RESUMO
Objetivo: interpretar, sob a perspectiva da Teoria do Agir Comunicativo, como o desfecho dos erros de enfermagem podem se tornar atrativos para a mídia, destacando as principais implicações para a imagem da profissão e para o imaginário da sociedade.
Método: pesquisa qualitativa realizada em fonte documental caracterizada por notícias de jornais de grande circulação disponíveis online em dois países, Brasil e Portugal, no período de 2012 a 2016. A análise dos achados foi realizada seguindo os passos da hermenêutica, com fundamentação na Teoria do Agir Comunicativo. Os dados foram organizados e codificados no software Atlas.ti.
Resultados: a pesquisa foi composta por 112 notícias; e, da análise, resultaram quatro categorias: Os destaques no título da notícia - o início da persuasão; Combinação imagem e texto inicial - uma mistura explosiva; O erro que não é erro - o erro que é crime; e Aplicando as pretensões de validade nos discursos.
Conclusão: os meios de comunicação são produtores contínuos de ideologias e, por isso, possuem responsabilidade social ao induzir interpretações equivocadas que podem interferir negativamente na interação enfermeiro-paciente, ao dar maior ênfase para o desfecho do erro, desacreditando, com isso, um trabalho de importância social ímpar.
DESCRITORES: Erros de Medicação; Segurança do Paciente; Enfermagem; Meios de Comunicação; Notícias
ABSTRACT
Objective: to interpret, from the perspective of the Theory of Communicative Action, how the outcome of nursing errors can become attractive to the media, highlighting the main implications for the image of the profession and the imaginary of society.
Method: qualitative research, carried out in documentary sources using news published in the major newspapers available online in two countries, Brazil and Portugal, from 2012 to 2016. The analysis of the findings was carried out following the steps of hermeneutics, based on the Theory of Communicative Action. The data were organized and coded in the ATLAS.ti software.
Results: the research included 112 published news. Four categories emerged from the analysis: The highlights in the headlines - The beginning of persuasion; Combining image and initial text - An explosive mix; The error that is not an error - The error that is a crime; and Applying the validity claims in the discourses.
Conclusion: the media are continuous producers of ideologies and, therefore, possess social responsibility by inducing misinterpretations that can negatively interfere in the nurse-patient interaction. Giving greater emphasis to the outcome of the error, the media influences negatively the people perception of nursing labour which has a unique social importance.
DESCRIPTORS: Medication errors; Patient safety; Nursing; Communication media; News
RESUMEN
Objetivo: interpretar, desde la perspectiva de la Teoría de la Acción Comunicativa, de qué manera el resultado de los errores de Enfermería puede volverse atractivo para los medios de comunicación, destacando las principales implicancias para la imagen de la profesión y para el imaginario de la sociedad.
Método: investigación cualitativa realizada en una fuente documental caracterizada por noticias de periódicos de grande circulación disponibles en línea en dos países, Brasil y Portugal, en el período de 2012 a 2016. El análisis de los hallazgos se realizó siguiendo los pasos de la hermenéutica, con fundamentación en la Teoría de la Acción Comunicativa. Los datos se organizaron y codificaron en el software ATLAS.ti.
Resultados: la investigación estuvo compuesta por 112 noticias; y surgieron cuatro categorías durante el análisis: Los puntos destacados en el no título de la noticia - El inicio de la persuasión; Combinación de imagen y texto inicial - Una mezcla explosiva; El error que no es error - El error que es un delito; y Aplicación de las pretensiones de validez en los discursos.
Conclusión: los medios de comunicación son continuos productores de ideologías y, por ese motivo, tienen una responsabilidad social al inducir interpretaciones erróneas que pueden interferir negativamente en la interacción enfermero-paciente, al dar mayor énfasis al resultado del error, desacreditando así un trabajo de importancia social sin igual.
