Resumos
Esta pesquisa objetivou analisar as representações sociais da vulnerabilidade e do empoderamento elaboradas por enfermeiros no contexto das relações mantidas no ambiente de trabalho, no qual cuidam de pessoas com HIV/aids. Trata-se de pesquisa qualitativa e descritiva, realizada com 30 enfermeiros de um hospital público de referência em HIV/aids. Adotou-se o referencial da abordagem processual da Teoria das Representações Sociais. As entrevistas foram transcritas e submetidas à análise de conteúdo temática instrumentalizada pelo software Nvivo 9.0. A vulnerabilidade foi expressa em constrangimento, insatisfação, angústia, frustração, insegurança, sobrecarga e estresse. Já o empoderamento foi expresso sob a forma de relacionamento interpessoal favorável, apoio moral e operacional por parte da equipe, adaptações e improvisações, obtenção de conhecimento científico e autoproteção profissional. Conclui-se que os enfermeiros carecem de políticas promotoras de um ambiente de trabalho mais saudável.
Vulnerabilidade em saúde; Cuidados de enfermagem; Síndrome da imunodeficiência adquirida; Enfermeiros; Saúde do trabalhador
The aim of this study was to analyze the social representations of vulnerability and empowerment of nurses, in the context of their relationships with the work environment, in which they care for people with HIV/AIDS. A qualitative and descriptive study was carried out with 30 nurses in a public hospital that is a reference for HIV/AIDS care. The theoretical framework of the procedural approach from the Social Representations Theory was adopted. The interviews were transcribed and submitted to thematic content analysis using the software Nvivo 9.0. Vulnerability was expressed as embarrassment, dissatisfaction, distress, frustration, insecurity, overload and stress. In turn, empowerment was expressed in the form of positive interpersonal relationships, moral and operational support from the team, adaptations and improvisations, acquisition of scientific knowledge, and professional self-protection.
Health vulnerability; Nursing care; Acquired immunodeficiency syndrome; Nurses; Occupational health
El objetivo fue analizar las representaciones sociales de la vulnerabilidad y empoderamiento elaboradas por enfermeros en el contexto de las relaciones que mantienen con el ambiente de trabajo en el que cuidan de personas con VIH/Sida. Esta es una investigación cualitativa y descriptiva, realizada con 30 enfermeros de un hospital público de referencia en el VIH/Sida. Se adoptó el referencial del abordaje procesal de la Teoría de las Representaciones Sociales. Las entrevistas fueron transcritas y sometidas al análisis de contenido temático por medio del programa Nvivo 9.0. La vulnerabilidad fue expresa en forma de encogimiento, insatisfacción, angustia, frustración, inseguridad, sobrecarga y estrés. Ya el empoderamiento, fue expreso en forma de relación interpersonal favorable, apoyo moral y operativo por parte del equipo, adaptaciones e improvisaciones, obtención de conocimiento científico y autoprotección profesional.
