Resumo:
Neste artigo, analisaremos como os negócios do café estiveram intimamente relacionados ao tráfico ilegal de africanos na construção do complexo cafeeiro ao sul da antiga província do Rio de Janeiro. Para tanto, verificaremos de quais maneiras as estruturas vinculadas à economia do café, especialmente aos negócios da cabotagem, possibilitaram a reabertura do tráfico em meados dos anos de 1830 e seu desenvolvimento até o início da década de 1850. Por fim, concluiremos nosso estudo evidenciando os novos espaços do comércio ilegal, seus agentes e suas estruturas. Por meio dessa perspectiva, buscamos redimensionar o processo de reerguimento da escravidão no Brasil oitocentista em sua dimensão atlântica.
Palavras-chave:
Plantação cafeeira; Tráfico ilegal de escra- vos; Província do Rio de Janeiro
Abstract :
In this paper, we will analyze how the coffee business were related to the illegal slave trade during the construction of coffee plantation in Brazil in the 19th century. In addition, we will highlight how structures of the coffee economy, through the cabotage business, allowed the development of illegal slave trade from the mid-1830s until the begging of 1850s, which expanded and consolidated the economy, and strengthened slavery within the framework of the development of the capitalist economy in plantation areas. Finally, we will emphasize the new spaces of illegal slave trade, their agents and their structures. This perspective aims to resize the process of growth of slavery in the 19th century in its Atlantic dimension.
Keywords:
Coffee plantations; Illegal slave trade; Province of Rio de Janeiro
No início da década de 1820, a bandeira do jovem Império do Brasil trazia lado a lado os ramos do tabaco e do café. Se o fumo produzido na antiga capitania da Bahia era havia tempos moeda de troca por cativos nos mercados da costa ocidental africana (Verger, 1987VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de todos os Santos: século XVII e XVII. São Paulo: Corrupio, 1987., p. 37-71), a cultura do café ainda figurava como projeto econômico em construção, pouco evidente no início do século nas áreas que mais tarde se tornariam os principais municípios cafeeiros da primeira metade dos Oitocentos (Nozoe e Motta, 1999NOZOE, Nelson; MOTTA, José Flávio. Os produtores eventuais de café: nota sobre os primórdios da cafeicultura paulista (Bananal, 1799-1829). Locus(Juiz de Fora), v. 5, n. 1, p. 51-84, 1999., p. 51-84). Conciliando pesquisas clássicas sobre o nascimento da cafeicultura brasileira (Taunay, 1945TAUNAY, Afonso de E. Pequena história do café no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café, 1945.) aos informes demográficos evidenciados por trabalhos recentes (Marquese e Salles, 2015MARQUESE, Rafael; SALLES, Ricardo. A cartografia do poder senhorial: cafeicultura, escravidão e formação do Estado nacional brasileiro, 1822-1848. In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo. O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos quadros da segunda escravidão. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015, p. 100-129., p. 100-129), tudo indica que a região entre São João do Príncipe e Piraí tenha sido uma zona pioneira na constituição do complexo cafeeiro no Império. O não dito dessa história é que a transformação desse espaço em uma das áreas mais importantes para a economia brasileira na primeira metade dos Oitocentos esteve diretamente articulada à dispersão do tráfico transatlântico de africanos e sua reestruturação e reerguimento sob o signo da ilegalidade.
A relação entre café e tráfico é lugar-comum na historiografia. Ora se faz a associação do endividamento da classe senhorial aos traficantes das redes atlânticas (Prado Jr., 1977PRADO JR., Caio. História econômica do Brasil. 20. ed. São Paulo: Brasiliense, 1977., p. 142-154), ora aos homens de grosso trato que atuavam na praça do Rio de Janeiro e optavam pela conversão de sua fortuna em bens agrários e escravos como forma de inserção nas hierarquias sociais daquele tempo (Fragoso e Florentino, 2001FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, 1790 -1840. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.). No texto que segue, partimos de premissas diferentes. Aqui, a associação indireta feita na bandeira do Império entre tráfico e cafeicultura ganhará concretude por meio da análise de senhores e negociantes que ao sul da província do Rio de Janeiro articularam a montagem do complexo cafeeiro à reabertura e à reestruturação do tráfico de africanos na clandestinidade.
Os protagonistas dessa história orbitam em torno de Joaquim Breves, um dos maiores fazendeiros, senão o maior, do Império do Brasil em meados dos Oitocentos. O espaço de análise será o entroncamento entre o extinto município de São João do Príncipe - hoje Rio Claro -, o mar de Mangaratiba e suas conexões atlânticas. A seguir, circulamos no mapa da antiga província do Rio de Janeiro o espaço sobre o qual trataremos daqui por diante.
O comendador Breves era o expoente de uma das maiores famílias escravistas do Império, senhor de aproximadamente 3 mil cativos em meados do século e proprietário de cerca de 25 fazendas no momento de sua morte, em setembro de 1889. Seu império se espraiava entre o Vale do Paraíba e o litoral sul do Rio de Janeiro, centralizado especialmente entre os municípios de São João do Príncipe e Mangaratiba. A fortuna amealhada ao longo da vida parece evidente no domínio territorial empreendido - suas fazendas correspondiam a nada menos do que um terço do atual território do município de Rio Claro. Era a personificação do terra-tenente do Brasil escravista também porque controlava os canais de participação e representação política nos âmbitos locais, fazendo-se representar de maneira diretiva no legislativo e no judiciário de ambos os municípios, bem como na assembleia provincial fluminense (Pessoa, 2018MARQUESE, Rafael; SALLES, Ricardo. A cartografia do poder senhorial: cafeicultura, escravidão e formação do Estado nacional brasileiro, 1822-1848. In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo. O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos quadros da segunda escravidão. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015, p. 100-129., p. 47-61).
A memória familiar registra que tamanha riqueza teve início no comércio interno de escravos, quando o jovem Breves recebera lotes de negros de um importante barão para revenda no Vale (Breves, 1966BREVES, Armando de Moraes. O reino da Marambaia. Rio de Janeiro: Olímpica, 1966., p. 101). Nessa perspectiva, poderíamos enquadrá-lo no perfil traçado por Fragoso e Florentino para outros negociantes que partiram do tráfico, fizeram fortuna e migraram para ser senhor de terras e almas. No entanto, com Breves foi diferente. A estruturação de seu vasto império seguiu atrelada à reestruturação do tráfico de africanos após a lei de 7 de novembro de 1831.
A partir de trajetórias individuais, constituinte e constituídas pelas estruturas sociais coletivas, como bem definiu Norbert Elias (1994), testaremos a seguinte hipótese: em algumas regiões, como no litoral sul da província do Rio de Janeiro, a relação entre a cafeicultura e o reerguimento do comércio atlântico de africanos esteve muito além de um vínculo utilitário no qual os fazendeiros acessavam o mercado negreiro apenas em vista de projetarem sua condição senhorial ou, ainda, garantirem a reprodução de suas fazendas, refém de uma escala ascendente de endividamento. A despeito disso, o que parece evidente é que a construção do complexo cafeeiro fluminense esteve diretamente relacionada ao comércio negreiro na ilegalidade, edificando no litoral que o margeava as estruturas políticas, sociais e econômicas que viabilizariam o recrudescimento do tráfico após o constrangimento jurídico imposto em novembro de 1831. Em outras palavras, os senhores do café e seus parceiros comerciais, além de reduzirem indivíduos livres à condição de cativos, foram os protagonistas da reestruturação do comércio negreiro na clandestinidade.
Passemos ao litoral de Mangaratiba e seu principal porto para melhor entendermos o que afirmamos. Em maio de 1833, o sargento-mor Breves e seu sócio, Miguel Antônio da Silva, arremataram a reconstrução do trecho de estrada que descia do vale ao porto do Saco de Mangaratiba. Contariam para tanto com 5 contos de réis advindos do tesouro provincial e dos cofres dos fazendeiros do vale, sobretudo de São João do Príncipe e Piraí, por meio de “honrosas subscrições”.1 1 Fundação Mario Peixoto (FMP). Atas da Câmara. Livro 4. Auto de arrematação da Câmara Municipal da Vila de Mangaratiba (1832-1870), folhas 3-10. O interesse de Breves e seu sócio era antigo. Tempos antes, haviam estabelecido casa de negócio no Sahy, a três quartos de léguas da Vila de Mangaratiba, onde recebiam um “número avultado de tropas com seus carregamentos”. O projeto dos arrematantes na finalização da estrada no Saco de Mangaratiba visava ao monopólio no transporte e na negociação do café, além da comercialização dos demais produtos que garantiam a reprodução da vida nas fazendas serra acima. Transformavam, assim, aquele espaço num dos maiores portos do comércio de cabotagem do médio Vale do Paraíba e, por conseguinte, da província do Rio de Janeiro.
Para tanto, lançaram mão de diversos terrenos, edificando sítios, prédios e casas de negócio, destacando-se à beira-mar a Chácara dos Breves. A relevância do porto do Saco para a ascensão da economia cafeeira foi atestada pelo engenheiro E. B. Webb, representante da companhia que assumira a reconstrução daquela estrada em dezembro de 1855:
O comércio estabelecido na povoação do Saco {...} pode ser classificado de muito importante, porque estar a ocupar-se de exportado anual de mais de 1.000.000 de arrobas de café. {...} Outros não menos importantes municípios remetem por ali embarcados para a Corte os seus produtos agrícolas e recebiam os gêneros de que carecia para seu consumo. Pirahy, Barra Mansa, Resende e Bananal exportavam sua produção de café pelo porto do Saco e recebiam gêneros de que precisavam. Além de Rio Claro que tinha um comércio de importação e exportação com o porto de Mangaratiba (apud Bondim, 2001BONDIM, Mirian; HEFFNER, Luciano; SOUZA, Lívia Campos (Orgs.). A história da Estrada Imperial Mangaratiba-São João Marcos. Rio de Janeiro: Galo Branco, 2011., p. 56).
Da implementação da cultura cafeeira à sua expansão, entre o fim dos anos 1830 até meados da década de 1850, a municipalidade de Mangaratiba foi dinamizada pela economia do café. No início de 1840, por exemplo, 42 casas de negócio atuavam no município, estando 26 situadas no Saco de Mangaratiba. Controlavam a cabotagem e o fornecimento de secos e molhados para as amplas unidades agrícolas em expansão serra acima. Como Mangaratiba era uma área eminentemente “comercial e muito pouco agrícola”, como afirmara o vereador João Rubião na Câmara em 1858, suas bases estavam assentadas nas movimentadas redes de negócios estabelecidas no médio vale fluminense.2 2 FMP. Atas da Câmara. Livro 26, folha 37.
