RESUMO
Objetivo: analisar a percepção das mulheres acerca do descumprimento da Lei do Acompanhante, com foco no seu direito constituído legalmente e nos sentimentos por elas vivenciados durante o parto e o nascimento.
Método: pesquisa descritivo-exploratória, de natureza qualitativa, cujos dados foram coletados em quatro hospitais da Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro, entre janeiro e julho de 2014. Foram entrevistadas 56 mulheres internadas nos respectivos alojamentos conjuntos. Utilizou-se a técnica de análise de conteúdo na modalidade temática para o tratamento das informações e das diretrizes das políticas públicas de humanização da assistência ao parto e nascimento, considerando a perspectiva dos direitos reprodutivos.
Resultados: emergiram duas categorias temáticas: O desconhecimento das mulheres como influência no descumprimento da Lei do Acompanhante; e A Lei do Acompanhante como instrumento de segurança para as mulheres em processo de parturição. As entrevistadas relataram o descumprimento da citada Lei, pelas instituições de saúde e pelos profissionais durante o parto e nascimento, tornando esse momento permeado por sentimentos negativos resultantes de estresses, desgastes e tensões face ao desrespeito aos direitos reprodutivos do casal.
Conclusão: a Lei do Acompanhante precisa ser melhor divulgada como direito reprodutivo do casal, garantindo a segurança do processo parturitivo e inibindo atos de violação em seus direitos.
DESCRITORES: Obstetrícia; Saúde da mulher; Direitos do paciente; Violação dos direitos humanos; Violência de gênero
RESUMEN
Objetivo: analizar la percepción de las mujeres sobre el incumplimiento de la Ley del acompañante, centrándose en su derecho legalmente constituido y en los sentimientos experimentados por ellos durante el parto y el nacimiento.
Método: este estudio descriptivo y exploratorio, de naturaleza cualitativa y los datos se obtuvieron de cuatro hospitales de la Región Metropolitana II del Estado de Río de Janeiro (Brazil), entre enero y julio de 2014. Se entrevistaron a 56 mujeres admitidas en su alojamiento conjunto. Se utilizó la técnica de análisis de contenido, modalidad temática para el tratamiento de la información y las directrices de las políticas públicas de humanización de la atención del parto y el nacimiento, teniendo en cuenta la perspectiva de los derechos reproductivos.
Resultados: dos temas surgieron: El desconocimiento de las mujeres como influencia en el incumplimiento de la Ley del acompañante; y la Ley como instrumento de seguridad para las mujeres en proceso de parto. Los entrevistados reportaron el incumplimiento de la mencionada Ley, por las instituciones de salud y los profesionales durante el parto y el nacimiento, permeando este momento de sentimientos negativos resultantes del estrés, el desgaste y las tensiones por la falta de respeto a los derechos reproductivos de la pareja.
Conclusión: la Ley del Acompañante debe ser mejor promovida como los derechos reproductivos de las parejas, lo que garantiza la seguridad del proceso del nacimiento y la inhibición de los actos de violación de sus derechos.
DESCRIPTORES: Obstetricia; Salud de la mujer; Los derechos del paciente; Violación de los derechos humanos; Violencia de género
ABSTRACT
Objective: to analyze women’s perceptions regarding non-compliance with the Companion Law, focusing on their legally constituted right and the feelings they experience during birth and delivery.
Method: a descriptive-exploratory research of qualitative nature, in which data were collected from four hospitals in the Metropolitan Region II of the State of Rio de Janeiro (Brazil), between January and July 2014. Fifty-six hospitalized women were interviewed in their respective shared rooms. Thematic content analysis technique was used for analyzing the information and the guidelines for humanization of public policies for assistance in birth and delivery, considering the perspective of reproductive rights.
Results: two thematic categories emerged: Women’s lack of knowledge influencing non-compliance with the Companion Law; the Companion Law as a security/safety tool for women in labor. The interviewees reported non-compliance with the aforementioned Law by health institutions and health professionals during birth and delivery, resulting in a moment permeated by negative feelings resulting from stress, emotional wear and tension in the disregard for the couples’ reproductive rights.
Conclusion: the Companion Law needs to be better promoted as a couple’s reproductive right, one that guarantees safety during labor and inhibits violating their rights.
