpretação da violência, muitas vezes, vivenciada ao longo de décadas2121. Tuffin B, Puddephatt A. Symbolic Interactionism. In: Stanlaw, JM, editor. The International Encyclopedia of Linguistic Anthropology [Internet]. Hoboken, NJ(US): Wiley; 2020. p.1-4 [cited 2023 Aug 30]. Available from: https://doi.org/10.1002/9781118786093.iela0377
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Ademais, a interpretação da violência e da necessidade de protagonizar o enfrentamento a partir da realização da denúncia parte do reconhecimento da urgência de tomar uma atitude. Na presente pesquisa, identificou-se que, para essa tomada de decisão, as mulheres idosas precisariam compreender que vivenciavam uma situação de violência. Esse fato se reveste de grande importância, uma vez que muitas mulheres idosas apresentam dificuldade em significar os episódios de agressão como violência, reconhecendo o abuso somente após a interferência de terceiros2222. Gomes JMA, Nascimento V, Ribeiro MNS, Espírito Santo FH, Diniz CX, Souza CRS, et al. Abuso sexual sofrido por mulheres idosas: Relatos de vivências. Rev Kairós [Internet]. 2020 [cited 2024 Feb 27];23(1):323-39. Available from: https://doi.org/10.23925/2176-901X.2020v23i1p323-339
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Dentre os motivos que se relacionam a essa dificuldade, observa-se que a cultura patriarcal se apresenta como fator determinante para o não enfrentamento da situação de violência. Isso ocorre uma vez que a manutenção das disparidades de gênero e a reprodução acrítica dos papéis sociais normatizam relações abusivas, impulsionando a aceitação dessas mulheres a situações de violência2323. Machado DF, Castanheira ERL, Almeida MAS. Interseções entre socialização de gênero e violência contra a mulher por parceiro íntimo. Cienc Saude Coletiva [Internet]. 2021 [cited 2024 Feb 25];26:5003-12. Available from: https://doi.org/10.1590/1413-812320212611.3.02472020
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,2424. Batista VC, Gomes NP, Teston EF, Barreto MS, Virgens IR, Vieira VCL, et al. Relações familiares no contexto de violência conjugal: uma teoria fundamentada nos dados construtivista. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2023 [cited 2024 Feb 25];32:e20230041. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2023-0041pt
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Assim, essa perpetuação e aceitação sofre profunda influência de fatores culturais. Normas e padrões sociais de gênero e religião são amplamente utilizados como formas de justificação de ações violentas. De tal forma, a cultura de dominação patriarcal ancorada em leis se associa fortemente a altas taxas de violência contra mulheres que são ainda mais presentes em idosas88. Damaceno DG, Alarcon MFS, Sponchiado VBY, Chirelli MQ, Marin MJS, Ghezzi JFSA. Mulheres idosas vítimas de violência: O protagonismo nas denúncias. Ex Aequo [Internet]. 2020 [cited 2023 Jul 16];41:61-70. Available from: https://doi.org/10.22355/exaequo.2020.41.04
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,2525. Shai N, Pradhan GD, Chirwa E, Shrestha R, Adhikari A, Kerr-Wilson A. Factors Associated with IPV Victimisation of Women and Perpetration by Men in Migrant Communities of Nepal. PLoS One [Internet]. 2019 [cited 2023 Aug 30];14(7):e0210258. Available from: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0210258
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,2626. Shai N, Pradhan GD, Shrestha R, Adhikari A, Chirwa E, Kerr-Wilson A, et al. “I Got Courage from Knowing that Even a Daughter-In-Law can Earn her Living”: Mixed Methods Evaluation of a Family-Centred Intervention to Prevent Violence Against Women and Girls in Nepal. PLoS One [Internet]. 2020 [cited 2023 Aug 15];15(5):e0232256. Available from: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0232256
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A denúncia resulta da ruptura, ainda que parcial, dessas mulheres com essa cultura de aceitação da violência de gênero, por meio do desenvolvimento de estratégias de (auto)empoderamento para essa tomada de decisão88. Damaceno DG, Alarcon MFS, Sponchiado VBY, Chirelli MQ, Marin MJS, Ghezzi JFSA. Mulheres idosas vítimas de violência: O protagonismo nas denúncias. Ex Aequo [Internet]. 2020 [cited 2023 Jul 16];41:61-70. Available from: https://doi.org/10.22355/exaequo.2020.41.04
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Desse modo, ainda que em contexto de silenciamento, vergonha e culpabilização interna pela violência, essas mulheres idosas, ao atribuírem novos significados às situações vivenciadas, encontram em si mesmas a força e a coragem para enfrentarem a situação de violência2727. Alarcon MFS, Damaceno DG, Cardoso BC, Sponchiado VBY, Braccialli LAD, Marin MJS. Percepção do idoso acerca da violência vivida. Rev Baiana Enferm [Internet]. 2020 [cited 2024 Feb 28];34:e34825. Available from: https://doi.org/10.18471/rbe.v34.34825
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Identificou-se, ainda, que a espiritualidade se apresentou como fator empoderador para realização da denúncia. Durante o processo de envelhecimento, a religiosidade se conforma como recurso emocional e motivacional importante para o enfrentamento de situações e condições adversas. Idosos atribuem à divindade e/ou ao sobrenatural a força para lidar com a situação de violência. Contudo, embora a espiritualidade se mostre importante na busca de solução para a situação opressora, alguns idosos reconhecem a violência como meio de evolução espiritual planejado pelo divino. Portanto, a espiritualidade ou religiosidade se conforma, ao mesmo tempo, na forma de buscar suporte e explicar a situação de violência vivenciada2828. Amaral JB, Menezes MDR, Silva VA, Oliveira CMS. A religiosidade e a espiritualidade como referências para o enfrentamento da violência doméstica contra idosos. Rev Enferm UERJ [Internet]. 2016 [cited 2023 Jul 30];24(2):e7126. Available from: https://doi.org/10.12957/reuerj.2016.7126
