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“Toda nudez, sem amor, será castigada”: o sentido proposto por Nelson Rodrigues a uma de suas peças mais controversas

“All nudity, without love, will be punished”: the sense proposed by Nelson Rodrigues to one of his most controversial theater pieces

Resumo:

Desde a década em 1940, em suas crônicas jornalísticas, Nelson Rodrigues monta uma consistente arquitetura discursiva que atribui um sentido específico para o teatro, de maneira geral, e para suas peças, em particular. Em diálogo com referências intelectuais do mundo católico de seu tempo (como Jacques Maritain, Gilbert Chesterton, Gilberto Freyre e Gustavo Corção), o dramaturgo produziu uma série de juízos dos quais lançava mão para debater sua obra ficcional. Toda nudez será castigada, montada pela primeira vez em 1965, é uma de suas peças que opera mais diretamente com o projeto estético produzido pelo dramaturgo em suas crônicas. Realizo, neste artigo, uma leitura desta peça em diálogo com as tantas concepções levadas adiante por Nelson Rodrigues nos jornais, trazendo à tona a figura do dramaturgo que se coloca como o primeiro debatedor de suas peças, atuando contundentemente sobre a recepção destas.

Palavras-chave:
História do teatro brasileiro; Nelson Rodrigues (1912-1980); História cultural

Abstract:

Since the 1940s, in his journalistic chronicles, Nelson Rodrigues has created a consistent discursive architecture that gives a specific meaning to the theater, in general, and to his plays, in particular. In dialogue with intellectual references from the Catholic world of his time (such as Jacques Maritain, Gilbert Chesterton, Gilberto Freyre and Gustavo Corção), the playwright produced a series of judgments which he used to discuss his fictional work. All nudity will be punished, assembled for the first time in 1965, is one of his plays that operates more directly with the aesthetic project produced by the playwright in his chronicles. In this article, I read this play in dialogue with the many conceptions carried out by Nelson Rodrigues in the newspapers, bringing up the figure of the playwright who stands as the first debater of his plays, acting forcefully on their reception.

Keywords:
Brazilian theatre history; Nelson Rodrigues (1912-1980); Cultural history

Em junho de 1965 estreou, no Teatro Serrador, no Rio de Janeiro, a primeira montagem de Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues, sob a direção de Zbigniew Ziembinski, com Cleyde Yáconis vivendo o papel da prostituta Geni. A peça teve uma enorme repercussão na imprensa carioca e mobilizou diversos críticos e jornalistas a refletirem sobre o novo texto rodrigueano. Yan Michalski, respeitado crítico de teatro do Jornal do Brasil, publicou, em 2 de julho desse ano, uma crítica que lia a peça partir de duas perspectivas distintas. Uma delas observava seus aspectos formais, dominados de forma exemplar por Nelson Rodrigues: “a estrutura das cenas é dinâmica, nervosa, enxuta; o diálogo é de uma vitalidade, autenticidade e colorido excepcionais, mesmo em se tratando de um autor que é reconhecidamente o grande renovador da linguagem teatral brasileira; há algumas ideias de notável eficiência teatral [...]” (Michalski, 2 jul. 1965MICHALSKI, Yan. O psicodrama de Nelson (I). Jornal do Brasil (Rio de Janeiro). Segundo Caderno, p. 2, 2 jul. 1965., p. 2). Por outro lado, o crítico entende que a montagem do enredo da peça teria sido marcada por uma série de imperfeições: ele observa inúmeros exageros, incongruências e gratuidades na trama rodrigueana. Daí evidencia-se a grande contradição identificada por Michalski na peça: “este escritor tão pueril nas suas preocupações temáticas [...] é um grande homem de teatro” (Michalski, 2 jul. 1965MICHALSKI, Yan. O psicodrama de Nelson (I). Jornal do Brasil (Rio de Janeiro). Segundo Caderno, p. 2, 2 jul. 1965., p. 2).

