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REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO TROTE UNIVERSITÁRIO: UMA REFLEXÃO ÉTICA NECESSÁRIA

RESUMO

Objetivo:

compreender as representações sociais dos trotes na área da saúde.

Método:

optou-se pela teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici como um referencial teórico-metodológico para uma pesquisa qualitativa. A coleta de dados foi feita através de entrevistas semiestruturadas com profissionais de saúde, calouros, veteranos, professores de uma universidade no Sul do Brasil, em agosto de 2015. As entrevistas foram gravadas e transcritas.

Resultados:

da analise emergiram, quatro categorias temáticas: Representações sociais dos trotes, Vivências, Problemas éticos e Influências na formação profissional. Neste artigo apresentam-se, de forma articulada, os resultados das duas primeiras categorias. Os trotes são representados sob duas perspectivas distintas: uma cooperativa - como brincadeiras e felicidade, confraternização e amizade, integração e participação, acolhimento e recepção - e outra coercitiva - como violência, agressão, submissão, iniciação e rito de passagem.

Conclusão:

a ambiguidade das representações sociais do trote retrata suas diferentes potências no desenvolvimento moral dos estudantes: de compartilhamento de valores que realizam contribuições positivas por um lado, e de outro, de vivências de desvalores que prejudicam tal processo. A análise ética das práticas relacionadas ao trote pela comunidade acadêmica e o envolvimento e comprometimento docente são fundamentais para que possam ocorrer mudanças nos paradigmas da formação profissional.

DESCRITORES:
Formação profissional; Saúde; Ética; Representações sociais; Trote

ABSTRACT

Objective:

to understand the social representations of college hazing in the health field.

Method:

the Social Representations theory of Serge Moscovici was the theoretical-methodological framework used in this qualitative study. Data were collected through semi-structured interviews conducted with health workers, freshmen, senior students, and professors of a university located in southern Brazil, in August 2015. The interviews were audio recorded and later transcribed.

Results:

four thematic categories emerged: Social representations of hazing, Experiences, Ethical problems, and Influence on professional training. The results of the first two categories are presented. Hazing is represented from two different perspectives: a cooperative one - jokes and happiness, fraternization and friendship, integration and participation, greeting and reception; and a coercive perspective - violence, aggression, submission, initiation and rite of passage.

Conclusion:

ambiguity between the social representations of hazing reveals different potencies in the students’ moral development: on one hand, there is the exchange of values with positive contributions and, on the other hand, there is the experience of devaluations that undermine the process. An ethical analysis of college hazing performed by the academic community and the involvement and commitment of professors are essential for changes in paradigms concerning professional training to take place.

DESCRIPTORS:
Professional training; Health; Ethics; Social Representation; Hazing

RESUMEN

Objetivo:

comprender las representaciones sociales de la novatada universitaria en el área de la salud.

Método:

se optó por la teoría de las Representaciones Sociales de Serge Moscovici como un referencial teórico-metodológico para una investigación cualitativa. La recolección de datos fue realizada a través de entrevistas semiestructuradas con profesionales de la salud, calouros, veteranos, profesores de una universidad en el sur de Brazil, en agosto de 2015. Las entrevistas fueron grabadas y transcritas.

Resultados:

del análisis emergieron, cuatro categorías temáticas: Representaciones sociales de las novatadas, Vivencias, Problemas éticos e Influencias en la formación profesional. En este artículo se presentan, de forma articulada, los resultados de las dos primeras categorías. Las novatadas se representan desde dos perspectivas distintas: una cooperativa - como juegos y felicidad, confraternización y amistad, integración y participación, acogida y recepción - y otra coercitiva - como violencia, agresión, sumisión, iniciación y rito de paso.

Conclusión:

la ambigüedad de las representaciones sociales de las novatadas retrata diferentes potencias en el desarrollo moral de los estudiantes: por una parte, el intercambio de valores con contribuciones positivas y, por otra parte, la experiencia de las devaluaciones que socavan la proceso. El análisis ético de las prácticas relacionadas al novatadas por la comunidad académica y la participación y el compromiso docente son fundamentales para que puedan ocurrir cambios en los paradigmas de la formación profesional.

DESCRIPTORES:
Formación profesional; Salud; Ética; Representaciones sociales; Novatadas

INTRODUÇÃO

O direito à saúde se realiza através de políticas públicas, sociais e econômicas, cabendo aos profissionais de saúde efetivar esse direito na prática. A excelência no cuidado à saúde implica repensar a dimensão ética da formação profissional, o que representa um desafio nas instituições acadêmicas.11. Finkler M. Formação profissional e/ou educação universitária: de onde viemos, para onde vamos? Interface [Internet]. 2017 Apr-Jun [cited 2017 Sep 1]; 21(61):465-8. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0753
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Um novo perfil deve ser pautado, principalmente, no desenvolvimento de competência política, social e, essencialmente, ética.22. Mascarenhas NB, Santa RDO. Bioética e formação do enfermeiro: uma interface necessária. Texto Context Enferm [Internet]. 2010 Apr-Jun [cited 2017 Sep 1]; 19(2):366-71. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v19n2/19.pdf
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A formação ética, que inclui em seu cerne o processo de desenvolvimento moral, ocorre no âmbito da socialização profissional, desde os primeiros contatos dos estudantes nos cursos de graduação por meio das mais variadas vivências acadêmicas. Nelas, exercitam-se valores e desvalores, e se aprendem regras de comportamento. Constituem, portanto, um tipo de currículo, frequentemente denominado de oculto, que acontece paralelamente ao currículo formal. Tratam-se, desta forma, de vivências que servem de referência aos novos estudantes e que também proporcionam a construção de conhecimentos e habilidades, mas, sobretudo, de atitudes.33. Finkler M, Caetano JC, Ramos FRS. Ética e valores na formação profissional em saúde: um estudo de caso. Ciênc. saúde coletiva [Internet]. 2013 Oct [cited 2017 Sep 1]; 18(10):3033-42. Available from: Available from: https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232013001000028
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Uma destas vivências acadêmicas é tomada como o objeto deste estudo: um fenômeno que faz parte da vida acadêmica de muitos países, conhecido como “trote universitário” no Brasil, “praxe” em Portugal, bizutage na França,novatada na Espanha, ehazing nos Estados Unidos.44. Oliveira CS, Villas-Boas S, Las Heras S. Assédio no ritual da praxe académica numa universidade pública portuguesa. Sociologia, Problemas e Práticas [Internet]. 2016 Mar [cited 2017 Sep 1]; (80):49-67. Available from: https://spp.revues.org/2073 Trata-se de prática de ritual de iniciação em um coletivo, caracterizada por uma dinâmica de “poder-submissão” entre dois grupos: os veteranos e os candidatos ao ingressarem no grupo.55. Marcitllach AA, Freire AGM. Novatadas: comprender para actuar [Internet]. Madrid (ES): Universidad Pontificia Comillas [Internet]. 2013 [cited 2017 Sep 1]. Available from: Available from: http://nomasnovatadas.org/noticias/wp-content/uploads/2014/09/Novatadas-comprender-para-actuar.pdf
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Na literatura científica o termo hazing é bastante difundido, aplicado a uma forma de violência interpessoal, também como um desafio a executar uma ação perigosa, ilegal ou inapropriada. É atividade esperada ou imposta a alguém para que esta se junte a um grupo; inclui ações que humilham, degradam, abusam ou põem em risco. Tais práticas podem ser contrárias aos objetivos da formação e ameaçar a saúde e a segurança da comunidade acadêmica. Por isso, hazing é considerado um bullying grupal, mesmo que esteja limitado, do ponto de vista conceitual, por não expressar claramente os elementos de intenção e duração das atividades que se aplicam ao bullying.66. Allan EJ, Madden M. The nature and extent of college student hazing. Int J Adolesc Med Health [Internet]. 2012 Mar [cited 2017 Sep 1]; 24(1):83-90. Available from: Available from: https://dx.doi.org/10.1515/ijamh.2012.012
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No Brasil, os trotes são aplicados em muitas universidades, sendo considerados uma tradição, um rito de passagem e, ao mesmo tempo, uma oportunidade de integração à comunidade acadêmica. Apesar de incluírem majoritariamente brincadeiras e festas,77. Albanaes P, Bardagi MP, Girelli S. Do trote à mentoria: levantamento das possibilidades de acolhimento ao estudante universitário. Rev Bras Orient Prof [Internet]. 2014 Sep [cited 2017 Sep 1]; 15(2):143-52. Available from: Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbop/v15n2/05.pdf
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podem significar uma importante falta de cuidado com os estudantes,33. Finkler M, Caetano JC, Ramos FRS. Ética e valores na formação profissional em saúde: um estudo de caso. Ciênc. saúde coletiva [Internet]. 2013 Oct [cited 2017 Sep 1]; 18(10):3033-42. Available from: Available from: https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232013001000028
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pois frequentemente os calouros são tratados por alguns veteranos como seres inferiores, identificados pelo apelido de “bixos” e tratados como animais que deveriam ser adestrados pelo emprego de práticas de natureza constrangedora ou violenta.88. Zuin AAS. O trote na universidade: passagens de um rito de iniciação. São Paulo (SP): Cortez; 2002.