DESCRPITORS: Obstetrics; Women’s health; Patient rights; Violation of human rights; Gender violence
INTRODUÇÃO
No Brasil, desde 2005, a Lei n. 11.108, mais conhecida como Lei do Acompanhante, determina que os serviços de saúde maternos permitam a presença de um acompanhante de livre escolha da mulher durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. A fim de regulamentar a presença do acompanhante nos âmbitos público e privado, também foram publicados outros documentos, para que esse direito fosse garantido a todas as parturientes1 e, sobretudo, respeitado pelas instituições prestadoras de saúde.
No âmbito público, naquele ano, a Portaria n. 2.418 do Ministério da Saúde (MS), passou a autorizar o pagamento de despesas com o acompanhante durante o processo parturitivo, incluindo gastos com acomodação adequada e fornecimento das principais refeições. Em 2008, a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n. 36, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que dispõe sobre o Regulamento Técnico para Funcionamento dos Serviços de Atenção Obstétrica e Neonatal, além de reafirmar o direito da mulher ao acompanhante, estabeleceu parâmetros para que os Serviços pudessem assegurar uma estrutura física adequada e segura para acompanhantes e trabalhadores da saúde.1
No âmbito privado, em 2010, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANSS) definiu, através da Resolução Normativa n. 211, que os atendimentos de obstetrícia no setor privado, independente do plano de saúde, deveriam cobrir todas as despesas com o acompanhante.1,2 Essas foram importantes iniciativas no País para legitimar a garantia do acompanhante nas maternidades.
Trata-se de tema emergente do Programa de Humanização do Parto e Nascimento (PHPN), criado em 2000, que oportunizou discussões a respeito, culminando com a institucionalização e a oficialização, em 2011, da Rede Cegonha Carioca no Rio de Janeiro.1,3 Entretanto, segundo a pesquisa Nascer no Brasil, 24,5% das gestantes atendidas nas unidades hospitalares das redes pública e privada dos Estados da Federação, não foram acompanhadas por alguém de sua livre escolha no momento do parto e nascimento, não obtendo a garantia de seus direitos conquistados.3-5 Deste modo, não conseguiram usufruir totalmente dos direitos assegurados pela lei vigente.
Diante do exposto, e considerando que o descumprimento da Lei do Acompanhante caracteriza um ato de violação dos direitos reprodutivos do casal por parte dos Serviços de Atenção à Saúde da Mulher, o estudo teve como objetivo analisar a percepção das mulheres acerca do descumprimento dessa Lei, tendo como focos o seu direito constituído legalmente e os sentimentos por elas vivenciados durante o parto e o nascimento.
MÉTODO
Pesquisa descritiva, exploratória, com abordagem qualitativa, considerada apropriada aos objetivos do estudo, pois procura desvelar as percepções dos dados subjetivos dos indivíduos.6
As participantes do estudo foram 56 mulheres internadas nos alojamentos conjuntos de quatro maternidades públicas da Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro, sendo este quantitativo determinado após ser submetido ao processo de repetição dos sentidos das falas (saturação).
Foram os seguintes os critérios de inclusão na pesquisa: serem mulheres em puerpério imediato, maiores de 18 anos de idade, que tiveram parto vaginal nas maternidades públicas, com permanência maior ou igual a 12 horas na unidade e que não apresentassem qualquer alteração fisiológica e psicológica que inviabilizasse a sua participação. Os critérios de exclusão levaram em conta as que permaneceram na sala de pré-parto, na enfermaria de gestantes, no centro obstétrico e no alojamento conjunto de alto risco nas maternidades públicas, ter sido submetida à cesariana, as que apresentaram um pós-parto patológico e aquelas em pós-abortamento. A exclusão dessas mulheres foi fundamentada no fato de que, ao permanecerem em setores especializados considerando sua necessidade clínico-obstétrica, poderiam ter limitações físicas e emocionais quanto à presença do acompanhante, o que poderia influenciar em suas percepções.
As mulheres que atenderam a todos os critérios de inclusão foram convidadas a participar do estudo e, posteriormente, selecionadas por meio do processo aleatório simples, com o número ímpar do leito obstétrico. A partir do aceite das puérperas, foi-lhes esclarecidos o tema da pesquisa e solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, condicionando a sua participação, assegurando o anonimato e o sigilo das informações, confirmado com a utilização de um código alfanumérico (P1...P56), e viabilizando a aplicação do instrumento de coleta de dados.
Em conformidade com a Resolução n° 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina do Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP) da Universidade Federal Fluminense (UFF), sob Protocolo n. 375.252/2013.