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A vivência da denúncia é permeada por sentimentos contraditórios influenciados pelo apoio e construção social de sua identidade e função/papel na sociedade. A validação e o suporte dessas mulheres se mostraram fundamentais para a tomada de decisão de sair de uma situação abusiva. Por conseguinte, frente a inúmeros fatores de perpetuação da violência, o estabelecimento e o fortalecimento de uma rede de apoio robusta, composta por familiares, profissionais de saúde, serviços de apoio e sociedade civil, favorecem o enfrentamento do abuso pelas mulheres idosas, ainda que momentaneamente88. Damaceno DG, Alarcon MFS, Sponchiado VBY, Chirelli MQ, Marin MJS, Ghezzi JFSA. Mulheres idosas vítimas de violência: O protagonismo nas denúncias. Ex Aequo [Internet]. 2020 [cited 2023 Jul 16];41:61-70. Available from: https://doi.org/10.22355/exaequo.2020.41.04
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Por outro lado, foi possível identificar que o enfrentamento da violência despertou sentimentos contraditórios nas idosas, tendo em vista a coexistência do alívio em interromper a violência e o medo das consequências das denúncias para o agressor. Nesta conjuntura, a vontade de enfrentar o perpetrador e a cobrança interna e social de ser a responsável pelo cuidado são percebidas como obstáculos para continuidade do processo judicial e ruptura total da relação com o agressor2929. Dias SGGF, Katakura EALB, Marin MJS, Alarcon MFS. Sentimentos vivenciados pela pessoa idosa em situação de violência. Rev Baiana Enferm [Internet]. 2023 [cited 2024 Feb 28];37:e46840. Available from: https://doi.org/10.18471/rbe.v37.46840
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Assim, percebe-se que a manutenção dos laços matrimoniais e de relações familiares complexas é responsável pela permanência de situações abusivas, sejam elas em outras formas de manifestação pelo mesmo agressor ou por comportamentos violentos de outros familiares2929. Dias SGGF, Katakura EALB, Marin MJS, Alarcon MFS. Sentimentos vivenciados pela pessoa idosa em situação de violência. Rev Baiana Enferm [Internet]. 2023 [cited 2024 Feb 28];37:e46840. Available from: https://doi.org/10.18471/rbe.v37.46840
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. Logo, a necessidade de ser leal e cuidar de filhos, netos e/ou parceiros, ainda que abusivos, dificultou o enfrentamento real e definitivo da violência, acarretando a manutenção de relações violentas, mesmo após a realização da denúncia88. Damaceno DG, Alarcon MFS, Sponchiado VBY, Chirelli MQ, Marin MJS, Ghezzi JFSA. Mulheres idosas vítimas de violência: O protagonismo nas denúncias. Ex Aequo [Internet]. 2020 [cited 2023 Jul 16];41:61-70. Available from: https://doi.org/10.22355/exaequo.2020.41.04
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Portanto, foi possível identificar que essas mulheres experenciam uma multiplicidade de sentimentos que impactam diretamente no enfrentamento da violência. Sentimentos como vergonha, autocensura e medo em deixarem os relacionamentos, então, promovem o silenciamento dos abusos. Com isso, apresentam dificuldades em compartilhar histórias e denunciar a violência2424. Batista VC, Gomes NP, Teston EF, Barreto MS, Virgens IR, Vieira VCL, et al. Relações familiares no contexto de violência conjugal: uma teoria fundamentada nos dados construtivista. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2023 [cited 2024 Feb 25];32:e20230041. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2023-0041pt
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Identificou-se, também, que o silenciamento da violência se associa aos impactos de deixar um relacionamento na velhice e o medo das perdas potenciais após a ruptura com o agressor. Dentre elas, estão incluídos os meios financeiros e segurança, investimentos no cuidado com lar e o contato com objetos repletos de valor simbólico e memórias de uma vida. Experenciam, então, sentimento de profunda frustração e tristeza em ter que, após décadas de construção, criação dos filhos e cuidados com o lar, reorganizar as próprias vidas88. Damaceno DG, Alarcon MFS, Sponchiado VBY, Chirelli MQ, Marin MJS, Ghezzi JFSA. Mulheres idosas vítimas de violência: O protagonismo nas denúncias. Ex Aequo [Internet]. 2020 [cited 2023 Jul 16];41:61-70. Available from: https://doi.org/10.22355/exaequo.2020.41.04
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O enfrentamento da violência contra mulheres idosas requer a superação de inúmeras barreiras, muitas vezes, não experenciadas por mulheres mais jovens. Para idosas, a resposta de outros indivíduos interfere amplamente na procura por ajuda frente a uma situação de violência. Ainda, o apoio de profissionais de saúde, de serviços policiais e de assistência social, assim como de familiares e amigos, é fundamental, pois favorece ou dificulta a realização da denúncia. Assim, a carência de conhecimento, confiança e suporte emocional se mostram como fatores perpetuadores da violência. Estes são exacerbados por sentimentos como culpa, autopercepção negativa, vergonha e impotência, assim como a dificuldade de reinserção dessas mulheres idosas no mercado de trabalho3030. Pathak N, Dhairyawan R, Tariq S. The Experience of Intimate Partner Violence Among Older Women: A Narrative Review. Maturitas [Internet]. 2019 [cited 2023 Aug 30];121:63-75. Available from: https://doi.org/10.1016/j.maturitas.2018.12.011
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Embora a denúncia represente o enfrentamento da situação de violência, ressalta-se a recorrência da manutenção das relações abusivas entre as mulheres idosas e os agressores. A construção social do papel de esposa, com a necessidade de “satisfação” do marido, e de mãe, que deve manter e dar suporte incondicional aos filhos e família, é responsável pela perpetuação da violência e a descontinuidade no processo judicial1717. Oliveira MS, Alarcon MFS, Mazzetto FMC, Marin MJS. Agressores de pessoas idosas: interpretando suas vivências. Rev Bras Geriatr Gerontol [Internet]. 2021 [cited 2024 Feb 25];24(6):e210077. Available from: https://doi.org/10.1590/1981-22562021024.210077
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,99. Goldblatt H, Band-Winterstein T, Lev S, Harel D. “Who Would Sexually Assault an 80-Year-Old Woman?” Barriers to Exploring and Exposing Sexual Assault Against Women in Late Life. J Interpers Violence [Internet]. 2020 [cited 2023 Sep 11];37(5-6):2751-75. Available from: https://doi.org/10.1177/0886260520934440
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. Neste contexto, apontam para importância de se desenvolverem políticas públicas apoiadas em ações direcionadas a esse segmento de mulheres, uma vez que apresentam particularidades não experenciadas por mulheres jovens.