O trote se torna um problema sob a ótica da constituição de pessoas autônomas e do combate a toda forma de opressão. Daí que sua interface com a ética deve ser objeto de reflexão, de forma a romper com a naturalização da violência nas instituições de ensino superior.99. Costa SM, Dias OV, Dias ACA, S TR, Canela JR. Trote universitário: diversão ou constrangimento entre acadêmicos da saúde? Rev Bioética [Internet]. 2013 [cited 2017 Sep 1]; 21(2):350-8. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/bioet/v21n2/a19v21n2.pdf
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A irreverência e os excessos praticados podem gerar consequências trágicas como pode ser verificado nas notícias de danos físicos e até de mortes no início das aulas.44. Oliveira CS, Villas-Boas S, Las Heras S. Assédio no ritual da praxe académica numa universidade pública portuguesa. Sociologia, Problemas e Práticas [Internet]. 2016 Mar [cited 2017 Sep 1]; (80):49-67. Available from: https://spp.revues.org/2073,1010. Vegini NMK, Finkler M. Trotes Universitários pela mídia. In: Anais do XI Congresso Brasileiro de Bioética [Internet]. 2015 Sep 16-18 [cited 2017 Sep 1] p. 46; Curitiba, Brasil. Available from: Available from: http://www.sbbioetica.org.br/uploads/Publicacao/2016_02_11/Anais-BIOETICA-XI-Congresso-Brasileiro.pdf
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Por essas razões, os trotes foram proibidos em algumas universidades de muitos Estados do Brasil. Contudo, ainda se mantêm presentes, principalmente nos cursos da área da saúde, o que demonstra a insuficiência de medidas proibitivas.33. Finkler M, Caetano JC, Ramos FRS. Ética e valores na formação profissional em saúde: um estudo de caso. Ciênc. saúde coletiva [Internet]. 2013 Oct [cited 2017 Sep 1]; 18(10):3033-42. Available from: Available from: https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232013001000028
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Analisar por que e como essa tradição se mantém pode ser importante para fomentar estratégias de aprimoramento da dimensão ética da formação profissional. Neste sentido, o objetivo desta pesquisa foi compreender as representações sociais dos trotes na área da saúde, na expectativa de entender a forma como se estabelecem e se naturalizam.

MÉTODO

Empregou-se como referencial teórico-metodológico a Teoria das Representações Sociais (RS), que são elaborações psicológicas e sociais formadas a partir da triangulação sujeito-outro-objeto, sistemas de leitura da realidade social, que expressam e contribuem no desenvolvimento dos valores sociais existentes.1111. Moreira JAC, Padilha MI, Silva DGV, Sapag J. Theoretical and methodological aspects of social representations. Texto Context Enferm [Internet]. 2015 Oct-Dec [cited 2017 Sep 1]; 24(4):1157-65. Available from: Available from: https://dx.doi.org/10.1590/0104-0707201500003440014
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Nesta teoria, os sujeitos são concebidos “não como indivíduos isolados, mas como atores sociais ativos, afetados por diferentes aspectos da vida cotidiana que se desenvolve em um contexto social de interação e de inscrição”.1212. Jodelet D. O movimento de retorno ao sujeito e a abordagem das representações sociais. Sociedade e Estado [Internet]. 2009 Sep-Dec [cited 2017 Sep 1]; 24(3):679-712. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/se/v24n3/04.pdf
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:696 Por inscrição, entendem-se dois tipos de processos: a participação em uma rede de interações com os outros por meio da comunicação social, e a pertença social definida em vários níveis: “o do lugar na estrutura social e da posição nas relações sociais, o da inserção nos grupos sociais e culturais que definem a identidade, o do contexto da vida onde se desenrolam as interações sociais, o do espaço social e público”.1212. Jodelet D. O movimento de retorno ao sujeito e a abordagem das representações sociais. Sociedade e Estado [Internet]. 2009 Sep-Dec [cited 2017 Sep 1]; 24(3):679-712. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/se/v24n3/04.pdf
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O estudo de RS exige um exame atento, uma observação dos “traços linguísticos, arquivos e, sobretudo, pacotes de discurso”,1313. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 11th ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2015. :217 porque as RS têm como fundamento a compreensão de como o grupo social interfere nas elaborações psicológicas individuais e reflexivamente, como este processo psicológico interfere no grupo social, por via dos processos de ancoragem e objetivação. O primeiro, um processo de transformar o estranho em nosso sistema de conhecimentos, um enquadramento, uma classificação e, muitas vezes, um julgamento positivo ou negativo. Trata-se de usar um nome ou uma palavra para representar o novo, o desconhecido que passa a ser conhecido. Já a objetivação é uma forma de tratamento entre as palavras e as coisas, modo que “une a ideia de não familiaridade com a de realidade, torna-se a verdadeira essência da realidade”.1313. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 11th ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2015. :71

O estudo realizado consistiu em uma pesquisa descritiva de abordagem qualitativa, que teve como cenário de estudo a área da saúde de uma Universidade Federal situada no sul do Brasil, onde a ação de trote foi proibida há quase 20 anos, mas persiste em alguns cursos,77. Albanaes P, Bardagi MP, Girelli S. Do trote à mentoria: levantamento das possibilidades de acolhimento ao estudante universitário. Rev Bras Orient Prof [Internet]. 2014 Sep [cited 2017 Sep 1]; 15(2):143-52. Available from: Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbop/v15n2/05.pdf
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principalmente nos da saúde. Apesar das nuances das práticas dos trotes entre os cursos pesquisados (nos cursos mais concorridos são relatadas práticas de trote mais violentas), optou-se por apresentar os resultados conjuntamente a fim de preservar o sigilo, mas também para incluir os cursos em que os trotes persistem com outras denominações.