Parece reveladora a subscrição agenciada em Piraí e São João do Príncipe em prol da reconstrução de um dos principais caminhos de integração entre o vale e o litoral. Essa associação também se evidencia na composição das casas de negócio do litoral, controladas por grandes fazendeiros do vale ou por negociantes vinculados àquelas famílias.3 3 Encontramos sete casas comissárias no Saco de Mangaratiba ligadas direta ou indiretamente aos Breves entre as décadas de 1830 e 1850: João José dos Santos Breves & C. (1838-1855); Santos Breves & C. (1855); Breves & Irmão C. (1846-1853); Antônio Joaquim de Souza Breves & C. (1845-1859); Antônio Lourenço Torres (1849-1864); José Frazão de Souza Breves & C. (1856-1859); Miguel Antônio da Silva & C. (1838-1851). Fontes: FMP. Livros de Impostos sobre Alvarás de Licença para Casas de Negócio (1838-1882). Center for Research Libraries (CRL). Brazilian Government Document Digitalization Project. Almanack Laemmert (1844-1889)
Toda a rede comercial montada no litoral e sua logística estruturada para transporte do café e abastecimento das fazendas serviram também para o reerguimento do comércio de africanos na clandestinidade. Em meados da década de 1830, diante do fechamento do tráfico nos portos tradicionais da província, como o famoso Mercado do Valongo, estruturas edificadas para atender aos negócios da cabotagem passaram a ser revertidas para o tráfico negreiro em escala atlântica. As disputas políticas locais e a crença numa lei constituída, a priori, para ser cumprida nos fazem ver por onde entraram cerca de 800 mil africanos desembarcados ilegalmente no Império do Brasil:
A Câmara Municipal da Vila em cumprimento o que lhe determina o artigo 58 da Lei de 1º de outubro de 1828, tem a honra de pôr na presença de V. Exª o seguinte fato: no dia 14 do corrente {14/12/1836} aportavam no lugar da Praia do Saco duas canoas com 38 africanos novos e por que não pudessem desembarcar, talvez por serem vistos de muitas pessoas, levaram-nos para uma fazenda que fica perto de D. Maria Santa de Oliveira, onde os ocultaram no mato {...} os quais logo foram conduzidos para o Forte {...} onde estiveram até o dia 16 e guardados por uma escolta suficiente {...} No dia 17 foram conduzidos para dentro da Vila para uma casa particular, aonde pernoitaram e de onde desapareceu o melhor africano que entre eles havia {...} No dia seguinte, retornaram para o Forte e é público e notório que o Juiz de Paz recebeu nesse dia 2.200$000 dos portadores, que se haviam evadido para lhes entregar os referidos africanos, sendo igualmente público e notório que o dito Juiz depois de receber o dinheiro dera o plano para a entrada na fortaleza. {...} No dia 18 proibiu o mencionado Juiz que se fosse de noite ao Forte, e nem quis lá os guardas e carcereiro. {...} Finalmente na noite de 19 para 20 desapareceram todos os africanos, achando-se a grade do xadrez arrombada e o mais é que o mesmo Juiz no dia seguinte a mandou consertar a sua custa sem que requisitasse o seu conserto, como é de costume de todos estes fatos que é público.4 4 FMP. Atas da Câmara. Livro 5, folhas 128 e 129.
A denúncia feita pela Câmara de Mangaratiba em ofício ao governo provincial nos últimos dias de 1836 se embasava no artigo 58 da lei de 1º de outubro de 1828, que determinava que as câmaras “darão parte anualmente, ou quando convier, ao Presidente de Província e Conselho Geral das infrações da Constituição e das prevaricações ou negligências de todos os empregados”.5 5 Cf. <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-1-10-1828.htm>. Acessado em: 17 dez. 2016. O agente da prevaricação era o juiz de paz Antônio Luiz Vieira, que não só permitira o desembarque, como também acoitara os africanos na fortaleza de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba, facilitando o resgate dos portadores mediante o pagamento de pouco mais de 2 contos de réis. Em primeiro plano, a correspondência da Câmara evidencia a ação do juizado de paz com o lícito trato, relação costumeira nos negócios do tráfico, como delatou Joaquim de Paula Guedes Alcoforado:
Em fins de 1835, o tráfico era grande. Em muitos pontos de nossa costa se estabeleceram barracões e fazendas apropriadas para se darem estes desembarques de africanos; as autoridades de terra que tinham ingerência neste negócio eram os juízes de paz que no termo aonde eram feitas estas especulações tinham como paga 10,8% por cento de cada negro desembarcado.6 6 Arquivo Nacional (AN). Série Justiça, IJ6 525. Relatório de Joaquim de Paula Guedes Alcoforado. O tráfico de africanos nos anos de 1831 a 1853.
Mais do que cumplicidade, o tráfico havia se tornado um negócio rentável para as autoridades locais do Império, que, no caso dos juízes de paz, acumulavam o poder de justiça e polícia antes da reforma do código criminal em 1841. A despeito da prevaricação, há mais na denúncia. Parece evidente que os 38 africanos eram procedentes de um navio negreiro provavelmente atracado nas mediações da baía de Sepetiba e certamente compunham um lote maior distribuído para outros pontos do litoral. As duas canoas que operavam a finalização do empreendimento eram esperadas na praia do Saco. Lá provavelmente estavam os barracões e as fazendas apropriadas para os desembarques de africanos. No entanto, diante da impossibilidade da atracagem naquele ponto, montado para o comércio de cabotagem e convertido para atender às demandas de desembarques ilegais, os navios refizeram sua rota, comprometendo, assim, o sucesso da expedição. Sem uma estrutura de recepção, os africanos foram acoitados no mato, transferidos ao forte da Guia e, de lá, levados para uma casa particular no interior da vila, onde pernoitaram e seguiram novamente para o forte. A atracagem fora do saco provocou um prejuízo significativo ao sujeito responsável pela finalização do negócio, que, além de subornar o juiz de paz, teve um dos melhores africanos surrupiado.
Em 17 de abril de 1837, cerca de cinco meses após o incidente envolvendo o juiz de paz da Vila de Mangaratiba, novamente a Câmara notificara o governo provincial a fim de que impedisse que os pacatos habitantes de Mangaratiba fossem sucumbidos por “dias tortuosos e sanguinários, a sina do Ceará, um segundo Pinto Madeira”.7 7 FMP. Atas da Câmara. Livro 5, folhas 136 e 137.
A comparação não era gratuita. Joaquim Pinto Madeira, rico proprietário rural, ocupara a cena política do sertão cearense em meados da década de 1820. Filiado à Sociedade Secreta Coluna do Trono, comandou, no início de 1832, o movimento restaurador local, em defesa do retorno do imperador ao trono do qual havia abdicado meses antes. A pequena lembrança da Câmara ao governo central tinha endereço certo: evidenciar as ações ilícitas de Breves no movimentado porto do Saco de Mangaratiba em janeiro de 1837:
Em dez de janeiro {...} foi apreendido pelo juiz de paz desse município o patacho que se diz português, e que se denomina “União Feliz” por ter-se ligado desde 1835 no ilícito, imoral e desumano tráfico da escravatura, e que acabara de verificar um desembarque de africanos no lugar onde fora apreendido e porque tivesse ingerência nessa embarcação Joaquim José de Souza Breves, e conhecendo este não poder corromper o juiz de paz, então em exercício, partindo de raiva fora assenhorear do mesmo patacho {...} que por cautela estaria depositado no forte da Guia, fazendo de novo navegar afim de transportar talvez outro carregamento de infelizes (Idem).
Os ventos mudaram para Breves. Os eventos de meses anteriores alteraram a configuração política local, ao menos no juizado de paz, que aparentemente se recusara a esconder novos desembarques. A denúncia se dera em um contexto político conturbado no qual rivalizavam as forças políticas da vila e do saco - aquelas acusavam Breves de levar a estrada que descia a serra do mar apenas até as portas dos seus estabelecimentos na praia do Saco, impedindo o fluxo de mercadorias entre o dito porto e a vila por via terrestre.8 8 FMP. Atas da Câmara. Livro 5, folhas 120-123.
que pouco contribuiu para resolver a querela. O isolacionismo do saco, para além das disputas em torno da lucratividade da cabotagem, atendia a um objetivo límpido: ocultar os desembarques de africanos, que ganhavam ímpeto novamente a partir da segunda metade dos anos de 1830.
A denúncia oferecida pela Câmara destacava a ingerência de Breves na embarcação União Feliz, que se dizia portuguesa. A nacionalidade do patacho possivelmente não era o que parecia, uma vez que havia se tornado comum o uso de bandeiras falsas no período do tráfico ilegal (Conrad, 1985CONRAD, Robert. Tumbeiros: o tráfico de africanos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985.). Rastreamos sete viagens do União Feliz, entre 1818-1836, todas em direção à província do Rio.9 9 Cf. <http://www.slavevoyages.org>. Acessado em: 16 dez. 2016 Na última, os africanos procedentes de Benguela e Ambriz vieram sob o comando do capitão Manoel Antônio Rodrigues.10 10 Cf. <http://www.slavevoyages.org>. Voyage 41865. Acessado em: 16 dez. 2016. Em terra, a expedição era de responsabilidade de Breves, “tresloucado”, como dissera à Câmara, já que sobre seus ombros recaía o fracasso da expedição do experiente negreiro. Para resgatá-lo, o fazendeiro-traficante organizara uma audaciosa operação em direção ao forte da Guia:
Para esse fim mandou engajar em serra acima gente mercenária, da mais ínfima classe, a maior parte seus dependentes, os quais armados de diversas modos, desceram efetivamente em sua casa e na de seus protegidos se acoitaram, subindo o seu número a cem ou mais {...} Por espírito de rivalidade e mesmo por vingança Joaquim José de Souza Breves, Ilmo. Sr, ameaça uma povoação inteira, espalhou horror entre os habitantes do município, e que mais é disso se vangloria, e impune e audaz passeia entre nós. {...} Ilmo. Senhor, a vinda de
100 ou mais indivíduos de serra acima está provado, e até provado está que na ferraria estabelecida para conserto e calçamento da estrada de quem Miguel Antônio da Silva, sócio de Joaquim José de Souza Breves é administrador, se fizeram lanças, se bem no dito das testemunhas só se coloque ser 10 ou 14, mas, todavia, quem poderá assegurar que não tenham feito 50 ou 100? O caso é que fizeram lanças e é muito natural que fossem para armar os indivíduos, que desceram com pressa, e que de acordo que lanças não eram e nem são prensas para o calçamento da estrada11 11 FMP. Atas da Câmara Livro 5, folhas 136 e 137.