A coleta de dados foi realizada ao longo do primeiro semestre de 2014, com aplicação de um roteiro para entrevista semiestruturada, o qual era constituído por perguntas abertas e fechadas referentes ao processo de acompanhamento do trabalho de parto, parto e puerpério. Os discursos das mulheres, gravados em aparelho digital com autorização prévia, foram transcritos na íntegra pelo pesquisador com a finalidade de assegurar a fidedignidade das falas, categorizados e por ele armazenados. Após cinco anos serão eliminados, conforme determina a Resolução n. 466/2012. Os dados coletados foram trabalhados através da técnica da análise de conteúdo na modalidade temática7 e discutidos com base nas Diretrizes das Políticas Públicas de Humanização da Assistência ao Parto e Nascimento e dos Direitos Reprodutivos, considerando a perspectiva de gênero.8-9
Após as transcrições das entrevistas e a identificação das Unidades de Registro (URs) adotou-se a técnica de colorimetria para identificar e agrupar as URs afins, o que permitiu uma visão geral da temática. As entrevistas originaram as seguintes URs: poder e autoridade profissional; impedimento para assistir ao parto; acompanhante de gênero masculino; carência de informação ao direito do acompanhamento no parto; insegurança do parto; abandono e escassez de apoio ao trabalho de parto e parto; insegurança. Essas URs, por sua vez, fundamentaram a construção das seguintes categorias temáticas: 1) O desconhecimento das mulheres como influência no descumprimento da Lei do Acompanhante; 2) A Lei do Acompanhante como instrumento de segurança para as mulheres em processo de parturição.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O desconhecimento das mulheres como influência no descumprimento da Lei do Acompanhante
O estudo permitiu identificar o desconhecimento por parte das mulheres quanto ao teor da Lei do Acompanhante, assim como aos seus direitos. Indiretamente, através das entrevistas, possibilitou confirmar que essa desinformação ocorre também por parte dos profissionais de saúde, configurando privação dos direitos reprodutivos contra a mulher:
[...] como já sou maior de idade não posso ter mais acompanhante. [...] somente menor de idade pode ter alguém com você. [...] falaram isso logo quando eu entrei para ser atendida [...]. não deixaram a minha mãe entrar comigo [...] e como eu não tenho mais direito se fosse adolescente até eu brigaria para ter, mas fazer o que? [...] (P18);
[...] falavam que eu não podia ter acompanhante, aqui ninguém tem o acompanhante [...] e as pessoas falaram que não pode e deveriam deixar uma pessoa ficar, somente menor de idade [...] (P20).
Embora a Lei n. 11.108/2005 esteja em vigor há mais de dez anos, instituindo nos serviços de saúde do SUS ou nos conveniados, a obrigatoriedade da presença de um acompanhante de livre escolha da mulher durante o período de pré-parto, parto e puerpério imediato,1,8-9 os depoimentos confirmaram a desinformação sobre esse direito. A Política de Humanização do Parto e Nascimento afirma a importância da informação do dispositivo legal para propiciar o entendimento da mulher como sujeito de direito quanto ao acompanhante de livre escolha no processo de nascimento.8-9 Torna-se, portanto, importante uma mudança de modelo na parturição, com o devido conhecimento da mulher e a inserção do acompanhante na cena de apoio e cuidado.
O conhecimento da Lei do Acompanhante deve ser efetivo para a garantia do direito à mulher, instituindo o processo de respeito, apoio e confiança. O acesso à informação deve ter início já no acompanhamento pré-natal, fazendo com que a mulher sinta-se esclarecida acerca desses direitos legais para que seja capaz de tomar uma decisão consciente dos seus direitos.9-10 Sem dúvida, a desinformação sobre esse direito ao acompanhante sustenta o descumprimento de seus direitos instituídos.11 A instituição de saúde, ao impedir que a mulher usufrua do acompanhante de livre escolha, corroborando uma prática em que o profissional de saúde perpetua ‘rotinas’ e ‘normas’ implantadas historicamente na atenção ao parto e ao nascimento, conforme se observa nos relatos a seguir:
[...] eu não tive isso, não deixaram o meu marido participar comigo, e tentei ver isso, mas esse médico não estava deixando. [...] as outras meninas, os seus esposos estavam junto, não sei porque ele não deixou ficar e ver o meu parto, achei uma falta de compreensão! [...] (P03);
[...] na sala de parto foi estranho, não deixaram a minha mãe entrar. [...] o médico disse que não podia entrar na sala. [...] nesse momento iria ficar sozinha, somente depois iria me ver [...] (P15).
