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As repercussões do câncer sobre o brincar da criança: implicações para o cuidado de enfermagem1 1 Extraído da tese - Significado do brincar para a família de crianças em tratamento oncológico: implicações para o cuidado de enfermagem, apresentada na Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2012.

Resumos

Objetivou-se identificar as repercussões do câncer sobre o brincar da criança em tratamento oncológico. Pesquisa qualitativa implementada segundo o método criativo e sensível. Participaram 22 familiares de sete crianças com câncer em tratamento ambulatorial em um hospital do Rio de Janeiro. A produção de dados ocorreu nas residências dos familiares, no período de setembro de 2011 a maio de 2012. Os dados foram analisados pela análise de discurso. Emergiram duas unidades temáticas: o câncer infantil - um acontecimento sobre o brincar; e o brincar no curso do adoecimento e tratamento da criança: uma possibilidade de resgate do cuidado de manutenção da vida. A manutenção da brincadeira é uma necessidade da criança que demanda cuidados de enfermagem de diferentes naturezas, para assegurar o direito de brincar durante o tratamento, com vistas à redução de traumas e prejuízos para o seu desenvolvimento.

Jogos e brinquedos; Enfermagem pediátrica; Câncer


The study aimed to identify cancer repercussions on play among children in oncological treatment. This was qualitative research implemented according to a creative and sensible method. Twenty-two family members of seven children in ambulatory cancer treatment in a hospital from Rio de Janeiro participated. Data production occurred in family members' houses, from September 2011 to May 2012. The data were analyzed according to discourse analysis. Two thematic units emerged: childhood cancer - a happening about play; and playing in the course of the child's illness and treatment: a possibility to rescue care of maintaining life. Maintaining play is a child's need that demands nursing care of a different nature, to assure the right to play during treatment, in order to reduce traumas and damage to their development.

Play and playthings; Pediatric nursing; Cancer


Se intentó identificar las repercusiones del cáncer sobre el jugar del niño em tratamiento oncológico. Investigación cualitativa implementada según el método creativo y sensible. Participaron 22 familiares de siete niños con cáncer en tratamiento ambulatorio en un hospital de Río de Janeiro. La producción de datos ocurrió en las casas de los familiares, de septiembre de 2011 a mayo de 2012. Los datos fueron analizados por el análisis del discurso. Emergieron dos unidades temáticas: el cáncer infantil - un acontecimiento sobre el jugar; el jugar en el curso del proceso de contracción de una enfermedad y tratamiento del niño: una posibilidad de rescate del cuidado de mantenimiento de la vida. El mantenimiento de los juegos es una necesidad del niño que demanda cuidados de enfermería de diferentes naturalezas, para garantizar el derecho a jugar durante el tratamiento, objetivando la reducción de traumas y prejuicios para su desarrollo.

Juego e implementos de juego; Enfermería pediátrica; Cáncer


INTRODUÇÃO

Apesar do câncer na criança, quando comparado aos adultos, ser considerado raro, ele é atualmente classificado como a primeira causa de óbito por doença a partir dos 5 anos de idade, perdendo somente para as mortes por violência e acidentes. A previsão do Instituto Nacional de Câncer (INCA) para 2012 foi de 11.530 casos novos de câncer em crianças e adolescentes até 19 anos.1 1. Ministério da Saúde (BR). Instituto Nacional do Câncer. Estimativa 2012 - Incidência de Câncer no Brasil. Brasília (DF): Instituto Nacional do Câncer, 2012 [acesso 2013 Jul 20]. Disponível em: http://www1.inca.gov.br/estimativa/2012/estimativa20122111.pdf
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Com o diagnóstico do câncer infantil, a criança passa a ter necessidades especiais, que são decorrentes tanto do curso da doença quanto do tipo de tratamento implementado.22. Silva LF, Cabral IE, Christoffel MM. The (im)possibilities of play for children with outpatient cancer treatment. Acta Paulis Enferm. 2010; 23(3):334-40. - 33. Moraes JRMM, Cabral IE. A rede social de crianças com necessidades especiais de saúde na (in)visibilidade do cuidado de enfermagem. Rev Latino-Am Enferm [online]. Mar-Abr 2012 [acesso 2013 Jun 10]; 20(2):[08 telas]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n2/pt_10.pdf
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As crianças com necessidades especiais de saúde (CRIANESs) têm ou estão em maior risco para desenvolver condição física, de desenvolvimento ou de comportamento, seja ela temporária ou crônica, que, em geral, exige um tipo e uma quantidade de serviços de saúde para além das requeridas por outras crianças. Essas necessidades de saúde demandam cuidados que, quando não são adequadamente realizados, interferem diretamente na sobrevivência das mesmas.33. Moraes JRMM, Cabral IE. A rede social de crianças com necessidades especiais de saúde na (in)visibilidade do cuidado de enfermagem. Rev Latino-Am Enferm [online]. Mar-Abr 2012 [acesso 2013 Jun 10]; 20(2):[08 telas]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n2/pt_10.pdf
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- 44. National Center on Financing for Children with Special Health Care Needs. Florida (US): Chart Book CSHCN in Medicaid, SCHIP, and Title. V; 2004.