Após aprovação do projeto de pesquisa por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, a pesquisadora principal entrou em campo acompanhando a movimentação própria da época de recepção das turmas ingressantes, em agosto de 2015. Um diário de campo foi empregado durante o período da coleta de dados, como forma de registrar observações do ambiente e informações como as datas e horários de eventos, aulas de recepção aos calouros e a localização dos Centros Acadêmicos.

A coleta dos dados, propriamente dita, foi realizada através de entrevistas semiestruturadas, gravadas em mídia digital, guiadas por roteiros previamente elaborados, com perguntas abertas e de livre associação, específicos para cada grupo de participantes (estudantes, professores e profissionais). Os roteiros foram aperfeiçoados com auxílio de pesquisadores experientes em metodologia qualitativa.

Ao todo, foram entrevistadas 25 pessoas (14 mulheres e 11 homens), em quatro cursos/profissões: Enfermagem, Fonoaudiologia, Medicina e Odontologia, sendo uma única entrevista com cada participante, com duração média de 30 minutos. Todos os participantes foram convidados pessoalmente e manifestaram seu consentimento livre e esclarecido. A seleção destes cursos ocorreu a partir da caracterização do campo mediante conversa com o gestor do Centro de Ciências de Saúde acerca do histórico de trotes nos cursos deste centro de ensino.

A amostra intencional foi composta por: 13 estudantes - sete calouros (aqui identificados como C, seguidos de um número, para preservar o sigilo das identidades dos participantes) e seis veteranos (V), todos na faixa etária inferior a 25 anos. Os calouros foram localizados via secretaria dos cursos, a partir da grade de horários de aula, e foram entrevistados em espaços públicos do campus, mas sem a presença de outras pessoas. Já os veteranos foram localizados nos Centros Acadêmicos, sendo nestes próprios espaços entrevistados, também sempre sozinhos. Apenas um dos calouros ainda não havia participado de atividades relacionadas a trotes; oito professores - um gestor de cada curso, ou seja, quatro gestores (G), e quatro docentes (D) indicados pelos professores gestores que deram preferência àqueles que já haviam trabalhado de alguma maneira mais próxima com questões relacionadas ao trote em cada curso. Todos os professores requisitaram o agendamento das entrevistas, as quais foram realizadas em suas salas no campus; quatro profissionais (P) atuantes nas referidas áreas da saúde. Foram selecionados ao acaso, a partir das listas de contatos de profissionais ativos em seus Conselhos através de websites. Todos foram entrevistados em seus próprios consultórios, tanto na rede pública como privada de serviços de saúde.

Ao cabo da realização do número predefinido de entrevistas, observou-se que os dados coletados e transcritos eram suficientes para responder a questão de pesquisa, havendo repetições sem novas informações nas últimas entrevistas realizadas, de modo que a coleta foi encerrada. As entrevistas transcritas foram inseridas no software Atlas.ti para a realização da análise dos dados. Nesse processo, 71 códigos emergiram da análise dos dados. Os seus agrupamentos resultaram na construção de quatro categorias temáticas, a saber: RS dos trotes, Vivências, Problemas éticos e Influências na formação profissional.

Neste artigo, apresentam-se os resultados da primeira categoria, ou seja, as RS dos trotes, analisada conjuntamente com a segunda categoria, Vivências, de forma transversal. Os trotes foram analisados a partir dos elementos textuais, à luz dos processos de objetivação e ancoragem das RS.

RESULTADOS

As RS dos trotes podem ser visualizadas por meio dos termos que foram mais usados para descrever o fenômeno, conforme pode se observar na Figura 1, onde o tamanho da letra guarda relação com sua maior frequência nos dados coletados.

Figura 1 -
Representações sociais dos trotes com relação proporcional entre o tamanho das letras e a repetição dos termos na fala dos entrevistados. Florianópolis, SC, Brasil, 2016.

Evidenciou-se que os trotes apresentam diversas faces, podendo ser agrupadas sob duas perspectivas opostas: uma cooperativa, outra de violência: [...] o trote tem um lado que tem que ser cooperativo, integrativo, mas tem um lado que ele é desintegrador, que ele distorce, oprime e tem a questão da violência (D1). Para melhor abordar o fenômeno e alcançar os fins deste estudo, as RS serão apresentadas sob estes dois polos, muito embora esta divisão nem sempre seja perceptível, pois frequentemente coexistem na mesma prática.

Perspectiva cooperativa dos trotes

Brincadeiras e felicidade

Os trotes foram representados pela maioria dos entrevistados como uma forma de recepção na qual se realizam atividades descritas como brincadeiras, diversão, gincanas, pinturas, pegadinhas e sujeira nos corpos, de forma associada à felicidade: [...] pessoas felizes, mas todas sujas brincando (C3). Assim, o trote é representado como uma vivência lúdica: [...] teve brincadeira de sujar com farinha, ovo. Tiveram algumas brincadeiras para descobrir a universidade [...] nós tínhamos que tirar fotos em alguns lugares da universidade [...] algumas perguntas relacionadas ao curso (V3).

Confraternização e amizade, integração e participação

Os participantes da pesquisa definiram os trotes como oportunidades de confraternização, de fazer amizades, de estimular a integração e a participação - conceitos inter-relacionados, representações capazes de proporcionar uma convivência harmoniosa, baseada no afeto, pelo menos para aqueles que consideram que a participação é livre: [...] quem não quer participar e não assinou o termo não participa. Isso é bem respeitado no curso, nós acompanhamos (G2); A ideia de confraternização está presente através do seu sentido peculiar de familiarizar o estranho, pois a família e a amizade proporcionam contextos para relações de afeto e ajuda mútua: [...] unindo duas turmas, eu conheci vários dos meus colegas, pessoas que eu me dou super bem até hoje (V2). Outros adjetivos como legal’, ‘interessante’ e ‘tranquilo’ também estiveram muito presentes nas falas.