Percebe-se que o direito ao acompanhante ainda não se tornou uma realidade para a totalidade das mulheres brasileiras, pois muitas não conseguem usufrui-lo.12 Não é demais reiterar que esse direito é, em muitas situações, “inegável” e “inegociável” pelo seu caráter constitucional. O impedimento de gozá-lo confirma uma falta de respeito aos ditames legais, frente à Lei do Acompanhante,9 o qual está ligado intimamente à carência de informações à mulher e ao tímido movimento de participação social. Por isso, deve-se buscar garantias para que a mulher tenha o seu direito respeitado com a garantia do acompanhante durante o trabalho de parto, parto e puerpério.8-9
A Política de Humanização do Parto e Nascimento enfatiza que o bem-estar da mulher no parto e puerpério inclui o livre acesso do acompanhante por ela escolhido. Nesse contexto, em uma das suas ações, preconiza o acolhimento com dignidade e respeito a ela e aos seus familiares em todos os momentos desse processo.13 Mas, mesmo com o conhecimento do texto legal9 por parte de algumas mulheres, esse fato não lhes assegurou o exercício de cidadania e a efetividade do direito. Seus depoimentos são claros a esse respeito:
[...] como sei da Lei do Acompanhante e já me falaram também que eu tinha direito [...] comecei a reclamar que iria chamar a polícia, porque tinha uma lei e eles estavam desrespeitando e iria procurar os meus direitos. [...] mas não consegui [...] (P02);
[...] eu briguei com todo mundo aqui. [...] sei que tem uma lei [...]. Tenho um direito de ter o acompanhante, chamei a policia e tudo, mas não consegui atendimento, pois não tinha espaço suficiente para isso [...] (P19).
Como foi dito, impedir a presença do acompanhante durante todo o trabalho de parto e nascimento caracteriza uma privação de direito das mulheres quanto aos seus direitos sexuais, reprodutivos e humanos, pois quaisquer ações ou formas de organização que dificultem, retardem ou impeçam o acesso da mulher aos seus direitos constituídos, sejam estes ações ou serviços, de natureza pública ou privada, constituem violação da sua pessoa quanto aos seus direitos conquistados.11
Atualmente, a judicialização na saúde tem se tornado praxe para o cumprimento desse direito. Algumas mulheres procuram o Ministério Público ou chamam a polícia quando dão entrada no serviço de saúde, denotando a evidente vulnerabilidade na assistência à sua saúde, e a necessidade de ações efetivas para sua proteção.11,14 No caso relatado acima, a violação resultou no desrespeito ao direito da mulher como cidadã, visto que mesmo buscando apoio policial, a entrevistada não obteve sucesso em sua iniciativa de conseguir que a Lei do Acompanhante9 fosse cumprida, como também a garantia das ações preconizadas na Política de Humanização do Parto e Nascimento no que se refere ao acompanhamento do processo parturitivo.8
A autoridade e o poder conferidos pela instituição ao profissional de saúde, permitiu que a mulher vivenciasse uma relação de desigualdade na relação de poder, não lhe restando outra opção a não ser a submissão e a anulação do seu direito ao acompanhante durante o componente do parto e nascimento:
[...] pois, quando eles [profissionais] falam que não pode [ter acompanhante] acho que é normal, nem questiono, e não falo nada, pois eles entendem disso [...] (P01);
[...] já sei como funciona, achei normal, porque eles [profissionais] falam que não pode entrar ninguém, e temos de respeitar e acatar o que falam para a gente [...] (P10).