Vulnerabilidad en salud; Atención de enfermería; Síndrome de inmunodeficiencia adquirida; Enfermeros; Salud laboral
INTRODUÇÃO
Apesar de a vulnerabilidade ser um constructo teórico largamente empregado nas mais variadas áreas do conhecimento, entre elas, as da saúde e da enfermagem, algumas pesquisas têm defendido a sua não cristalização e a necessidade de revisitação e de problematização constantes de seus aspectos fundantes. Sob esta assertiva, mostram-se relevantes os estudos que trazem à tona a apreensão dos diferentes grupos sociais acerca de sua vulnerabilidade, assim como os saberes e as práticas dos quais estes dispõem para a sua redução, o empoderamento. Além disto, é necessário o exame da incorporação deste conceito por profissionais de saúde, assim como o modo como se organizam individual e/ou coletivamente para enfrentarem a fragilidade presente nos mais diversos contextos de assistência à saúde, quer seja no âmbito da atenção primária, secundária ou terciária.1 - 2
O objeto deste estudo são as representações sociais da vulnerabilidade e do empoderamento elaboradas por enfermeiros no contexto das relações que mantém com o ambiente de trabalho no qual exercem suas práticas de cuidado às pessoas que vivem com HIV/aids em cenário de hospitalização. Seu objetivo, desse modo, foi analisar as representações sociais da vulnerabilidade e do empoderamento elaboradas por enfermeiros no contexto das relações que mantém com o ambiente de trabalho sob a égide do HIV/aids. Entende-se por vulnerabilidade o estado dinâmico e mutável de fragilidade ou de incapacidade tipicamente humano, possuidor de diferentes dimensões e fruto de diversos fatores e situações intrínsecos e extrínsecos ao usuário do sistema de saúde ou ao profissional imbuído de seus cuidados. Este estado os impulsiona à formulação de estratégias de enfrentamento, configurando-se, assim, o seu empoderamento ante a vivência do intercurso processual saúde-doença-cuidado. As ameaças vivenciadas colocam em jogo a continuidade de suas existências, a qualidade de vida que detém ou que podem alcançar, assim como a trama social na qual estão compreendidos, tanto na cotidianidade de ser cuidado quanto na de ser cuidador, levando-se em consideração suas características individuais, o estágio do adoecimento, a configuração que o cuidado assume quando psicossocialmente reconstruído e o contexto sociocultural que os rodeia.1 - 2
A vulnerabilidade, no contexto dos cuidados de enfermagem, não se restringe à susceptibilidade de contaminação por algum patógeno. Apesar de compreender o universo de fatores sociais, individuais, políticos e institucionais que colocam o indivíduo em situação de risco para a aquisição de doenças no ambiente hospitalar, engloba tudo aquilo que representa uma ameaça à integridade física, moral, psíquica, espiritual, social ou afetiva dos profissionais de enfermagem.1 - 5
Este estudo se apoia em outras pesquisas, cujos resultados apontaram para traços importantes da vulnerabilidade no conjunto de saberes e das práticas referidas por enfermeiros e outros profissionais de enfermagem. Essas pesquisas colocaram em evidência o medo da exposição a doenças transmissíveis no contexto hospitalar, o desgaste psicofísico proporcionado pela sobrecarga na atividade de cuidar, a falta de insumos, equipamentos e pessoal em número suficiente, os conflitos entre os valores pessoais e institucionais e a falta de motivação para o trabalho.6 - 8
MÉTODO
Adotou-se, como caminho teórico-metodológico deste trabalho, a Teoria das Representações Sociais, em sua abordagem processual, desenvolvida na perspectiva da Psicologia Social. A abordagem processual foi escolhida para guiar a pesquisa por seu direcionamento aos aspectos constituintes das representações, traço característico que auxilia a compreensão do objeto de estudo, delineado em seus múltiplos fatores intervenientes, e em virtude da complexidade apresentada pelo objeto de representação.9 - 10
Compuseram a população do estudo 30 enfermeiros que realizavam suas atividades laborais no cenário escolhido para a pesquisa, um hospital municipal do Rio de Janeiro, referência para o tratamento de pessoas que vivem com HIV/aids e/ou tuberculose. A razão para este número é o consenso existente no âmbito da Teoria de Representações Sociais como sendo o quantitativo mínimo para se recuperar as representações sociais em um grupo.10 - 11 Foram excluídos os profissionais com menos de seis meses de atividade profissional no contexto do cenário escolhido. Isto se deve pelo fator tempo configurar-se como um determinante na elaboração de representações sociais. Nenhum outro atributo se constituiu como critério de exclusão justificável.