Acolhimento e recepção

Alguns entrevistados negaram a prática de trotes porque são proibidos pela Universidade e poderiam ser punidos, mas também porque a palavra adquiriu uma conotação negativa: [...] a palavra ‘trote’ é meio pesada. Nós não temos o costume de usar no nosso curso (V3). Frente a isto, o fenômeno do trote passou a ser denominado de “atividades de recepção e acolhimento” aos calouros: [...] nome daqui passa a ser “semana de acolhimento aos calouros”, porque trote acaba associando com algo mais pesado, brincadeiras mais violentas, exposição, é uma associação que eu tenho (V2); [...] trote é uma brincadeira; recepção é acolhimento, é passar informações que são importantes para o aluno (G4); [...] o acolhimento é feito antes do que o trote propriamente dito, quando chega no trote não tem mais aquela coisa que de que não se conheciam e de repente se conhecem (G4). Portanto, recepção e acolhimento - termos que guardam relação com o cuidado e proteção - foram palavras usadas para objetivar os trotes, ressignificando-o: retirando-lhe a conotação negativa e transformando-o em hospitalidade e boas vindas.

Perspectiva coercitiva dos trotes

Violência, agressão, submissão

Os trotes também foram associados às práticas de violências físicas, morais e psicológicas, gerando desconfiança e temor. Segundo os entrevistados, alguns trotes são pesados e apresentam situações não desejadas como humilhação, ridicularização, discriminação, invasão, assédio, malícia e submissão: [...] bullying, ofensas de cor, de sexo, exposição, não sei dizer exatamente um termo muito bom para isso, mas acho que a exposição sexual acaba ficando muito pesada, vai contra tudo que se prega (V2); [...] exposição, humilhação, machismo, essas coisas (P1); [...] quando fala em trote a gente já pensa em algo mais pesado, algo que eles vão acabar se aproveitando da gente (C6).

O desrespeito à dignidade e autoestima dos calouros caracteriza violência por ferir ou ameaçar sua integridade moral e física. Tais direitos não podem se constituir objeto de negociação: [...] teve o que eles chamam de leilão dos calouros: eles compram os calouros para nada na verdade, só para dar um apelido. A compra é por centavos, real, depende de quem dá mais. Você paga um mico lá na frente e a pessoa paga pelo que ela acha que você merece por aquele mico. Então ela te dá um apelido por alguma coisa que você fez ou alguma coisa te marca como calouro (C2); [...] é uma ação humilhante que não tem nenhum propósito, que subestima a pessoa, desrespeita a pessoa, é algo que não precisaria ter e, no meu olhar, beira o limite entre os criminosos inclusive, de você expor algumas pessoas (P1); [...] é uma prática que só diminui a pessoa (V3); [...] plaquinha com apelidos no colo deles e me parece agressivo (D3); [...] eu me lembro de gente que reclamou e eu não tiro a razão deles (V1); [...] tinha colegas meus que estavam dando risadas e achando tudo normal, mas eu não achei normal (P2).

Vaias e outros métodos coletivos de coação ou assédio são recursos utilizados pelos veteranos que conseguem a rendição das minorias ou de indivíduos. A violência estaria representada, portanto, pela dinâmica dos grupos assentada na pressão que desequilibra o jogo de forças, pois aqueles que resistem e não aderem às brincadeiras do grupo são muitas vezes rejeitados ou excluídos: [...] quando eles forçam a pessoa na frente dos outros a fazer alguma coisa, só porque ela está na frente dos outros. Isso eu acho que é bastante ruim, porque eles sabem que as pessoas vão tender a não negar, por exemplo, a beber (C4); [...] essa coisa da vaia, quando os calouros entram, eles merecem todo o acolhimento possível, porque foi uma batalha para eles também, não acho que seja engraçado aquilo (D3); [...] e principalmente não se tem respeito com essas questões individuais, porque é claro que muitos calouros vão fazer aquilo na brincadeira, mas tem as pessoas que não tem uma estrutura emocional capaz de lidar com aquele momento, com aquela agressão e humilhação, e isso pode sim trazer malefícios em longo prazo e até mesmo em curto prazo para essas pessoas (G1).

A violência que todas estas vivências revelam, desde a violência moral, psicológica até a física, contrariam as versões de que a participação nos trotes é ato de disposição livre dos calouros: [...] eu acho que essa fala de ‘quem não quer não participa’ é uma fala de quem está dominando. Então, a pessoa que está em um grupo, está querendo uma aceitação, entrando em um momento novo. Às vezes, ela não tem a opção, nem de refletir sobre aquilo. Às vezes, vai pensar nisso mais tarde, depois que já fez, depois que se expuseram. Nós não discutimos isso abertamente dentro das universidades, nem tão pouco antes de entrar na universidade, então a pessoa não tem bagagem ou argumento ou fundamento para poder de fato decidir [...] enfim, não é uma escolha. Eu acho isso abominável, nojento, que são maus-tratos, isso não tem nada a ver com educação, com respeito, com questões de amor e carinho (P1).

Iniciação e rito de passagem

Os trotes também são representados como um ritual de iniciação nas universidades, portanto, um evento bastante esperado desde o momento de preparação para o vestibular. É a imagem que marca a própria aprovação no vestibular: [...] então todos os dias nós estávamos preparados e se não fizessem, nós ficaríamos tristes (P4). Apesar de não ter sido uma representação tão compartilhada, a ideia de rito revela a aceitação social e até mesmo o desejo de alguns, que o consideram uma etapa acadêmica inicial tão necessária quanto às demais que vão habilitar para o exercício de determinada profissão: [...] o trote é uma questão cultural, como um rito de passagem. O aluno vai passar por um rito para consolidar que agora ele é um estudante (D1); [...] eu preciso desconstruir com o estudante de que agora que ele entrou, que ele precisa se submeter a esses ritos que alguns veteranos apenas reproduzem, às vezes, de violência, sem ter uma crítica do que significa esse rito [...] mas, cabe a mim como professor [...] estar desmistificando e desconstruindo isso (D1).

DISCUSSÃO

A definição de assédio moral e bullying envolve ações negativas ou agressivas que se repetem, além da intencionalidade e desigualdade de poder entre vítima e quem perpetra o bullying.66. Allan EJ, Madden M. The nature and extent of college student hazing. Int J Adolesc Med Health [Internet]. 2012 Mar [cited 2017 Sep 1]; 24(1):83-90. Available from: Available from: https://dx.doi.org/10.1515/ijamh.2012.012
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,1414. Espelage DL, De La Rue L. School bullying: its nature and ecology. Int J Adolesc Med Health [Internet]. 2011 Nov [cited 2017 Sep 1]; 24(1):3-10. Available from: Available from: https://dx.doi.org/10.1515/ijamh.2012.002
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No entanto, evidências sugerem que estudantes definem o fenômeno de forma substancialmente diversa, o que é relacionado a uma menor vitimização, devido ao reconhecimento de comportamentos negativos, mas baixo reconhecimento de desequilíbrio de poder e, menos ainda, de intencionalidade e repetição.1414. Espelage DL, De La Rue L. School bullying: its nature and ecology. Int J Adolesc Med Health [Internet]. 2011 Nov [cited 2017 Sep 1]; 24(1):3-10. Available from: Available from: https://dx.doi.org/10.1515/ijamh.2012.002
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Talvez, essa menor vitimização amplie o espaço de representação do trote em uma perspectiva que abarca comportamentos, intenções ou resultados positivos como os apontados nas perspectivas cooperativas do trote, ou possa compatibilizar, no imaginário dos jovens, coisas aparentemente inconciliáveis como a submissão à ações desagradáveis pelo desafio da prova e a alegria da conquista de ter entrado na universidade.