Destaque deve ser dado ao fato de que os discursos das entrevistadas, majoritariamente, relataram a ausência do acompanhante, mesmo sabendo da existência desse direito. Apenas uma entrevistada alegou desconhecimento em relação ao assunto, inclusive achando-se ‘errada’. Assim, estar de acordo com o que lhe fosse determinado, evidencia total desconhecimento acerca dos seus direitos legais.15
Mesmo existindo um despreparo das instituições e dos profissionais de saúde para receber o acompanhante como um ‘novo personagem’ no ambiente cotidiano de atendimento ao parto e nascimento, eles devem incorporar a aplicabilidade da Lei9 no desenvolvimento de suas atividades assistenciais. Entretanto, apenas o componente individual dos profissionais de saúde não garante que as maternidades passem a inserir o acompanhante durante o parto, pois a efetivação dessa medida requer a existência de diretrizes institucionais, cuja implementação demanda reorganização da estrutura e o envolvimento participativo de instâncias colegiadas, observada uma dimensão da Política de Humanização do Parto e Nascimento. Todavia, essas mudanças demandarão esforços coletivos, além de suscitar resistências, mesmo diante de uma experiência bem sucedida vivenciada por alguns profissionais de saúde.16
Ocorre, então, que o poder e a autoridade institucional dos profissionais de saúde ultrapassam a relação horizontal de cuidado. Em especial no que diz respeito à Lei do Acompanhante,8-9 desconsiderada na maioria das vezes, corrobora a existência de uma relação desigual, tornando-se uma violação de ordem institucional.10 Assim, alguns profissionais, ao se posicionarem do lado institucional, perpetuam desigualdades nas relações de poder que condizem com o desrespeito e as iniquidades, conforme relatado nos depoimentos:
[...] achei uma indiferença comigo, um tratamento ruim com que eles [profissionais] me trataram. Não deixaram a minha mãe entrar no pré-parto. No parto o médico disse que ninguém vai entrar, e aqui não pude ficar com ninguém. Me sinto sozinha o tempo todo, sem ninguém da família [...] me tratou igual a um cavalo [...] uma situação horrível e desumana, ele me tratando mal e me desrespeitando o tempo todo [...] (P05);
[...] não dá para dialogar com a médica, uma bruta e grossa, uma insensível, pois deveria ter deixado a minha mãe entrar nesse momento. [...] um momento que esperamos e ela não deixou, falou que não podia e não iria deixar. [...] as enfermeiras, e não tinha condição mesmo [...] (P09).
Nesse contexto, o predomínio da soberania de muitos profissionais de saúde remete ao processo paradigmático do cuidado à mulher, em que ela perdeu historicamente o protagonismo no momento do parto, além de ter suas escolhas coibidas, dentre elas a de ter alguém de sua confiança ao seu lado. Em contrapartida, o profissional de saúde passou a tomar decisões sobre as circunstâncias em que a parturição deveria transcorrer. Diante disso, a mulher que escolhe ter um acompanhante, e seguir os preceitos legais da Política de Humanização do Parto e Nascimento,9 fica à mercê do profissional de saúde e da rotina da unidade, tornando-se uma figura institucionalizada que se ocupa somente em seguir as regras e rotinas às quais deve se submeter. Essa prática ainda se constitui uma realidade nos serviços obstétricos no Brasil.17
Não é demais lembrar que a formação dos médicos obstetras, ainda hoje, encontra-se pautada no uso de técnicas intervencionistas. Parece haver, também, um desconhecimento acerca da legislação que concede direitos à mulher, sobretudo o de ter um acompanhante durante o processo parturitivo. Todavia, a legalidade e os benefícios dessa prática tem sido insuficientes para ensejar uma mudança efetiva na postura dos profissionais de saúde a esse respeito.1
O poder é uma forma de ação exercida sobre a ação dos outros, ocorrendo por meio das inter-relações. A privação de um direito, por sua vez, implica na própria anulação das possibilidades de ação, utilizando-se da força, da autoridade, da coação ou mesmo da destruição como formas de ação.18-19 Assim, o exercício do poder e da autoridade pelo profissional de saúde pode promover uma anulação do direito da mulher. A propósito, nos discursos foi destacado o impedimento da presença do acompanhante de livre escolha na enfermaria. Muitas instituições dificultam a garantia do direito impondo-lhes a obrigatoriedade do gênero feminino e o impedimento do masculino:
[...] o meu marido ficou comigo o tempo todo, desde o início das contrações até o neném nascer. Depois que foi para a enfermaria, que somente tem mulheres, ele [marido] não pode mais ficar comigo, somente na visita e ia embora [...] (P07);
[...] aqui no quarto não pode ter ninguém, pois não tem espaço suficiente para ficar comigo e tem outras meninas e não pode ter homem aqui, pois fica chato para as outras meninas, acho que cada uma deveria ter o seu quarto [...] mas como não tem, não dá para ter acompanhante. Mas se fizer um investimento dá para ter. Com quartos separados seria o ideal para ter mais conforto [...] (P17).