Durante o período de tratamento oncológico, a criança é submetida a vários exames, internações hospitalares prolongadas para tratamento quimioterápico, radioterápico, cirúrgico e medicamentoso que, por vezes, provocam limitações, além de incapacidades físicas e psicológicas. As idas e vindas ao centro de tratamento para internação, assim como para seguimento ambulatorial, expõem-na à dor e ao sofrimento, e ainda provocam interrupções na escolarização e afastam-na do convívio social e familiar, podendo assim interferir na sua capacidade e desejo de brincar.11. Ministério da Saúde (BR). Instituto Nacional do Câncer. Estimativa 2012 - Incidência de Câncer no Brasil. Brasília (DF): Instituto Nacional do Câncer, 2012 [acesso 2013 Jul 20]. Disponível em: http://www1.inca.gov.br/estimativa/2012/estimativa20122111.pdf
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, 55. Pedro ICS, Galvão CM, Rocha SMM, Nascimento LC. Apoio social e famílias de crianças com câncer: revisão integrativa. Rev Latino-Am Enferm [online]. Mai-Jun 2008 [acesso 2013 Jun 23]; 16(3):[08 telas]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v16n3/pt_23.pdf
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Por todas as repercussões que o câncer traz à vida da criança, o enfermeiro que cuida dela deve, juntamente com sua família, buscar estratégias para manter a melhor qualidade de vida possível durante o tratamento, através de atendimento humanizado, que permeie o universo infantil, em que os recursos materiais e terapêuticos específicos não sejam seu foco principal.66. Amador DD, Gomes IP, Coutinho SED, Costa TNA, Collet N. Concepção dos enfermeiros acerca da capacitação no cuidado à criança com câncer. Texto Contexto Enferm. 2011 Jan-Mar; 20(1):94-101.Neste contexto, há espaço para valorização de aspectos imprescindíveis para o desenvolvimento infantil, como a necessidade de brincar em qualquer fase, tanto de seu desenvolvimento individual quanto no decurso do adoecimento.

O brincar, além de ser uma demanda de cuidado com vistas a favorecer o desenvolvimento infantil, é também fonte de prazer, transformando-se, assim, em um tipo de cuidado que convida à vida e ajuda na manutenção da vida dessas crianças. Neste sentido, durante o período de tratamento oncológico, torna-se relevante adoção de cuidados de enfermagem focados não apenas no tratamento da doença, mas também na manutenção dos hábitos de vida da criança.22. Silva LF, Cabral IE, Christoffel MM. The (im)possibilities of play for children with outpatient cancer treatment. Acta Paulis Enferm. 2010; 23(3):334-40.

Com relação à tipologia do cuidado de enfermagem, esta pesquisa teve como referencial teórico as concepções da enfermeira francesa Françoise Collière, que descreveu dois tipos de cuidado: a) cuidados habituais ou de manutenção, sendo eles cotidianos, com as funções de manter e dar continuidade à vida, bem como tudo que contribui para o desenvolvimento e sobrevivência do ser humano; e b) cuidados de reparação, com a finalidade de investigar as causas da doença, além de limitar, combater e tratá-la.77. Morais FRC, Silva CMC, Ribeiro MCM, Pinto NRS, Santos I. Resgatando o cuidado de enfermagem como prática de manutenção da vida: concepções de Collière. Rev Enferm UERJ. 2011 Abr-Jun; 19(2):305-10. - 88. Lima EC, Vargens OMC, Quitete JB, Macedo PO, Santos I. Aplicando concepções teórico-filosóficas de Collière para conceituar novas tecnologias do cuidar em enfermagem obstétrica. Rev Gaúcha Enferm. 2008 Set; 29(3):354-61.

Em se tratando da criança acometida por uma doença como o câncer, é importante salientar que, na concepção de Collière, os cuidados e os tratamentos não têm a mesma natureza. O tratamento tem como alvo a doença, enquanto o cuidado foca a pessoa e a manutenção de sua vida. Neste sentido, quando a doença se instala e atinge determinado órgão ou perturba o conjunto do organismo da criança, ela não atinge apenas o corpo físico.77. Morais FRC, Silva CMC, Ribeiro MCM, Pinto NRS, Santos I. Resgatando o cuidado de enfermagem como prática de manutenção da vida: concepções de Collière. Rev Enferm UERJ. 2011 Abr-Jun; 19(2):305-10. - 88. Lima EC, Vargens OMC, Quitete JB, Macedo PO, Santos I. Aplicando concepções teórico-filosóficas de Collière para conceituar novas tecnologias do cuidar em enfermagem obstétrica. Rev Gaúcha Enferm. 2008 Set; 29(3):354-61. Atinge primeiramente o "ser" criança, interferindo em sua capacidade de viver e de desenvolver plenamente suas potencialidades.

Com vistas a estimular a manutenção do desenvolvimento infantil durante o tratamento oncológico, potencializado pela continuidade da atividade de brincadeiras próprias do cotidiano da criança, o enfermeiro deve transcender os cuidados de reparação, que são voltados para o tratamento da doença, e investir em cuidados de manutenção da vida.

Atualmente os estudos sobre o brincar da criança com câncer99. Melo LL, Valle ERM. A brinquedoteca como possibilidade para desvelar o cotidiano da criança com câncer em tratamento ambulatorial. Rev Esc Enferm USP. 2010 Jun; 44(2):517-25.