Para além de estratégias de empoderamento que visem à identificação da situação abusiva e despertem a tomada de decisão de enfrentar o agressor, a presente investigação possibilitou identificar que, para o enfrentamento efetivo da violência, é primordial o desenvolvimento de estratégias de empoderamento que subsidiem a transformação real e definitiva da condição de opressão. Assim, além do manejo e apoio dessas mulheres na realização da denúncia, a resolutividade da assistência requer a superação de condições de vulnerabilidade a relações abusivas e a ruptura com padrões patriarcais dos papéis sociais99. Goldblatt H, Band-Winterstein T, Lev S, Harel D. “Who Would Sexually Assault an 80-Year-Old Woman?” Barriers to Exploring and Exposing Sexual Assault Against Women in Late Life. J Interpers Violence [Internet]. 2020 [cited 2023 Sep 11];37(5-6):2751-75. Available from: https://doi.org/10.1177/0886260520934440
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,3030. Pathak N, Dhairyawan R, Tariq S. The Experience of Intimate Partner Violence Among Older Women: A Narrative Review. Maturitas [Internet]. 2019 [cited 2023 Aug 30];121:63-75. Available from: https://doi.org/10.1016/j.maturitas.2018.12.011
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.

Portanto, esta pesquisa se limita a uma realidade complexa, mas pontual, nas quais as denúncias de violência foram realizadas em um serviço policial. Assim, o desenvolvimento teórico deste fenômeno pode ser trabalhado, no sentido de, após desenvolver ações intersetoriais sistematizadas de empoderamento dessas mulheres idosas vítimas de violência em diferentes contextos, comparar a vivência destes participantes com o modelo teórico aqui apresentado.