DESCRIPTORES: Errores de medicación; Seguridad del paciente; Enfermería; Medios de comunicación; Noticias
INTRODUÇÃO
A segurança do paciente é um tema muito discutido na atualidade, e a literatura tem retratado números muito expressivos de erros decorrentes dos cuidados de saúde, bem como os gastos exorbitantes consequentes dessas falhas.1-3 Essa realidade tem gerado discussões que impulsionaram mudanças positivas nas práticas de saúde em vários países. As mudanças que ocorreram dizem respeito à cultura de segurança que vem sendo cada vez mais implantada nas organizações de saúde, juntamente com a utilização de protocolos assistenciais, metas de segurança e gerenciamento de riscos em saúde. Entretanto, apesar da importância dessas iniciativas, esses erros continuam a impactar negativamente os cuidados de saúde.
Na enfermagem, em que os profissionais estão constantemente junto aos pacientes e familiares, a segurança do paciente tem sido muito discutida. Erros decorrentes dos cuidados de enfermagem podem ser muito graves, e variam desde near miss (quase erro) a pequenos deslizes (tais como troca de horários de medicação e eventos adversos de grande magnitude) que pioram o quadro de saúde do paciente e podem leva-lo ao óbito rapidamente. Estes são os casos de troca de substâncias na medicação ou troca de vias de administração de medicamentos.4
As falhas nos cuidados de enfermagem são derivadas de muitas causas e podem estar relacionadas a diferentes fatores, com maior destaque para a organização do trabalho, como os problemas relacionados à força de trabalho de enfermagem (quantidade, rotatividade, sobrecarga de trabalho e estresse, déficit na formação e capacitação), aos materiais e equipamentos (similitude nas rotulagens, embalagens e design, falta de material e informação a respeito destes, estrutura física). Há também os fatores relacionados ao próprio sistema de cuidados, rodeado de complexidade que requer atenção redobrada, e ao desenvolvimento de uma cultura de segurança do paciente que visa a prevenção desses incidentes.4-8
Diferente do que ocorre na literatura científica, que tem por finalidade maior publicar resultados de pesquisas que contribuam para a prevenção desses eventos e para o maior controle dos riscos - muitas vezes, inerentes aos cuidados de enfermagem - a mídia divulga esses resultados negativos dando ênfase justamente no desfecho dos erros de enfermagem.9
Os meios de comunicação representados pela mídia impressa e televisiva, internet e redes sociais têm destacado os erros de enfermagem, em especial aqueles relacionados à administração de medicamentos e atitudes negligentes que resultaram em morte e sequelas muito graves.9 Essas informações provocam sensações de medo, de insegurança e até mesmo de raiva quando as pessoas associam esses incidentes aos cuidados de enfermagem.
A comunicação midiática, de forma geral, tem por objetivo informar a sociedade sobre fatos e acontecimentos, contudo a maneira como as informações são redigidas faz-se com a utilização da retórica e de técnicas de persuasão, extremamente eficazes para manutenção dos leitores. Assim, essa forma de comunicação permite a indução de determinados pensamentos ao leitor, pois o que está a ser noticiado nem sempre é verdade absoluta, embora haja uma expressão de forma acabada, e é justamente aí que residem os julgamentos precipitados.10
A retórica é designada como a arte no uso dos recursos da linguagem a fim de influenciar e persuadir o interesse de um público. Em Aristóteles (384-322 a.C.), a finalidade da retórica seria difundir a verdade, mas, com o passar do tempo, destinou mais atenção para a forma com que a linguagem é expressa do que ao conteúdo da informação.11 Por sua vez, a persuasão está fortemente ligada a ideologias, à subjetividade e ao contexto histórico e social, por isso suscita hipóteses que podem ser consideradas pelo leitor como argumentos importantes que orientam seus julgamentos e as futuras tomadas de decisão. Persuadir remete às emoções das pessoas que leem e ouvem as informações ou assistem a elas.11 A persuasão é o ato de convencer as pessoas a aceitarem determinadas ideias, não necessariamente no sentido de enganar, e sim na constituição do discurso como verdadeiro.12
O que se presencia nos meios de comunicação, hodiernamente, é a informação que tenta seduzir o público para fatos que entendem ser importantes; e, para isso, há uma exposição intensificada do que se pretende revelar.10 Com base na lógica que permeia o mercado de notícias e informações midiáticas, o resultado negativo do trabalho de enfermagem pode se constituir um atrativo para estimular o consumo de uma leitura que, em alguns casos, não tem a validade que deve ser atribuída a uma informação de tamanha relevância social.