Três dias antes, a Tribuna da Imprensa trouxera a público a crítica do espetáculo escrita por Fausto Wolf. Bem menos restritivo em relação ao enredo, Wolf, por sua vez, insiste muito na afirmativa de um caráter intuitivo de Nelson Rodrigues como autor, o que se evidenciava nas suas tentativas fracassadas de debater seus textos:

Poucas vezes Nelson tentou explicar a sua obra e das vezes em que quis enveredar por esse terreno entrou muito bem. Quero dizer: entrou pelo cano, pois Nelson não é um analista; suas análises sobre as suas peças não passam de frases grandiloquentes, que talvez possuam uma lógica particular, mas que em termos de análise crítica não passam de absurdos espetaculares (Wolf, 29 jun. 1965WOLF, Fausto. Toda nudez será castigada (I). Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro). Segundo Caderno, p. 2, 29 jun. 1965., p. 2).

Neste texto, procuro problematizar as duas perspectivas destes críticos da peça rodrigueana: aquela que vê a tessitura do enredo como frágil e gratuita e a outra que vê em Nelson Rodrigues um autor incapaz de produzir um sentido claro para sua obra ao falar sobre ela. A tese aqui defendida vai na direção contrária: Nelson foi um dos autores de teatro que mais debateu suas peças de um modo consistente, a partir de referências intelectuais relevantes de seu tempo, e a montagem dos enredos de suas peças - especialmente Toda nudez será castigada - se deu em diálogo estreito com os debates levados adiante pelo autor. Reconheço, certamente, que o dramaturgo, ao falar de suas peças em alguns momentos específicos, é obscuro e evasivo. Isso, inclusive, se dá ao longo da temporada de Toda nudez será castigada, quando ele escreve em O Globo uma coluna explicando sua peça de modo evidentemente metafórico e pouco preciso. Essa coluna é publicada em 15 de julho de 1965 e traz diversas peças de um projeto estético que o autor constrói em outros textos mais longos, mas que ali aparecem de modo rápido e pouco claro. Nesse texto curto, Nelson cita o suicídio de Marilyn Monroe, a paisagem da praia de Copacabana repleta de banhistas quase nus, uma redação que ele escrevera na infância, a sua capacidade de ver o mundo como menino; e esses elementos não parecem fazer muito sentido entre si, não se articulam tão claramente com o que ele chama de “uma verdade que ninguém percebe porque é óbvia demais: - Ei-la: a nossa danação começou quando separamos a nudez do amor” (Rodrigues, 15 jul. 1965RODRIGUES, Nelson. O autor explica porque toda nudez será castigada. O Globo (Rio de Janeiro). p. 6, 15 jul. 1965., p. 6).

A articulação entre todos esses temas - tendo o amor e a danação do homem como elementos centrais-, entretanto, é muito bem feita por Nelson Rodrigues ao longo de sua carreira jornalística. Se lermos um conjunto maior de suas crônicas publicadas na imprensa desde os anos 1940, podemos perceber a elaboração de articulações intelectuais que produzem um modo muito particular de ver e entender suas peças sustentado ao longo de muitos anos nesses textos. Buscar entender a forma como um artista coloca em debate sua obra e dá sentido a ela pode gerar resultados importantes para as articulações entre perspectivas da história intelectual e da história cultural que, certamente, são potencializadas quando analisadas de forma mais embaralhada. Este artigo busca avançar nessa questão, certamente fértil para os estudos históricos.

Desumanização, modernidade e o sentido do teatro em Nelson Rodrigues

Uma grande questão mobiliza os diversos tipos de textos jornalísticos escritos por Nelson Rodrigues ao longo de décadas em diferentes jornais e revistas brasileiros: o processo de desumanização em marcha.1 1 Ao longo de sua trajetória como jornalista, Nelson Rodrigues coloca em questão este processo de desumanização em suas memórias, no debate sobre obras artísticas de seu presente e passado, ao tratar de personagens políticos, da vida social, de eventos pontuais, de grandes mudanças estruturais etc. Desde os anos 1940, é possível identificar a presença dessa discussão em seus textos jornalísticos. Quando estes são analisados em conjunto, observa-se que essa discussão atravessa os anos muitas vezes com a repetição extensiva de argumentos ou mesmo de fragmentos já publicados anteriormente. Dessa forma, as citações aqui apresentadas são retiradas de textos de diferentes períodos. O critério que me levou à escolha das passagens apresentadas foi a possibilidade de tornar mais claros os argumentos discutidos. Há trechos citados de textos publicados alguns anos após a temporada de Toda nudez será castigada, mas, certamente, os argumentos ali veiculados já estavam sendo utilizados por Nelson em 1965. Segundo o dramaturgo, esse processo seria um corolário da modernidade, sempre criticada por ele. O mundo moderno, assim, faria com que as pessoas se distanciassem cada vez mais de sua verdadeira natureza. O homem, entendido por Nelson como uma espécie capaz de experimentar os mais altos e os baixos valores morais, sempre misturados e tensionados em suas experiências, estaria se desumanizando a partir do momento em que perdia a capacidade de se espantar.