As técnicas escolhidas para a coleta de dados foram o questionário sociodemográfico de caracterização dos sujeitos e a entrevista semiestruturada. Os dados foram coletados entre os meses de junho e agosto de 2009. A discursividade dos sujeitos foi devidamente transcrita e analisada sob os postulados teóricos e metodológicos das Representações Sociais. A técnica de análise escolhida foi a Análise de Conteúdo Temática,12 após sistematização13 e operacionalização pelo software QSR NVivo 9.0. Esta ferramenta informatizada se baseia no princípio de codificação e armazenamento de recortes textuais em temáticas (nodes), agrupadas em categorias (tree nodes) de maneira informatizada.2 A construção das categorias deu-se de maneira a reorganizar o pensamento social do grupo investigado, com vistas à apreensão dos processos constituintes das dimensões representacionais da vulnerabilidade e do empoderamento, especialmente aqueles relativos aos processos de objetivação e de ancoragem. Buscou-se obedecer aos princípios éticos de pesquisas com seres humanos previstos na Declaração de Helsinki e a normativa das Resoluções n. 196/96 e n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), ligado ao Ministério da Saúde (MS). O projeto ao qual este estudo pertence foi submetido ao Comitê de Ética do Município do Rio de Janeiro e obteve aprovação sob n. 200/08.
RESULTADOS
Os sujeitos eram, em sua maioria, do sexo feminino (87%), pertencentes à faixa etária de 41 a 45 anos (27%), de religião católica (40%), com companheiro (70%), com pós-graduação lato sensu (90%), com 16 anos ou mais de atuação institucional (37%), 16 anos ou mais de atuação junto a pessoas que vivem com HIV (30%), em função assistencial à época da coleta de dados (63%) e com acesso a informações científicas (77%).
O resultado da análise instrumentalizada pelo NVivo 9.0 obteve 1.696 Unidades de Registro (URs), distribuídas em sete categorias, e que representam 100% do corpus analisado. Neste estudo será aprofundada a categoria de número dois, que comporta 277 URs, distribuídas em 21 temas, e relativas a 16,3% do corpus, denominada "A instituição hospitalar e sua infraestrutura: polo de vulnerabilidade e de empoderamento nas construções sociossimbólicas de enfermeiros que cuidam de pacientes com HIV/aids".
Embora a vulnerabilidade seja o objeto de investigação deste estudo, formas de enfrentamento do estado de vulnerabilidade emergiram na produção discursiva dos enfermeiros. Estas serão compreendidas como componentes do empoderamento humano. O empoderamento, por possuir dimensões afetivas, atitudinais, simbólicas, práticas, cognitivas e outras,2 será abordado enquanto objeto de representação, que emergiu em associação ao da vulnerabilidade. Frente à complexidade dos resultados, será realizada a sua discussão em dois eixos, cuja distinção é mais didática do que real no arcabouço representacional dos enfermeiros deste estudo.
Eixo 1 - As dificuldades impostas pela infraestrutura hospitalar à prática do cuidado de enfermagem
Neste eixo, a precariedade das condições de trabalho oferecidas pela instituição hospitalar, é revelada pelos sujeitos como um fator prejudicial à plenitude de suas práticas de cuidado. Verifica-se a existência de atitude negativa (posicionamento desfavorável) dos enfermeiros entrevistados acerca do cenário no qual desenvolvem as suas atividades laborais: [...] as questões de infraestrutura, que englobam mobiliário, o local, e que, muitas das vezes, precisamos de um suporte e não conseguimos! [...]. Então precisamos de manutenção contínua das portas, do ventilador, do aparelho e isso não tem acontecido. Nós pedimos, mas não somos atendidos em tempo hábil! E isso gera uma angústia, porque solicitamos e não há retorno (e24).
Destaca-se que a dimensão atitudinal possui centralidade na Teoria das Representações Sociais e, sob o seu ponto de vista, está ligada ao posicionamento, seja ele favorável ou desfavorável, de um grupo sobre um objeto de representação.10
Nas construções psicossociais dos enfermeiros, sua vulnerabilidade é, ao menos em parte, produto da inexistência de um sistema de ventilação eficiente, da ausência de respostas às solicitações de material, da inadequação da aparelhagem e objetivada da angústia gerada por esses fatores. Essas expressões traduzem a fragilidade apreendida pelos sujeitos deste estudo, que parecem apresentar certo grau de insatisfação e desgaste psicofísico oriundos, principalmente, da precariedade das condições de trabalho no que concerne aos recursos humanos e materiais. Esses resultados se assemelham aos identificados por outra pesquisa recentemente publicada.4
O compartilhamento da vulnerabilidade, conceito explorado em pesquisa anterior,2 foi verificado no processo discursivo dos enfermeiros, pois, em seus conteúdos representacionais, alguns elementos presentes no cotidiano de cuidado fragilizam física ou psicologicamente a eles e aos pacientes, simultaneamente.