10. Ribeiro CA, Coutinho RM, Araujo TF, Souza VS. A world of procedures and worries: experience of children with a port-a-cath. Acta Paul Enferm [online]. 2009 [cited 2013- Jul 31]; 22(spe):935-41. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ape/v22nspe/en_17.pdf
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- 1111. Li WH, Chung JO, Ho EK. The effectiveness of therapeutic play, using virtual reality computer games, in promoting the psychological well-being of children hospitalised with cancer. J Clin Nurs. 2011. Aug; 20(15-16):2135-43. apontam os benefícios no contexto da hospitalização. Porém, o brincar, no espaço do domicílio e da comunidade, incluindo nesses cenários a perspectiva da família, adquire pouca visibilidade na literatura.

Neste sentido, esta pesquisa abordou o contexto de vida da criança com câncer, buscando identificar as repercussões que o adoecimento tem nas dimensões do brincar em sua vida, para assim buscarmos estratégias de atuação juntamente com seus familiares, na garantia da melhor condição de desenvolvimento e qualidade de vida da criança durante o curso do tratamento. Foi delimitado o seguinte objetivo: identificar as repercussões do câncer sobre o brincar da criança em tratamento oncológico.

MÉTODO

A pesquisa qualitativa foi desenvolvida de acordo com o Método Criativo e Sensível (MCS), que tem suas bases fundadas na seguinte tríade: discussão de grupo, observação participante e dinâmica de criatividade e sensibilidade.22. Silva LF, Cabral IE, Christoffel MM. The (im)possibilities of play for children with outpatient cancer treatment. Acta Paulis Enferm. 2010; 23(3):334-40. - 33. Moraes JRMM, Cabral IE. A rede social de crianças com necessidades especiais de saúde na (in)visibilidade do cuidado de enfermagem. Rev Latino-Am Enferm [online]. Mar-Abr 2012 [acesso 2013 Jun 10]; 20(2):[08 telas]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n2/pt_10.pdf
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, 1212. Groleau D, Cabral IE. Reconfiguring insufficient breast milk as a sociosomatic problem: mothers of premature babies using the kangaroo method in Brazil. Matern Child Nutr. 2009; 5(1):10-24.

Durante a dinâmica de criatividade e sensibilidade, os participantes da pesquisa elaboram uma produção do tipo artística que é mobilizada por uma questão geradora de debate relacionada ao objetivo do estudo. Essa produção artística motiva os participantes a falarem de si através do que produzem, e daí evocam seus valores e crenças relativos aos temas cujos interesses são comuns ao grupo.22. Silva LF, Cabral IE, Christoffel MM. The (im)possibilities of play for children with outpatient cancer treatment. Acta Paulis Enferm. 2010; 23(3):334-40. - 33. Moraes JRMM, Cabral IE. A rede social de crianças com necessidades especiais de saúde na (in)visibilidade do cuidado de enfermagem. Rev Latino-Am Enferm [online]. Mar-Abr 2012 [acesso 2013 Jun 10]; 20(2):[08 telas]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n2/pt_10.pdf
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, 1212. Groleau D, Cabral IE. Reconfiguring insufficient breast milk as a sociosomatic problem: mothers of premature babies using the kangaroo method in Brazil. Matern Child Nutr. 2009; 5(1):10-24.

Com base nas diretrizes do método, foram selecionadas, para o desenvolvimento desta pesquisa, duas dinâmicas de criatividade e sensibilidade: linha da vida e mapa falante. As questões geradoras de debate foram respectivamente: "localize sua experiência de brincar na linha da sua vida... e nos fale sobre como essa experiência tem influenciado o brincar e a brincadeira na vida da(o) 'nome da criança'" e "em quais lugares e com que pessoas a(o) 'nome da criança' costuma brincar quando não está internada(o)"?

Os participantes foram 22 familiares de sete crianças com câncer em tratamento ambulatorial atendidas em um Hospital de Oncologia localizado no município do Rio de Janeiro. Os critérios de inclusão no estudo foram: a) familiares de escolares em tratamento oncológico ambulatorial no momento da captação; e b) residentes no município do Rio de Janeiro ou municípios próximos, com até 100 quilômetros de distância do centro de tratamento. Foram excluídos do estudo: a) os familiares das crianças que residissem em casas de apoio, já que o estudo tem enfoque no ambiente domiciliar; b) familiares com idade inferior a 12 anos; e c) familiares apresentando comprometimento psiquiátrico, já que esta situação poderia interferir na fidedignidade dos dados da pesquisa.

A opção por trabalhar com familiares de crianças em idade escolar, de seis a 12 anos, se deu pelo fato desta ser a idade em que a criança se afilia a colegas da mesma faixa etária. Portanto, o sentido de pertencer a um grupo é de extrema importância, além disso, suas brincadeiras envolvem habilidades físicas, intelectuais e fantasias.1313. 13. Silva LF, Cabral IE, Christoffel MM. Conhecendo a interação social nas brincadeiras das crianças com câncer em tratamento ambulatorial: subsídios para o cuidado de enfermagem. Rev Pesq Cuid Fundam [online]. Out-Dez. 2010. 2(Supl):63-7. Disponível em: http://www.seer.unirio.br/index.php/cuidadofundamental/article/viewArticle/801
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Foi garantido o anonimato dos familiares e também dos escolares. Para isso, eles foram identificados no estudo com uma numeração por ordem de participação da família na pesquisa e a identificação do sexo da criança foi feita com a presença do artigo definido A para as meninas e O para os meninos. Os familiares também receberam um código numérico que obedeceu a sua ordem de participação nas dinâmicas.