Nessa lógica, com este estudo, pretendeu-se interpretar, sob a perspectiva da Teoria do Agir Comunicativo,13 como o desfecho dos erros de enfermagem podem se tornar atrativos para a mídia, destacando as principais implicações para a imagem da profissão e para o imaginário da sociedade.
MÉTODO
Pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva, de base documental, conduzida pela Teoria do Agir Comunicativo13 como referencial teórico e pela hermenêutica para análise metodológica, com o intuito de interpretar as notícias que tratam dos erros de enfermagem, destacando o desfecho desses erros que os meios de comunicação focalizam.
Para a coleta dos dados, utilizou-se os jornais considerados de grande circulação em dois países, Brasil e Portugal, disponíveis on line, no período de 2012 a 2016. Como critérios para escolha dos jornais, utilizou-se a média de circulação no país ou região e disponibilidade em fornecer o material para análise. Para a escolha das notícias, a inclusão se deu pelo envolvimento de profissionais de enfermagem em episódios de erros durante a assistência, dentro do período estipulado para a pesquisa.
Os dados foram organizados, armazenados e codificados no software Atlas.ti (Qualitative Research and Solutions). O processo de análise de dados seguiu os passos definidos pela análise hermenêutica14 e iniciou com os procedimentos de leitura que marcam o início da análise, buscando os significados e as unidades de análise principais; prosseguiu-se com a identificação dos possíveis sentidos, e as unidades de análise previamente identificadas passaram por análise minuciosa, sendo então vinculadas a outras partes do texto; ao final, foi revelada a sensibilidade manifesta, em que o sentido do texto emergiu e clarificou os significados, possibilitando a construção de categorias analíticas.
No último momento da análise, foram empregadas as pretensões de validade:13 inteligibilidade (buscou-se, nos textos, verificar se a linguagem estava disposta de forma compreensiva); verdade (se os conteúdos noticiados eram verdadeiros); sinceridade (se havia sinceridade nos fatos expostos); correção normativa (se os textos estavam de acordo com as normas e valores existentes).
Essas pretensões13 sustentam a validade de um discurso, haja vista que é na comunicação que as verdades estão postas, porquanto o que é dito como verdade num determinado momento pode ser falso em outro. Desse modo, a possibilidade de questionar por meio da ação comunicativa pretende entender os fatos em todo o contexto que se mostra e se esconde pela linguagem.
Em relação à ética, esta pesquisa utilizou materiais de domínio público à disposição da sociedade, impresso ou eletrônico. No entanto, todos os envolvidos nas reportagens, profissionais de enfermagem, jornais e jornalistas, não foram identificados. A fim de garantir o anonimato, as notícias foram identificadas por abreviaturas compostas pela letra J (de jornal), seguida da letra inicial do país (B - Brasil e P - Portugal), com as letras que identificam a região do país em que o jornal atua, acrescida de um número cardinal da ordem em que foram coletadas. Ao final, quatro categorias analíticas principais foram construídas com base no título da notícia; na combinação imagem e texto inicial; no crime imputado ao erro; e na aplicação das pretensões de validade.
RESULTADOS
Os resultados desta pesquisa foram constituídos por 112 textos jornalísticos que deram origem às interpretações levantadas. Desse modo, será mostrado o que se manifesta e o que se esconde na comunicação impressa pelos jornais a respeito desses episódios. As categorias foram formuladas com base em cada etapa do referencial metodológico, para, em seguida, serem discutidas de acordo com o referencial teórico.