O ingresso na universidade pode representar um choque na vida dos jovens, pela chegada em um território até então desconhecido, ocupado por vários grupos sociais, em um momento em que mergulham em inúmeras informações institucionais, com uma série de regras a serem cumpridas e um longo programa de disciplinas a serem cursadas. Conhecer os docentes, aproximar-se dos estudantes que já em curso e estabelecer estes primeiros contatos, inclusive com os colegas de turma, é o contexto dos trotes. Um contexto em que as atividades de socialização são muito valorizadas,77. Albanaes P, Bardagi MP, Girelli S. Do trote à mentoria: levantamento das possibilidades de acolhimento ao estudante universitário. Rev Bras Orient Prof [Internet]. 2014 Sep [cited 2017 Sep 1]; 15(2):143-52. Available from: Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbop/v15n2/05.pdf
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favorecendo a travessia para um mundo novo que é desejado, mas que também atemoriza. Longe da seriedade e das preocupações dos pais, a sensação de liberdade das regras familiares é sucedida pelos estranhamentos, que são enfrentados através de um processo de familiarização no qual se formam as RS deste novo mundo. A sociabilidade natural dos jovens que anseiam por integração faz com que os trotes sejam objetivados como brincadeiras, pois de fato, ancorar a figura do trote em brincadeiras e relacioná-las às recordações da infância é uma estratégia que permite familiarizar-se com estas atividades, afastar o medo e aprender papéis sociais.1515. Berger PL. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. 32th ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011.

Brincadeiras são atividades que implicam em cooperação e auxiliam no processo de conexão do sujeito consigo mesmo e com os grupos. Os trotes realizados nos cursos da área da saúde propõem algumas brincadeiras com os corpos dos calouros que talvez possam ser, de alguma maneira relacionadas às rotinas profissionais, já que as profissões da saúde têm no corpo humano seu foco de atenção. Ao mesmo tempo, as imagens midiáticas dos trotes nos noticiários cotidianos e nos outdoors de cursos preparatórios para o vestibular fomentam a ideia dos trotes como a representação simbólica de sucesso e da felicidade, contribuindo para naturalizar essas práticas, uma vez que passam a representar a própria vitória no vestibular.1010. Vegini NMK, Finkler M. Trotes Universitários pela mídia. In: Anais do XI Congresso Brasileiro de Bioética [Internet]. 2015 Sep 16-18 [cited 2017 Sep 1] p. 46; Curitiba, Brasil. Available from: Available from: http://www.sbbioetica.org.br/uploads/Publicacao/2016_02_11/Anais-BIOETICA-XI-Congresso-Brasileiro.pdf
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Assim, depois de todas as emoções e temores que antecedem o ingresso na Universidade, os calouros podem desejar participar dos trotes também pela alegria desta vitória.

A ideia de amizade é uma RS, conforme apontado anteriormente nos resultados, que por vezes se confunde com o coleguismo, o qual compreende relações de colaboração e respeito mútuo (a expressão ‘colega’ de faculdade poderá depois ser substituída por ‘colega’ de trabalho, uma relação fundamental para o desenvolvimento das corporações e das relações institucionais). Mas as amizades constituem referências ainda mais significativas, e em todas as fases da vida. Desde a infância, amizades oportunizam o exercício do respeito e da reciprocidade, o estabelecimento de vínculos de afeto duradouros, bem como a valorização de atributos humanísticos importantes como a lealdade e a solidariedade.

As formas como estas ligações se criam, muitas vezes obedecem a uma finalidade comum - esporte, trabalho, faculdade, por exemplo.1616. Zamboni C. Juventude: uma questão de fronteira para a Psicologia Social. In: Guareschi PA, Veronese V, organizadores. Psicologia do cotidiano: representações sociais em ação. Petrópolis (RJ): Vozes; 2007. Nos grupos de amigos são realizadas atividades frequentemente com características de confraternizações, sejam festas, momentos de estudo ou outros tipos de parcerias. Mas se grupos de amigos vivenciam questões de pertencimento, também podem experimentar a exclusão. O pertencimento se fortalece com o cumprimento das regras do grupo, com o compartilhamento de valores e adesão aos ideais coletivos, enquanto a exclusão ou o afastamento voluntário ocorre por divergência quanto às forças que motivam o grupo.1616. Zamboni C. Juventude: uma questão de fronteira para a Psicologia Social. In: Guareschi PA, Veronese V, organizadores. Psicologia do cotidiano: representações sociais em ação. Petrópolis (RJ): Vozes; 2007.

Os trotes pretendem criar o sentimento de pertença por meio de sua vivência coletiva.44. Oliveira CS, Villas-Boas S, Las Heras S. Assédio no ritual da praxe académica numa universidade pública portuguesa. Sociologia, Problemas e Práticas [Internet]. 2016 Mar [cited 2017 Sep 1]; (80):49-67. Available from: https://spp.revues.org/2073 Desde a infância, os sujeitos fazem parte de uma família ou de grupos, vivem em sociedade e temem ser excluídos. Participar se ancora no sentido de fazer parte, de atuação social e posse de um determinado espaço na universidade; e “integrar-se” se ancora na ideia de aceitar o grupo e ser aceito por ele, pois os sujeitos querem participar da sociedade.1515. Berger PL. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. 32th ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011.

Já o sentido de recepcionar, também presente sob uma perspectiva cooperativa do trote, é o de apoiar e cuidar daqueles que chegam a novos territórios, conforme entrevistados que utilizaram bastante as expressões ‘territorializar os calouros’ e ‘territorializados’, referindo-se aos veteranos que já conhecem a Universidade. A escolha em trabalhar na área da saúde está relacionada ao cuidado.1717. Souza VCT, Pessini L, Hossne WS. Bioética, religião, espiritualidade e a arte do cuidar na relação médico-paciente. Rev Centro Universitário São Camilo [Internet]. 2012 Apr-Jun [cited 2017 Sep 1]; 6(2):181-90. Available from: Available from: http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/94/a7.pdf
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Coerentemente, o cuidado está presente no ato de recepcionar e acolher os calouros, que possivelmente se ancora nesta função dos profissionais de saúde e, para alguns docentes, também na função dos professores. Contudo, as atividades de recepção e acolhimento não tem sido substitutivas aos trotes,77. Albanaes P, Bardagi MP, Girelli S. Do trote à mentoria: levantamento das possibilidades de acolhimento ao estudante universitário. Rev Bras Orient Prof [Internet]. 2014 Sep [cited 2017 Sep 1]; 15(2):143-52. Available from: Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbop/v15n2/05.pdf
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que continuam sendo praticados paralelamente, frequentemente fora do campus.