A seleção e a captação dos sujeitos ocorreram a partir do ambulatório de oncologia pediátrica onde faziam tratamento, e a etapa de produção de dados ocorreu nas residências das crianças em tratamento ambulatorial da referida instituição, no período de setembro de 2011 a maio de 2012.

Destaca-se que foram realizadas duas dinâmicas com cada uma das sete famílias. Esclarece-se que os 22 sujeitos estavam distribuídos nas sete famílias da seguinte forma: na família da escolar 1 participaram uma avó, a mãe e três irmãos; na do escolar 2, a mãe e duas irmãs; na da escolar 3, os pais e duas tias; na da escolar 4, a mãe e duas irmãs; na da escolar 5, a mãe e uma irmã; na da escolar 6, uma avó e duas tias; e na da escolar 7, os pais.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Instituição, na qual as crianças faziam tratamento oncológico (Protocolo CAAE n. 0016.0.007.00-11/ Parecer n. 44/11) e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, após tomarem conhecimento dos objetivos do estudo.

Foi utilizado como critério para o encerramento do trabalho de campo o processo de amostragem por saturação teórica. Neste caso, o pesquisador interrompe a coleta de dados quando constata que sua interação no campo de pesquisa já não fornece novos elementos para balizar ou aprofundar a teorização do objeto de pesquisa.1414. Fontanella BJB, Luchesi BM, Saidel MGB, Ricas J, Turato ER, Melo DM. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de procedimentos para constatar saturação teórica. Cad Saúde Pública. 2011 Fev; 27(2):389-94.

Para a análise dos dados utilizou-se o método da Análise de Discurso Francesa (AD),22. Silva LF, Cabral IE, Christoffel MM. The (im)possibilities of play for children with outpatient cancer treatment. Acta Paulis Enferm. 2010; 23(3):334-40. tomando-se por base os textos transcritos gerados nas dinâmicas de criatividade e sensibilidade: linha da vida e mapa falante. A opção por este método de análise se deu pelo fato de a produção de sentido dos discursos dos familiares localizar o brincar na esfera da experiência pessoal e dos acontecimentos cotidianos pertencentes à microestrutura das relações familiares.

O movimento da análise de discurso dos familiares ocorreu em etapas: inicialmente, o corpus textual foi dessuperficilalizado, ou seja, a superfície linguística, representada pelo material empírico bruto, foi transformada em objeto discursivo após obter-se a materialidade linguística, como uso de pontuações e marcação do tempo de fala de cada sujeito.22. Silva LF, Cabral IE, Christoffel MM. The (im)possibilities of play for children with outpatient cancer treatment. Acta Paulis Enferm. 2010; 23(3):334-40.

A leitura analítica do objeto discursivo apontou as pistas indicadoras dos dispositivos analíticos constituintes do discurso dos sujeitos. Essa etapa teve como objetivo buscar a discursividade do texto, preparando o analista para a configuração da formação discursiva. Entende-se por formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio histórico, determina o que pode e deve ser dito.22. Silva LF, Cabral IE, Christoffel MM. The (im)possibilities of play for children with outpatient cancer treatment. Acta Paulis Enferm. 2010; 23(3):334-40.

Posteriormente, aconteceu a passagem do objeto discursivo para o processo discursivo. Nesta etapa, relacionaram-se as formações discursivas distintas com a formação ideológica que rege essas relações. Desse modo, atingiu-se a constituição do processo discursivo, responsável pelo efeito de sentido produzido no material simbólico.22. Silva LF, Cabral IE, Christoffel MM. The (im)possibilities of play for children with outpatient cancer treatment. Acta Paulis Enferm. 2010; 23(3):334-40.

Destaca-se ainda, nesse método de análise, o uso de dispositivos analíticos para se chegar à compreensão dos sentidos produzidos pelos participantes da pesquisa. Os dispositivos identificados nos objetivos discursivos foram os seguintes: a paráfrase, o interdiscurso e o não dito.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O processo de análise levou à categorização de duas unidades temáticas: o câncer infantil - um acontecimento sobre o brincar; e o brincar no curso do adoecimento e tratamento da criança: uma possibilidade de resgate do cuidado de manutenção da vida.

O câncer infantil - um acontecimento sobre o brincar

Adoecer por câncer chega à vida da criança como um acontecimento que repercute como impeditivo para a prática de algumas brincadeiras, às quais era habituada: a doença, a enfermidade [câncer] veio na vida dela [escolar 6] em uma idade quando a criança começa a brincar com as brincadeiras mais legais: correr, pular e praticar algum esporte, mas ela não pode fazer nada disso por causa do tratamento e da própria doença mesmo (Familiar 20. Tia da escolar 6); depois que ela [escolar 5] começou o tratamento tem coisas que ela não pode fazer, como andar de bicicleta, patinete e jogar bola. Esses brinquedos estão guardados lá embaixo da casa (Familiar 7. Irmã da escolar 5).

Observa-se, no discurso dos familiares, que a repetição do dizer característico da paráfrase nos remete à ideia de que a própria doença modifica os tipos de brincadeiras, aquelas ativas e a prática de esporte são interrompidas.

Destaca-se que idade escolar é a fase da infância marcada pelo engajamento da criança em brincadeiras ativas como correr, jogar bola, brincar de patinete, bicicleta e a prática esportiva. O câncer e seu tratamento são internalizados pela família como impeditivos à realização dessas brincadeiras ativas, comuns na idade escolar.