Quando vamos puncionar o paciente, é muito constrangedor porque as camas são muito baixas [...]. É desconfortável para o profissional e para o paciente (e3); Nós temos camas horrorosas. A grade, se você levanta, não abaixa. Não temos mobiliário adequado. O mínimo que se pode oferecer para uma pessoa quando ela está doente é o conforto. Acho que se ele necessitar de um cuidado mais intensivo, nós temos uma bomba infusora. Mas nada além disso. (e25).
Neste sentido, esta faceta das representações sociais da vulnerabilidade se encontra no sofrer pelo sofrimento do outro. Os enfermeiros, ao perceberem as dificuldades para a implementação do cuidado prestado aos pacientes, causadas pela precariedade dos recursos e da infraestrutura do hospital, sentem-se angustiados, desconfortáveis, frustrados e constrangidos. A vulnerabilidade, que ganha sentido no constrangimento sofrido, neste caso, ameaça os sujeitos em suas dimensões subjetivas e físicas.14 - 15 Os insumos básicos para o trabalho também são apontados como deficientes pelos enfermeiros: [...] os óculos não usamos porque não tem disponível (e14).
A ausência de equipamentos adequados, principalmente Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), mostra-se como algo que fragiliza o profissional, pois pode contribuir para o aumento de sua susceptibilidade à contaminação por determinados patógenos. Os trabalhadores de enfermagem podem, por vezes, priorizar o cuidado com o outro, em detrimento daquele prestado a si mesmos, no tocante ao uso de EPI.7 Não obstante o reconhecimento da situação, a atitude negativa mediante à falta de insumos para trabalhar, a verbalização de sentimentos de medo e de insegurança e a adoção de comportamentos que diminuam o risco de acidentes,6 os sujeitos se empenham na busca por uma justificativa para o quadro instalado: [...] agora, essa máscara custa oito reais. Essa é a razão pela qual eu entendo receber só mensalmente (e20); [...] eu não tenho máscara de proteção individual fornecida pela unidade. Porque somos de ambulatório. O risco é menor. E somos de aids, e não de tuberculose (e27).
O déficit de recursos humanos em seus aspectos qualitativos e quantitativos constitui-se como um fator interveniente na assistência e, também, um fator que proporciona aos enfermeiros maior grau de vulnerabilidade.2 Os enfermeiros reconhecem haver falta de tempo hábil para a plenitude do trabalho, causada pela escassez de recursos humanos. [...] É carga horária e número de profissionais insuficientes. E as enfermeiras têm uma sobrecarga administrativa muito grande (e10); [...] querendo ou não, os profissionais ficam mais cansados e mais estressados (e25).
A falta de funcionários, em número satisfatório, parece repercutir de maneira negativa na assistência prestada e na qualidade de vida no âmbito do trabalho dos enfermeiros. Sua vulnerabilidade, neste contexto, é referida nas expressões "estar no limite", "sobrecarregado" e "estar estressado". Os sujeitos pontuam que a falta de profissionais provoca o ensejo de suprir o déficit, o que os sobrecarrega. A sobrecarga, dimensão imagética da representação identificada, já foi notada por estudos anteriores entre profissionais de enfermagem, que a atribuiu às condições inadequadas de trabalho, jornadas prolongadas, baixa remuneração e conflitos éticos entre os enfermeiros e seus respectivos locais de trabalho, entre outros fatores institucionais.8 , 16
Além disto, a falta de vagas disponíveis em outras instituições para se transferir pacientes que exijam maior nível de complexidade tecnológico-assistencial mostra-se como uma barreira, por vezes intransponível para os enfermeiros, proveniente do descompasso entre o preconizado nas políticas públicas compreendidas no sistema de saúde e sua efetivação no dia a dia institucional. É muito difícil pedir vaga na central. Então eu fico angustiada porque eles não querem pegar o paciente. Eu quero pegar o paciente no colo e carregar lá para o CTI [Centro de Terapia Intensiva]. E eu fico desesperada! Eu vejo o paciente morrer (e21).