De início, como toda pesquisa documental, os procedimentos de leitura foram direcionados aos títulos das notícias; assim, foram identificados e codificados os termos e as palavras que chamam atenção por remeterem imediatamente a pensamentos negativos e à responsabilidade dos profissionais envolvidos. Esses termos foram identificados nos títulos de 54 notícias, representando quase 50% dos textos analisados. Os destaques sinalizados estão dispostos no Quadro 1 de acordo com os recursos de editoração utilizados.
Alguns termos aparecem com maior ênfase. O termo morte é enfatizado em 56 (50%) notícias analisadas, e o termo homicídio em 38 (42,56%), sem tipificar qual o tipo de homicídio, tendo em vista que há os intencionais e os não intencionais. No título, o termo homicídio aparece sozinho e fica a cargo do leitor continuar a leitura ou interpretar como queira.
O termo execução, que está ligado à intencionalidade de matar, esteve presente numa das notícias, que relatava o erro no preparo de um medicamento, substância que pode ser muito nociva se erroneamente administrada. Cloreto de potássio é o mesmo componente que, ao ser aplicado diretamente na veia, é usado na execução da pena de morte nos Estados Unidos e também para matar cachorros. Em humanos, ele só pode ser usado, quando diluído no soro e de forma gradativa. Aplicado diretamente na veia causa a morte (JBNE12).
Depois da leitura dos títulos, seguiu-se para a análise do texto em inteiro teor das notícias, que geralmente se inicia com uma frase curta e concisa sintetizando o conteúdo da notícia e, após, traz as informações de forma mais detalhada. Então, o texto foi associado à imagem ilustrada na notícia (quando havia imagem).
Do total analisado, 64 (57,14%) notícias carregam alguma imagem associada ao texto. Destas, 29 mostraram imagens da fachada principal ou de algum setor do hospital onde houve o incidente e 9 colocaram fotos de ambulâncias e pulseiras de triagem (relativas aos erros no atendimento pré-hospitalar e nas emergências). Destaca-se, ainda, que 26 notícias (29,12%) trouxeram em seus textos as seguintes imagens: foto de profissionais com a cabeça baixa (quatro notícias), uma delas com o profissional algemado, foto de velório da paciente vítima do erro (três notícias), foto de familiares chorando com a imagem da vítima em mãos (três notícias) e foto das vítimas fornecidas pelas famílias (15 notícias) - dentre elas, duas, de pacientes idosas; e as 13 restantes, de crianças. A Figura 1 ilustra algumas das imagens analisadas. Em respeito aos preceitos éticos, foram colocadas tarjas escuras a fim de não expor os envolvidos nos incidentes.
A seguir foram analisadas as notícias que trataram da atribuição de crime ao erro de enfermagem. Identificou-se que 31 (34,72%) associaram o erro a alguma tipicidade penal, sendo assim distribuídas: homicídio culposo (23), homicídio doloso (2), lesão corporal culposa (4), lesão corporal dolosa (1), lesão corporal dolosa com dolo eventual (1). A culpabilidade atribuída pelos jornais está relacionada à imperícia, à imprudência e, com maior expressão, à negligência. Ressalva para as notícias portuguesas, que possuem denominação diferente da brasileira referente à tipicidade penal, sendo que, naquele país, tratou-se de homicídio negligente.
O dolo, ou seja, a intencionalidade associada ao fato esteve presente em dois casos. O primeiro se refere a erro de medicação, visto que a prescrição e a administração foram equivocadas. No segundo, um ventilador mecânico foi desligado. Os dois casos resultaram em morte dos pacientes, uma criança e um adulto.
Nesta semana, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou cinco profissionais do Hospital [nome da instituição], por homicídio doloso (artigo 121 do Código Penal). São duas médicas, uma técnica de enfermagem, uma enfermeira e uma farmacêutica. A denúncia se refere à morte de uma criança de 8 anos, em 9 de junho de 2014, depois que o paciente recebeu dosagem de cloreto de potássio quatro vezes maior do que o recomendado pela literatura médica. A criança morreu horas depois de receber a primeira das quatro doses do medicamento (JBCO10).