Os familiares apontaram que o adoecimento pelo câncer e seu tratamento agem no corpo da criança deixando-a debilitada, com dificuldade de locomoção e sem condição física para brincar: ela [escolar 7] mudou totalmente o ritmo. Primeiro fez uma cirurgia muito complicada, depois a quimioterapia e a radioterapia... ela ficou muito debilitada: tinha dificuldade para andar, se equilibrar, mas agora ela está se recuperando e ela está andando bem, mas não está se equilibrando. Depois que ela começou esse tratamento, ela não brincou! (Familiar 22. Mãe da escolar 7); ele [escolar 4] ficou muito debilitado por causa da cirurgia e da quimioterapia, não andava, entendeu? Então ficava deitado o tempo todo, não brincava de nada mesmo (Familiar 13. Mãe do escolar 4).

Pela repetição do dizer, característica da paráfrase, nota-se que a complexidade da doença e os tipos de tratamento mudam o ritmo de vida da criança: a cirurgia, a quimioterapia e a radioterapia atuam sobre o corpo da criança, deixando-a debilitada com dificuldade de locomoção e equilíbrio, fazendo com que a criança perca o desejo e a pulsão para brincar.

Os familiares falaram ainda a respeito dos dispositivos tecnológicos implantados no corpo da criança, para seguimento do tratamento da doença, como sendo limitadores de a criança participar e interagir com outras pessoas no meio social em que vivem: ele [escolar 4] gosta de correr e jogar bola, mas eu falo para ele não jogar por causa da válvula [derivação ventrículo peritoneal - DVP] e do cateter [venoso central semi-implantado] (Familiar 13. Mãe do escolar 4); depois que ela [escolar 5] ficou doente não brincou de bicicleta e patinete, para não fazer esforço e o cateter [venoso central semi-implantado] não sair do lugar (Familiar 16. Mãe da escolar 5); ela [escolar 7] não vai mais à piscina e à praia. Não é que ela não consiga ir, é para não molhar o cateter [venoso central semi-implantado] (Familiar 22. Mãe da escolar 7).

A DVP e o Cateter Venoso Central Semi-Implantado (CVCSI) são internalizados pelos familiares como impeditivos de jogar bola, andar de bicicleta e patinete. Destaca-se que esses dispositivos tecnológicos utilizados são fundamentais para o tratamento da doença, porém ecoam como limitadores para algumas brincadeiras às quais escolares são habituados, motivando a mudança do hábito de brincar dessas crianças.

Pelo relato dos familiares, nota-se que esses dispositivos são signos internalizados como representantes de limitações. Vale lembrar que os signos são considerados instrumentos mediadores das atividades psíquicas, tais como a memória e o acúmulo de informação.1515. Zanolla SRS. O conceito de mediação em Vigotski e Adorno. Psicol Soc [online]. 2012, [acesso 2013 Jul 17]; 24(1):5-14. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/psoc/v24n1/02.pdf
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Nesse sentido, a família possui uma memória do câncer, como um signo, que provoca mudanças no corpo da criança e rouba a energia da infância para a brincadeira. Mais do que isso, o mal-estar que a doença e o tratamento provocam na criança é ressignificado pela família como necessidade de proteção, contrapondo-se à necessidade de estimulação para prosseguir com o crescimento e desenvolvimento, e de manter aquelas atividades que dão prazer à vida infantil.

Apesar do interesse da própria criança em manter suas atividades, os dados indicaram que a doença e os tratamentos atuam em seu organismo deixando-a com restrição física e indisposição orgânica, limitando-a para o desenvolvimento de brincadeiras. Nesse sentido, o enfermeiro precisa atuar em parceria com a família, para juntos buscarem alternativas e adaptações das brincadeiras à condição física da criança.22. Silva LF, Cabral IE, Christoffel MM. The (im)possibilities of play for children with outpatient cancer treatment. Acta Paulis Enferm. 2010; 23(3):334-40. , 1616. Silva LF. Significado do brincar para a família de crianças em tratamento oncológico: implicações para o cuidado de enfermagem [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem; 2012.

Os diferentes tipos de câncer e suas modalidades de tratamento acarretam necessidades especiais de saúde que demandam cuidados, além de ocasionarem indisposições orgânicas, mal-estar, perda de peso, hemorragias, dores, impossibilidade de deambulação, ausência de sensibilidade tátil, queda de cabelo, cifose, entre outros.22. Silva LF, Cabral IE, Christoffel MM. The (im)possibilities of play for children with outpatient cancer treatment. Acta Paulis Enferm. 2010; 23(3):334-40. , 1616. Silva LF. Significado do brincar para a família de crianças em tratamento oncológico: implicações para o cuidado de enfermagem [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem; 2012.

De modo geral, as demandas de cuidados foram classificadas em quatro grupos: de desenvolvimento, habituais modificados, tecnológicos e medicamentosos.1717. Neves ET, Cabral IE. Empoderamento da mulher cuidadora de crianças com necessidades especiais de saúde. Texto Contexto Enferm [online]. 2008 Jul-Set [Acesso 2013 Jun 20]; 17(3):552-60. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v17n3/a17v17n3.pdf
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As de cuidados tecnológicos, que adquiriram destaque no discurso dos familiares, são dispensadas às crianças que necessitam de algum tipo de tecnologia para sobreviver, como o cateter venoso central e a derivação ventrículo peritoneal, indicados pelos familiares como impeditivos para engajamento em brincadeiras ativas.