As limitações físicas dos serviços realmente podem dificultar a inserção do acompanhante em determinados ambientes, porque os prédios de alguns hospitais possuem uma estrutura cujo plano original não permite ampliações, muito menos a permanência de outra pessoa em alguns espaços, além da parturiente. A distribuição desses espaços também interfere na privacidade das demais parturientes, que se sentem “constrangidas” com a presença de acompanhantes do gênero masculino. Assim, alguns serviços permitem somente acompanhantes do gênero feminino, limitando as possibilidades de escolha das parturientes, fato que precisa ser contornado, talvez com a utilização de biombos, visando a satisfação das mulheres em relação ao seu acompanhante legal. É importante lembrar que a inadequação estrutural não pode ser um impeditivo ao pleno exercício de cidadania da mulher, cabendo ao sistema/serviços/gestores e profissionais de saúde garantirem o que está expresso no texto legal em relação ao direito ao acompanhante durante o processo parturitivo.1,8-9
Não permitir a presença do homem na qualidade de acompanhante de livre escolha da mulher implica na violação do seu direito de escolha, e quando esse direito não é assegurado pela instituição, sob a alegação da necessidade de preservar a privacidade das demais parturientes, os profissionais de saúde apresentam à mulher, como justificativa, o fato de que a ambiência é inadequada. Assim, encerra-se a discussão e o direito ao acompanhante masculino lhe é negado. Mas esse impeditivo não deve ocorrer visto que a Política de Humanização do Parto e Nascimento, como já mencionado, estabelece uma relação participativa para a construção de melhor assistência e garantia dos direitos das mulheres quanto à Lei n. 11.108/2005.8-9
Existiram pontos citados nas falas das mulheres que contribuíram para inferir a associação entre a percepção de violência psicológica e a ausência de um acompanhante. Como exemplos, pode-se observar situações como as de PS02 e PS19, a privação da presença do acompanhante e a necessidade conflituosa de acionar a polícia para assegurar o cumprimento do referido direito.
A Lei do Acompanhante como instrumento de segurança para as mulheres em processo de parturição
Os períodos gravídico e puerperal contribuem para a ocorrência de diversas modificações nos estados emocional e social da mulher. Pode causar sensações de insegurança e ansiedade diante da nova realidade que se aproxima, fragilizando-a e colocando-a em situação de vulnerabilidade emocional, fato que intensifica a necessidade da presença de uma pessoa de sua relação de companheirismo, atenção e afetividade.16 Todavia, o estudo revelou sentimentos negativos relacionados ao não acompanhamento do parto e nascimento, tais como: medo, angústia, desconfiança, insegurança em relação ao processo assistencial. Como pode ser visto, esses sentimentos encontram-se recorrentes nos relatos das mulheres:
[...] eu me senti roubada [...] muito mal [...] passei até mal na sala, quase desmaiei, um horror [...]. A médica roubou esse momento, e nunca vai se apagar da minha memória, mas tudo volta àqueles que fazem o mal, eu acredito [...] (P04);
[...] me sinto desgastada, estressada, a minha pressão estava alta [...]. Falando isso me dá vontade de chorar [...] Que é horrível, é horrível [choro]. As enfermeiras falam que isso é normal, não te dão nenhum auxilio maior, nenhuma informação é repassada, o que nós precisamos saber [...] (P13);
[...] mal. O psicológico da gente fica ruim, a gente quer chorar, e só tem médico perto, não tem alguém ao seu lado, e você fica meio de lado assim, me sentido meio deixada e jogada! [...] (P16).