Há que se refletir criticamente sobre os efeitos de práticas abusivas como apresentações públicas de calouros com perguntas invasivas, sexistas ou descontextualizadas, práticas de “leilão” que relembram as da escravidão, constrangimentos impostos ao exigir que peçam dinheiro nas vias públicas do campus, e uso de placas com apelidos frequentemente jocosos e depreciativos. Apelidos costumam ser criados com base em características pessoais, com potencial para reduzir uma pessoa a um aspecto físico ou psicológico, rotulando-a. Muitas ‘brincadeiras’ de trotes estão implicadas em familiarização com dificuldades na futura profissão, como as pinturas e sujeiras que inclusive podem ter mau cheiro, por elas representando funções das profissões de saúde que trabalham com sangue e outros fluidos corpóreos. Quais as consequências na formação do estudante que é identificado por apelidos? Sente-se desrespeitado e constrangido ao ser exposto nos semáforos com roupas rasgadas, sem calçados, pintados/sujos, às vezes até com os cabelos cortados, arrecadando moedas para as festas dos veteranos? É inegável a potência dos trotes como geradores de conflitos éticos, especialmente pelos constrangimentos que podem causar aos envolvidos, sobretudo aos mais vulneráveis na relação interpessoal acadêmica.99. Costa SM, Dias OV, Dias ACA, S TR, Canela JR. Trote universitário: diversão ou constrangimento entre acadêmicos da saúde? Rev Bioética [Internet]. 2013 [cited 2017 Sep 1]; 21(2):350-8. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/bioet/v21n2/a19v21n2.pdf
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Sob uma perspectiva coercitiva, as RS do trote como violência remetem a abusos e excessos, o que frequentemente ocorre quando o comportamento de veteranos caracteriza atos de dominação dos calouros. Uma das práticas de trote que mais chamou atenção durante o período da coleta de dados é chamada de territorialização e está bastante implicada em violência simbólica. Nela, os veteranos mandam os calouros andarem na “posição de elefantinho”, ou seja, enfileirados e abaixados com a mão entre as pernas, segurando a mão dos calouros que estão a sua frente e atrás, repetindo versos obscenos e sexistas ditados pelos veteranos, reforçando nossa cultura social machista e heteronormativa. Assim, tratando-os como bichos,1818. Zuin AAS. O trote universitário como violência espetacular. Educ Realidade [Internet]. 2011 May-Aug [cited 2017 Sep 1]; 36(2):587-604. Available from: Available from: http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/13132/12929
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os veteranos tentam provar sua suposta superioridade frente aos calouros, a qual decorreria de um maior saber, tanto relacionado à futura profissão quanto à instituição de ensino na qual já estão ‘territorializados’ - uma espécie de sentimento de posse da instituição - justificando-se assim uma suposta autoridade. Na prática, uma relação de poder que se evidencia nas atividades previamente preparadas por veteranos ou por “comitês de recepção” institucionais, e que legitima a hierarquia social baseada no poder-saber de nossa sociedade e na sensação de posse de um território.

Também houve relatos de trotes praticados fora do campus no formato de festas, nas quais os calouros são incentivados a ingerir bebida alcóolica, entre outras atividades às escondidas, longe do controle ou, pelo menos, de um acompanhamento institucional. Nestas situações, práticas revestidas do intuito de dominação e posse dos calouros como propriedade dos veteranos são ainda mais viáveis. São chocantes os casos de morte e outras violências físicas graves como queimaduras e estupros em trotes e festas universitárias eventualmente noticiadas pela mídia brasileira1919. Mendonça R. Estupros na USP expõem omissão de universidades. BBC Brasil, São Paulo, 2014 Nov 24 [cited 2017 Sep 1]. Available from: Available from: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/11/141120_usp_abusos_universidades_rm
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e internacional,55. Marcitllach AA, Freire AGM. Novatadas: comprender para actuar [Internet]. Madrid (ES): Universidad Pontificia Comillas [Internet]. 2013 [cited 2017 Sep 1]. Available from: Available from: http://nomasnovatadas.org/noticias/wp-content/uploads/2014/09/Novatadas-comprender-para-actuar.pdf
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assim como em casos relacionados aos esportes escolares.2020. Diamond AB, Callahan ST, Chain KF, Solomon GS. Qualitative review of hazing in collegiate and school sports: consequences from a lack of culture, knowledge and responsiveness. Br J Sports Med [Internet]. 2016 Feb [cited 2017 Sep 1]; 50(3):149-53. Available from: Available from: https://dx.doi.org/10.1136/bjsports-2015-095603
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Recentemente, alunas de uma tradicional faculdade de Medicina em São Paulo denunciaram estupros sofridos, mas seus agressores não foram punidos. O caso não escandalizou tão somente pelos fatos, mas pelas tentativas de silenciamento das vítimas que colocaram em pauta a omissão das universidades, bem como pela recorrência dos abusos, ao ponto de fomentar a criação de um coletivo de apoio às vítimas.1919. Mendonça R. Estupros na USP expõem omissão de universidades. BBC Brasil, São Paulo, 2014 Nov 24 [cited 2017 Sep 1]. Available from: Available from: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/11/141120_usp_abusos_universidades_rm
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Esta lei de silêncio não impera apenas no contexto nacional, sendo a regra tanto entre aqueles que realizam o trote como medida defensiva, quanto entre aqueles que os sofrem, fundamentalmente por medo.55. Marcitllach AA, Freire AGM. Novatadas: comprender para actuar [Internet]. Madrid (ES): Universidad Pontificia Comillas [Internet]. 2013 [cited 2017 Sep 1]. Available from: Available from: http://nomasnovatadas.org/noticias/wp-content/uploads/2014/09/Novatadas-comprender-para-actuar.pdf
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Os participantes da pesquisa compreendem que, ainda que consentidas, as participações não desejadas caracterizam violência. Percebe-se assim a existência de um jogo desigual de forças que resulta em submissão, opressão e colonização do outro, e representa um perigo real aos calouros. Se o outro reclama, é desencorajado através de rótulos depreciativos, podendo ser excluído do convívio, ou o simples temor de tal exclusão, acompanhada de punição e humilhação maior, pode tornar aceitável um “mal menor”. As representações do trote relacionadas a algum tipo de violência implicam na objetivação destas imagens de práticas não desejadas a que são submetidos os calouros, como se os seus elementos violentos fossem um preço a se pagar para fazer parte da vida universitária.44. Oliveira CS, Villas-Boas S, Las Heras S. Assédio no ritual da praxe académica numa universidade pública portuguesa. Sociologia, Problemas e Práticas [Internet]. 2016 Mar [cited 2017 Sep 1]; (80):49-67. Available from: https://spp.revues.org/2073