De acordo com a delegada titular [nome da delegada], a auxiliar de enfermagem teria sido responsável por desligar os aparelhos [nome do paciente] e, por isso, foi indiciada por homicídio doloso - quando há intenção de matar. Segundo ela, durante o inquérito, a auxiliar teria confessado que desligou os equipamentos por ordem de outro funcionário. A pessoa identificada pela auxiliar como sendo a mandante do desligamento disse, no entanto, que pediu apenas para a funcionária que desligasse a sedação do paciente (JBS4).
A lesão corporal dolosa com dolo eventual foi sinalizada em uma das notícias que trata do atendimento durante um parto domiciliar.
O procedimento foi realizado em 27 de junho do ano passado, no apartamento da família. O bebê estava sentado no útero da mãe e as contrações pararam no último momento. A cabeça da criança ficou presa. A equipe é acusada de lesão corporal dolosa com dolo eventual (JPPO4).
Houve, ainda, as condutas profissionais sem qualquer comprovação do feito. Bebê de 11 meses que ingeriu chumbinho morreu logo após procedimento. Mãe acusa posto de erro médico, devido ao procedimento da lavagem estomacal, feita por uma enfermeira minutos antes de a criança morrer (JBPE9).
Instituto Nacional de Emergências Médicas (INEM) ATRASA SOCORRO A DOENTE GRAVE PARA FAZER DE TÁXI A ENFERMEIRA. A mulher do presidente do INEM, enfermeira de viatura médica e do Hospital [nome da instituição], está a ser acusada de ter atrasado o transporte de uma doente prioritária, com conivência do marido (JPPO1) (negritos da notícia).
No que diz respeito às pretensões de validade,12 o Quadro 2 apresenta os resultados que possibilitaram a interpretação do discurso comunicado.
DISCUSSÃO
Os destaques no título da notícia - o início da persuasão
Os recursos retóricos editoriais são utilizados para diferenciar palavras e termos com a finalidade de destacá-los do texto em si, prendendo o olhar do leitor. Esses destaques estão associados, especialmente, ao desfecho, ao resultado do erro de enfermagem. O exemplo mais claro desse recurso é a palavra morte, sendo o desfecho mais preocupante. Estudo mais recente mostrou que, nos Estados Unidos, chega a ser notificada uma morte por dia causada por erros de medicação.15 Portanto, destacar o termo morte pode servir de alerta para esse problema e estímulo para repensar os cuidados de saúde.
Contudo, ao trazer já no título da notícia os termos responsabilidade, culpa e homicídio, na maioria das vezes parece um tanto precipitado, principalmente porque essas acusações estão pautadas em informações iniciais, como depoimento de familiares e informações prévias das instituições de saúde e polícia que estão investigando o caso. Destaque, para os inquéritos policiais, que levam dias ou mesmo meses para serem concluídos; e, até findar esse processo, não há que se falar em culpa, e sim em suspeitas, projeções e conjecturas - sobretudo, ao considerar o período entre a data do incidente e a data da notícia, o qual era menor que 48 horas. Excluíram-se, dessa perspectiva, as notícias que repassaram as decisões judiciais e conclusão de penas, pois estas, sim, conseguem sustentar os termos responsabilidade e culpa.
Relativamente ao termo homicídio, a análise mostra o perigo de uma interpretação equivocada, que poderia estar associada à intencionalidade do profissional de enfermagem provocar danos e mortes aos pacientes, o que, em muitos casos, não é nem de longe verdade.