Diversos seriam os fatores capazes de explicar tal impotência sentimental da modernidade. Um dos mais fortes seria o fortalecimento do racionalismo, que tornaria a experiência humana matematizada e distante dos valores. Derivados do racionalismo, os regimes socialistas e as ideologias de esquerda seriam outros grandes inimigos do homem, segundo Nelson Rodrigues. “Repito que o socialismo é todo um processo de desumanização. O chefe do governo tcheco é exatamente o anti-homem, a antipessoa” (Rodrigues, 1995b, p. 199). São bastante conhecidas as críticas de Nelson Rodrigues a personagens e ideais de esquerda, mas pouco discutida a relação dessas críticas com suas concepções de modernidade e natureza humana, tão evidentes em suas crônicas. Um grande problema dos militantes socialistas, por exemplo, seria a disponibilidade de seguirem as orientações ideológicas independente de seus escrúpulos morais: um socialista, por essa perspectiva, teria tranquilidade ao matar outra pessoa se estas fossem as ordens do seu partido. Segundo Nelson, essa situação revela o quanto o socialismo impediria os homens de serem plenamente humanos, entrando em contato com seus pudores, suas vergonhas, suas paixões. Também cito como uma das forças desumanizadoras mais fortes identificadas por Nelson Rodrigues na modernidade a extrema valorização dos jovens, pouco preparados para a vida, para o amor e para a força moral que os homens deveriam ter.

Outro fator que levaria ao processo de desumanização diz respeito à relação entre sexo e amor, relação determinante para o debate de Toda nudez será castigada a partir das crônicas rodrigueanas. Afirma o dramaturgo: “Sexo como tal, e estritamente sexo, vale para os gatos de telhado e os vira-latas de portão. Ao passo que no homem o sexo é amor. Envergonha-me estar repetindo o óbvio. O homem começou a própria desumanização quando separou o sexo do amor” (Rodrigues, 1996 RODRIGUES, Nelson. O remador de Ben-Hur: confissões culturais. São Paulo: Companhia das Letras , 1996., p. 169). Como se observa, Nelson Rodrigues é categórico ao afirmar que, na realidade humana, o sexo só teria sentido se articulado ao maior dos valores morais: o amor. Desligado do amor, o sexo faria com que os homens se equiparassem aos animais, distanciando-se da possibilidade de entrar em contato com sua condição mais básica: a de experimentar o bem e o mal no mundo.

A nudez sem amor, assim, representaria um símbolo da modernidade. Ela faria com que se perdesse a capacidade de experimentar as paixões, geraria o desinteresse, o tédio, tal como Nelson observa nos carnavais de seu tempo. Nessa festa, homens e mulheres despiam-se, beijavam-se, mas nenhum resquício de humanidade se via nas imagens transmitidas pela televisão. Nada ali tinha valor, o que atirava as pessoas à condição de animais. Segundo o autor, “o Sexo, estritamente Sexo, nada tem a ver com o pobre e degradado ser humano” (Rodrigues, 1993RODRIGUES, Nelson.O óbvio ululante: primeiras confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 126). Por se atirar nessa dimensão desumanizada ao posar nua, Marilyn acabara pagando o preço do suicídio.

Nelson Rodrigues, nesse grande debate que realiza sobre as mudanças experimentadas pela sociedade brasileira em processo de modernização, constrói um contraponto à modernidade racional e fria na representação dos subúrbios de sua infância. Estes são espaços representados pelo dramaturgo como plenos de indivíduos capazes de vivenciar arroubos de paixão e de outros sentimentos fortes. Ali seriam respeitados os velhos, uma vez que estes já haviam vivido plenamente a vida e suas contradições, atingindo um amadurecimento sentimental raro na modernidade. Na lógica discursiva construída por Nelson em suas crônicas, assim, os subúrbios permitiam que as pessoas experimentassem bem a condição básica da humanidade: a intensidade da convivência entre o bem e o mal. Nesse espaço idealizado de sua infância, qualquer um “tem um ‘mínimo de anjo’ e um ‘mínimo de gangster’” (Rodrigues, 1996 RODRIGUES, Nelson. O remador de Ben-Hur: confissões culturais. São Paulo: Companhia das Letras , 1996., p. 38), o que garantiria o funcionamento de uma dualidade elementar da experiência humana.