O parto é um processo natural, embora envolva fatores diretamente associados a sentimentos e expressões biopsicossociais e culturais que podem ser negativas ou positivas. É um evento impactante, pleno de preocupações, mas seguido por uma emoção significativa decorrente do fato de que a mulher agora se torna mãe.3 Assim, o cenário do nascimento, desconhecido e amedrontador para muitas mulheres, pode acarretar prejuízos à sua saúde,18 e um aspecto que pode comprometer decisivamente o processo de nascimento e perpetuar essa insegurança, é a ausência de um acompanhante, visto que a presença de um acompanhante contribui para um apoio à mulher, e tem um impacto direto nos sentimentos negativos do parto, como a ansiedade.20
Nessa perspectiva, a Resolução RDC n. 36/2013 da ANVISA aponta para a segurança do paciente, cabendo ao serviço de saúde proporcionar-lhe uma assistência com redução de possíveis riscos à sua saúde, no caso presente, da mulher e do concepto, além de favorecer o acompanhamento à mulher no trabalho de parto, parto e puerpério imediato, previsto na Lei do Acompanhante sobejamente citada.8-9 Sendo assim, incentivar esse acompanhamento, reduz riscos e possíveis danos à saúde materna, pois, do ponto de vista de confiança no processo de nascimento, diminui o estado de ansiedade da gestante e, consequentemente, promove uma resposta positiva à assistência prestada.8,13
Quando a mulher não se sente apoiada por alguém de sua confiança, seja esse acompanhante um familiar ou não, a falta do acompanhante contribui negativamente para desfechos desfavoráveis para a mulher, o concepto e a família. Ao contrário, quando a Lei do Acompanhante9 é garantida, o processo de parto e nascimento torna-se seguro, qualificando a assistência durante todo o processo parturitivo, como determina a Política de Humanização do Parto e nascimento, e como comprovam os discursos das mulheres:
[...] eles [profissionais] te deixam num canto e não te dão nenhuma assistência, e não te ajudam em um banho, a cuidar do neném, e com a minha mãe aqui iria me ajudar em tudo, e mais um pouco e eles não fazem nada [...] fiquei isolada demorava horas para me atender, fiquei péssima e muito chateada, muito ruim o atendimento [...] (P08);
[...] não te dão nenhuma atenção. O médico e a enfermeira demora para te atender e fica horas sem ninguém, sozinha o tempo todo, e com o acompanhante teria alguém para me ajudar a andar, no banho, com as dores e a cuidar do neném. Isso ajudaria muito e seria bem melhor. Foi horrível essa coisa, sem atenção com a gente, parece que não se preocupava [...] (P11).
A negligência com aspectos emocionais e relacionais do cuidado no parto e pós-parto imediato torna-se evidente na atualidade, especialmente quando a mulher permanece longo período sozinha e submetida a uma sensação de abandono,21 tendo em vista que em muitas situações, o serviço e o profissional de saúde “demoram” para atender as suas demandas. Essa carência de instituições adequadas de saúde e de apoio profissional, agravada pela ausência de um acompanhante de sua confiança, resulta de situações passíveis de contribuir para desfechos negativos do processo do parto e nascimento, mas que podem ser evitadas se a mulher receber a atenção de que necessita nesse momento especial.
A escassez de apoio físico e psicológico à mulher durante o componente do parto e nascimento11 pode ser observada quando ocasiona maior instabilidade emocional e psíquica, além de sentimentos de insegurança no trabalho de parto e parto que resultam em malefícios para a saúde da mulher. Seguem-se os discursos em que as mulheres apontaram essa falta de apoio em relação à dor na fase das contrações uterinas:
[...] me senti sozinha, jogada e achei que iria morrer aqui nesse hospital [...] com muita dor e sozinha [...] horrível você sentir aquela dor forte e pensar que vai morrer. [...] (P06);
[...] para estar com alguém do meu lado, dando apoio, me sentiria menos vulnerável e mais segura. Foi horrível essa situação, mas ocorreu tudo de ruim, a dor, que dor, meu Deus, muito forte, e com o meu marido não seria tão forte, daria para suportar [...] (P12).
O nascimento é uma fase de transformação fami liar e, portanto, merece atenção especial. Sendo assim, a presença do acompanhante é indispensável e deve ser vista de forma positiva por todos aqueles que estão envolvidos. Para isso, é necessária a qualidade da assistência, e não somente o cumprimento das técnicas e das rotinas, já que o parto é um momento de intensas emoções e a participação do acompanhante favorece, inclusive, as contribuições no âmbito familiar.22
Durante as contrações uterinas, o acompanhante deve transmitir à mulher conforto, apoio emocional e físico, além de incentivo, a fim de inibir os mecanismos de desconforto e promover a segurança do processo do nascimento.23,24 Esta percepção da participação do acompanhante ancora-se no apoio emocional, e tem sua maior expressão na transmissão de segurança e conforto para a parturiente em um momento em que a solidão e o medo se fazem presentes.17 Dessa forma, a presença do acompanhante, além de assegurar apoio emocional importante à mulher durante o processo de parturição, também contribui para o resgate do nascimento como um momento da família.10 Cabe destacar que as ações de apoio desenvolvidas pelo acompanhante, como o auxílio no suporte à mulher para a redução da dor, do medo e do estresse durante o processo parturitivo, torna-se essencial para a segurança do parto e nascimento.1
A ausência de apoio institucional de caráter privado, relacionada com a Lei do Acompanhante,9 pode ser observada nos depoimentos das mulheres, quando relataram que a unidade hospitalar particular tende a respeitar o texto legal, ao contrário do serviço de saúde público:
[...] e se quisesse procurar um hospital particular, aqui ela não deixava, me senti abandonada, muito ruim essa situação e se não fosse teria de procurar outro local, somente o particular tem o acompanhante [...] (P07);
[...] e disse: ‘somente no particular tem isso, aqui não tem isso’, e me senti desesperada e abandonada, queria pelo menos o meu pai comigo [...] (P14).