O enfermeiro, ao deparar-se com tal situação, precisa, juntamente com a família e a criança, buscar ajustes que permitam a realização de brincadeiras, respeitando-se os limites, as pulsões e os desejos da criança. Valorizar as fontes de vitalização para a criança, sem oferecer riscos à sua vida, danos à sua integridade física e complicações ao tratamento, e dialogar com a criança sobre seus limites e possibilidades contribuem para um compartilhar de responsabilidades, ao mesmo tempo em que se reconhece o direito de a criança participar ativamente no tratamento da doença e de continuar brincando.

O brincar no curso do adoecimento e tratamento da criança: uma possibilidade de resgate do cuidado de manutenção da vida

A revelação do diagnóstico de câncer infantil motivou as famílias a levaram a criança para passear em lugares como a praia e outros pontos turísticos, buscando assim fontes de lazer, brincadeira e distração: depois que a gente ficou sabendo da doença [câncer] dela [escolar 3], a gente foi um dia com ela à praia para se despedir, isso antes da internação (Familiar 11. Pai da escolar 3); nós a [escolar 6] levamos à praia quando descobrimos o problema [câncer] dela, só que antes de começar a quimioterapia [...] e no domingo antes da cirurgia, fomos ao Cristo Redentor para ela se distrair um pouco (Familiar 18. Avó da escolar 6).

Percebe-se que o período que antecedeu à internação hospitalar, o começo da quimioterapia e a realização da cirurgia, foram momentos que motivaram a família para se organizar e levar a criança a passeios, à praia, a pontos turísticos, como o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, para se despedir do brincar com brincadeiras ativas. É de conhecimento popular que o câncer é uma doença que demanda tratamento longo e limitante. Desse modo, no interdiscurso dos familiares, representado pela memória do dizer, os achados revelam que eles cuidaram das crianças, buscando momentos de lazer e preparando-as para a passagem pelo processo de adoecimento e tratamento.

A revelação do diagnóstico do câncer infantil é permeada por muito sofrimento para os familiares, entretanto eles buscam forças e procuram transmiti-la à criança. Essa tentativa de transmitir força para enfrentar o tratamento pode ter sido motivadora para a realização de passeios na praia e em pontos turísticos antes do início do tratamento.1818. Santos LMP, Gonçalves LLC. Crianças com câncer: desvelando o significado do adoecimento atribuído por suas mães. Rev Enferm UERJ. 2008 Abr-Jun; 16(2):224-9.

Sendo assim, pelo não dito dos familiares, apreende-se que, entre as repercussões sofridas pela criança decorrente do câncer, está a impossibilidade de passear ao ar livre e ir à praia. Nesse patamar, entre a passagem do diagnóstico do câncer e o início do tratamento, os familiares cuidaram dessas crianças buscando fontes de lazer para prepará-las para a nova fase que se aproximava: o tratamento do câncer.

Outros familiares mostraram atuar ativamente no estímulo à criança para brincar e procuraram manter a infância delas o mais normal possível: eu estimulo muito, se eu deixar, ela [escolar 7] não tem vida normal, fica dentro de casa, sem brincar e aí eu falo: você gosta de se entregar à doença... quando eu falo, ela vai brincar, por isso eu sei que tenho que estimular; se eu deixar, ela não sai daqui de dentro de casa [...] passa o dia inteiro no sofá deitada [...] se ela ficar assim, não vai mais brincar e quando vier a adolescência o estudo vai ficar mais pesado e já vai ter passado a fase de brincar. Ela tem que voltar à vida normal dela (Familiar 21. Mãe da escolar 7).

Nota-se que é preciso estimular a criança para que não desista de brincar, de modo a preservar um estilo de vida normal para sua idade. Nessa perspectiva, a normalização deve ser percebida como possibilidade de mudança, de transformação, ou seja, de busca por novas possibilidades de manutenção das atividades geradoras de bem-estar.19 19. Souza SPS, Lima RAG. Condição crônica e normalidade: rumo ao movimento que amplia a potência de agir e ser feliz. Rev Latino-Am Enferm [online]. 2007 Jan-Fev [acesso 2014 Fev 04]; 15(1):156-64. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n1/pt_v15n1a23.pdf
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É preciso lembrar que a condição crônica, na qual a criança com câncer convive, tem como característica perdurar por período de tempo prolongado. Mas, isso não significa que ela se sinta sempre doente, pois outra característica da condição crônica diz respeito às fases de exacerbação e remissão. Neste sentido, no período de remissão da doença, ela pode se sentir disposta a realizar suas atividades.1919. Souza SPS, Lima RAG. Condição crônica e normalidade: rumo ao movimento que amplia a potência de agir e ser feliz. Rev Latino-Am Enferm [online]. 2007 Jan-Fev [acesso 2014 Fev 04]; 15(1):156-64. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n1/pt_v15n1a23.pdf
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Ao estimularem as crianças a prosseguirem brincando durante o tratamento, os familiares demonstram valorizar o brincar como parte normal da infância. Neste sentido, desempenham papel de promotores do processo de crescimento e desenvolvimento normal da criança mediado pela brincadeira.2020. Li HCW, Chung OKJ, Chiu SY. The impact of cancer on children's physical, emotional, and psychosocial well-being. Cancer Nurs. 2010 Jan-Feb; 33(1):47-54.