De modo geral, os enfermeiros podem encarar a morte de pessoas com doenças terminais como fato inerente à vida humana,7 mas quando esta é causada pela situação de dependência de outra instituição, setor e/ou profissional, parece causar angústia, desespero e outras formas de sofrimento psíquico aos trabalhadores,4 , 7 - 8 que empreendem esforços para fornecer os recursos tecnológicos compatíveis às demandas do paciente com aids.
A vulnerabilidade expressa na sensação de despreparo técnico e na ausência de iniciativas voltadas para a educação permanente evidencia uma dimensão cognitiva da representação e pode ser percebida nos discursos dos sujeitos. Eu acho importante, além da especialização, você sempre fazer cursos para se reciclar. Então, eu acho que isso é o que falta no hospital, um incentivo para o enfermeiro fazer cursos (e5).
A soma dos fatores que sobrecarregam o profissional o prejudica por gerar maior grau de vulnerabilidade a lesões físicas e danos psíquicos, e por movê-lo à realização de seu trabalho de maneira mais mecânica, sem que seja possível desenvolver competências, habilidades e conhecimentos no efetuar de sua práxis.8
Eixo 2 - O empoderamento nas relações entre enfermeiros e a instituição hospitalar
Opostas às construções representacionais relacionadas à vulnerabilidade, são explicitadas as do empoderamento, cuja conformação abrange características positivas da instituição hospitalar, desde alguns aspectos de sua infraestrutura a outros que dizem respeito à organização de trabalho que, para os enfermeiros, incidem positivamente sobre o cuidado de enfermagem e promovem bem-estar no ambiente de trabalho, satisfação com o cuidado exercido e maior sensação de controle sobre o processo de cuidar.2
Pode-se perceber a presença de uma atitude positiva na representação do empoderamento, posto que os enfermeiros se posicionam favoravelmente à limpeza hospitalar. O asseio do ambiente hospitalar parece proporcionar a sensação de bemestar aos enfermeiros e contribuir para sua valorização entre este grupo profissional. Diferentemente dos outros hospitais, aqui eu não sinto cheiro de sangue, de fezes, de urina.[...]. A limpeza aqui é muito bem feita (e20).
Em se tratando de enfermeiros, este dado é relevante, pois a preocupação com a influência do ambiente na prática de cuidado de enfermagem bebe de uma construção teórica de grande destaque nesta profissão, qual seja, a chamada Teoria Ambientalista de Florence Nightingale.17
Há, em adição, uma dimensão cognitiva do empoderamento pautada na percepção de valorização e autonomia no cotidiano assistencial vivenciado na instituição, que estão ligados à sensação de liberdade e reconhecimento. Ou seja, a relação entre profissional e ambiente de cuidado, no tocante à liberdade de atuação, parece favorável, o que move os enfermeiros a se sentirem mais capazes, fortalecidos, resolutivos, autônomos e satisfeitos com o trabalho que realizam,14 , 17 - 18 portanto, mais empoderados: [...] a enfermagem tem um grande respeito aqui nesse hospital. Tem uma grande autonomia (e25).
Este dado já foi detectado por um estudo anterior, que analisou a representação social da autonomia entre enfermeiros da rede básica e hospitalar.18 Os autores dessa pesquisa, além de identificarem a presença de elementos como "liberdade", "conhecimento" e "conquista", destacam o caráter processual da autonomia da enfermagem nas construções psicossociais de enfermeiros.