A Câmara narrara o acontecido como um verdadeiro ataque à povoação de Mangaratiba. Para sua defesa, solicitara pólvora e cartuchos, a fim de cobrir a fortaleza da Guia, desguarnecida. Além das questões políticas imbricadas nesse episódio, a agência de Breves reforça a hipótese de que seria ele próprio o responsável pela finalização do empreendimento traficante às margens do saco. Obviamente, não estava sozinho - contara com Miguel Antônio da Silva, seu sócio na reconstrução da estrada que cortava a Serra do Mar. A dupla de negociantes poucos anos antes do desembarque do União Feliz, atuava no projeto de transformar aquela praia em um dos principais pontos de cabotagem ao sul da província do Rio de Janeiro, estrutura que abrigaria concomitantemente o recrudescimento do tráfico na ilegalidade.
A ação da Câmara de Mangaratiba era o exemplo mais bem acabado de que a lei de 7 de novembro de 1831 não fora lida por todos os segmentos do mundo do governo do Império como “para inglês ver”, especialmente durante a Regência Feijó, estabelecida entre outubro de 1835 e setembro de 1837. Nesse período, Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, nomeado por Feijó para a pasta da Justiça, endureceu os termos da lei de 1831, determinando, por exemplo, que os juízes de paz, no flagrante do ilícito trato, fossem acompanhados de “dois peritos da Marinha, do Guarda-Mor da alfândega e do promotor público” (Parron, 2007PARRON, Tâmis. Política do tráfico negreiro: o parlamento imperial e a reabertura do tráfico na década de 1830. Estudos Afro-Asiáticos (Rio de Janeiro), v. 1-2-3, p.91-121, 2007., p. 102-103). Certamente a medida era tomada em decorrência de episódios como aquele protagonizado pelo juiz de paz de Mangaratiba, sobre o qual o presidente de província - à época ninguém menos que Paulino José Soares de Souza, futuro Visconde do Uruguai - tinha pleno conhecimento. Em meio às disputas locais e a um quadro político favorável, o legislativo municipal buscara fazer valer a ilegalidade do tráfico, denunciando traficantes e suas ações ao governo do Império.
No início de 1838, a Câmara foi além e mandou fechar “a estrada do Conguinho”, caminho estreito “que seguia das Cruz das Almas aonde passa a Estrada Geral por esta Villa ao lugar do Saco”. Segundo informara a Câmara à presidência da província, desde 1821 o dito caminho seguia abandonado ao público, que dispunha da estrada geral para o centro da vila. Diante de seu mau estado, o Conguinho “servia apenas para dar trânsito aos malfeitores que por escaparem as vistas das autoridades o preferiam”.
A qualificação de “malfeitores” era direcionada: destinava-se aos 22 indivíduos que peticionaram ao governo provincial pela conservação e pela abertura da antiga estrada. Figuravam entre eles os mesmos negociantes que mantinham suas casas de negócio no porto do Saco, entre os quais Breves e Silva. Questionado em suas ações em 26 de março de 1838, o legislativo justificara ao governo provincial por que havia inutilizado o “perigoso caminho do Conguinho”:
Não foi ilustríssimo Senhor, o interesse particular de dois cidadãos quem levou a Câmara a mandar inutilizar essa chamada estrada {do Conguinho} {...} como aventa e alusivamente afirmam os vinte e dois representantes da representação que a V. Exa. endereçaram {...} servia ela apenas para dar trânsito aos malfeitores que por escaparem as vistas das autoridades da Vila a preferiam. {...} E, não foram poucas as vezes em que por elas se viram passar em alto dia, em menoscabo das leis, e acinte as autoridades da Vila, inúmeros desgraçados africanos vítimas da mais danada e feroz ambição daqueles que atropelando as leis da natureza e da sociedade traficam carnes humanas. Foi em consequência desse escândalo e tendo em vista tirar aos perversos traficantes uma vereda que só eles serviam para conduzirem a saída das praias para o Saco, empório de um tão infame comércio desses infelizes, que dali, são distribuídos em porções para diversos lugares de serra acima, aonde jazem sacrificados a viverem em perpétuos cativeiros que envergonham a nação brasileira. {...} Note, Exa., que só o Saco, esse grande empório do comércio de carnes humanas, {...} é que apareceu pregão de vinte e dois assinantes a reclamar a conservação de uma estrada que a não ser para o exposto fim de dar por ela entrada a tão infame comercio, de nada mais serve, porque jamais alguém se lembraria de deixar uma estrada policiada e povoada como a que existe para se meter a uma vereda, sem um fim sinistro. Isto vislumbra aos olhos do menor atilado e do maior idiota. {...} A capa do bem público com que se acobertam é cediça para cobrir gente que já não engana a quem o conhece, e nem a esta Câmara deslustra a maneira porque é atacada nessa miserável representação em que adverte se lhe opõe o desejo de favorecer a dois testeiros do dito caminho, porque ninguém há que o conheça, que não veja que com essa deliberação por ela tomada, nada lucraram a não ser o virem livres das vistas de traficantes infames.12 12 FMP. Atas da Câmara Livro 5, folhas 191, 192 e 193. (Grifos meus).
A justificativa da Câmara é bastante elucidativa do que havia se tornado o porto do Saco no fim da década de 1830: “um empório da carne humana”. Para sua lógica de funcionamento, a estreita e abandonada estrada do Conguinho assumira um papel de destaque: era o caminho por onde passavam os recém-desembarcados rumo aos barracões do Saco, de onde partiam em direção às grandes fazendas do vale. Aliás, nas palavras da Câmara, esta era a única função daquele caminho: atender logisticamente ao infame comércio. O ofício destacava ainda que apenas os negociantes estabelecidos no Saco contestaram a interdição, reatualizando as disputas políticas locais.
No mesmo ano, no âmbito da grande política imperial, os ventos mudavam. Com a saída de Feijó, em setembro de 1837, e a assunção de Araújo Lima, os regressistas iniciavam o processo que transformaria a lei de 7 de novembro de 1831 em letra morta por mais de uma década. Bernardo Pereira de Vasconcelos, que acumulava as pastas da Justiça e do Império, revogara a regulamentação de Montezuma em relação ao controle dos juizados de paz; Joaquim José Rodrigues Torres, deputado geral pelo Rio de Janeiro, afirmara que a esquadra imperial, no contexto das diversas rebeliões regenciais, não deveria perder tempo com os contrabandistas; e Honório Hermeto Carneiro Leão, sucessor de Paulino José Soares de Souza na presidência da província, elogiava a perseguição dos abolicionistas norte- americanos (Parron, 2011PARRON, Tâmis. A política da escravidão no império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011., p. 108).
Justamente nesse contexto pró-escravidão, partidário da continuidade do tráfico, o governo provincial, presidido por Paulino, lançou uma portaria de 23 de abril de 1839, segundo a qual “manda destapar e entregar ao público a Estrada Geral que conduz do Rio de Janeiro a cidade de Angra dos Reis, Caminho do Conguinho, o qual se acha atualmente trancado no lugar das Cruz das Almas pelos moradores respectivos”.13 13 FMP. Atas da Câmara. Livro 11, folha 109.
Na prática, oficialmente, estava reaberto o tráfico no Saco de Mangaratiba. Em poucos anos, aquele porto seria transformado em um dos principais pontos de cabotagem do Vale do Paraíba. Em Seção Ordinária de 17 de junho de 1846, a Câmara reafirmara sua importância para a economia do café:
O Porto do Saco por onde exporta sabido número de arrobas de café, e pelo qual tem de fazer-se o embarque e desembarque de todos os gêneros necessários para a povoação do mesmo nome {...} em consequência de ser este um dos portos mais próximos e cômodo para o interior em razão de que a Serra é de sobremodo diminuta, sendo consequentemente um daqueles pontos que transporta maior quantidade de café.14 14 FMP. Atas da Câmara. Livro 15, p. não identificada.
O não dito era que o porto atendia igualmente ao desembarque de africanos. Entretanto, o silêncio produzido fora tacitamente estabelecido entre as autoridades dos municípios interioranos e o governo provincial. Na primeira esfera, a garantia da cumplicidade se refazia no momento em que traficantes e demais indivíduos, intimamente vinculados à empreitada negreira, mantinham no governo local seus legítimos representantes.15 15 O controle de Breves sobre os cargos políticos de Mangaratiba é digno de nota. Seu filho, José Frazão de Souza Breves, fora vereador entre 1856-1860; seu sobrinho, João José dos Santos Breves, ocupou o mesmo cargo entre 1845- 1848 e 1854-1856, além de ser capitão-mor da Guarda Nacional entre 1848-49; outro sobrinho, Antônio Joaquim de Souza Breves, foi igualmente vereador entre 1858-1860 e 1865-1867; Miguel Antônio da Silva, seu sócio, exerceu nada menos que a presidência da Câmara por uma década, entre 1842-1852. O próprio Breves, em 4 de outubro de 1841, foi nomeado Comandante Superior dos municípios de Mangaratiba, Angra dos Reis, Paraty e São João do Príncipe, assim como representou Mangaratiba na coroação e na sagração do imperador, em 18 de julho de 1841. CRL. Almanack Laemert (1844-1889) e FMP. Atas da Câmara de Mangaratiba. Assim, embora o pacto pró-tráfico não fosse rompido ou profundamente questionado no nível dos embates locais na década de 1840, as disputas em torno de seu domínio e direção, do lado de cá do Atlântico, não estavam pacificadas.
No sábado, 6 de junho de 1840, o Diário do Rio de Janeiro publicara uma representação de cidadãos de Mangaratiba em vista das “preterições de lei e violências que naquele município se tem cometido”. Os subscritores da representação eram membros da Câmara municipal que, despojados de seus empregos e fugidos à perseguição de um feroz partido, reivindicavam o restabelecimento da ordem interrompida após a apreensão de um navio negreiro no Saco de Mangaratiba. Nos termos da representação:
Joaquim Jose de Souza Breves, Miguel Antônio da Silva e Luiz Fernandes Monteiro, se constituíram chefes desse partido, para que os empregos e lugares do município recaíssem nas pessoas dos conjurados seus sócios Victor Roberto, {...} Fortunato Marques de Souza, {...} e outros; mas não podendo mover a urna, se não para suplentes, recorrerão ao meio da criação de um novo distrito, desmembrando o Saco, que ficou sendo o 3º distrito, por já haver 2º em Itacuruça, para cujo esforço contribuiria a apreensão de um patacho negreiro, a favor do qual se empenharam fortemente com os dois chefes do partido, os negociantes e sócios Joaquim Jose de Souza Breves e Miguel Antônio da Silva. (Grifos meus).