Em que pese as variadas formas como são significados os rituais de iniciação - mais uma das RS dos trotes - pelos próprios calouros que a eles se sujeitam nas universidades, frequentemente são relatados como experiências difíceis.99. Costa SM, Dias OV, Dias ACA, S TR, Canela JR. Trote universitário: diversão ou constrangimento entre acadêmicos da saúde? Rev Bioética [Internet]. 2013 [cited 2017 Sep 1]; 21(2):350-8. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/bioet/v21n2/a19v21n2.pdf
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Como um futuro profissional da saúde aprenderá a respeitar a liberdade e a autonomia das pessoas sob seus cuidados se sua primeira lição na universidade foi justamente de desrespeito e submissão?11. Finkler M. Formação profissional e/ou educação universitária: de onde viemos, para onde vamos? Interface [Internet]. 2017 Apr-Jun [cited 2017 Sep 1]; 21(61):465-8. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0753
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Cabe pensar nos estímulos ambientais e sociais que podem levar os mais jovens a desejarem participar ou, a participarem pela tendência em adotar comportamentos imitativos e, portanto, a seguir os grupos de referência,1616. Zamboni C. Juventude: uma questão de fronteira para a Psicologia Social. In: Guareschi PA, Veronese V, organizadores. Psicologia do cotidiano: representações sociais em ação. Petrópolis (RJ): Vozes; 2007. dispondo-se a consentir sua participação sem considerar possíveis consequências. De fato, a maturidade, representada pela maior idade dos universitários, é apontada como um fator associado a não participação do trote, nem no ingresso nem na condição de veterano, e ainda, entre estudantes que participaram de trotes, a maior idade foi associada à autoavaliação de percepção de ter exposto os calouros a situações de constrangimentos.99. Costa SM, Dias OV, Dias ACA, S TR, Canela JR. Trote universitário: diversão ou constrangimento entre acadêmicos da saúde? Rev Bioética [Internet]. 2013 [cited 2017 Sep 1]; 21(2):350-8. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/bioet/v21n2/a19v21n2.pdf
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Além disso, o gênero tem se mostrado uma variável diferenciadora, pois homens jovens expressam mais fortemente acordo com a prática, enquanto jovens mulheres apresentam, de forma mais homogênea, discordância quanto às mesmas.2121. Caldeira S, Silva O, Mendes M, Susana B, Martis MJ. University Student's perceptions of hazing: a gender approach. Int J Dev Res [Internet]. 2016 Sep [cited 2017 Sep 1]; 6(9):9444-9. Available from: Available from: http://hdl.handle.net/10400.3/3949
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A teoria psicológica da aprendizagem explica a agressão e violência como resultado de um aprendizado, pois comportamentos recompensados tendem a se repetir.2222. Bandura A, Ross D, Ross SA. Transmission of aggression through imitation of aggressive models. J Abnorm Soc Psychol. 1961;63(3):575-82. Desta forma, o veterano que teve sucesso agindo agressivamente poderá repetir a ação, inclusive em outros âmbitos de sua vida. Outra forma de aprender a agir agressivamente ocorre por meio de exemplos, como os calouros que aprendem observando o comportamento dos veteranos. De fato, sabe-se que algumas violências se repetem nos trotes, de semestre em semestre, de ano em ano, pela “perpetuação do ritual [...] e suas perversas consequências”.55. Marcitllach AA, Freire AGM. Novatadas: comprender para actuar [Internet]. Madrid (ES): Universidad Pontificia Comillas [Internet]. 2013 [cited 2017 Sep 1]. Available from: Available from: http://nomasnovatadas.org/noticias/wp-content/uploads/2014/09/Novatadas-comprender-para-actuar.pdf
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:99. Costa SM, Dias OV, Dias ACA, S TR, Canela JR. Trote universitário: diversão ou constrangimento entre acadêmicos da saúde? Rev Bioética [Internet]. 2013 [cited 2017 Sep 1]; 21(2):350-8. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/bioet/v21n2/a19v21n2.pdf
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Ainda haveria que se ponderar acerca das atitudes agressivas e desrespeitosas nos trotes como um possível reflexo da excessiva competição por vagas e por mercado na área da saúde. A competição exacerbada pode ativar comportamentos individualistas, gerar conflitos e promover isolamento por conta do outro ser considerado um adversário competidor.2323. Beaudoin MN, Taylor M. Bullying e desrespeito: como acabar com essa cultura na escola. Porto Alegre (RS): Artmed; 2006. Desta forma, é necessária reflexão sobre as violências e agressões que podem se reproduzir pela repetição de um comportamento aprendido, ou em razão da natureza competitiva do ambiente acadêmico e profissional na área da saúde, ou ainda, pela ambivalência dos sentimentos que desperta.44. Oliveira CS, Villas-Boas S, Las Heras S. Assédio no ritual da praxe académica numa universidade pública portuguesa. Sociologia, Problemas e Práticas [Internet]. 2016 Mar [cited 2017 Sep 1]; (80):49-67. Available from: https://spp.revues.org/2073

“A função dos rituais de passagem é operar uma transformação de status e de identidade que, sociologicamente, se enquadra como mecanismo de integração grupal”.44. Oliveira CS, Villas-Boas S, Las Heras S. Assédio no ritual da praxe académica numa universidade pública portuguesa. Sociologia, Problemas e Práticas [Internet]. 2016 Mar [cited 2017 Sep 1]; (80):49-67. Available from: https://spp.revues.org/2073:51 Assim, escondem a promessa de que uma vez superados, os sujeitos passarão para o lado de dentro, de que serão membros por direito próprio.55. Marcitllach AA, Freire AGM. Novatadas: comprender para actuar [Internet]. Madrid (ES): Universidad Pontificia Comillas [Internet]. 2013 [cited 2017 Sep 1]. Available from: Available from: http://nomasnovatadas.org/noticias/wp-content/uploads/2014/09/Novatadas-comprender-para-actuar.pdf
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Mas o ritual, para ser incontestável, deve mostrar à sociedade a transformação, de modo que costumam ser encenados publicamente, em locais visíveis a todos.44. Oliveira CS, Villas-Boas S, Las Heras S. Assédio no ritual da praxe académica numa universidade pública portuguesa. Sociologia, Problemas e Práticas [Internet]. 2016 Mar [cited 2017 Sep 1]; (80):49-67. Available from: https://spp.revues.org/2073 Quando as ações de trote são assim compreendidas - parte da cultura na qual os acadêmicos devem se sujeitar, aceitando tudo sem possibilidade de discussão - podem ser configuradas como um rito: “a imagem deixa de ser um signo e passa a ser uma cópia da realidade”.2424. Oliveira FO, Werba GC. Representações Sociais. In: Jacques MGC, Strey MN, Bernardes MG, organizadores. Psicologia Social Contemporânea. 21th ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2012.:109 Ritos transmitem a ideia de obrigatoriedade a todos. Considerar que o trote é um rito pode validar também qualquer tipo de comportamento que faça parte do ritual, também porque ritos possuem um caráter transitório. O fato dos trotes estarem bem delimitados no tempo pode ser um fator que favorece sua aceitação por parte dos calouros.44. Oliveira CS, Villas-Boas S, Las Heras S. Assédio no ritual da praxe académica numa universidade pública portuguesa. Sociologia, Problemas e Práticas [Internet]. 2016 Mar [cited 2017 Sep 1]; (80):49-67. Available from: https://spp.revues.org/2073

