Acessibilidade / Reportar erro

CUIDADO HUMANO À LUZ DA FENOMENOLOGIA DE MERLEAU-PONTY

RESUMO

Objetivo:

refletir sobre a noção de intersubjetividade de Maurice Merleau-Ponty como um referencial possível para pesquisas e ações voltadas ao cuidado humano.

Método:

análise reflexiva, que desvelou três eixos temáticos: intersubjetividade e o cuidado integral; intersubjetividade e interdisciplinaridade no contexto do cuidado; e a descrição de vivências do corpo próprio no contexto do cuidado em saúde.

Resultados:

a discussão mostra elementos estruturantes da noção Merleau-Pontyana de intersubjetividade, tais como: o diálogo, o respeito, o vínculo e a linguagem. Por outro lado, revela ambiguidades inerentes ao entrelaçamento do mundo da vida e da cultura, produzidas na intersubjetividade, que faz surgir diferentes perfis de cuidado, tendo em vista seu potencial para produzir interdisciplinaridade e integralidade no contexto das práticas de saúde.

Conclusão:

a intersubjetividade pode contribuir para que o cuidado de si, do outro e do mundo ocorra de forma mais criativa e inovadora.

DESCRITORES:
Enfermagem; Cuidados de enfermagem; Saúde pública; Filosofia em enfermagem; Integralidade em saúde

ABSTRACT

Objective:

to reflect on Maurice Merleau-Ponty’s notion of intersubjectivity as a potential reference to researches and actions directed to human care.

Method:

a reflexive analysis addressing three thematic areas: intersubjectivity and the holistic care; intersubjectivity and interdisciplinarity within the context of care; and description of experiences related to the own body within the context of health care.

Results:

the discussion presents structuring elements of Merleau-Ponty’s notion of intersubjectivity, such as: dialogue, respect, bond, and language. On the other hand, it reveals ambiguities inherent in the connection of life and culture worlds, created in the intersubjectivity, resulting in different profiles of care, considering its potential to create interdisciplinarity and integrity within the context of health practices.

Conclusion:

intersubjectivity can contribute by making more creative and innovative the care with ourselves, the others, and the world.

DESCRIPTORS:
Nursing; Nursing care; Public health; Philosophy, nursing; Integrality in health

RESUMEN

Objetivo:

reflexionar sobre la noción de intersubjetividad de Maurice Merleau-Ponty como un referencial posible para investigaciones y acciones dirigidas al cuidado humano.

Método:

análisis reflexivo, que desveló tres ejes temáticos: intersubjetividad y el cuidado integral; intersubjetividad e interdisciplinariedad en el contexto del cuidado; y la descripción de las vivencias del cuerpo propio en el contexto del cuidado en salud.

Resultados:

la discusión muestra elementos estructurantes de la noción Merleau-Pontyana de intersubjetividad, tales como: el diálogo, el respeto, el vínculo y el lenguaje. Por otro lado, revela ambigüedades inherentes al entrelazamiento del mundo de la vida y de la cultura, producidas en la intersubjetividad, que hace surgir diferentes perfiles de cuidado, teniendo en vista su potencial para producir interdisciplinariedad e integralidad en el contexto de las prácticas de salud.

Conclusión:

la intersubjetividad puede contribuir para que el cuidado de sí, del otro y del mundo ocurra de forma más creativa e innovadora.

DESCRIPTORES:
Enfermería; Cuidados de enfermería; Salud pública; Filosofía en enfermería; Integralidad en salud

INTRODUÇÃO

O cuidado constitui a base da existência humana e excede a concepção de um momento de atenção, envolve respeito ao sentido e significado das experiências vividas, abertura ao diálogo e à empatia, habilidades e atitudes que se efetivam na relação de intersujeitos que se propõem a correr riscos, a potencializar encontros e construir projetos de vida mais autônomos.11. Alves VH, Alves PMS, Padoin SMM. The technicalization and practice of labor care: a phenomenological approach based on Husserl. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [cited 2017 Aug 16]; 25(3):e1750015. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016001750015
http://dx.doi.org/10.1590/0104-070720160...
-22. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2009.

Pensar no cuidado a partir de uma perspectiva fenomenológica supõe a ampliação do olhar para além do tecnicismo e o reconhecimento do potencial da intersubjetividade para mobilizar o sentimento de dignidade humana, que considera o entrelaçamento de diversos projetos no mundo da vida das pessoas.11. Alves VH, Alves PMS, Padoin SMM. The technicalization and practice of labor care: a phenomenological approach based on Husserl. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [cited 2017 Aug 16]; 25(3):e1750015. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016001750015
http://dx.doi.org/10.1590/0104-070720160...

Entretanto, observamos no cotidiano do cuidar a permanência do modelo biomédico, tanto em alguns processos formativos quanto na atuação de alguns profissionais de serviços de saúde, que não conseguem fazer uma escuta terapêutica e acolher as demandas dos usuários. A rigidez desse modelo acarreta atrasos, impede o surgimento de inovações no campo da saúde e impossibilita a inclusão de novas estratégias de cuidado voltadas para o estabelecimento da interdisciplinaridade e integralidade da assistência.