{...} Esse amotinado partido, tendo conseguido a divisão do distrito e empossado no juizado de paz onde havia a maior força dos conjurados, e o local mais oportuno ao seu comercio.16 16 BN. Diário do Rio de Janeiro, 6 de junho de 1840. Agradeço a Araújo pela referência e pela cópia digital desse e de outros documentos.
Como analisou recentemente Caetano Pereira de Araújo, a apreensão do Patacho negreiro no Saco motivou a escalada ao poder de Breves e de seus sócios no controle político municipal. Após perderem os cargos locais, elegendo apenas seus suplentes, eles recorreram à criação de um novo distrito, o Saco de Mangaratiba, que três anos antes fora denunciado pela própria Câmara como “empório da carne humana”. O próximo passo foi, numa freguesia intimamente ligada ao tráfico, eleger um juiz de paz que garantisse os negócios de seus eleitores. Vencida a matéria, o novo juiz acolhera a denúncia contra os subscritores da representação que foram pronunciados e substituídos por seus suplentes, alinhados ao grupo coeso em torno do controle do tráfico naquela praia (2016, p. 27-28). A escalada no controle diretivo do judiciário municipal veio a cavalo. Segundo os subscritores,
injusta e nulamente pronunciados os abaixo assinados, logo que aquele partido se apossou da câmara e tem cometido as maiores atrocidades, apoiando as violências que perturbam a tranquilidade pública, e administração da justiça no município, nomeando para juiz municipal Fortunato Marques de Souza, casado com a sobrinha do chefe Luiz Fernandes Monteiro, depois de {...} conseguirem deste governo cassar o diploma de legítimo juiz municipal de Manuel Pimenta de Sampaio.
Aquele Marques de Souza em desempenho do partido entrou com força armada no 2º distrito, desposou o juiz de paz, José Joaquim Bitencourt, empossando de {modo} próprio o criminoso Antônio Joaquim Coelho, e atacando casas, quebrando vidraças, e dando tiros sobre o juiz de paz (Idem).
Não bastavam, porém, a criação de um distrito negreiro, a eleição de um juiz de paz favorável aos negócios traficantes e a deposição de seus opositores da Câmara municipal.
Eles foram além. Com total apoio da presidência da província, controlada pelos Políticos do Regresso, obtiveram a nomeação de um juiz municipal dos seus, Fortunato Marques de Souza. O novo juiz, com o uso da força, depusera o juiz de paz de Itacuruçá, José Joaquim Bitencourt, consolidando o domínio do grupo de Breves e Miguel Antônio no judiciário local. Segundo Araújo, o controle absoluto estabelecido no Saco era condição necessária para alavancar o poder no município como um todo (2016ARAÚJO, Caetano. Liberal e escravista: Joaquim Breves e a Revolução Constitucionalista de 1842 em São Paulo e Minas Gerais. Trabalho apresentado aoPPGHIS como requisito para conclusão de estágio de pós- doutoramento. Rio de Janeiro: UFRJ, 2016., p. 128). Mas por que eles miravam, em especial, o controle do judiciário?
A determinação de não cumprimento da lei de 1831 era política de Estado, orientada pelo governo central e provincial, como exemplificamos com a abertura da estrada do Conguinho. Nessa construção, o controle do judiciário municipal, nos âmbitos eletivo e togado, era fundamental para que o pacto de corrupção da lei fosse alinhavado em todos os poderes. No nível do legislativo, sobraram propostas em defesa da revogação da lei de 1831. Na sessão de 21 de março de 1840 da Assembleia Provincial fluminense, João Manuel Pereira da Silva - “defensor dos negreiros”, segundo Alcoforado -, José Breves -, irmão mais velho de Joaquim - e seu parente Lucas Antônio Monteiro de Barros - filho do Visconde de Congonhas do Campo - apresentaram um projeto a fim de revogar a lei de 7 de novembro 1831 (Pessoa, 2010FRAGOSO, João. Comerciantes, fazendeiros e formas de acumulação em uma economia escravista-colonial: Rio de Janeiro, 1870-1888. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1990., p. 89-98). Derrotada no mérito, uma vez que a matéria extrapolava as atribuições do legislativo provincial, restava à classe senhorial costurar o compromisso em torno do silenciamento e da corrupção da lei com as autoridades de repressão (Chalhoub, 2012CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 71-140). Assim, fazer-se representar no judiciário de municípios e freguesias litorâneas, controlando sempre que possível os cargos de delegados e subdelegados daqueles espaços, era condição necessária para garantir o sucesso da finalização do empreendimento traficante executado em muitas ilhas e praias do litoral brasileiro.
No auge da ilegalidade, somente as praias que tocavam o continente em Mangaratiba não eram suficientes para a logística do tráfico. Na quarentena e no processo de construção social dos cativos em solo brasileiro, outros espaços entraram nos caminhos da ilegalidade. Em 17 de abril de 1847, Breves adquiria de Guedes & Irmão a ampla restinga da Marambaia, faixa de terra integradora da baía de Sepetiba à imensidão do Atlântico. Com sua extremidade ocidental em frente ao Saco de Mangaratiba, a posse da Marambaia, além de ampliar o espaço de atuação de Breves e de seus sócios, garantia que os novos desembarques fossem acolhidos em propriedades que conciliavam a pequena produção agrícola com a estrutura de recepção dos novos africanos reduzidos ilegalmente à escravidão.
O envolvimento da Marambaia no comércio negreiro era de conhecimento público dos moradores de Mangaratiba e das autoridades do Império, assim como hoje também o é dos estudiosos do assunto (Mamigonian, 2002MAMIGONIAN, Beatriz. To be a Liberated African in Brazil: Labour and Citizenship in the Nineteenth Century. Ontario: University of Waterloo, 2002.; Yabeta, 2009YABETA, Daniela. A capital marítima do comendador: a Auditoria Geral da Marinha no julgamento sobre a liberdade dos africanos apreendidos na Marambaia (1851) Dissertação ( Mestrado em História ), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2009.). Por meio da compilação dos dados da repressão, podemos afirmar que, ao menos desde 1837, a Marambaia estava na rota do comércio negreiro. Naquele ano, lá arribou o Brigue Leão, procedente de Quelimane, com 855 africanos, dos quais 572 desembarcaram na restinga.17 17 Cf. <www.slavevoyages.org>. Voyage 1586. Acessado em: 16 dez. 2016. Depois dele, foram registrados mais três desembarques em 1839, nenhum em toda a década de 1840 e mais quatro entre 1850-1851 (Pessoa, 2013Regina. O império da escravidão: o complexo Breves no Vale do café (Rio de Janeiro, c.1850-c.1888). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2018., p.54). A incidência no fim dos anos de 1830, a ausência de registro nos anos 1840 e as quatro apreensões nos poucos meses que separam a aprovação da nova lei - em 4 setembro de 1850 - e o início de 1851 demonstram que o escandaloso silêncio costurado pelos conservadores após o Regresso cobriu com manto de escárnio e hipocrisia os desembarques ocorridos durante a década de 1840, além de apontar que, por pelo menos quinze anos, a Marambaia serviu como local privilegiado para a finalização do empreendimento traficante.
Apenas os registros estrangeiros rompem o silêncio produzido “de indústria” pelo Estado brasileiro (Mamigonian, 2011MAMIGONIAN, Beatriz . O Es t a do nacional e a instabilida de da propriedade escrava: a lei de 1831 e a matrícula dos escravos de 1872. Almanack(Guarulhos), n. 2, p. 20-37, 2. sem. 2011., p. 20-37). Em 22 de setembro de 1847, o Ministério da Marinha e das Colônias Francesas, por intermédio de seu comissariado, interrogou o espanhol Juan de Dios Alamilla, de 38 anos. Alamilla era capitão a longo prazo, designação dada a indivíduos capazes de conduzir embarcações para “países longínquos aonde só pode guiar um navio o capitão que possuir conhecimentos especiais”. A serviço do Brasil, comandava o brigue Fluminense, que saiu do Rio de Janeiro em 12 de julho de 1846 com dezessete homens, tendo como destino oficial o porto de Angra dos Reis, ou seja, a priori, tratava-se de uma embarcação de cabotagem. No entanto, em 28 de agosto, a embarcação estava nas águas de Makanda, a apenas dez léguas da costa africana. Segundo informou o capitão ao comissariado francês, a “real intensão era a costa da África, onde eu ia apreender colonos negros, que foram comprados e expedidos legalmente”.18 18 Arquivo Histórico do Itamarati (AHI). Presas França-Brasil. Brigue Fluminense. Lata 66, maço 3. O processo de apreensão do brigue foi produzido pelas autoridades francesas no Atlântico. Para compreendê-lo, contei com a excelência da tradução realizada por Lúcia Amélia Castelo Branco Siqueira, a quem agradeço.
A apreensão se deu após Alamilla se afastar da região de Makanda, na manhã daquele 28 de agosto, ao avistar um brigue de dois mastros que pensara se tratar de uma embarcação inglesa. Ao cair da tarde, o encontro foi inevitável. Ao perceber ser o navio francês, declinou da fuga. Passada a vistoria, mesmo diante do protesto do capitão, que acreditara que “os ingleses somente se opuseram ao gênero do comércio” ao qual se dedicava, o comissariado francês declarou a prisão da tripulação por incoerências e irregularidade nos “papéis” do brigue, encaminhando todos à presença do almirantado francês no atual Gabão.
A bordo do navio captor Léger, Taffard de Saint-Germain, lotado na subdivisão do Congo, relatou minuciosamente ao seu almirante - subsecretário de Estado da Marinha das Colônias - o Fluminense em fuga, sua aproximação, entre 4h30 e 5h20 da tarde do dia 28, e o encontro, às 6h30. Os pormenores impressionam tanto quanto o desprendimento de Alamilla, que, após ser questionado sobre o que motivara sua presença na costa da África com uma embarcação expedida para um porto do Brasil, respondera ingenuamente que ele ia capturar um carregamento de escravos ilongo.