É fato que a presença do acompanhante torna-se uma estratégia benéfica no parto e nascimento, sendo vista como um diferencial no modelo de parto humanizado capaz de proporcionar inúmeros benefícios durante todo o processo, permitindo vivenciar esse processo de forma mais segura e protegida,25-26 como determina a Política de Humanização do Parto e Nascimento.
Os depoimentos remetem ao que “seria diferente no serviço particular”, e essa noção permeia uma condição de apoio que o serviço de saúde na instituição pública negou. Com esse descumprindo a Lei do Acompanhante contribui para a insegurança da mulher no momento do parto.
Pelo que foi exposto, infere-se que no imaginário social, se a mulher “paga”, o serviço concede-lhe mais apoio durante o processo parturitivo, e a sua vivência permite que o processo seja mais seguro, ao contrário das mulheres do estudo, que apontaram essa diferenciação de caráter socialmente discriminatório, que precisa ser superada pelas instituições, por gestores e profissionais da saúde, a partir do cumprimento da Lei do Acompanhante em vigor, bem como da Política de Humanização do Parto e Nascimento.8-9,25
Pontos citados nos discursos das mulheres contribuíram para inferir a associação entre a percepção de situações de violência psicológica e a ausência de um acompanhante. Como exemplo, nos casos das entrevistadas P04, P13 e P16, a ausência de suporte emocional, sobreposta pela privação do respectivo acompanhante, permitiu a presença de desgaste emocional, estresse e insegurança, mediante tensões relacionadas às estruturas institucionais e às desigualdades nas relações de poder entre usuárias e profissionais.
Desse modo, deve-se rever a lógica de cuidado à mulher, visto que o acompanhante constitui uma tecnologia de cuidado e contribui para a segurança e menos tempo no trabalho de parto, enquanto a sua ausência repercute diretamente nos sentimentos negativos e na insegurança do processo de nascimento.
CONCLUSÃO
O descumprimento da Lei 11.108/2005 (Lei do Acompanhante) se dá nas maternidades públicas, pelo desconhecimento da mulher a respeito do seu direito de ter um acompanhante de sua livre escolha durante o parto e o nascimento. Além disso, ficou caracterizado que a privação do direito ao acompanhante também se efetivou pela desigualdade nas relações de poder dos profissionais de saúde, e por estruturas tradicionais das instituições, além de características do modelo de gestão vigente.
Não permitir a presença do acompanhante no momento do parto e nascimento é uma prática que se expressa culturalmente nas relações com os profissionais de saúde, segundo a qual o acompanhante é uma “complicação” nesse momento. Assim, em algumas situações, o profissional acaba utilizando sua autoridade e poder institucional para impedir que a mulher faça valer esse direito legal, o que pode caracterizar uma violação dos direitos sexuais, reprodutivos e humanos.
Desse modo, o acompanhante assegura à mulher apoio físico e emocional auxiliando a acalmá-la e promovendo a fisiologia do parto, assim inibindo intervenções desnecessárias e até mesmo a própria violência, manifestada pelos profissionais de saúde com condutas inadequadas e discriminatórias que, por ocasionarem sentimentos negativos na mulher, podem contribuir para um parto mais inseguro.
A avaliação constante da assistência obstétrica permitirá a melhoria dos indicadores e retratará os principais problemas nessa área de atuação profissional contribuindo, sobremaneira, para que haja priorização na humanização da assistência à mulher em qualquer fase da sua gestação, tendo em vista banir do processo assistencial qualquer forma de violência e, sobretudo, e fazer cumprir rigorosamente o que prevê a Lei do Acompanhante.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
2017
Histórico
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Recebido
19 Out 2015 -
Aceito
12 Jul 2016