Por outro lado, alguns familiares reconhecem a importância da brincadeira para a criança, ao mesmo tempo em que são capazes de apontar as dificuldades da família frente ao adoecimento da criança e a necessidade de cuidado de seus membros, para que se sintam encorajados e se engajem em brincadeiras: acho que está faltando brincadeira na nossa família e principalmente na vida dela [escolar 6]. [...] Estamos em um momento muito delicado, por conta de todas as coisas que estão acontecendo na nossa família, o problema de saúde, tudo isso mexe com a gente, mexe muito com todo mundo... a gente tem que tentar ajudar o tempo todo, e brincar pode ajudar (Familiar 20. Tia da escolar 6); ela [escolar 6] reclama porque não tem ninguém para brincar, nem para a escola está indo [...] às vezes fica triste, caída no sofá o dia inteiro. Ela está precisando brincar, rir, fazer graça, mas eu também estou triste com a doença dela, estou deprimida e sem condição, nem vontade de brincar (Familiar 18. Avó da escolar 6).

Nota-se que os familiares contextualizaram a falta de brincadeira na família e principalmente na vida da escolar e reconhecem que o brincar pode ajudar a criança e a família na passagem pelo adoecimento e tratamento de forma menos traumática.

Acrescenta-se ainda que, embora alguns familiares entendam a importância da brincadeira para a criança, disseram sentirem-se deprimidos, tristes e sem condição de brincar com ela, confirmando o quanto o câncer infantil é devastador para a família, sendo necessário cuidado não apenas para quem o possui, mas também para seus familiares.18 18. Santos LMP, Gonçalves LLC. Crianças com câncer: desvelando o significado do adoecimento atribuído por suas mães. Rev Enferm UERJ. 2008 Abr-Jun; 16(2):224-9.O câncer pertence ao rito de passagem de uma situação de normalidade para uma de enfrentamento do tratamento do câncer e de seus efeitos sobre o corpo e a vida da criança.

Para dois familiares, o cuidado dispensado à criança em tratamento oncológico pauta-se na natureza de reparação, em detrimento dos cuidados de manutenção da vida: agora, o que faço é falar para ela [escolar 6]comer, para tomar um suco, dormir cedo, tomar o remédio para sarar, sair dessa condição de adoecimento (Familiar 18. Avó da escolar 6); agora ela não faz nada, não brinca, também a hora do tratamento é para isso mesmo. É só para o tratamento, mais nada! (Familiar 22. Pai da escolar 7).

Percebe-se que as demandas de cuidado associadas ao tratamento da doença, como o uso de medicamentos e os direcionados para as necessidades de vida diária tais como a alimentação, hidratação, sono e repouso, assumem um lugar central durante o tratamento oncológico. Sendo assim, o foco do cuidado passa a ser o tratamento da doença e não somente o cuidado do "ser" criança, com todas as suas particularidades e especificidades relativas a este estágio de pleno desenvolvimento biopsicossocial.

Neste caso, durante o tratamento do câncer, a atenção está voltada à doença, que assume lugar central, e as atividades de brincadeira assumem assim valor secundário nessa etapa de vida da criança. Nessa mesma linha de pensamento, um estudo realizado na China mostrou que, apesar de a literatura científica apontar os benefícios do brincar no tratamento da criança com câncer, a maioria dos pais chineses vê a brincadeira como menos importante do que o tratamento médico focado na doença.2020. Li HCW, Chung OKJ, Chiu SY. The impact of cancer on children's physical, emotional, and psychosocial well-being. Cancer Nurs. 2010 Jan-Feb; 33(1):47-54. Apesar dos benefícios terapêuticos do brincar para a criança doente, essa prática ainda é desvalorizada em nosso meio, sendo considerada atividade dispensável.2121. Kuperman H, Battistin C, Moreira ACF, Cornacchioni AL, Odone Filho C, Setian N, et al. Avaliação dos principais efeitos endócrinos tardios em crianças e adolescentes sobreviventes ao tratamento de neoplasias malignas. Arq Bras Endocrinol Metab [online]. 2010 [acesso 2013 Jul 29]; 54(9):819-25. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/abem/v54n9/a08v54n9.pdf
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Cabe ao enfermeiro, que tem na gênese de sua profissão o cuidado como pilar fundamental de sua prática, dialogar com os familiares procurando mostrar que a manutenção do brincar é uma forma de cuidado indispensável à criança, independente de sua condição de adoecimento, além de ser um direito dela.

Outros familiares disseram que se mantêm na expectativa e espera do momento de retorno da brincadeira da criança após o término do tratamento do câncer: no hospital eles [profissionais] falaram que ela [escolar 3] deve poder voltar a fazer tudo, deixa só terminar esse tratamento (Familiar 11. Pai da escolar 3); o neuro [cirurgião] já falou que ela [escolar 7] vai fazer tudo que ela quiser, vai brincar de tudo, é só recuperar a energia dela. Ele já suspendeu todo o medicamento, ela não toma mais nada, só a quimio [terapia]. Tudo na vida passa, não é? Hoje ela está aí, bem melhor do que antes! Depois que terminar esse tratamento e ela ficar curada, se Deus quiser ela vai ficar! Ela vai fazer tudo que fazia antes (Familiar 21. Mãe da escolar 7).