O brigue registrado nos negócios da cabotagem era na verdade um navio negreiro. A favor do tumbeiro falavam os “32 tonéis de água e uma grande quantidade de farinha de mandioca e carne- seca”. Havia ainda “uma enorme caldeira em torno de um terço de metro cúbico, utensílios” e, muito curiosamente, “cerca de 60 blocos (tijolos) quadrados, devendo servir provavelmente para fazer uma casa” ou um barracão a fim de viabilizar o embarque naquela costa.
A apreensão realizada pelos franceses, no entanto, não se deu por suspeita de tráfico. Eram os tais papéis do navio que justificavam a prisão de Alamilla - na verdade, um fato particular: oficialmente, não era ele o capitão. No primeiro contato com os franceses, alegara ser piloto e comandante do paquete, uma vez que o capitão falecera em alto-mar havia quinze dias. Contudo, a astúcia do comissariado francês revelou a farsa, típica do modus operandi do tráfico:
Estou plenamente convencido que o capitão responsável não insistiu na campanha; seu desaparecimento não tem nada a surpreender. Era necessário no Rio, assim como o prescrito na lista da tripulação, apresentar um capitão brasileiro para que a embarcação pudesse ser expedida, mas, desde que as formalidades são concluídas, aquele permanece em terra e é ordinariamente um capitão espanhol ou português que o substitui como mais experiente, sem dúvida, no gênero da operação que propõe o armador.
O próprio Alamilla confessou, em depoimento formal ao comissariado, que nunca houve outro capitão e que era ele próprio o responsável pela embarcação. Quando indagado sobre o nome que constava no passaporte da embarcação, respondeu: “Ele vendeu seu navio no Rio, onde permaneceu. Eu comprei este navio com duas outras pessoas que pude conhecer.”
Bress Gerant, responsável pelo depoimento, julgara que em pouco tempo conheceria os nomes dos outros dois interessados no empreendimento do brigue de cabotagem nos negócios do tráfico. A resposta estaria nos documentos apreendidos, entre os quais o manifesto de carga do navio e o certificado de matrícula expedido no Rio de Janeiro. Ao analisá-los, Gerant concluiu: “O nome desta embarcação não está escrito na parte traseira, mas nós entendemos pelos homens da tripulação e pelos diferentes papéis que eu nomeio o navio de carga Fluminense, pertencente ao Sr. Antônio Dias Pavão e ao Sr. José dos Santos Breves”.
O certificado de matrícula expedido em novembro de 1841 não deixa dúvidas: os proprietários do patacho nacional Fluminense, de 107 toneladas, eram o tal Pavão e João José dos Santos Breves, “este residente em Mangaratiba e aquele em Itaguaí, sendo mestre Antonio Francisco Aleixo dos Santos”. João José era sobrinho de Joaquim, filho de um de seus irmãos, já falecido àquela altura. Era também sócio-proprietário das firmas João José dos Santos Breves & C. (1838-55), Breves & Irmão C. (1846-53) e Santos Breves & C. (1855), que atuavam no Saco de Mangaratiba de 1838 a 1855, ou seja, nos anos em que um transformado num empório da carne humana.
No interrogatório, o capitão Alamilla assumira a propriedade do Fluminense, assim como dissera ser o único armador da expedição. No entanto, os outros dois marinheiros interrogados, o português Francisco Freire Borges e o espanhol Fernando Hernandes, atribuem a armação a um dom Thomaz, brasileiro.19 19 Dom Thomaz talvez fosse o “célebre” Thomaz da Costa Ramos {vulgo Maneta}. Segundo Alcoforado, Maneta fora o primeiro traficante a empregar vapores para conduzir africanos para o Brasil. A dubiedade dessas informações são, obviamente, produtos da ilegalidade, que ocultava toda a rede de interesses e agentes envolvidos nessas transações. A verdade é, que no dia 7 de março de 1846, meses antes da apreensão, o tal patacho de Pavão e João José era despachado de Mangaratiba com vários gêneros.20 20 BN. Jornal do Commercio, 9 de março de 1846.
Há muito a descobrir nas viagens do Fluminense para o entendimento do tráfico negreiro na clandestinidade. Entretanto, somente o fato de haver um brigue de cabotagem - mantido por negociantes e fazendeiros de Mangaratiba e do vale que, por conseguinte, estavam atrelados ao empório do Saco de Mangaratiba, com sua intensa atividade no trato negreiro até o início da década de 1850 - parece revelador de uma nova dinâmica desse tipo de comércio. Nas franjas do complexo cafeeiro, negociantes e fazendeiros não atuavam apenas na finalização do empreendimento traficante. Nos anos de 1840, mandavam seus próprios navios à costa da África em ilícitas transações.
Além de enviarem navios, os fazendeiros do café também mantinham seus prepostos naquela costa - gente como João Henrique Ulrich, enviado à outra margem do Atlântico, segundo Alcoforado, “com grande negociação” pelos irmãos Breves e seu sogro, ninguém menos que o Barão de Piraí, José Gonçalves de Moraes, um dos maiores senhores de escravos do Império em meados do século. Ulrich, apesar de se tornar comendador e receber o foro de fidalgo da Casa Real em Portugal em 1866, tinha um passado nada glorioso. Traçando sua biografia, a coluna “Biographo Moderno”, do jornal O Grito Nacional, não poupara o futuro fidalgo:
Afinal o galego saiu da fazenda do Coronel Pereira e foi para a do Coronel Joaquim Breves, sem que em casa deste tivesse outro emprego, além de ser seu primeiro moço de recados, e acompanhá-lo em suas viagens, e sem ordenado algum, senão pela comida {...} Saindo da casa do Coronel Joaquim Breves foi a Ambriz, na Costa da África, numa especulação ilícita como fosse a de arranjar africanos por conta de alguns, devendo ter interesse relativo à boa especulação. Assim foi a vida do abjeto galego J. H. Ulrich, ora adulando a uns, ora imposturando a outros, traficando sempre com seus dignos malungos, em africanos novos; até que se apresentou na Capital do Império como negociante de grosso trato, e até sendo uma entidade política, como válido do nosso anjo da paz, o valente general que tem derrotado exércitos com a espada na bainha e a mão no Tesouro Nacional, felicitando àqueles que deixaram o umbigo no inferno.21 21 BN. O Grito Nacional, 13 de outubro de 1851.
No fim de 1840, o governador-geral de Angola, ciente de que navios mercantes estrangeiros fugiam da alfândega de Luanda e desembarcavam suas fazendas em Ambriz, enviava àquela região o brigue Tejo, para que “os americanos ali estabelecidos, e mesmo os ingleses que continuamente ali andam cruzando, lhes constasse de que Portugal não renunciava o direito que tinha naquele terreno, não obstante não ter ali força nenhuma”. A expedição que buscava afirmar o frágil e quase inexistente domínio português em praias cada vez mais relevantes para o comércio negreiro (Wissenbach, 2015WISSENBACH, Maria Cristina C. Dinâmicas históricas de um porto centro-africano: Ambriz e o baixo Congo nos finais do tráfico atlântico de escravos (1840-1870). Revista de História (São Paulo), n. 172, p. 163-195, jan.-jun. 2015., 163-195) esbarrava na resistência daqueles estrangeiros que alegavam respeitar somente a soberania do “rei dos gentios”. A despeito das tensões, chama a atenção o exame procedido pelo comandante do Tejo e seus auxiliares nas oito barracas armadas para o tráfico no litoral de Ambriz, em 6 de novembro de 1840. Entre elas, encontravam-se “três faturas pertencentes a Luiz Antônio de Carvalho e Castro, João Henrique Ulrich e João Francisco Gonçalves, {que} conferem, e tem {...} para pagar direitos = 12 sacos de arroz = 150 barris de pólvora da 20 $, total 3:000$”. Entre as barracas avaliadas, havia ainda a inscrição JH, possivelmente abreviação de João Henrique, na qual se marcava a propriedade de 56 pares de sapatos, 20 peças de brim de 30 jardas e 3 barricas com farinha de trigo.22 22 Arquivo Histórico Ultramarino. Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar. Angola, 1841, caixas 593 e 594. De fato, como dissera Alcoforado e denunciava O Grito Nacional, no início da década de 1840, Ulrich estava fazendo fortuna no comércio de escravos na costa de Ambriz, mas certamente não estava só.
A intimidade entre Ulrich, a família Breves e os grandes senhores do vale do café é digna de nota. Entre os devedores registrados no inventário do riquíssimo Barão de Piraí, cunhado e ao mesmo tempo sogro dos irmãos Breves, aparecia a firma João Henrique Ulrich e Cia. Ao espólio, devia uma pequena fortuna, que girava em pouco mais de 29 contos de réis. Nas dívidas ativas arroladas naquelas contas, só ficava atrás de Joaquim José Gonçalves de Moraes, filho do barão, e de Lucas Antônio Monteiro de Barros, seu genro. Provavelmente a proximidade com os Moraes-Breves o tenha credenciado a empréstimos de tal monta, sobretudo se o destino do dinheiro fosse empregado para trazer mais africanos às suas imensas fazendas.
Os negócios do tráfico, porém, eram conjugados à cabotagem do café. Segundo o Jornal do Commercio, a partir de dezembro de 1847, diversos navios partiam de Mangaratiba para a Corte com carga de café destinada a Ulrich, que mantinha seu escritório na rua São Bento, n. 7. No início de 1849, o recém-construído brigue Maria Izabel, de propriedade de Breves, seguia com café a Ulrich, que nas décadas seguintes ampliou sua operação, recebendo consignações também de Itaguaí e Santos. Em 1853, já era diretor suplente do Banco do Brasil, comendador da Ordem de N. S. da Conceição de Vila de Viçosa e Cavaleiro da Ordem Rosa. Na Corte, permaneceu até 1864, quando partiu de vez com a esposa para Portugal, levando consigo imensa fortuna. Dois anos depois de chegar a Lisboa, comprou o título de Fidalgo Cavalheiro da Casa Real.23 23 Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Alvará Foro de Fidalgo Cavaleiro da Casa Real. Registro geral de Mercês de D. Luís I, livro 13, folha 199v.
Certamente as redes dos fazendeiros do complexo cafeeiro na África iam muito além do galego Ulrich. No entanto, para compreendermos parte dessa estruturação, foi fundamental a quebra do pacto de silêncio em torno do ilícito trato, como fez o “Biographo Moderno”, às turras com Ulrich em meados dos Oitocentos. De maneira semelhante agiu o comissariado francês no Atlântico, que nenhum compromisso mantinha com o silêncio à brasileira. Em relação às autoridades do Império, o tácito acordo só foi parcialmente desfeito após a lei de 4 de setembro de 1850. Dizemos parcialmente porque, a partir de então, não existiria mais a cumplicidade do governo central com as novas tentativas de desembarque, embora nada fosse feito quanto à corrupção da lei anterior, de 7 de novembro de 1831.