No que tange à interdisciplinaridade, esta tem sido um processo contínuo e crescente no setor da saúde, na tentativa de superar a fragmentação do conhecimento humano, em busca de uma visão globalizada da complexa dimensão do processo saúde-doença.33. Pimentel EC, Vasconcelos MVL, Rodarte RS, Pedrosa CMSEnsino e aprendizagem em estágio supervisionado: estágio integrado em saúde. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2015 [cited 2017 Aug 16]; 39(3):352-8. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1981-52712015v39n3e01262014
http://dx.doi.org/10.1590/1981-52712015v...
Nas três últimas décadas, os profissionais de saúde têm superado a visão estritamente biológica da saúde,44. Velloso MP, Guimaraes MBL, Cruz CRR, Neves TCC. Interdisciplinaridade e formação na área de saúde coletiva. Trab Educ Saúde [Internet]. 2016 [cited 2017 Aug 16]; 14(1):257-71. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sip00097
http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sip0...
ao mesmo tempo em que reconhecem a complexidade em termos de saberes e práticas presentes em um modelo de atenção,55. Brehmer LCF, Ramos FRS. O modelo de atençãoo à saúde na formação em enfermagem: experiências e percepções. Interface (Botucatu) [Internet]. 2016 [cited 2017 Aug 16]; 20(56):135-45. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0218
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015....
o que corrobora a ideia de que a concretude das ações dos profissionais de saúde constitui-se como um desafio no processo de consolidação do cuidado integral. Para tanto, consideramos necessário que, já nas universidades, os discentes da área da saúde tenham acesso às bases teóricas nas quais é abordada a produção de cuidado de forma interdisciplinar.66. Higa EFR, Gomes R, Carvalho MHR, Guimarães APC, Taipeiro EF, Hafner MLMB, et al. Perceptions of nursing alumni regarding the course contribution in providing health care. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2013 [cited 2017 Aug 16]; 22(1):97-105. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072013000100012
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072013...

Desse modo, o estudo sobre o cuidado tem evoluído com o passar do tempo e é compreendido como essência de algumas profissões, como da Enfermagem, por exemplo. Portanto, sugere uma reflexão filosófica, ontológica e holística envolvida no cuidar e que deve ultrapassar o empirismo, aprimorando os saberes no campo da saúde, por meio das experiências humanas cotidianas.11. Alves VH, Alves PMS, Padoin SMM. The technicalization and practice of labor care: a phenomenological approach based on Husserl. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [cited 2017 Aug 16]; 25(3):e1750015. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016001750015
http://dx.doi.org/10.1590/0104-070720160...
,77. Rocha GSDA, Angelim RCDM, Andrade ARLD, et al. Cuidados de enfermagem aos indivíduos soropositivos: reflexão à luz da fenomenologia. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Aug 16]; 19(2):258-65. Available from: Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1020
http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1...

Nesse contexto, o ingresso no curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Saúde, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, mais especificamente, a disciplina “Cuidado Humano, Integralidade e Interdisciplinaridade”, abriu-nos a possibilidade de desenvolver uma proposta de cuidado fundamentada na fenomenologia da percepção, com ênfase na noção Merleau-Pontyana de intersubjetividade.88. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo. SP: Martins Fontes; 2015. As discussões em sala de aula e o aprofundamento teórico nos fizeram ver que todo cuidado ocorre como relação, como um movimento ambíguo que envolve a transcendência do continuum cuidado-descuido-cuidado e que ocorre por meio do entrelaçamento do irrefletido (descuido) com o refletido (cuidado), que aparece na intersubjetividade.

As contribuições da fenomenologia para a ciência são inúmeras e, no caso da saúde, esta tem despertado o interesse de vários autores, dado o enfoque humanista e existencialista dessa forma de produzir conhecimento, o qual tem sido construído a partir do mundo vivido e das múltiplas dimensões que envolvem o cuidado no processo de viver humano até então inexploradas.99. Sena ELS, Gonnçalves LHT. Intercoporeidade na experiência do cuidado: familiar cuidador e portador da doença de Alzheimer. In: Silva AL, Gonçalves LHT, eds. Cuidado à pessoa idosa: estudos no contexto luso-brasileiro. Porto Alegre (RS): Sulina; 2010:193-218.-1111. Lacchini AJB, Noal HC, Padoin SMM, Terra MG. Percepção de uma equipe de enfermagem cirúrgica acerca do cuidado aos pacientes com transtorno mental. Rev Gaúcha Enferm[Internet]. 2010 [cited 2017 Aug 16]; 30(3):468-75. Available from: Available from: http://seer.ufrgs.br/RevistaGauchadeEnfermagem/article/view/9092
http://seer.ufrgs.br/RevistaGauchadeEnfe...

Apesar de Maurice Merleau-Ponty não ter escrito sobre o cuidado em suas obras, a retomada da percepção do homem como um eu posso, como um horizonte de possibilidades, constitui-se como um novo olhar sobre as pessoas, os contextos e os vividos de todos os envolvidos no cuidado.

Nessa perspectiva, o cuidado deve contribuir para a construção de contextos de intersubjetividades e potencializar a capacidade dos sujeitos envolvidos no processo, de modo que o cuidador e o ser cuidado se beneficiem da interação e da ambiguidade inerente à vida humana, que abre sempre possibilidades para tornar-se um outro eu mesmo,88. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo. SP: Martins Fontes; 2015.-99. Sena ELS, Gonnçalves LHT. Intercoporeidade na experiência do cuidado: familiar cuidador e portador da doença de Alzheimer. In: Silva AL, Gonçalves LHT, eds. Cuidado à pessoa idosa: estudos no contexto luso-brasileiro. Porto Alegre (RS): Sulina; 2010:193-218.sempre quando “se envolvem em uma relação de aproximação e afastamento, nos momentos de fala e de silêncio, de presença e ausência”.1111. Lacchini AJB, Noal HC, Padoin SMM, Terra MG. Percepção de uma equipe de enfermagem cirúrgica acerca do cuidado aos pacientes com transtorno mental. Rev Gaúcha Enferm[Internet]. 2010 [cited 2017 Aug 16]; 30(3):468-75. Available from: Available from: http://seer.ufrgs.br/RevistaGauchadeEnfermagem/article/view/9092
http://seer.ufrgs.br/RevistaGauchadeEnfe...
:472

No presente artigo, objetivamos refletir sobre a noção de intersubjetividade de Maurice Merleau-Ponty como um referencial possível para pesquisas e ações voltadas ao cuidado humano. Para tanto, partimos da seguinte questão norteadora: como referenciar a noção de intersubjetividade de Maurice Merleau-Ponty em pesquisas e ações voltadas ao cuidado humano?