Os familiares aguardam o término do tratamento e a cura do câncer para que a criança retome as atividades que realizava antes do adoecimento. Porém, sabe-se que, passado o período do tratamento, a reinserção social da criança precisa ser acompanhada, pois algumas vezes, as necessidades especiais de saúde permanecem mesmo após esta etapa.

Após o término do tratamento essas crianças podem apresentar algum tipo de sequela, tais como bexiga neurogênica, insuficiência renal, déficit neurológico, auditivo, visual, paraplegia, hemiparesias, amputações diversas, distúrbios endócrinos, dependências medicamentosas, relatos de dificuldades de adaptação social, além do estresse pós-traumático.1616. Silva LF. Significado do brincar para a família de crianças em tratamento oncológico: implicações para o cuidado de enfermagem [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem; 2012. , 2121. Kuperman H, Battistin C, Moreira ACF, Cornacchioni AL, Odone Filho C, Setian N, et al. Avaliação dos principais efeitos endócrinos tardios em crianças e adolescentes sobreviventes ao tratamento de neoplasias malignas. Arq Bras Endocrinol Metab [online]. 2010 [acesso 2013 Jul 29]; 54(9):819-25. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/abem/v54n9/a08v54n9.pdf
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- 2222. Boaventura CT, Araujo TCCF. Estresse pós-traumático da criança sobrevivente de câncer e sua percepção acerca da experiência parental. Estud Psicol [online]. 2012 [acesso 2013 Jul 29]; 17(2):283-90. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/abem/v54n9/a08v54n9.pdf
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Essas sequelas, físicas ou psicológicas, merecem atenção para que haja reinserção social da criança e família, buscando superação das possíveis limitações decorrentes da doença pregressa.2323. Gomes IP, Lima KA, Rodrigues LV, Lima RAG, Collet N. Do diagnóstico à sobrevivência do câncer infantil: perspectiva de crianças. Texto Contexto Enferm. 2013 Jul-Set; 22(3):671-9. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n3/v22n3a13pdf
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Sendo assim, cuidados voltados para manutenção das atividades cotidianas, entre elas a brincadeira, devem ser contemplados durante e após o tratamento do câncer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apreendemos que o adoecimento pelo câncer na história da criança em idade escolar causa repercussões que levam às reduções funcionais impeditivas do desenvolvimento de brincadeiras ativas. Frente a essas repercussões, o cuidado de manutenção da vida, próprio ao momento sadio da vida da criança, deve ser resgatado na tentativa de buscar formas para estimular as potencialidades dela.

Os cuidados de manutenção da vida são empregados na busca de estratégias para que a criança continue brincando e interagindo socialmente com seus pares e familiares durante o tratamento, pois tanto a brincadeira quanto a interação são fontes de energia e vitalização. É preciso estimular e prosseguir investindo nas potencialidades das crianças, respeitando-se suas limitações orgânicas e funcionais, restrições físicas, inapetência e debilidade. Para tanto, há alternativas de brincadeira, distração e diversão a serem incluídas no plano terapêutico durante a hospitalização e no domicilio.

A estimulação realizada pelos familiares no espaço do domicílio pode ocorrer em diversas situações. Eles podem estimular a criança a se engajar em brincadeiras praticadas antes do adoecimento, com seus pares, no playground do prédio, na rua, passeios por pontos turísticos da cidade, praia, piscina, parque, estimulando-as a interagir socialmente e manter contato com a natureza, pois, quando há o estímulo, a criança responde de maneira satisfatória e sente-se mais motivada a brincar. Pela necessidade de participação dos familiares no estímulo à criança, os mesmos devem ser incluídos na perspectiva do cuidado centrado na família, para que se sintam encorajados a atuarem como agentes estimuladores do desenvolvimento infantil.

A expectativa de término do tratamento e a cura da doença representaram a possibilidade de a criança retornar a fazer tudo que fazia antes do adoecimento. Desse modo, durante o curso do adoecimento e tratamento, o foco do cuidado familiar é o controle da doença, o brincar assume um valor secundário, enquanto o tratar e o curar, um valor primário. Assim, os cuidados de reparação ocupam o lugar daqueles de manutenção, tendo na perda do brincar ativo seu maior prejuízo.

O fim do tratamento e a possibilidade de cura da doença não podem ser esperados para que a criança retorne às atividades de antes de adoecer. A vida prossegue seu fluxo, o desenvolvimento infantil é uma necessidade social em saúde e o brincar, um direito da criança. Assim, o enfermeiro deve mostrar aos familiares como manter as atividades cotidianas, dentro das possibilidades da criança e da família, mantendo a interação social como parte do tratamento.

Conclui-se, assim, que a manutenção da brincadeira é uma necessidade especial de saúde que demanda cuidados de enfermagem de diferentes naturezas. É preciso assegurar o direito de a criança brincar. Desse modo, o enfermeiro precisa assumir o papel de advocacy (advogado) em defesa desse direito, envolvendo outros profissionais e familiares.

Para que o direito de brincar seja garantido, o enfermeiro precisa envolver a família, e, lado a lado, profissionais e familiares devem estimular e encorajar a criança para que ela se sinta segura e confortada e, com isso, passe melhor pelo processo de adoecimento e tratamento, com menos traumas e prejuízos para o seu desenvolvimento.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2013
  • Aceito
    27 Jan 2014
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