Assim, por exemplo, atendendo à denúncia das autoridades inglesas, nos dois primeiros dias de fevereiro de 1851, a força de permanentes da Corte, acompanhada dos imperiais marinheiros e do vapor de guerra Golfinho, desembarcou na Marambaia em busca dos africanos recém-chegados.24 24 Para uma análise minuciosa sobre a apreensão realizada por Azambuja, ver Yabeta, 2009, p. 19-47. Não foi preciso muito tempo para encontrá-los. Depois de inspecionados, 199 deles foram considerados boçais e encaminhados à Casa de Correção da Corte. A apreensão comandada pela chefatura de polícia na pessoa de Bernardo Nascentes Azambuja e o desenvolvimento do processo instaurado na Auditoria Geral da Marinha apresentam imensa riqueza de detalhes, especialmente importantes para a caracterização da Marambaia como espaço destinado à recepção de negros novos.
As testemunhas no processo instaurado pelo auditor José Baptista Lisboa são as protagonistas na caracterização daquele espaço. O relato de João José de Farias, alferes do Corpo de Permanentes da Corte que acompanhou a diligência à fazenda da Armação, parece revelador. Segundo informou, lá chegando foram cercando as senzalas e casas, e revistando-as logo a ver se continham alguns africanos, apreenderam em duas casas, que lhes disse uma rapariga da fazenda serem enfermarias, uns poucos de negros, que não sabiam falar o português, e conduzindo-os a casa do acusado que fica em frente à praia da Armação, ali encontrou já o tenente Hermenegildo com parte da força a qual encarregou de ficar guardando e vigiando a esta casa, não permitindo a saída de pessoa alguma até que chegasse o chefe de polícia, achando-se presente na dita casa o réu, o Doutor Martins e mais dois indivíduos que não conhecia.25 25 AN. Recurso criminal (1851). Fundo: Relação do Rio de Janeiro, n. 1.744, maço 184, galeria C.
Os dois desconhecidos eram, na verdade, os negociantes das casas comissárias de Mangaratiba, João José dos Santos Breves e Antônio Lourenço Torres, ambos parentes do comendador - João, seu sobrinho, proprietário do Fluminense, apreendido a cerca de 50 quilômetros da costa da África, em 28 de agosto de 1846. O relato do alferes deixara entrever a existência de um barracão-enfermaria destinado aos recém-chegados, sendo emblemática a presença do médico, doutor Martins, justamente no contexto do desembarque. Breves, em correspondência publicada no Jornal do Commercio de 14 de fevereiro de 1851, refere-se ao local como “enfermaria dos escravos bobentos que estavam em uso de remédio (em número de 19) (...) {e} outra de doentes de diferentes moléstias”.26 26 BN. Jornal do Commercio, 14 de fevereiro de 1851. Possivelmente, esses eram os espaços destinados à quarentena e à recuperação dos recém-chegados da grande viagem, entre os quais aqueles “doentes dos olhos”, que se encontravam no sítio do Sertão Alegre, nas paragens onde a diligência de Azambuja fez a apreensão da maior parte dos africanos novos.27 27 Possivelmente, a “doenças dos olhos”, relatada pelo administrador da Marambaia, correspondia à oftalmia, “uma das mais temidas no tráfico de escravos, pois causava cegueira total ou parcial e podia alastrar-se por toda a carga do navio negreiro” (Moura, 2004, p. 137). Lá, a estrutura dos barracões e os agentes do tráfico em ação ficaram expostos às armas e à pena da chefatura de polícia:
Os africanos boçais assim desembarcados foram passados para uma casa e sítio próximos também em pouca distância da praia de fora, e logo em seguimento entranhados nas matas em companhia de pessoas brancas, das quais uma deixou cair um relógio; que entre elas havia gente do mar, segundo indicam os sacos com roupas achados na referida mata, e que por um momento procuraram resistir de longe dando alguns tiros.28 28 AN. Recurso criminal (1851). Fundo: Relação do Rio de Janeiro, n. 1.744, maço 184, galeria C.
Esses homens brancos que levavam os africanos ao sítio Serra D’Água compunham parte da estrutura de recepção. Eram eles que operavam o desembarque nas diversas canoas vistas na Armação, assim como conduziam os escravizados aos barracões e às enfermarias antes de seguirem para o vale. Segundo Joaquim Antônio Silva, morador de Itacuruçá interrogado em 10 de fevereiro de 1851, seus colegas pescadores João Pedro da Silva e Francisco Correa, em fins de janeiro, “viram, primeiro, três grandes canoas com africanos passarem para o lado da fazenda da Marambaia, e que ao amanhecer do dia 28 do referido mês também viu no porto da Fazenda da Armação 12 ou 14 canoas, e que supunha terem conduzidos africanos”.
Parece patente que barracões, enfermarias e canoeiros eram todos partes de uma mesma engrenagem que fazia funcionar a finalização do comércio de africanos na costa da Marambaia. Fechava essa cadeia logística a figura do prático, responsável pela segurança do desembarque. Em outro episódio, em 29 de fevereiro de 1853, a Polícia da Corte comunicava ao Ministério dos Negócios da Justiça que acabara de receber a cópia de uma carta supostamente escrita
por Breves aos seus agentes no litoral. O conteúdo da missiva tratava de dar instruções aos agentes de recepção, a fim de bem finalizarem o empreendimento traficante com a máxima segurança possível:
Sr. João Ferreira P. de Miranda - Escreve ao Machado que esteja alerta, e com toda a vigilância para que avistando o nosso brigue ou então um palhabote com a alcaicha toda encarnada com uma cruz branca que ocupa todo o meio da bandeira de uma extremidade a outra, na popa um escalar todo pintado de preto, e por dentro de amarelo, logo que avistar, vá a bordo, procure avistá-lo, lá bem longe, digo, bem a largo, para o que deve ir na canoa meia voga que é muito segura e boa, e falando com o capitão quer do brigue, quer do palhabote, o leve para o ponto que o Machado muito bem sabe, pois se por acaso ou descuido ele chegar ao ponto onde se tinha ajustado, faça, digo, então faça-se o que o {...} der em todo o caso que não haja comprometimento; caso se efetue isso com felicidade e segredo, mande logo levar a carga que qualquer dos dois trouxer para o rancho já feito na lagoa velha que lá estão seguros, e muito seguros, se eles lá chegarem estão seguros, e as mais informações o Vieira já lá as deve ter e por mar se deve guiar.29 29 Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj). Fundo: Presidência da Província. Notação 0028 (Grifos meus).
O documento trazia ainda um desenho da bandeira com a dita cruz branca mencionada como referência ao reconhecimento do tumbeiro. A riqueza da descrição visava reduzir os riscos do desembarque em praia alheia, situação que poderia causar perdas totais ou parciais da “carga” transportada, tanto pela ameaça da apreensão quanto pela possibilidade de roubo dos africanos, comum na ilegalidade (Carvalho, 2012CARVALHO, Marcus de. O desembarque nas praias: o funcionamento do tráfico de escravos depois de 1831. Revista de História (São Paulo), n. 167, p. 223-260, jul./dez. 2012., p. 223-260). Ao prático, a quem aparentemente a correspondência se destinava, era importante mantê-lo informado de todas as características do negreiro, para que, ao avistá-lo, conduzisse a embarcação ao destino esperado. Qualquer dúvida, era preciso recorrer ao dito Vieira, ninguém menos que Manoel Vieira de Aguiar, subdelegado de Nossa Senhora de Itacuruçá, freguesia de Mangaratiba, à qual a Marambaia estava subordinada.
Senhores como Breves mantiveram a hegemonia nos negócios e na política do litoral ao vale cafeeiro integrando redes de negócio e poder da serra ao mar e personificando o pacto constituído em torno da expansão da economia imperial por meio da reabertura do tráfico e sua exploração para além de seu limite institucional. Assim, as relações tecidas por Breves, e seu espraiamento pelos postos de autoridade local, sustentariam no litoral os empreendimentos traficantes, inclusive a despeito da segunda lei antitráfico e da repressão capitaneada a partir de então pela Marinha, auxiliada em terra pelas autoridades policiais. Exatamente nesse contexto, o Ministério dos Negócios da Justiça era alertado sobre essa rede de relações políticas que continuavam possibilitando o empreendimento traficante:
Exmo. Sr. para a Marambaia, reconhecidamente os encarregados do cruzeiro que não descuidem daquele porto, pois seu proprietário {Joaquim Breves} diz com a maior audácia que há de dar desembarques a quantos barcos negreiros ali chegarem; que nada teme, porque tem dinheiro, força física para resistir ao governo, e, além disso, conta com a aquiescência de seus correligionários, o delegado de polícia, e administrador da Mesa de Renda; assim como dispõe também da vontade do estúpido e energúmeno Manoel Vieira de Aguiar, o qual por milagre do especulador Francisco José Cardoso pode obter do Exmo. Sr. Faro a nomeação de subdelegado da malfadada freguesia de Itacuruça, a cujo distrito pertence a ilha da Marambaia, e como tal rachando 2.000$000 por cada barco que nela desova. (Extraído de uma denúncia anônima apresentada ao Sr. Ministro da Justiça a data de 29 de Dezembro de 1851).30 30 BN. Seção de Manuscritos. I 48, 17, 34. {Grifos meus}.
O tal Vieira das instruções ao prático aqui é apresentado com nome e sobrenome: Manoel Vieira de Aguiar, o subdelegado colocado no poder pelo grupo capitaneado por Breves após a invasão da “malfadada freguesia de Itacuruçá”. É digno de nota que o subdelegado tenha sido nomeado pelo “senhor Faro”. João Pereira Darigue Faro, futuro visconde de Rio Bonito, antes de vice-presidente de província, era um grande fazendeiro do Vale do Paraíba, com seu domínio em Ipiabas, hoje distrito de Barra do Piraí. Interessava aos potentados do vale manter, em um dos pontos mais importantes do comércio ilegal de africanos, indivíduos da estirpe de Aguiar.
Vale fazer justiça a Aguiar, que não era um “energúmeno” qualquer. Nos dados analisados por Gabriel Berute para o tráfico de africanos para o Rio Grande do Sul entre 1790 e 1830, Aguiar era o segundo maior negociante atuante no trato negreiro para aquela província, tendo despachado 282 cativos em navios próprios. Era dono de cinco embarcações que “entravam e saíam do Rio Grande carregadas de carne, couro, sebo, farinha e gênero diversos”. Uma dessas embarcações, o Bom Amigo, foi vendida em 1845 a Porfírio Nunes por 10 contos de réis (2011, p. 12 e 15).