A partir de tal questionamento, a análise reflexiva permitiu-nos o desvelar de três eixos temáticos, a saber: Intersubjetividade e o cuidado integral; Intersubjetividade e interdisciplinaridade no contexto do cuidado; e A descrição de vivências do corpo próprio no contexto do cuidado em saúde.

A partir de produções nacionais da área da saúde, apresentamos, no primeiro eixo, a relação entre intersubjetividade e cuidado integral, na medida em que ela favorece a escuta humanizada, o acolhimento e a construção do vínculo cuidador-pessoa cuidada; no segundo eixo, incluímos uma produção internacional e assumimos a intersubjetividade como elemento potencializador da interdisciplinaridade, e realçamos a importância de considerarmos as dimensões humanas complexas e menos objetivistas para a promoção de práticas em saúde mais horizontais e integralizadas.

Por fim, no terceiro eixo, ressaltamos como a percepção sobre o homem, o mundo e as coisas ocorre a partir de encontros e pode contribuir para a ressignificação de vivências de sofrimento e promoção da saúde de todas as pessoas envolvidas no processo de cuidado. Assim, além de produções nacionais que dão relevo às considerações filosóficas para a robustez das pesquisas na área da saúde e, mais especificamente, da enfermagem, também nos respaldamos em duas obras Merleau-Pontyanas: Fenomenologia da Percepção8 e A Prosa do Mundo,1414. Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo. SP: Cosac Naify;2012. como matrizes para apontar a necessidade do investimento em pesquisas e ações em saúde com maior foco na intersubjetividade.

REFLEXÃO

Intersubjetividade e o cuidado integral

O cuidado, visto como uma experiência intersubjetiva, possibilita aos usuários dos serviços de saúde experimentar a capacidade restauradora da relação com o outro e com o mundo, que ocorre como expressividade, dinamicidade e flexibilidade.22. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2009.,66. Higa EFR, Gomes R, Carvalho MHR, Guimarães APC, Taipeiro EF, Hafner MLMB, et al. Perceptions of nursing alumni regarding the course contribution in providing health care. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2013 [cited 2017 Aug 16]; 22(1):97-105. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072013000100012
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072013...
,99. Sena ELS, Gonnçalves LHT. Intercoporeidade na experiência do cuidado: familiar cuidador e portador da doença de Alzheimer. In: Silva AL, Gonçalves LHT, eds. Cuidado à pessoa idosa: estudos no contexto luso-brasileiro. Porto Alegre (RS): Sulina; 2010:193-218.,1212. Merhy EE. Reforma psiquiátrica no cotidiano: multiplicidades no cuidado e por uma ética cidadã: manejos das ações relacionais. In: Merhy EE, Amaral H, eds. A reforma psiquiátrica no cotidiano II. São Paulo. SP: Hucitec; 2007:13-6.A pessoa que cuida, independentemente de ser familiar, trabalhador de saúde ou outro tipo de cuidador, poderá atualizar vivências, desfazer e refazer percepções em relação a si mesmo, ao próximo e às coisas e tornar-se um outro eu mesmo, o que implica em maior abertura para a vida e melhores condições de saúde.

A vivência do tornar-se outro ou um eu posso ocorre a partir da experiência do corpo próprio, sendo o corpo a percepção e o próprio a possibilidade de transcendência. Isto permite dizer que, a cada nova vivência, um passado pode ser retomado e uma perspectiva de futuro pode surgir, e com esta um outro eu mesmo.88. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo. SP: Martins Fontes; 2015. À medida que profissionais de saúde percebem os sujeitos como participantes da relação, e não como objetos de intervenção, contribuem para o desfazer e refazer identidades, bem como suas historicidades individuais e coletivas.22. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2009. O cuidado, assim, deverá ocorrer por meio da intersubjetividade, o que remete a um posicionamento comprometido e engajado em relação ao outro e à construção de projetos de vida mais autônomos, tanto para quem é cuidado como para quem cuida.22. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2009.

Assim, as estratégias que favorecem a construção de contextos de intersubjetividade encontram total aceitação entre as novas concepções de cuidado, que passou a ser visto como um elemento transformador de modos de viver e sentir o sofrimento, a partir da corresponsabilização pela saúde da coletividade.22. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2009.

A construção de subjetividades envolve os aspectos relacional, pragmático e reconstrutivo de identidades e implica na superação do caráter objetivista produzido pela ideia de permanência e “mesmidade” do indivíduo, que limita o avanço das práticas de promoção da saúde, sobretudo daquelas em que o êxito dependeria de um posicionamento deste como sujeito da sua própria saúde.22. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2009. Tal ideia corrobora com a compreensão de que “no pensamento objetivo não há lugar para outrem e para uma pluralidade de consciências”.88. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo. SP: Martins Fontes; 2015.:468

Nesse sentido, percebemos que a relação cuidador-pessoa cuidada e vice-versa favorece a experiência da transcendência, que ocorre como identificação de um sujeito em contínua reconstrução, a partir da presença do outro. Deste modo, o cuidado sempre contribui para a construção de algo criativo e novo, vez que por ser incompleto e inacabado, está constantemente aberto ao vínculo gozoso que se constrói e reconstrói na intersubjetividade. Logo, o cuidado aparece como encontro desejado entre sujeitos, cuja subjetividade está em constante reconstrução, traduz-se como sucesso existencial e promove a felicidade.22. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2009.