Ao relacionar um erro de medicação com o termo execução e, em seguida, com a pena de morte, isso não contribuiu, de forma alguma, para compreender o episódio em si, principalmente por constar no mesmo texto a acusação, por parte da promotoria, de negligência profissional pela troca das medicações. Os erros de medicação são muito frequentes e podem estar relacionados ao conhecimento inadequado no que se refere à terapêutica das drogas, aos cálculos de dosagens, às mudanças frequentes nas formulações e formas de diluição e aos problemas de prescrição.16-17
Ao destacar suposto erro, as notícias tendem a levantar discussões a respeito da problemática com mais coerência, sem inferir maiores julgamentos, pois já se sabe que esses incidentes provêm de muitas e diferentes causas, determinadas por outras inúmeras circunstâncias peculiares aos serviços de saúde, como as condições de trabalho, a fadiga profissional, a semelhança de embalagens, entre outras tantas.8,18-20
Combinação imagem e texto - uma mistura explosiva
As fotografias têm se revelado aliadas importantes na divulgação de acontecimentos, em especial quando estes estão relacionados a tragédias. No entanto, as imagens possuem dois aspectos: a objetividade da imagem e a subjetividade da percepção de quem lê.21 O poder das imagens de chamar a atenção dos leitores, retendo na memória os momentos, pode ser o responsável pelo chamado sensacionalismo da imprensa. Nesse sentido, a memória congela as imagens; a sua unidade de base é a imagem individual. Numa era de sobrecarga de informação, a fotografia fornece um meio rápido de apreender uma coisa e uma forma compacta de memorização.22
Em estudo que analisou o título e a imagem ilustrada em reportagens sobre emergências públicas, a maior parte das reportagens induzia a interpretação negativa desses serviços, e essa associação sugere a possibilidade de o leitor ser levado a pensar que pode ser uma das vítimas no futuro. Afirma, ainda, a importância de analisar essa associação, pois mostra que, embora o texto como um todo possua uma abordagem neutra e até mesmo positiva sobre o assunto, pode induzir conclusões antecipadas e de cunho negativo.23 Por isso, é importante destacar que, nessa cultura de massa, na qual as informações tendem a ser generalizadas e os conteúdos produzidos em grande velocidade, alguns valores são deflacionados bem como passam a assumir aspectos estereotipados e altamente manipuláveis.13
É comum deixar a emoção se sobressair quando se trata de tragédia, tanto para quem escreve a notícia quanto para quem a lê. O termo tragédia está comumente associado a mortes inesperadas, injustas, violentas, decorrentes de causas naturais ou pela intervenção de pessoas. E, para assegurar o sucesso de uma notícia, há a generalização e uma romantização dos fatos, ou seja, são acrescentadas emoções aos textos, como dor e compaixão.24
Em se tratando de pessoas, indivíduos que necessitavam de cuidados de enfermagem, essa ênfase dada ao resultado de um erro que, na maioria das vezes, ocasionou a morte dos pacientes resulta em uma mistura explosiva para as emoções dos leitores. Medo, angústia, apreensão, sensação de impotência, raiva, entre outros estados; tudo passa pela mente durante a leitura dessas notícias.
O erro que não é erro - o erro que é crime
O erro retratado tende a ser visto como um crime e não como um erro. Ao atribuir crime ao erro de enfermagem, a atenção maior se dá aos casos de dolo, em especial pela semelhança com outros casos noticiados. Nesse contexto, a forma como a notícia retratou o dolo pode induzir o leitor a acreditar na intencionalidade do profissional envolvido. Evidentemente que existem casos assim; entretanto, pelo conteúdo restante da notícia, verifica-se que não se trata disso. Não há como identificar o que há de diferente dos outros casos de erro acidentais para terem sido enquadrados como intencionais.
No caso da lavagem estomacal, mencionada, a substância ingerida pela criança é altamente tóxica; e, segundo os protocolos de assistência para esses casos, a conduta da equipe que atendeu a criança foi de acordo com o preconizado. O procedimento foi realizado por uma enfermeira com muitos anos de experiência e com treinamento específico para esse tipo de procedimento, fatos alegados também na notícia. O conteúdo da notícia permite questionar: Pelo fato de a mãe da criança achar que foi erro de procedimento, há que se noticiar algo como erro, sendo que a morte pode ter sido ocasionada pelo veneno?