O trabalho em conjunto é avaliado positivamente pelos sujeitos, que se posicionam favoravelmente a ele. Enunciam que são positivas as relações mantidas com outros profissionais, sejam eles também enfermeiros ou não. Percebe-se forte carga afetiva nas representações identificadas, posto que os enfermeiros empregam o termo "família" para designar a equipe com a qual trabalham. De outros empregos, eu gosto muito mais daqui. Eu acho que, em termos de pessoal, está muito legal, parece mais uma família. O pessoal nos respeita. É um pessoal unido, nos reconhece. Tanto os médicos, quanto os auxiliares de enfermagem. Não tem aquilo de ficar brigando pra saber quem sabe mais. Muito pelo contrário! (e1); [...] se o enfermeiro chegar pra colocar uma opinião a respeito daquele paciente, ela é aceitável. O médico ouve, pesquisa, vai tentar ver. Então eu acho que é uma interação boa (e12).
Os enfermeiros percebem-se na qualidade de colaboradores na prestação da assistência pela equipe multiprofissional. Porém, caso haja alguma intercorrência que ultrapasse sua alçada de atuação, sentem que podem recorrer a outros profissionais, em especial ao médico, pois, segundo os sujeitos, este profissional possui confiança no conhecimento científico e no domínio da situação por parte do enfermeiro: [...] conseguimos, ao longo do tempo, respeito para a enfermagem. O enfermeiro tem respeito [...]. Se eu tiver que pegar um paciente agora e passar um cateter, eu vou passar. Porque eu sei o que estou passando. Sei que foi necessário. E, amanhã, eu vou comunicar ao médico: 'doutor eu passei por conta disso, disso e disso'. E ele vai entender. [...] as pessoas se respeitam. Eles sabem que a enfermagem se preocupa demais. E nós estamos lá vinte e quatro horas. Então, se foi feito, foi porque foi necessário. E os pacientes também respeitam isso (e25).
Os sujeitos atribuem o seu papel na equipe de saúde à existência do trabalho multidisciplinar, por se perceberem como o elo entre os seus membros, fontes importantes de informação e, sobretudo, por permanecerem ao lado do paciente com HIV/aids durante as 24 horas do dia. Sentir-se seguro significa sentir-se respeitado e valorizado perante a equipe, o que se coaduna à noção de empoderamento empregada nesta pesquisa. O reconhecimento profissional já foi identificado como um dos fatores que contribuem para a produção da saúde do trabalhador, seja ele demonstrado por palavras, gestos, presentes ou olhares.7 Por esta razão, se apresenta como um aspecto importante para a conformação de mais percebido grau de empoderamento.
Enquanto conteúdo da representação do empoderamento, a autonomia e o reconhecimento profissional parecem deter características que merecem ser destacadas. A autonomia, presente na formação discursiva dos sujeitos, mostra-se como fruto de um processo árduo de conquista de respeito entre os demais integrantes da equipe de saúde.
O reconhecimento profissional, por seu turno, foi expresso sob a forma de compreensão e aceitação de outros profissionais das decisões tomadas por enfermeiros. Esta forma de empoderamento se constitui num espaço concedido pelo outro a partir das relações afetivas que mantêm. Em outras palavras, se a autonomia dos enfermeiros está objetivada em um posicionamento autoafirmativo na busca por respeito, o reconhecimento profissional ancora-se na forte carga afetiva presente nas relações interpessoais entre enfermeiros e demais profissionais.
A equipe age no sentido de alertar acerca da condição de soropositividade do cliente, mesmo que a adoção de precauções padrão não a exija de maneira tão explícita: [...] dependendo de quem vai puncionar, sempre um sinaliza pro outro: 'é paciente HIV, cuidado!' (e26).
Esta dimensão prática da representação do empoderamento parece ter origem no medo do desconhecido proporcionado pelas memórias sociais construídas no início da epidemia.1 A ameaça do risco percebida por algum dos membros do grupo de profissionais de enfermagem parece provocar o emprego de medidas de cautela destinadas não apenas a si, mas a todo o grupo, em uma iniciativa de proteger o outro. A convivência, por gerar certo grau de cumplicidade entre alguns integrantes da equipe de enfermagem, conforma-se como base sólida para o compartilhamento de problemas pessoais e profissionais, assim como a proteção uns dos outros, contra alguns dos problemas pertencentes ao cotidiano.7
O zelo mútuo e a superação do sofrimento na equipe se mostraram como ações que geram estímulo, apesar do peso da carga laboral e da densidade do cotidiano tangenciado pela doença, pela fragilidade e pela morte: aquilo ali [o trabalho em HIV/aids] acaba gerando uma carga emocional muito pesada, porque eu lido com a questão da morte todos os dias. Porque sempre tinha alguém que estava muito grave ou, então, estava morrendo. E, nesse ponto, apesar daquele setor ser pesado, a equipe levantava [...] (e16).