Este tipo de encontro oferece ao ser que cuida a oportunidade de mostrar-se a si mesmo, a partir de sua subjetividade, a qual pode ser mobilizada pelo ser cuidado, pelo trabalhador de saúde, pelos demais familiares e/ou outros atores sociais, ao mesmo tempo em que mobiliza estas pessoas a conhecer-se também e, neste sentido, o cuidado, como elemento motivador da relação, corresponde a um conhecimento autêntico e criativo que se faz a cada experiência dialógica.99. Sena ELS, Gonnçalves LHT. Intercoporeidade na experiência do cuidado: familiar cuidador e portador da doença de Alzheimer. In: Silva AL, Gonçalves LHT, eds. Cuidado à pessoa idosa: estudos no contexto luso-brasileiro. Porto Alegre (RS): Sulina; 2010:193-218.

A abertura ao diálogo e a utilização da linguagem como possibilidade de experimentar um universo de resistências e alteridade que pode revelar o encontro ou o desencontro, este entendido como um sentimento de fracasso que pode relacionar-se a não-adesão das pessoas às propostas dos trabalhadores e a nossa dificuldade para comunicá-las.22. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2009. Neste sentido, a noção Merleau-Pontyana de que a linguagem constitui-se um gesto ambíguo e espontâneo, que preenche lacunas, dissolve opacidades e solicita ao corpo a atenção da existência inteira, confirma que até mesmo os desencontros podem fazer ver a facticidade do homem e do mundo.88. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo. SP: Martins Fontes; 2015.

Nesta perspectiva, os desencontros também podem ser vistos sob a ótica do cuidado, em que os sujeitos como territórios existenciais movimentam-se e produzem vida por meio da ressignificação de situações que passam a ter novos sentidos, “em um movimento em que o agir vivo de um dispara produção de vida no outro”.1313. Merhy EE. Cuidado com o cuidado em saúde: saber explorar seus paradoxos para um agir manicomial. In: Merhy EE, Amaral H, eds. A reforma psiquiátrica no cotidiano II. São Paulo. SP: Hucitec; 2007:23-37.:29 Dessa forma, é necessário compreender que a facticidade do homem também pode mostrar-se no desencontro, na presença de alguém ou de alguma coisa que, ao solicitar a sensibilidade, a solidariedade, o respeito, a compaixão, a harmonia, a criatividade, a arte e a intuição, abre espaço para vivências transformadoras.1010. Terra MG, Goncalves LHT, Santos EKA, Erdmann AL. Fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty como referencial teórico-filosófico numa pesquisa de ensino em enfermagem. Rev Gaúcha Enferm [Internet]. 2009 [cited 2017 Aug 16]; 30(3):547-51. Available from: Available from: http://www.seer.ufrgs.br/RevistaGauchadeEnfermagem/article/view/4163
http://www.seer.ufrgs.br/RevistaGauchade...
-1111. Lacchini AJB, Noal HC, Padoin SMM, Terra MG. Percepção de uma equipe de enfermagem cirúrgica acerca do cuidado aos pacientes com transtorno mental. Rev Gaúcha Enferm[Internet]. 2010 [cited 2017 Aug 16]; 30(3):468-75. Available from: Available from: http://seer.ufrgs.br/RevistaGauchadeEnfermagem/article/view/9092
http://seer.ufrgs.br/RevistaGauchadeEnfe...

Portanto, essa presença, que ocorre como diálogo, proporciona o sucesso prático que envolve a reflexão para além do “como fazer”, e alcança o “para que” e o “por que” realizar determinada ação, com vistas à produção de mais vida e maior dignidade no viver, bem como de sujeitos capazes de dialogar sobre saúde, desejos, possibilidades e de estabelecer coletivamente seus projetos de felicidade.22. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2009.,1212. Merhy EE. Reforma psiquiátrica no cotidiano: multiplicidades no cuidado e por uma ética cidadã: manejos das ações relacionais. In: Merhy EE, Amaral H, eds. A reforma psiquiátrica no cotidiano II. São Paulo. SP: Hucitec; 2007:13-6.

A construção do sujeito das práticas de cuidado ocorre como uma presença real, intersubjetiva, cuja identidade se desfaz e refaz na relação com o outro que, ao impor um tipo de resistência, mobiliza a atribuição de novos predicados a nós mesmos e nos leva à percepção de que há inúmeras possibilidades de participar da construção e reconstrução de identidades e de fortalecer o poder transformador de indivíduos e grupos.22. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2009.

Nesse sentido, percebemos que a intersubjetividade favorece o entrelaçamento de sentimentos e contribui para a construção da pessoalidade, sempre como um retomar e superar a fala de outrem, ou seja, como possibilidade para adquirir novos comportamentos a partir dos sentimentos compartilhados. E percebemos um sentir que não cessa de envolvê-lo e, ainda, “podemos reencontrar, diante dele, o assombro da primeira testemunha da primeira fala”,1414. Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo. SP: Cosac Naify;2012.:66 ou seja, a partir da interação cuidador-pessoa cuidada pode ocorrer a transformação de sentimentos em novos comportamentos e, assim, sucessivamente.

Nesta perspectiva, a relação propicia a comunicação entre o sentir e o refletir que revelam a coexistência com o semelhante, uma generalidade, que mobiliza a transformação da pessoalidade, do ser cultural. Ao nos identificarmos com uma vivência gratificante, o corpo perceptivo promove uma mudança tão radical, a ponto de não percebermos mais onde e quando tudo começou, ou seja, ao mesmo tempo em que a universalidade do sentir nos mobiliza para a alteridade, para estabelecermos novas identificações como seres históricos, produz novas coexistências e generalizações, de modo a promover vínculos que garantem a abertura a novas e infindáveis transformações.