Em setembro de 1844, já em Mangaratiba, Aguiar solicitara abertura do inventário de sua falecida esposa, Anna Joaquina da Conceição. Entre os bens listados, além de 35 contos em bens de raiz e 20 apólices das companhias seguradoras Phenix e Nova Permanente, destacavam-se o Bom Amigo, de 165 toneladas e com seus 8 “marinheiros”, tudo avaliado em 8 contos e meio, e “duas terças partes” do Leão, de 160 toneladas, com 2 tripulantes, saindo por cerca de 7 contos de réis. A descrição das embarcações foi bastante sucinta, mas chamam a atenção as “duas correntes em bom estado” do patacho e os “três ferros e duas correntes regulares” do brigue, embora seus usos possam não estar relacionados às atividades do tráfico. A despeito disso, outro detalhe parece ser mais significativo na apropriação dessas embarcações nos negócios negreiros: a composição da tripulação. De maneira emblemática, todos os marinheiros eram cativos africanos. No Bom Amigo havia oito homens, quatro tidos por cabindas, dois por angolas, um por mina e o último procedente da costa moçambicana, enquanto no Leão encontramos um monjolo e um angola. A composição construída pelos traficantes procurava garantir a diversidade na procedência da tripulação, que, no revés do estranhamento, permitiria a comunicação com recém-escravizados em diferentes regiões da África.31 31 AN. Fundo: Juízo de Órfãos e Ausentes. Inventário de Ana Joaquina da Conceição, 1844, n. 456, caixa 4016, galeria A.
Conquanto até o momento não tenhamos encontrado nenhuma viagem na ilegalidade do Bom Amigo, o Leão era velho conhecido das autoridades inglesas. Partindo do Rio de Janeiro ainda em 1836, trouxe de Quelimane 855 africanos, dos quais 572 desembarcaram na Marambaia em janeiro de 1837.32 32 Cf. <www.slavevoyages.org>. Voyage 1586. Acessado em: 16 dez. 2016. Um ano depois, em carta de 22 de fevereiro de 1838, Hamilton Hamilton alertava G.A. d’Aguiar Pantoja “‘a respeito de escandalosos desembarques’ envolvendo diferentes tumbeiros em regiões diversas do Rio de Janeiro, destacando o desembarque de 614 africanos do brigue Leão em Campos {e} 319 do paquete Rio Tua na fazenda de Guimarães, na Ilha Grande”.33 33 The National Archives, UK. Foreign Office: Slave Trade Department and Successors, FO 84/222 (apud Verger, 1987, p. 430).
A relação de Aguiar com as ilícitas atividades do tráfico aparece evidente em outros momentos do inventário de 1844. No que toca às dívidas ativas, registrou-se, entre outras, “uma dívida particular de pessoa que não convém nomear, para a qual se responsabiliza” no impressionante valor de 5 contos de réis. Ainda a receber, 3 contos e 200 mil réis de José da Rocha Leão, provavelmente seu sócio no brigue, e José Joaquim Machado, possivelmente “o Machado”, que deveria estar “atento” e “vigilante”, em fevereiro de 1853, para receber o negreiro, dito “nosso brigue”, nas águas de Mangaratiba.
A rede de negócios do subdelegado era vasta e diversa: passava por Pernambuco, Bahia, Rio Grande, chegando mesmo a Montevidéu. A pagar, Aguiar devia 3contos e 800 mil réis a Machado; 300 mil réis a Francisco Pinto da Fonseca, possivelmente integrante da conhecida família de traficantes Pinto da Fonseca (Capela, 2012CAPELA, José. Conde Ferreira & Cia: traficantes de escravos. Porto: Edições Afrontamento, 2012., p. 161-186); e 8 contos e meio a Leite & Guimarães, talvez o Guimarães do Rio Tua, que desembarcou 319 africanos no início de 1838 na Ilha Grande. Assim, tratava-se de Antônio da Cunha Barbosa Guimarães, arrolado nas ilícitas atividades do tráfico por meio de sua ampla fazenda Dois Rios, na parte de fora da ilha, voltada para a imensidão do Atlântico (Pessoa, 2018PESSOA, Thiago Campos. A “delação alcoforado” e o comércio ilegal de africanos: notas de pesquisa. In: OSÓRIO, Helen; XAVIER, Regina. Do tráfico ao pós-abolição: trabalho compulsório e livre e a luta por direitos sociais no Brasil. São Leopoldo: Oikos 2018, p. 165-206., p. 165-206).
Como vemos, o subdelegado da pequena freguesia de Itacuruçá fora escolhido a dedo pelos senhores do vale. Não sabemos exatamente quando transferiu seus negócios do Rio Grande para o litoral de Mangaratiba, mas certamente isso ocorreu no contexto aberto pela lei de 7 de novembro de 1831. Após vida longa, Aguiar faleceu em 14 de dezembro de 1869. Nos 25 anos que separam a morte de sua esposa e a reabertura de seu espólio, o patrimônio metade - cerca de 45% - estava investido em dívidas ativas. O crescimento do monte-mor do capitalista Manoel encontrou correspondente direto na ampliação de sua escravaria que também triplicara, passando de vinte cativos, em 1844, para sessenta, em 1869. O patacho e o brigue foram vendidos, possivelmente no início dos anos de 1850, acompanhando a crise que solapou o litoral fluminense no alvorecer da segunda metade do século.34 34 AN. Juízos municipais diversos. Inventário de Manoel Vieira de Aguiar, 1870, n. 1980, caixa 416, galeria A. Agradeço a Mirian Bondim, pesquisadora chefe da FMP, pela referência desse e de outros documentos sobre as redes traficantes em Mangaratiba.
Nesse sentido, parece significativo que, a partir dos anos 1860, como em outras propriedades litorâneas da região, as benfeitorias e as plantações do espólio de Manoel fossem registradas “em mau estado” ou “em ruínas”. Assim avaliaram “um rancho na praia muito arruinado e coberto de telhas” por 100 mil réis, “um arrozal em muito mau estado {...} com algum milho” por 20 mil, “todas as benfeitorias como laranjeiras, bananeiras e cafezais em muito mau estado e que estão {assim} por falta de trato, visto e avaliado por 100 mil réis”. As propriedades à beira-mar seguiam abandonadas havia anos no fim da década de 1860. Chama a atenção a produção de alimentos e frutas deixadas para trás por alguém que ainda tinha mais de meia centena de cativos para alimentar.
Como analisou Marcus de Carvalho, no contexto da ilegalidade era vital que, próximo às praias de desembarque, existissem pomares e plantações de subsistência capazes de assegurar a recuperação dos recém-chegados (2012, p. 223-260). Seriam os laranjais, as bananeiras, o arrozal, todos largados, partes da estrutura responsável por garantir a quarentena dos africanos na região? Difícil saber. Mas, certamente, até o início da década de 1850, a economia de alimentos no litoral era movimentada pelo tráfico ilegal de africanos, capaz de promover efeitos multiplicadores na economia local.
Por fim, o indício mais incisivo da estrutura traficante integradora do vale ao litoral eram as praias e as ilhas avaliadas no espólio, curiosamente ausentes no inventário de 1844. Nenhuma praia ou ilha fora registrada naquela ocasião. Em 1869, quase duas décadas após o fim do tráfico e treze anos depois da efetivação dos registros paroquiais de terras, além do racho praieiro já citado, Aguiar possuía “uma data de terras”, fronteiriça ao mar com “uma légua de testada”; dezoito ilhas no mar de Mangaratiba; e mais duas maiores em Itaguaí denominadas Madeira e Martins.35 35 As ilhas avaliadas eram as seguintes: Bonita, 200 mil réis; Tambi, 50 mil réis; Itacuruçá, 5 contos de réis; Jaguanum, 3 contos de réis; Jardim, 300 mil réis; Batuque, 30 mil réis; Saco, 20 mil réis; Jurubaíba, 100 mil réis; Bixo Grande, 300 mil réis; Bixo Pequeno, 50 mil réis; Saracura, 400 mil réis; Carapuça, 30 mil réis; Bernarda, 200 mil réis; Vigia Grande, 500 mil réis; Vigia Pequena, 100 mil réis; Palacete, 20 mil réis; Bacya, 20 mil réis; uma ilha na mesma direção da ilha Jardim e Batuque, 30 mil réis. AN. Juízos municipais diversos. Inventário de Manuel Vieira de Aguiar, p. 56-66v. A primeira estava arrendada a setenta famílias, constando mais ou menos “trezentas almas de povoação”, enquanto na ilha Martins existiam apenas cinco fogos com aproximadamente “trinta almas”. Em todas as demais, apenas terra e mar.
no espólio quando já não mais podiam comprometê-lo como cúmplice no tráfico de africanos, crime tipificado nas leis de 1831 e 1850. É bem verdade, no entanto, que foram registradas como demanda da lei de terras de 1850. Assim, provavelmente incorporadas ao seu patrimônio ao longo das décadas de 1830 e 1840, foram ocultadas na avaliação de meados de 1840 por representarem os espaços do crime de reduzir pessoas livres à condição de escravas. Como em outros lugares do tráfico, seguiam abandonadas, sem função após o fim do comércio negreiro. Somente as ilhas da Madeira e Martins rendiam algo para Aguiar, mas ainda assim o arrendamento dessas terras evidencia que lá nada se produzia havia anos.
Nessa história, o mais impressionante era o domínio das praias e das ilhas em Mangaratiba e na baía de Sepetiba. Juntos, Breves e Aguiar integravam as redes traficantes nas décadas de 1830, 1840 e início dos anos 1850, fazendo funcionar a logística do tráfico naquele litoral, em muitos dos lugares que vemos mais claramente no mapa a seguir.
Praias e ilhas nas rotas do tráfico ilegal de africanos em Mangaratiba e na Baía de Sepetiba.
Tendo por referência o mapa 2, do ponto 1 ao 5 deparamos com os espaços de domínio de Breves, que possuía terras e uma chácara no Saco de Mangaratiba (1) registrada nos anos de 1840. Décadas mais tarde, ficou demarcado em seu espólio a propriedade da ampla restinga da Marambaia, com suas três ilhas anexas (2 a 5). Curiosamente, as ilhas de Saracura e do Bernardo (3 e 4), em 1869, pertenciam a Aguiar. Teria Breves adquirido essas faixas de terra do espólio do antigo subdelegado no início de 1870? Diante da crise que solapava o litoral sul da província, acreditamos que não. Provavelmente o fazendeiro e o negociante eram sócios na finalização da empresa traficante e mantinham juntos a posse e posterior propriedade daquelas terras.