Essas discussões, levadas adiante de modo tão complexo e assertivo por Nelson, ganharam em elaboração a partir do contato que ele estabeleceu com círculos intelectuais específicos. Algumas ideias defendidas por Gilberto Freyre e por Gustavo Corção certamente chegam ao dramaturgo e o afetam. Esses dois autores brasileiros, por sua vez, eram grandes veiculadores de teses sustentadas anteriormente por Gilbert Chesterton e Jacques Maritain e, é possível afirmar, colocaram Nelson Rodrigues em contato com esses pensadores da direita católica. Todos eles, por sua vez, trazem para as discussões desenvolvidas em seus textos a obra de Fiódor Dostoiévski, autor que paira como uma referência forte por entre os cinco pensadores cujas reflexões se encontram em diversos aspectos.

De fato, o problema da desumanização moderna é discutido diretamente por Rodrigues, Freyre, Corção, Maritain e Chesterton. Por caminhos diversos, mas muitas vezes surpreendentemente semelhantes, esses autores comungam da noção de que a natureza humana estaria sendo deturpada pelo mundo moderno. Todos são, cada qual a seu modo, antimodernos (é esse, aliás, o título do famoso livro de Jacques Maritain). Em comum entre suas argumentações também está a ideia de que o avanço da razão seria um dos principais responsáveis por essa violação da natureza humana. O racionalismo, no limite, evidenciaria a lógica dos assassinos, como argumenta Gustavo Corção. Dostoiévski, aqui, oferece uma farta possibilidade discursiva para o argumento crítico à hegemonia da razão como modo organizador do mundo. A própria trajetória de Raskolnikov, em Crime e castigo - obra determinante para a compreensão do teatro de Nelson Rodrigues -, é construída a partir dessa associação entre racionalismo e frieza. O plano do jovem estudante para matar a velha usurária, como diversos críticos do famoso romance apontaram, é perfeito do ponto de vista racional, seguindo encadeamentos de causa e consequência ordenados de maneira límpida. O que essa perspectiva racionalista sufoca, entretanto, é a possibilidade da emergência de qualquer pudor ou valor moral. O caso de um uso perfeito da razão levaria, assim, a um assassinato frio, distante de qualquer comoção ou piedade. Evidencia-se a associação entre a fria racionalidade e o mal, associação esta também bastante recorrente nos autores discutidos. Em outro romance dostoievskiano, desta vez Os irmãos Karamázov, Ivan Karamázov, numa cena muito conhecida do livro, dialoga com o demônio ao final de uma longa trajetória marcada pela adesão ao racionalismo ocidental. O demônio aproxima-se e utiliza-se, assim, daqueles que observam o mundo cartesianamente e que estão desligados da dimensão dos valores. É esta a caracterização que Nelson Rodrigues, em diferentes crônicas, constrói para tratar de Satã, cuja desgraça seria “sua impossibilidade de amar. O abominável ‘Pai da Mentira’ não gosta de ninguém. Daria a metade de suas trevas por uma única lágrima”(Rodrigues, 1995aRODRIGUES, Nelson. A cabra vadia: novas confissões. São Paulo: Companhia das Letras , 1995a., p. 274-275).

A obra de Dostoiévski também pode ajudar a explicar o contraponto que os autores aqui referidos utilizam em relação à frieza racional moderna. O oposto dessa lógica dos assassinos seria o contato com a dimensão dos valores, dimensão que afastaria os homens de sua condição natural. Os valores existiriam como uma espécie de intuição, seriam acessados de maneira direta pelos homens e os colocariam em contato com uma ordem sobrenatural, que transcenderia a natureza e a animalidade. Em contato com os valores, os homens seriam plenamente homens e poderiam superar sua condição natural. Segundo Luiz Felipe Pondé, em seu estudo sobre a filosofia da religião em Dostoiévski - filosofia da religião que certamente orienta as reflexões dos autores aqui citados -, “para a ortodoxia, assim como para Dostoiévski, não há salvação no regime da natureza” (Pondé, 2003PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia: a filosofia da religião em Dostoiévski. São Paulo: Editora 34, 2003., p. 91). A salvação dos homens não estaria, assim, no contato com o mundo natural e com sua ordenação racional, mas sim na abertura para os valores, especialmente para o amor.