Em termos merleau-pontyanos, poderíamos afirmar que esse processo ocorre porque “[...] falar e compreender não supõem somente pensamento, mas, de maneira mais essencial e como fundamento do próprio pensamento, o poder de deixar-se desfazer e refazer por outro mais atual, por vários outros possíveis e, presumivelmente, por todos”.1414. Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo. SP: Cosac Naify;2012.:42

A integralidade do cuidado, em uma perspectiva intersubjetiva, sugere o rompimento com a clínica tradicional, que opera predominantemente no setting individual e no encontro singular, contrapondo as ações propostas pelo campo da saúde coletiva, cujo caráter de coletividade acabou velando a importância da clínica ampliada, que saiu do foco de muitos sanitaristas.1515. Campos RO. Clínica: a palavra negada - sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de Saúde Mental. Saúde Debate [Internet]. 2001 [cited 2017 Aug 16]; 25(58):98-111. Available from: Available from: http://saudepublica.bvs.br/pesquisa/resource/pt/ses-13747
http://saudepublica.bvs.br/pesquisa/reso...
Desse modo, para que ocorra um cuidado humanizado e bem fundamentado, é necessário colocar-se no lugar da pessoa a ser cuidada ter uma rica base teórica.

Tais estratégias fazem ver que precisamos assumir declaradamente a necessidade de ampliação da clínica nos serviços públicos de saúde. Se não o fizermos, ainda que involuntariamente ou por omissão, continuaremos trabalhando a favor da proposta hegemônica: a degradação da clínica, o consumo de técnicas diagnósticas e terapêuticas que acabam sendo caras, ineficazes e, às vezes, até iatrogênicas.1515. Campos RO. Clínica: a palavra negada - sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de Saúde Mental. Saúde Debate [Internet]. 2001 [cited 2017 Aug 16]; 25(58):98-111. Available from: Available from: http://saudepublica.bvs.br/pesquisa/resource/pt/ses-13747
http://saudepublica.bvs.br/pesquisa/reso...

Deste modo, é fundamental a ampliação do foco perceptivo em relação ao cuidado, que deve ser visualizado no entrelaçamento dos sujeitos coparticipantes, como contextos de intersubjetividades e de possibilidade de tornar-se outro. Assim, o cuidado favorece a tomada de decisões que direciona e constrói a nossa história, bem como desvela a importância de investirmos em práticas de cuidado voltadas para a construção de contextos intersubjetivos, que acontecem e se mostram por meio do diálogo e da sua capacidade fenomenal de revelar nossas ambiguidades como algo benéfico, que nos possibilita transformar, transcender, desfazer e refazer o outro.

Intersubjetividade e interdisciplinaridade no contexto do cuidado

O sujeito é o seu corpo como um modo de se situar no mundo, um campo de ação à sua disposição e um conjunto de possibilidades, que o insere em um campo de experiências. A intersubjetividade, por sua vez, propicia a emergência de novos sentidos, que dão ao corpo um estatuto não só de experiência original como também originária.88. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo. SP: Martins Fontes; 2015.,1616. Vieira MG, Furlan R. Algumas considerações sobre psicopatologia na filosofia de Merleau-Ponty. Ágora [Internet]. 2011 [cited 2017 Aug 16]; 14(1):129-41. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982011000100009
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982011...

Os sujeitos se correlacionam entre si com diferentes modos de inserção no mundo, a intersubjetividade aí anunciada implica na coexistência. Isto implica nas correlações entre sujeitos e mundos de modo concreto, sendo considerados em suas totalidades globais enquanto experiências encarnadas, e não como aparatos físico-químicos ou um conjunto de pensamentos.88. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo. SP: Martins Fontes; 2015.,1616. Vieira MG, Furlan R. Algumas considerações sobre psicopatologia na filosofia de Merleau-Ponty. Ágora [Internet]. 2011 [cited 2017 Aug 16]; 14(1):129-41. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982011000100009
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982011...

Nesse sentido, o cuidado, como uma prática verdadeiramente humana, precisa ser visto para além de um corpo materializado; e não apenas numa visão biologicista, reducionista e curativa.66. Higa EFR, Gomes R, Carvalho MHR, Guimarães APC, Taipeiro EF, Hafner MLMB, et al. Perceptions of nursing alumni regarding the course contribution in providing health care. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2013 [cited 2017 Aug 16]; 22(1):97-105. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072013000100012
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072013...
Assim, o corpo próprio como experiência vivencial pode estar inserido no movimento de mudanças de atitudes das práticas de cuidado.1717. Santana MTBM, Jorge MSB. The own body as a nurse’s living experience on assisting others in their dyng process. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2007 [cited 2017 Aug 16]; 15(3):466-73. Available from: Available from: https://doi.org/10.1590/S0104-11692007000300016
https://doi.org/10.1590/S0104-1169200700...

No campo destas práticas, a experiência do corpo próprio nos permite compreender que a interdisciplinaridade ocorre por meio da relação estabelecida entre sujeitos que, conforme o pensamento merleau-pontyano: assumem um igual, que tem a ver com o sentir, com o irrefletido; e um diferente, que tem a ver com a diversidade de saberes e funções socioculturais assumidas ao longo da vida.88. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo. SP: Martins Fontes; 2015.

Nesse sentido, ao abandonarmos a perspectiva do saber vertical, adotamos uma postura mais favorável ao diálogo e à construção de intersubjetividades tão importantes para a garantia da interdisciplinaridade, que valoriza o saber não impositivo e respeita os diversos saberes disciplinares e socioculturais compartilhados horizontalmente; seja nas relações entre usuários dos serviços, profissionais de saúde e demais cuidadores, e seus diferentes contextos existenciais.