CONCLUSÃO

O modelo teórico construído a partir das vivências de mulheres idosas vítimas de violência na denúncia evidencia que este processo se relaciona com a construção social da própria mulher idosa sobre os próprios papéis enquanto trabalhadoras, mães, avós, esposas, cuidadoras, bem como o estabelecimento de uma rede de apoio empoderadora, ou não, nessa tomada de decisão. Conseguinte, durante esse processo, muitas vezes, permeado por sentimentos ambíguos e contraditórios, a partir de elementos empoderadores, essas mulheres assumem, ainda que momentaneamente, o protagonismo sobre as próprias histórias, na busca da interrupção das situações de violência.

Contudo, a hegemonia das relações patriarcais entre homens e mulheres e a construção identitária das mulheres, principalmente nas gerações mais antigas, dificultam a manutenção dessa autonomia nas decisões sobre a vida, retornando a uma posição de subordinação frente aos agressores. Assim, o enfrentamento real e definitivo da violência requer, além do desenvolvimento de estratégias de empoderamento, a revisão das relações de poder de gênero.

Além disso, frente ao envelhecimento populacional e à feminilização da velhice, o investimento em políticas públicas e ações específicas a essa população é primordial para o enfrentamento real e definitivo da violência.

Ao considerar, ainda, os impactos das interações sociais no modo com o qual essas mulheres lidam com as situações de violência e a potência dos serviços de atenção primária, a porta preferencial de acolhimento das necessidades no sistema de saúde, atuando na prevenção e identificação de fatores de risco da violência, deve estar aberta ao acompanhamento, além de sugerir a criação de espaços definitivos de convivência de mulheres idosas para compartilhamento de experiências, atrelando a formação com a instrumentalização de profissionais de saúde na operacionalização do cuidado integral.

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NOTAS

  • ORIGEM DO ARTIGO

    Extraído da tese - Mulheres idosas vítimas de violência: vivências de protagonismo nas denúncias, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual Paulista, em 2022.
  • FINANCIAMENTO

    Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES); Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) processo nº. 2017/17562-2.
  • APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

    Aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Marília, Parecer nº. 3.250.756, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética 09831319.2.0000.5413.

Editado por

EDITORES

Editores Associados: José Luís Guedes dos Santos, Maria Lígia Bellaguarda. Editor-chefe: Elisiane Lorenzini.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2023
  • Aceito
    21 Maio 2024
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