Eis a principal tensão que marca a experiência humana na perspectiva do círculo intelectual aqui apresentado: de um lado, a pura animalidade, a ordenação fria e racional do mundo, o tédio e a indiferença; enquanto, de outro, teríamos o contato com a sobrenatureza, com os valores, com o amor e, de certo modo, com Deus. A possibilidade de contato com Deus seria, para esses autores, uma possibilidade muito distante da quietude da lógica, da frieza racionalista. Pelo contrário, o contato com o amor (que seria um tipo de contato com Deus), provocaria uma enorme desestabilização nos indivíduos. Essa também é uma experiência fortemente experimentada por personagens dostoievskianos, dentre eles Raskolnikov. Analisando o contato desses personagens com Deus, Pondé entende que Dostoiévski opera com uma ideia de experiência com a transcendência absolutamente desestabilizadora, provocando “um transtorno (no sentido de transformação radical) na economia ontológica, no equilíbrio psíquico atual do indivíduo que a ela foi submetido, exatamente aquilo que a ortodoxia vai designar como metanoia, um caso específico de theandrismo” (Pondé, 2003PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia: a filosofia da religião em Dostoiévski. São Paulo: Editora 34, 2003., p. 107).

Tal modelo difundido pelo romancista russo marca, decididamente, o modo como Freyre, Corção, Maritain, Chesterton e Nelson Rodrigues entendem a natureza humana e sua possibilidade de relação com o divino e com os valores. Para eles, a possibilidade da humanidade amar e entrar em contato com o divino não passava pela construção do conhecimento, e sim pela experiência emotiva e forte de um mundo que se mostra caótico, repleto de contradições e de armadilhas. Não por acaso todos eles consideram que a associação entre a Igreja católica e debates políticos e sociais seria danosa - basta lembrar as tantas críticas de Nelson àqueles que ele intitula “padres de passeata” -, o que gera tensões entre esses autores e lideranças católicas de seu tempo. Essa condição extremamente tensa dos homens na Terra faz com que esse círculo intelectual valorize um evento específico da narrativa bíblica, capaz de dar sentido às suas concepções: a Queda. Eva e Adão, ao serem expulsos do Paraíso e perderem o contato direto com Deus, veem-se atirados num mundo onde tudo é obscuro, duvidoso e tenso. Segundo Paul Evdokimov, estudioso da obra dostoievskiana, o autor russo opera com a concepção de que “a queda se produz no espírito humano” (Evdokimov, 1979EVDOKIMOV, Paul. Dostoïevski et le problème du mal. Paris: Desclée de Brouwer, 1979., p. 68),2 2 No original: “la chute se produit dans l’esprit de l’homme [...]”. Tradução nossa. ou seja, é no interior dos indivíduos que se processaria todo o caos resultante do pecado original. Cada um de nós carregaria consigo, então, o fardo de viver em um mundo onde nada é claro, onde há vários perigos e onde deve-se experimentar a duplicidade da experiência na natureza e na sobrenatureza.

Temos, assim, para os antimodernos de filiação dostoievskiana, a ideia de que o mundo é um campo de batalha e que o contato com Deus é uma conquista difícil de ser realizada. O caminho para a salvação, para a experiência do amor e de Deus, segundo Evdokimov, “desenvolve-se não em linha reta, mas em zigue-zague” (Evdokimov, 1979EVDOKIMOV, Paul. Dostoïevski et le problème du mal. Paris: Desclée de Brouwer, 1979., p. 24).3 3 No original: “s’est déroulé non en droite ligne mais en zig-zag.” Tradução nossa. Ele seria o resultado de uma travessia num mundo que pode ser entendido como um campo de batalha, travessia ao longo da qual seria necessário se afastar dos modos racionais de constituição do mundo e experienciar o contato direto com os valores divinos que nos transformariam. A famosa “cosmovisão carnavalesca” (Bakhtin, 2008BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., p. 168) que Mikhail Bakhtin observa na obra dostoievskiana, assim, seria resultado também de uma concepção religiosa e de um entendimento da natureza humana que circula por entre diversos autores e que chega a Nelson Rodrigues.