O ritual do trote constitui uma tecnologia contemporânea de poder.2525. Siqueira VHF, Fonseca MCG, Sá MB, Lima ACM. Construções identitária de estudantes de farmácia no trote universitário: questões de gênero e sexualidade. Pró-Posições [Internet]. 2012 May-Aug [cited 2017 Sep 1]; 23(2):145-59. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/pp/v23n2/a10v23n2.pdf
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Permeado de violências, contradiz com a prática profissional futura voltada à atenção e ao cuidado em saúde, negando a própria essência da educação superior em saúde99. Costa SM, Dias OV, Dias ACA, S TR, Canela JR. Trote universitário: diversão ou constrangimento entre acadêmicos da saúde? Rev Bioética [Internet]. 2013 [cited 2017 Sep 1]; 21(2):350-8. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/bioet/v21n2/a19v21n2.pdf
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e prejudicando o seu desenvolvimento moral e a sua formação ética.11. Finkler M. Formação profissional e/ou educação universitária: de onde viemos, para onde vamos? Interface [Internet]. 2017 Apr-Jun [cited 2017 Sep 1]; 21(61):465-8. Available from: Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0753
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Tais práticas são fundadas na lógica da opressão dos veteranos que detêm mais conhecimentos e são moralmente justificadas como tradição, precisando serem contestadas para que a realidade seja transformada,2626. Fonseca AA. A estratégia da dominação: trote universitário favorece lógica de opressão social. Revelação [Internet]. 2002 Mar [cited 2017 Sep 1]. Available from: Available from: http://www.revelacaoonline.uniube.br/portfolio/domicacao1.html
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o que exige da universidade elaboração de estratégias de enfrenteamento e abertura ao diálogo.2727. Villaça FM, Palacios M. Concepções sobre assédio moral: bullying e trote em uma escola médica. RBEM [Internet]. 2010 Oct-Dec [cited 2017 Sep 1]; 24(4):506-14. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbem/v34n4/v34n4a05.pdf
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CONCLUSÃO

As primeiras vivências entre calouros e veteranos na universidade estão ligadas a muitas emoções. É um momento de transição e o clima festivo permite que os jovens, ainda adolescentes em sua maioria, exercitem o abandono de algumas regras e crenças infantis, predispondo-se a mudanças, novas ideias, referências e paradigmas. Essa pré-disposição é importante, visto que a universidade precisa de estudantes abertos a novas formas de pensar, conhecer, ser e transformar a realidade. Neste contexto, o trote e suas repercussões na formação ética dos profissionais precisam ser mais bem compreendidos pela comunidade acadêmica.

Sob uma perspectiva cooperativa, os trotes são representados como brincadeiras e jogos, como confraternização e amizade, integração e participação. Sob uma perspectiva coercitiva, são representados como violência, agressão, submissão, como iniciação e rito de passagem. Neles, os calouros são convocados a desempenhar papéis. O jovem pode não participar, mas se rejeitar, também poderá ser rejeitado por seu novo grupo. Sob uma perspectiva sociológica, os indivíduos tendem a aceitar os papéis que a sociedade ou, no caso, os veteranos lhe atribuem porque desejam fazer parte dela. Ainda que cheguem com muitas expectativas e idealismo num grupo, os recém-ingressos são cobrados a cumprirem seus papéis, incorporando a identidade que lhes é atribuída e socialmente reconhecida.

Quando se tratam de sociedades relacionadas às profissões, deve-se considerar que a maior parte da vida dos sujeitos que ingressam em uma profissão estará relacionada ao seu futuro profissional - amigos, colegas e as associações. O calouro pode ter seu comportamento modelado para desempenhar o papel necessário à manutenção desta sociedade, com um status social, regras predefinidas e políticas próprias, destinadas a manter a sua hegemonia. Há que se refletir sobre os valores e comportamentos compartilhados pelas diferentes profissões que as colocam em uma posição de destaque na hierarquia social, e que conflitam com os valores e condutas demandadas às profissões de saúde que devem adequar a assistência em saúde aos princípios constitucionais do direito à saúde.

A ambiguidade das RS do trote fala das suas diferentes potências: de compartilhamento de valores que realizam contribuições positivas no desenvolvimento moral dos estudantes por um lado, e de outro, de vivências de desvalores que o prejudicam. A submissão dos calouros aos papéis predeterminados através das vivências dos trotes dificulta que outros papéis possam ser por eles escolhidos mediante análise ética das práticas, juntamente com o envolvimento e o comprometimento docente, fundamental para as mudanças de paradigmas da formação profissional.

Apesar da condenação das atitudes de violência nos trotes por todos e de uma importante preocupação em transformar e ressignificar o fenômeno (de “trote” para “recepção” e/ou para “trote solidário”) de alguns, as atividades realizadas continuam oportunizando e favorecendo a ocorrência de diversos problemas éticos, ou seja, de questões que envolvem conflito de valores e que precisam ser tomadas para análise e resolução. Isto não significa, no entanto, uma desvalorização das mudanças promovidas no sentido de humanizar a recepção aos novos estudantes, sempre que tenham, de fato, ocorrido e que não ignorem as práticas vinculadas ao trote, mesmo quando fora do campus.

Ao contrário, o que se enseja é colocar luz às práticas, mesmo as renomeadas, que podem manter vivências de submissão, agressão e violência, sejam elas sutis ou explícitas, gerando sofrimento. Deste modo, vale atentar para o fato de que a simples renomeação não só não contribui para um acolhimento afetivo e efetivo dos estudantes, como também burla o regulamento universitário que proíbe as ações de trotes. A respeito destas proibições cabe, por fim, sinalizar o desconhecimento dos calouros e a despreocupação por parte dos veteranos. Ainda que seja possível relacionar o fracasso legal em conter essas práticas à falta de controle e responsabilização, não se pode deixar de refletir sobre o fato de que as leis são o mínimo moral necessário à sociedade, e que quando nem este mínimo é respeitado, tem-se pela frente um grande desafio: fomentar a reflexão crítica, coletiva e dialógica compromissada com a intervenção - uma missão verdadeiramente ético-político-pedagógica.

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NOTAS

  • ORIGEM DO ARTIGO
    Artigo extraído da dissertação - A dimensão ética da formação do profissional em saúde: um estudo a partir das representações sociais sobre o trote universitário, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina, em 2016.
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA
    Aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina, Parecer n.1.160.242, CAAE: 47198015.5.0000.0121.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2017
  • Aceito
    12 Set 2017
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