Assim, a interdisciplinaridade aparece por meio da intersubjetividade, construída no diálogo, quando a fala do outro nos descentra e nossa fala, através de respostas e questionamentos, toca em suas significações. A intersubjetividade abre possibilidades à invasão de um ao outro, ao mesmo tempo em que a percepção irrefletida se move à vontade, impossível de constituir, sempre constituinte.

Portanto, em termos Merleau-Pontyanos, a experiência de tornar-se outro ocorre por meio da intersubjetividade, que se constitui “quando escuto, cabe dizer não que tenho a percepção dos sons auditivos articulados, mas que o discurso se fala dentro de mim; ele me interpela e eu ressoo, ele me envolve e me habita a tal ponto que não sei mais o que é meu, o que é dele. Em ambos os casos, projeto-me no outro, introduzo-o em mim, nossa conversação assemelha-se à luta de dois atletas nas duas pontas da única corda. [...] Há, na linguagem, uma ação dupla, a que nós mesmos fazemos e a que fazemos o socius fazer, representando-o dentro de nós mesmos”.1414. Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo. SP: Cosac Naify;2012.:41

Assim, a linguagem sinaliza um tipo de generalização entre eu e o mundo em que se instala uma distância insignificante, ou seja, nesta relação, “[...] eu e outro somos como dois círculos quase concêntricos e que se distinguem apenas por uma leve e misteriosa diferença”.1414. Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo. SP: Cosac Naify;2012.:168

Essa generalidade do corpo se estabelece por meio da universalidade do sentir, que é bem descrita na seguinte reflexão Merleau-Pontyana: “Olho o homem imóvel no sono e que de repente desperta. Ele abre os olhos, faz um gesto em direção a seu chapéu caído ao lado dele e o pega para proteger-se do sol. O que finalmente me convence que meu sol é também dele, que ele o vê e o sente como eu, e que enfim somos dois a perceber o mundo [...]. No momento em que o homem desperta ao sol e estende a mão em direção a seu chapéu, entre esse sol que me queima e faz piscar meus olhos e o gesto que lá de longe traz um alívio à minha fadiga, entre essa fronte abatida ali e o gesto de proteção que parece me pedir, um vínculo se estabelece sem que eu tenha de decidir nada”.1414. Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo. SP: Cosac Naify;2012.:170-71

Desse modo, o mundo existe para tudo que se movimenta nele e para ele: trata-se de um campo fenomenal onde tudo é visto em perfil. Um campo não exclui outro campo como a consciência o faz, ao contrário, tende a ampliar-se, pois estabelece a abertura pela qual somos expostos ao mundo de coexistências, ou seja, constitui uma possibilidade de nos tornarmos um outro eu mesmo.88. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo. SP: Martins Fontes; 2015.-99. Sena ELS, Gonnçalves LHT. Intercoporeidade na experiência do cuidado: familiar cuidador e portador da doença de Alzheimer. In: Silva AL, Gonçalves LHT, eds. Cuidado à pessoa idosa: estudos no contexto luso-brasileiro. Porto Alegre (RS): Sulina; 2010:193-218.,1313. Merhy EE. Cuidado com o cuidado em saúde: saber explorar seus paradoxos para um agir manicomial. In: Merhy EE, Amaral H, eds. A reforma psiquiátrica no cotidiano II. São Paulo. SP: Hucitec; 2007:23-37.Nesta perspectiva, o campo fenomenal revela o fenômeno sempre em perfil e compõe o espaço para a experiência de campo transcendental que possibilita o que era imanente e irrefletido vir à luz, tornar-se reflexão, “[...] operação criadora que participa ela mesma da facticidade do irrefletido”.88. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo. SP: Martins Fontes; 2015.:95

Portanto, aproximamo-nos cada vez mais da interdisciplinaridade no cuidado intersubjetivo e, portanto, coparticipado para a promoção da saúde. É nessa direção que estudos em saúde33. Pimentel EC, Vasconcelos MVL, Rodarte RS, Pedrosa CMSEnsino e aprendizagem em estágio supervisionado: estágio integrado em saúde. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2015 [cited 2017 Aug 16]; 39(3):352-8. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1981-52712015v39n3e01262014
http://dx.doi.org/10.1590/1981-52712015v...
,77. Rocha GSDA, Angelim RCDM, Andrade ARLD, et al. Cuidados de enfermagem aos indivíduos soropositivos: reflexão à luz da fenomenologia. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Aug 16]; 19(2):258-65. Available from: Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1020
http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1...
evidenciam a coletividade para a potencialização da qualidade de vida de sujeitos e contextos existenciais. Ao refletirmos sobre a saúde a partir de uma proposta de entrelaçamentos de dimensões individuais e coletivas, também podemos analisar a interdisciplinaridade enquanto um compartilhamento de mundos sensíveis e irrefletidos, além da abordagem horizontal dos saberes reflexivos.

A descrição de vivências do corpo próprio no contexto do cuidado em saúde

A vivência como profissionais de saúde de diferentes áreas, a saber: psicologia, enfermagem, educação física, fisioterapia, odontologia, medicina e nutrição; mas que estão ligadas pela universalidade do sentir que tanto tem a ver com o interesse pela saúde coletiva, área de vinculação do programa de pós-graduação à Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (CAPES), como com tantos outros sentimentos possíveis de ocorrerem na experiência do corpo próprio; fez-nos perceber a experiência intersubjetiva como potencializadora de encontros e saberes.

Sob o olhar Merleau-Pontyano, a experiência do corpo próprio torna-se possível para os pós-graduandos por meio da intersubjetividade, da linguagem, “tanto mais evidente quanto mais nos entregamos a ela, tanto menos equívoca quanto menos pensamos nela, rebelde a toda posse direta”,1414. Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo. SP: Cosac Naify;2012. que surge na fala em momentos de compartilhamento de saberes e práticas, de sentidos e reflexões relacionados aos modos de ser ou estar no mundo.