Percebe-se que, dentre outras formas de apoio, o conforto psicológico é uma das formas de enfrentamento da carga emocional gerada pelo ambiente de trabalho em HIV/aids. Este achado é distinto daquele identificado por outra pesquisa,8 na qual os sujeitos utilizaram-se do distanciamento e da negação de sentimentos na presença de desmotivação e sobrecarga de trabalho. Outro aspecto emergente às representações elaboradas pelos enfermeiros é a realização de adaptações e improvisos ante a ausência de alguns materiais para o exercício do cuidado: [...] porque às vezes não dá pra evoluir todos os doentes. Aí eu procuro evoluir sempre os graves (e5); [...] eu não vou ter algodão, mas eu vou ter uma gaze. Eu não vou ter álcool, mas vou ter outras coisas pra poder fazer aquela limpeza (e17).
No universo das práticas presentes no conjunto representacional, fica evidente a tentativa de adaptação dos enfermeiros à escassez de recursos humanos e de insumos para a realização de procedimentos. A dimensão prática da representação do empoderamento, pautada no improviso, neste sentido, configura-se como uma estratégia plausível para contornar o possível prejuízo ao cuidado identificado pelos sujeitos deste estudo. Desta maneira, o enfermeiro pode se perceber no interim entre o preconizado pela ciência e/ou por normas instituídas pelo hospital e a ação concreta de cuidar.7 Trata-se de um espaço no qual o profissional carece de sua subjetividade para encontrar maneiras de efetivar a assistência da melhor maneira possível.
DISCUSSÃO
As representações sociais têm suas raízes nos conceitos elaborados pelos grupos humanos como produto das interações contínuas e das visões de mundo de seus membros. Ao mesmo tempo, permite a compreensão da conduta dos grupos populacionais em sua complexidade, por propiciarem acesso às dimensões afetivas, simbólicas, atitudinais, entre outras.9 - 11 Postula-se, então, que os enfermeiros abordados por esta pesquisa verbalizam suas construções psicossociais imbricados no ambiente de trabalho no qual se inserem, posto que seus discursos, comportamentos e práticas sociais diante das situações de vulnerabilidade e de empoderamento são os suportes para a veiculação das representações sociais na instituição hospitalar.2 , 11
Verifica-se que os sujeitos estão imersos em um sistema de valores humanista, abnegado e altruísta, que se coaduna ao código de condutas preconizado na profissão de enfermagem.17 - 19 Entretanto, apesar de a presença do enfermeiro ser um determinante para o alcance da missão institucional do hospital, esta imersão coloca sobre seus ombros um compromisso ético com a recuperação do cliente e com a excelência dos cuidados prestados, cuja possibilidade frente às limitações infraestruturais, políticas e de recursos humanos e materiais que lhes são impostas tende a ficar limitada.18 , 20 - 21
A desorganização do trabalho,14 - 15 o desalento proporcionado por sua atmosfera e as tensões que se originam no âmbito do HIV/aids1 - 2 , 22 se caracterizam como algumas das principais fontes de sofrimento para os enfermeiros do estudo. A vulnerabilidade enquanto objeto de representação dos enfermeiros é marcada pela precariedade do serviço e pela insalubridade da atividade, o que reforça a presença iminente do risco e da exposição em suas construções simbólicas.22 - 24 A discursividade dos sujeitos deste estudo põe em evidência a circunscrição de uma dinâmica mantida entre vulnerabilidade e empoderamento. Esta dinâmica de contradição, já denominada de díade vulnerabilidade-empoderamento,2 consiste no movimento de balanço e contrabalanço, que concorre para o alcance do equilíbrio necessário à manutenção da harmonia entre os elementos que fragilizam e que potencializam os seres humanos.25
A constância do desequilíbrio entre vulnerabilidade e empoderamento, em nível psicossocial, pode prejudicar o modo de viver das pessoas por duas razões distintas. A primeira está ligada à permanência do status de vulnerável, o que, em se tratando dos enfermeiros deste estudo, diz respeito a serem atingidos pelos desafios cotidianos que enfrentam, como o constrangimento, a insatisfação, a angústia, a frustração, a insegurança, a sobrecarga de trabalho, o estresse e a sensação de despreparo. Estes, por se apresentarem como elementos partícipes da representação do estado de vulnerável entre os enfermeiros, podem desencorajar o exercício da profissão, o que só pode ser evitado pelo resgate do status de empoderado, que se apresenta sob a forma de relacionamento interpessoal favorável com pacientes/equipe, a obtenção de apoio moral ou operacional por parte dos outros profissionais, treinamento em serviços, a adoção de medidas de autoproteção e a prática de adaptações e improvisações.