Nessa perspectiva, o caso de Aguiar parece revelador. Das suas vinte ilhas, as doze que localizamos revelam o controle exercido no mar da baía de Sepetiba. Assim, o maior cafeicultor do Império e o exímio negociante de escravos rearticularam a finalização do tráfico de africanos em boa parte do litoral sul da antiga província do Rio de Janeiro durante a ilegalidade.
Em síntese, o vínculo entre o comércio litorâneo, sobretudo aquele atrelado direta ou indiretamente à lavoura cafeeira, e o tráfico de africanos parece não ser uma relação momentânea, personificada por especuladores atentos às melhores oportunidades dispostas no mercado e apropriadas pelos negociantes-fazendeiros (Fragoso, 1990FRAGOSO, João. Comerciantes, fazendeiros e formas de acumulação em uma economia escravista-colonial: Rio de Janeiro, 1870-1888. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1990., p. 466). Ao contrário, estamos diante de uma relação sistêmica, estruturada entre as décadas de 1830 e 1850, e estruturante do complexo cafeeiro. A logística de cabotagem - armazéns, canoas, práticos, sistema de atracagem e navios - foi amplamente utilizada nos desembarques de africanos durante a clandestinidade. Sobrepuseram-se as estruturas, e coincidiam muitos dos agentes atuantes na comercialização do café e da carne humana nas franjas da serra do mar da província do Rio de Janeiro, mas também no Atlântico escravista.
A personificação desse processo parece cristalina na atuação de Breves, de seu sobrinho João, de seu preposto na costa de Ambriz - Ulrich - e do subdelegado Aguiar. Os enlaces entre negócios do café e do tráfico no litoral de Mangaratiba conformavam a própria dinâmica de funcionamento de portos como aquele estabelecido no Saco de Mangaratiba, desde seu estabelecimento, como grande entroncamento na cabotagem da grande lavoura, no início dos anos de 1830, até sua decadência, anunciada em meados da década de 1850. Lá, as atividades do comércio negreiro estiveram eclipsadas na estrutura montada para a cabotagem integradora da serra do mar.
É bem verdade, todavia, que outros espaços como a Marambaia e as quase duas dezenas de ilhas sob o domínio dos agentes do tráfico na região indicam que, além dos portos de cabotagem, as praias e as ilhas acolheram a última fase do empreendimento traficante, que envolvia o desembarque, a quarentena, a recuperação dos recém-chegados e a própria construção social do cativo. A incursão na Marambaia em janeiro de 1851 parece desvelar parte dessas estruturas, demonstrando que os desembarques no período ilegal não se deram a esmo, em qualquer praia, desde que escondida e desabitada. Como analisou Carvalho para o litoral pernambucano, também na baía de Sepetiba e no mar de Mangaratiba os espaços da finalização do empreendimento atlântico eram predeterminados e armados para sua efetivação.
Ao que tudo indica, as vinte ilhas de Aguiar cumpriam parte dessa função. De fato, na zona economicamente mais dinâmica do Império à época, há muito mais no processo de dispersão que caracterizou o reerguimento do comércio de africanos na ilegalidade em níveis nunca antes vistos, produzindo a redução de milhares de indivíduos livres à condição de escravos à revelia da lei. As praias de Mangaratiba, a restinga da Marambaia e as ilhas da baía de Sepetiba são apenas a ponta do iceberg.
Pesquisa financiada pelo Programa de Apoio ao Pós-Doutorado (PAPD) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
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1
Fundação Mario Peixoto (FMP). Atas da Câmara. Livro 4. Auto de arrematação da Câmara Municipal da Vila de Mangaratiba (1832-1870), folhas 3-10.
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2
FMP. Atas da Câmara. Livro 26, folha 37.
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3
Encontramos sete casas comissárias no Saco de Mangaratiba ligadas direta ou indiretamente aos Breves entre as décadas de 1830 e 1850: João José dos Santos Breves & C. (1838-1855); Santos Breves & C. (1855); Breves & Irmão C. (1846-1853); Antônio Joaquim de Souza Breves & C. (1845-1859); Antônio Lourenço Torres (1849-1864); José Frazão de Souza Breves & C. (1856-1859); Miguel Antônio da Silva & C. (1838-1851). Fontes: FMP. Livros de Impostos sobre Alvarás de Licença para Casas de Negócio (1838-1882). Center for Research Libraries (CRL). Brazilian Government Document Digitalization Project. Almanack Laemmert (1844-1889)
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4
FMP. Atas da Câmara. Livro 5, folhas 128 e 129.
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5
Cf. <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-1-10-1828.htm>. Acessado em: 17 dez. 2016.
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6
Arquivo Nacional (AN). Série Justiça, IJ6 525. Relatório de Joaquim de Paula Guedes Alcoforado. O tráfico de africanos nos anos de 1831 a 1853.
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7
FMP. Atas da Câmara. Livro 5, folhas 136 e 137.
-
8
FMP. Atas da Câmara. Livro 5, folhas 120-123.
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9
Cf. <http://www.slavevoyages.org>. Acessado em: 16 dez. 2016
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10
Cf. <http://www.slavevoyages.org>. Voyage 41865. Acessado em: 16 dez. 2016.
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11
FMP. Atas da Câmara Livro 5, folhas 136 e 137.
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12
FMP. Atas da Câmara Livro 5, folhas 191, 192 e 193.
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13
FMP. Atas da Câmara. Livro 11, folha 109.
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14
FMP. Atas da Câmara. Livro 15, p. não identificada.
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15
O controle de Breves sobre os cargos políticos de Mangaratiba é digno de nota. Seu filho, José Frazão de Souza Breves, fora vereador entre 1856-1860; seu sobrinho, João José dos Santos Breves, ocupou o mesmo cargo entre 1845- 1848 e 1854-1856, além de ser capitão-mor da Guarda Nacional entre 1848-49; outro sobrinho, Antônio Joaquim de Souza Breves, foi igualmente vereador entre 1858-1860 e 1865-1867; Miguel Antônio da Silva, seu sócio, exerceu nada menos que a presidência da Câmara por uma década, entre 1842-1852. O próprio Breves, em 4 de outubro de 1841, foi nomeado Comandante Superior dos municípios de Mangaratiba, Angra dos Reis, Paraty e São João do Príncipe, assim como representou Mangaratiba na coroação e na sagração do imperador, em 18 de julho de 1841. CRL. Almanack Laemert (1844-1889) e FMP. Atas da Câmara de Mangaratiba.
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16
BN. Diário do Rio de Janeiro, 6 de junho de 1840. Agradeço a Araújo pela referência e pela cópia digital desse e de outros documentos.
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17
Cf. <www.slavevoyages.org>. Voyage 1586. Acessado em: 16 dez. 2016.
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18
Arquivo Histórico do Itamarati (AHI). Presas França-Brasil. Brigue Fluminense. Lata 66, maço 3. O processo de apreensão do brigue foi produzido pelas autoridades francesas no Atlântico. Para compreendê-lo, contei com a excelência da tradução realizada por Lúcia Amélia Castelo Branco Siqueira, a quem agradeço.
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19
Dom Thomaz talvez fosse o “célebre” Thomaz da Costa Ramos {vulgo Maneta}. Segundo Alcoforado, Maneta fora o primeiro traficante a empregar vapores para conduzir africanos para o Brasil.
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20
BN. Jornal do Commercio, 9 de março de 1846.
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21
BN. O Grito Nacional, 13 de outubro de 1851.
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22
Arquivo Histórico Ultramarino. Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar. Angola, 1841, caixas 593 e 594.
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23
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Alvará Foro de Fidalgo Cavaleiro da Casa Real. Registro geral de Mercês de D. Luís I, livro 13, folha 199v.
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24
Para uma análise minuciosa sobre a apreensão realizada por Azambuja, ver Yabeta, 2009, p. 19-47.
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25
AN. Recurso criminal (1851). Fundo: Relação do Rio de Janeiro, n. 1.744, maço 184, galeria C.
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26
BN. Jornal do Commercio, 14 de fevereiro de 1851.
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27
Possivelmente, a “doenças dos olhos”, relatada pelo administrador da Marambaia, correspondia à oftalmia, “uma das mais temidas no tráfico de escravos, pois causava cegueira total ou parcial e podia alastrar-se por toda a carga do navio negreiro” (Moura, 2004MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004., p. 137).
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28
AN. Recurso criminal (1851). Fundo: Relação do Rio de Janeiro, n. 1.744, maço 184, galeria C.
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29
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj). Fundo: Presidência da Província. Notação 0028
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30
BN. Seção de Manuscritos. I 48, 17, 34.
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31
AN. Fundo: Juízo de Órfãos e Ausentes. Inventário de Ana Joaquina da Conceição, 1844, n. 456, caixa 4016, galeria A.
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32
Cf. <www.slavevoyages.org>. Voyage 1586. Acessado em: 16 dez. 2016.
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33
The National Archives, UK. Foreign Office: Slave Trade Department and Successors, FO 84/222 (apud Verger, 1987, p. 430).
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34
AN. Juízos municipais diversos. Inventário de Manoel Vieira de Aguiar, 1870, n. 1980, caixa 416, galeria A. Agradeço a Mirian Bondim, pesquisadora chefe da FMP, pela referência desse e de outros documentos sobre as redes traficantes em Mangaratiba.
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35
As ilhas avaliadas eram as seguintes: Bonita, 200 mil réis; Tambi, 50 mil réis; Itacuruçá, 5 contos de réis; Jaguanum, 3 contos de réis; Jardim, 300 mil réis; Batuque, 30 mil réis; Saco, 20 mil réis; Jurubaíba, 100 mil réis; Bixo Grande, 300 mil réis; Bixo Pequeno, 50 mil réis; Saracura, 400 mil réis; Carapuça, 30 mil réis; Bernarda, 200 mil réis; Vigia Grande, 500 mil réis; Vigia Pequena, 100 mil réis; Palacete, 20 mil réis; Bacya, 20 mil réis; uma ilha na mesma direção da ilha Jardim e Batuque, 30 mil réis. AN. Juízos municipais diversos. Inventário de Manuel Vieira de Aguiar, p. 56-66v.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Sep-Dec 2018
Histórico
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Recebido
20 Jun 2018 -
Aceito
26 Jun 2018