Nesse contexto, podemos ilustrar a seguinte descrição vivencial que nos ocorreu na experiência intersubjetiva de pensar o cuidado com as lentes da fenomenologia de Merleau-Ponty,88. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo. SP: Martins Fontes; 2015. em setembro do ano de 2010, quando uma das autoras desse artigo chegou ao Centro de Atenção Psicossocial tipo II (Caps II), do município de Jequié-BA, para ministrar aula prática do curso de graduação em Enfermagem.

Nesse dia, tudo parecia confuso e tumultuado: o médico não compareceu para o atendimento; a enfermeira coordenadora havia ido reunir-se com a secretária de saúde; a técnica de enfermagem, sozinha, distribuía as medicações de rotina aos usuários; o artesão, na tentativa de acolher a ela e aos discentes, começou a varrer a sala onde deveria acontecer a atividade planejada; os usuários, durante a dramatização de uma cena de mobilização social, revelavam quão grande era a expectativa deles em relação à presença dela como representante da Universidade no serviço.

Essa vivência fez com que ela fosse assediada por um sentimento que, segundo a ótica Merleau-Pontyana, corresponde à verdadeira experiência do outro, algo como que impessoal, que tem a ver com o mundo do sentir, que a preencheu e mobilizou a atitude decisiva de tentar fazer algo para ajudar os usuários do Caps II.

Assim, convocou os discentes a se dirigirem à câmara de vereadores da cidade para solicitarem o agendamento de uma sessão aberta voltada para a discussão de questões relacionadas ao cuidado às pessoas com sofrimento mental no município de Jequié-BA. Inicialmente, propuseram o dia 10 de outubro, considerando que nesta data comemora-se o Dia Mundial da Saúde Mental, porém, a sessão foi agendada para 27 de outubro de 2010, data mais conveniente aos vereadores.

O diálogo com os vereadores promoveu um arrebatamento pelo sentimento de empatia com os semelhantes, seres humanos, que, na ocasião, falava do lugar de usuários do Caps, e que, naquele momento, ainda não haviam alcançado o espírito de cidadania. Constrangida pela vivência no Caps e mobilizada por ela, ocorreu-lhe a possibilidade de ser porta-voz daqueles usuários e compartilhar com os legisladores o sentimento de indignação pela inoperância da gestão municipal da saúde em relação ao funcionamento inadequado do Caps.

O sentimento que a preencheu no momento, à luz do pensamento Merleau-Pontyano, configurou-se como experiência de coexistência com o próximo, vivência universal, que se exprimiu como generalidade. Não se tratava de um sentimento individual, mas de uma coletividade que tem, ao mesmo tempo, um sentimento de igual (irrefletido) e um diferente (refletido). Para o autor, “(...) a fala em exercício não se contenta em designar pensamentos como um número, na rua, designa a casa do meu amigo Paul - mas realmente se metamorfoseia neles assim como eles se metamorfoseiam nela (...)”.1414. Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo. SP: Cosac Naify;2012.:148

Neste sentido, “a fala do outro não apenas desperta em mim pensamentos já formados mas também me arrasta num movimento de pensamento do qual eu não teria sido capaz sozinho, e me abre finalmente para significações estranhas”.1414. Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo. SP: Cosac Naify;2012.:150 O autor continua afirmando que “é preciso, assim, que eu admita, aqui, que não vivo somente meu próprio pensamento, mas que, no exercício da fala, me torno aquele que eu escuto”, e, mais ainda, que “é preciso que eu compreenda afinal de que maneira a fala pode estar prenhe de um sentido”.1414. Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo. SP: Cosac Naify;2012.:150

A vivência descrita ocorreu como fenômeno que fez os participantes reencontrarem seus pensamentos na fala do outro, assim como acontece com todos os humanos, e, no caso desse estudo, com os profissionais de saúde. Ao refletiram de forma autêntica e inovadora, eles fazem ver a potência das falas no contexto das práticas de saúde.

CONCLUSÃO

A partir do corpo próprio, podemos compreender o mundo da cultura (refletir), que nos distingue, em certa medida e historicamente, uns dos outros; entrelaçando-se com o mundo sensível, o qual nos aproxima, num constante movimento experiencial e ambíguo entre o que é da dimensão do singular aprendido e o que é da dimensão da generalidade do sentir, ou entre o que é da dimensão reflexiva e o que é da dimensão irrefletida.

Desse modo, na intersubjetividade construída no encontro entre sujeitos, nos entrelaçamentos do reflexivo e do sensível, profissionais, usuários e demais cuidadores tornam-se coparticipantes de um cuidado capaz de abordar múltiplos aspectos de influências individuais e coletivas, de ressignificar vivências e desenvolver habilidades para todos os envolvidos. Portanto, a coexistência intersubjetiva é promotora de um cuidado humanizado, interdisciplinar e integral.

Esses entrelaçamentos fazem ver a generalidade intercorporal, a qual acontece no encontro de sujeitos, no coexistir e na intersubjetividade; há a promoção de momentos de ressignificações vivenciais, afetivas e reflexivas da relação eu-outro-mundo, potencializando, desse modo, contextos de cuidado mais próximos à qualidade de vida com saúde, seja para profissionais, usuários e/ou demais cuidadores.

Ao olharmos para a clínica ampliada com lentes Merleau-Pontyanas, percebemos o cuidado como experiência intercorporal, que surge no movimento entre o irrefletido (sentir) e o reflexivo (razão), e faz ver tanto a integralidade quanto a interdisciplinaridade como princípios a serem alcançados por meio da intersubjetividade, construída no encontro entre sujeitos.