É nesse contexto que a comunicação apresentada pode se fazer ação. É no contexto da comunicação que as verdades estão postas, a partir dos enunciados aparentemente verdadeiros; por meio dele, se pode questionar a validade desses enunciados, tanto que uma afirmação pode ser verdadeira em determinado momento e falsa em outro, a depender de um novo enunciado.13
Desse modo, ao noticiar o uso indevido de uma ambulância por parte de uma enfermeira, que acarretou atraso no socorro de uma doente, sem quaisquer outras informações (a notícia está na íntegra, na evidência apresentada nos resultados), há que se considerar uma forma de comunicação parcial, sem validade e provavelmente, sem verdades maiores a serem atribuídas. Fato é que, mais tarde, a enfermeira em questão entrou com uma ação na justiça por difamação do seu trabalho, pois não se encontrou base sólida para tal denúncia anunciada pelo jornal.
Aplicando as pretensões de validade nos discursos
A aplicação das pretensões de validade13 foi utilizada para que a interpretação propiciasse esse momento de validação do discurso comunicado. Subdividiu-se nas quatro pretensões de validade, adequando os textos dos jornais para cada uma delas. Quanto à inteligibilidade, apesar de todos os textos estarem bem escritos, alguns trechos podem dificultar a interpretação, por falta de clareza ou por ambiguidade.
Relativamente à verdade, esta restou validada quando se tratou do desfecho do erro de enfermagem (morte, amputação, queimadura, infecção), da idade das vítimas, dos locais onde os incidentes ocorreram e das datas dos ocorridos. Com relação ao tipo de erro e à categoria profissional de enfermagem, algumas das notícias não souberam expor com veracidade a informação. Nessa mesma vertente, as causas dos erros não foram averiguadas, na grande maioria das notícias, por perícia ou qualquer tipo de análise minuciosa, para que, enfim, se pudesse afirmar a causa do erro. Por isso, nesta pesquisa, foram denominadas como possíveis causas atribuídas. Se a mídia tivesse adotado essa perspectiva, a comunicação estaria mais próxima da pretensão de veracidade.
No que se refere à sinceridade, diz-se que ela parte do pressuposto de que o que será comunicado deverá ser expresso sem exagerar, aumentar, reduzir, deduzir ou induzir. Em se tratando de notícias de jornais, essa pretensão parece ser a que menos prevaleceu diante das técnicas utilizadas para a produção de notícias, pois toda ação argumentativa está imbricada numa ação persuasiva. Os atos linguísticos são carregados de conteúdo persuasivo, pois é na linguagem que o sujeito se forma e esta é essencialmente argumentativa. A linguagem é ela própria um grande instrumento de persuasão. Ao falar estamos argumentando/persuadindo e, por consequência, materializando o nosso discurso, inevitavelmente contaminado por ideologias e juízos de valor.22
Não há uma verdade absoluta nos textos jornalísticos, e sim duas possibilidades: o discurso dialético que se firma em premissas prováveis, com mais de uma hipótese de conclusão; e o discurso retórico, que faz uso de argumentos aliados à emoção.25 Assim se compõem os discursos midiáticos no intuito de fomentar emoções e comercializar a informação.11,26
As lacunas encontradas na busca por pretensões de sinceridade podem estar relacionadas à busca e reprodução parcial das informações que permitem que a sinceridade na forma escrita não se sobressaia. Enunciados e discursos podem estar associados às relações de poder, fazendo da verdade comunicada um produto inexato. Por isso, Habermas propõe a situação ideal de fala, que garante oportunidade igual a quem participa do discurso e segue normas prescritas em busca da verdade.13 No caso deste estudo, em particular, não foram legitimadas as pretensões de sinceridade, embora, por se referirem ao mundo subjetivo e às consequências da ação decorrentes da comunicação, suponha-se que as notícias podem dar largada a uma série de pensamentos negativos e ideologias equivocadas que levam a sociedade a associar a enfermagem com o descuido, com o erro, com o crime.
A correção normativa está ligada ao mundo social, no qual se apresentam as regras e as normas preconizadas para pessoas ou grupo específico, nesse caso, os profissionais de enfermagem. Essa pretensão só pode ser considerada válida quando é aceita por todos aqueles a quem é endereçada. Neste estudo, tomou-se como base para interpretar os textos a regulamentação da profissão de enfermagem (no Brasil, a Lei do Exercício Profissional; e, em Portugal, o Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros; além dos códigos deontológicos de enfermagem dos dois países), que foi citada nos discursos jornalísticos. Verificou-se que, majoritariamente, as notícias aproximaram-se do discurso prescrito nas normas da profissão.