A segunda razão é que a vulnerabilidade retroalimenta o empoderamento, pois contribui para a definição dos elementos que o constituem. É importante destacar que os elementos partícipes à construção psicossocial do empoderamento possuem a funcionalidade de compensar o status percebido de vulnerabilidade. Contudo, em determinados momentos cujo contexto se mostra desfavorável aos enfermeiros, o status de vulnerável se sobrepõe ao de empoderado. Este movimento de contradição característico da díade formada pela vulnerabilidade e pelo empoderamento é mediado pelas representações sociais elaboradas (Figura 1).
Esquema ilustrativo da díade vulnerabilidade-empoderamento no contexto das relações mantidas entre enfermeiros e o seu ambiente de trabalho com pacientes soropositivos. Rio de Janeiro - RJ
CONCLUSÃO
Conclui-se que os resultados apontam para a ressignificação de contextos de vulnerabilidade e de empoderamento, intimamente atrelados aos arranjos do ambiente de trabalho no contexto do HIV/aids. Desta maneira, as representações sociais agem como mediadoras entre um status percebido de maior fragilidade ou fortaleza, em movimentos de mútua contradição.
A forma como a vulnerabilidade se manifesta no cotidiano de cuidado de enfermagem consiste em um fenômeno de grande relevância à ciência da enfermagem, levando em consideração a compreensão psicossocial dos comportamentos, dos valores, das atitudes, das práticas e das imagens, que enunciam a forma através da qual os enfermeiros apreendem o conceito e o estado de vulnerabilidade no dia-a-dia hospitalar sob a égide da aids.
Os arranjos do ambiente de trabalho do enfermeiro compreendem diversas forças que se movimentam em prol ou contra a plenitude do cuidado e a saúde do cuidador. Apesar dos esforços dos enfermeiros para obterem sucesso nas ações empregadas, inúmeras barreiras de ordem institucional, tecnológica, política e social se colocam entre um e outro, o que fragiliza os profissionais em suas múltiplas dimensões.
Diante do número limitado de sujeitos estudados por esta pesquisa, bem como da sua realização em um locus restrito, carecem de mais investigações, sob outros olhares e abordagens, as expressões da vulnerabilidade nas relações entre enfermeiros e ambiente de trabalho, dentro e fora do contexto das doenças transmissíveis. Enfermeiros que realizam suas atividades laborais em hospitais carecem de políticas governamentais e institucionais direcionadas à sua valorização, reconhecimento, estímulo, horizontalização das relações, resolução dos problemas que enfrentam e treinamento em serviço. Tais medidas contribuíram para prevenir o adoecimento em decorrência do processo de trabalho e para a promoção de um ambiente de trabalho mais saudável, no qual as práticas de cuidado de enfermagem e de saúde possam ser plenas, resolutivas, eficazes e satisfatórias para todos os envolvidos.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2014
Histórico
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Recebido
20 Mar 2013 -
Aceito
17 Fev 2014