Assim, o cuidado envolve uma compreensão biopsicossocial e aparece como um movimento ambíguo, desvelado em diferentes perfis e numa relação cuidado-descuido-cuidado e vice-versa. Nessa relação dinâmica e ambígua, até mesmo o fenômeno do cuidado pode se revelar ora sob a dimensão irrefletida, ora sob a dimensão reflexiva; assim como o ocorre com o descuido. A compreensão dessas relações constantes e ambíguas pode favorecer uma abordagem do cuidado ao outro, a si mesmo e ao mundo mais efetiva, visto considerar a intersubjetividade primordial à construção da interdisciplinaridade e integralidade tão necessárias para o aprimoramento do cuidado humano. Nesse sentido, o referencial apresentado poderá fundamentar pesquisas e fortalecer as ações de cuidado da enfermagem e demais profissionais que compõem equipes que atuam em serviços de saúde.

REFERENCES

  • 1. Alves VH, Alves PMS, Padoin SMM. The technicalization and practice of labor care: a phenomenological approach based on Husserl. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [cited 2017 Aug 16]; 25(3):e1750015. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016001750015
    » http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016001750015
  • 2. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2009.
  • 3. Pimentel EC, Vasconcelos MVL, Rodarte RS, Pedrosa CMSEnsino e aprendizagem em estágio supervisionado: estágio integrado em saúde. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2015 [cited 2017 Aug 16]; 39(3):352-8. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1981-52712015v39n3e01262014
    » http://dx.doi.org/10.1590/1981-52712015v39n3e01262014
  • 4. Velloso MP, Guimaraes MBL, Cruz CRR, Neves TCC. Interdisciplinaridade e formação na área de saúde coletiva. Trab Educ Saúde [Internet]. 2016 [cited 2017 Aug 16]; 14(1):257-71. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sip00097
    » http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sip00097
  • 5. Brehmer LCF, Ramos FRS. O modelo de atençãoo à saúde na formação em enfermagem: experiências e percepções. Interface (Botucatu) [Internet]. 2016 [cited 2017 Aug 16]; 20(56):135-45. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0218
    » http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0218
  • 6. Higa EFR, Gomes R, Carvalho MHR, Guimarães APC, Taipeiro EF, Hafner MLMB, et al. Perceptions of nursing alumni regarding the course contribution in providing health care. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2013 [cited 2017 Aug 16]; 22(1):97-105. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072013000100012
    » http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072013000100012
  • 7. Rocha GSDA, Angelim RCDM, Andrade ARLD, et al. Cuidados de enfermagem aos indivíduos soropositivos: reflexão à luz da fenomenologia. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Aug 16]; 19(2):258-65. Available from: Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1020
    » http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1020
  • 8. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo. SP: Martins Fontes; 2015.
  • 9. Sena ELS, Gonnçalves LHT. Intercoporeidade na experiência do cuidado: familiar cuidador e portador da doença de Alzheimer. In: Silva AL, Gonçalves LHT, eds. Cuidado à pessoa idosa: estudos no contexto luso-brasileiro. Porto Alegre (RS): Sulina; 2010:193-218.
  • 10. Terra MG, Goncalves LHT, Santos EKA, Erdmann AL. Fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty como referencial teórico-filosófico numa pesquisa de ensino em enfermagem. Rev Gaúcha Enferm [Internet]. 2009 [cited 2017 Aug 16]; 30(3):547-51. Available from: Available from: http://www.seer.ufrgs.br/RevistaGauchadeEnfermagem/article/view/4163
    » http://www.seer.ufrgs.br/RevistaGauchadeEnfermagem/article/view/4163
  • 11. Lacchini AJB, Noal HC, Padoin SMM, Terra MG. Percepção de uma equipe de enfermagem cirúrgica acerca do cuidado aos pacientes com transtorno mental. Rev Gaúcha Enferm[Internet]. 2010 [cited 2017 Aug 16]; 30(3):468-75. Available from: Available from: http://seer.ufrgs.br/RevistaGauchadeEnfermagem/article/view/9092
    » http://seer.ufrgs.br/RevistaGauchadeEnfermagem/article/view/9092
  • 12. Merhy EE. Reforma psiquiátrica no cotidiano: multiplicidades no cuidado e por uma ética cidadã: manejos das ações relacionais. In: Merhy EE, Amaral H, eds. A reforma psiquiátrica no cotidiano II. São Paulo. SP: Hucitec; 2007:13-6.
  • 13. Merhy EE. Cuidado com o cuidado em saúde: saber explorar seus paradoxos para um agir manicomial. In: Merhy EE, Amaral H, eds. A reforma psiquiátrica no cotidiano II. São Paulo. SP: Hucitec; 2007:23-37.
  • 14. Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo. SP: Cosac Naify;2012.
  • 15. Campos RO. Clínica: a palavra negada - sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de Saúde Mental. Saúde Debate [Internet]. 2001 [cited 2017 Aug 16]; 25(58):98-111. Available from: Available from: http://saudepublica.bvs.br/pesquisa/resource/pt/ses-13747
    » http://saudepublica.bvs.br/pesquisa/resource/pt/ses-13747
  • 16. Vieira MG, Furlan R. Algumas considerações sobre psicopatologia na filosofia de Merleau-Ponty. Ágora [Internet]. 2011 [cited 2017 Aug 16]; 14(1):129-41. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982011000100009
    » http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982011000100009
  • 17. Santana MTBM, Jorge MSB. The own body as a nurse’s living experience on assisting others in their dyng process. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2007 [cited 2017 Aug 16]; 15(3):466-73. Available from: Available from: https://doi.org/10.1590/S0104-11692007000300016
    » https://doi.org/10.1590/S0104-11692007000300016

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2017
  • Aceito
    22 Ago 2017
Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós Graduação em Enfermagem Campus Universitário Trindade, 88040-970 Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, Tel.: (55 48) 3721-4915 / (55 48) 3721-9043 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: textoecontexto@contato.ufsc.br