Na teoria do agir comunicativo, há a substituição de uma razão prática (a ação orientada por fins próprios) pela razão comunicativa, que orienta as ações dos indivíduos para se aproximarem da norma. E, dessa forma, é preciso considerar a contribuição da comunicação de massa para que as normas vigentes sejam rediscutidas no cotidiano dos profissionais, com vistas a evitar que a profissão seja alvo das manchetes diárias.
A liberdade com que os meios de comunicação exercem seu trabalho esbarra constantemente no direito de privacidade e de defesa da imagem dos que são foco das notícias. Assim, o jornalismo configurado nos termos do escândalo é perverso e vai de encontro a uma cultura de liberdade, pois qualquer tentativa de barrar essa forma de noticiar poderia ser enquadrada como uma afronta à liberdade de expressão. Nesse sentido, as pessoas são obrigadas a suportar essa forma de noticiar, mesmo sabendo que é um problema do nosso tempo, um problema de difícil solução.
Estudos como este são significativos para a profissão, para a sociedade e para o fortalecimento de uma cultura de segurança nas práticas em saúde que visam cada vez mais a qualidade dos cuidados. O estudo do fenômeno utilizou dados da mídia impressa on line coletados em dois países, de modo que novos estudos incluindo outros tipos de mídia e locais poderiam ampliar seu entendimento.
CONCLUSÃO
A linguagem, carregada na retórica e na persuasão, tende a estimular ideologias negativas, as quais têm como seus maiores representantes a dominação econômica dos jornais de grande circulação e o objetivo prioritário de vender o produto-notícia; isso tudo, sem avaliar os prejuízos para os profissionais envolvidos nos incidentes que envolvem os erros assistenciais em saúde. Os meios de comunicação são produtores contínuos de ideologias e, por isso, possuem responsabilidade social ao induzir interpretações equivocadas que podem interferir negativamente na interação enfermeiro-paciente, desacreditando um trabalho de importância social ímpar.
A reconstrução das pretensões de validade na interpretação dos discursos noticiados pelos jornais permite depreender que os comunicadores, muitas vezes, não seguem um padrão de veracidade, imparcialidade e sinceridade na produção da notícia, possibilitando a não validação de determinados conteúdos. Isso possibilita que os consumidores dessas notícias tenham uma atitude dialética, no sentido de aceitar ou não os argumentos apresentados. Há, nessa atitude, um estímulo a resgatar a racionalidade em outras partes da notícia, que vão além do desfecho, como as possíveis causas, o contexto de trabalho e outros agentes modificadores de determinadas realidades.
As notícias foram analisadas com base no exposto nos jornais no momento da coleta de dados e não fizeram parte dessa análise outras fontes de informação ou esclarecimentos acerca dos erros noticiados, bem como outras notícias que se seguiram.
A imagem da profissão de enfermagem não pode ser prejudicada por informações não validadas, que abusam de atributos emocionais para serem consumidas. Nem ao menos a população, que necessita dos cuidados de enfermagem, pode constituir uma imagem negativa da profissão, associando-a ao medo, à insegurança e à falta de comprometimento com os seres humanos. Esta é, de longe, a maior prerrogativa para que o discurso seja repensado na prática dos meios de comunicação, uma vez que todas as pessoas, em algum momento da vida, necessitam de cuidados de enfermagem.
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NOTAS
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ORIGEM DO ARTIGO
Extraído da tese - Mexendo na ferida: os erros de enfermagem na mídia brasileira e portuguesa, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, da Universidade Federal de Santa Catarina, em 2017.
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FINANCIAMENTO
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq. Processo: 200516/2015-9
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CONFLITO DE INTERESSES
Não há conflito de interesses.
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CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM
Não aplicável.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Abr 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
02 Jul 2019 -
Aceito
18 Set 2019