Tais concepções, apresentadas aqui dentro dos limites de um artigo,4 4 Realizei um estudo mais sistematizado e longo do projeto estético de Nelson Rodrigues em minha tese de doutorado. Cf. Gusmão (2011). orientam os modos como Nelson entende o sentido que a arte deveria ter no seu tempo. Tratando do problema da violência no cinema hollywoodiano, afirma o dramaturgo: “O homem precisa ser colocado diante da própria violência. Temos que ver a face da nossa crueldade. Ou o cinema nos ofende e nos humilha ou, então, deve morrer. E, sempre que o cinema apresenta a sordidez em dimensão gigantesca, cada qual sente o eterno, o sagrado, que existem no mais vil dos seres.” (Rodrigues, 1995aRODRIGUES, Nelson. A cabra vadia: novas confissões. São Paulo: Companhia das Letras , 1995a., p. 400). Tal entendimento também é utilizado por Nelson para a discussão sobre os efeitos que o teatro deveria ter no público. Em sua perspectiva, o teatro deveria ofender o público, deveria expor situações violentas com um objetivo específico: ativar a forte tensão que marcaria a natureza humana, sempre dividida entre bem e mal. Se um dos graves problemas da modernidade seria relativizar esta condição dual dos seres humanos, tirando-o das oposições que marcariam a trajetória dos homens no mundo e fortalecendo, assim, a ação do mal, a arte deveria ter a função de recolocá-lo nesse lugar, ativar seus valores e aproximá-lo da transcendência. É o que ele defende ao tratar de sua peça Perdoa-me por me traíres:

a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. A partir do momento em que Ana Karenina, ou Bovary, trai, muitas senhoras da vida real deixarão de fazê-lo. No Crime e castigo, Raskolnikov mata uma velha e, no mesmo instante, o ódio social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado. Ele matou por todos. E, no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de transferência torna-se mais válido. Para salvar a plateia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los (Rodrigues, 1996 RODRIGUES, Nelson. O remador de Ben-Hur: confissões culturais. São Paulo: Companhia das Letras , 1996., p. 15).

O trecho anterior explicita, de modo claro, a função principal do teatro defendida pelo dramaturgo. Para ele, o público teatral moderno, racional, cínico e desligado dos valores, como praticamente toda comunidade moderna, precisaria encontrar no teatro situações que o fizesse se espantar. Ao se espantar, surgiria a possibilidade de um contato com a piedade, com o medo, com o amor, valores tão raros em seu tempo.

Nelson Rodrigues associa, assim, toda uma complexa e longa argumentação que realiza em torno da natureza humana com o sentido que o teatro deveria ter. Fazer o público se escandalizar no teatro seria um modo de trazê-lo de volta para sua humanidade, saindo da apatia e do cinismo típicos da modernidade. Diante de assassinos e da crueldade dos personagens, os espectadores poderiam voltar a entrar em contato com sua oposição estrutural, com seu lado demoníaco e, assim, poderiam livremente optar pelo bem, pelos bons valores. Daí seu constante desejo pelo escândalo e pela reação forte do público, como ele revela no pequeno trecho a seguir: “Mas confesso que, ao ser vaiado em pleno Municipal, fui, por um momento fulminante e eterno, um dramaturgo realizado, da cabeça aos sapatos” (Rodrigues, 1995bRODRIGUES, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. São Paulo: Companhia das Letras , 1995b., p. 288).

Toda essa discussão e as concepções que a orientam configuram, assim, uma espécie de projeto estético rodrigueano. Ao longo das centenas de textos que Nelson Rodrigues publica na imprensa, forma-se algo semelhante a um manifesto artístico contundente. Partindo do problema da modernidade e da natureza humana - temas que o fazem se aproximar de um conjunto de autores e obras -, o dramaturgo acaba criando um sentido para o teatro e para suas peças. Nos anos 1960, essa ordem discursiva torna-se mais elaborada, o que fará com que ela dialogue de maneira ainda mais evidente com a produção de sua obra ficcional. Toda nudez será castigada, dessa forma, produzida no meio dessa década, será uma das peças de Nelson Rodrigues montada de modo mais harmônico com os problemas debatidos em seus textos jornalísticos. O enredo e o perfil dos personagens construídos por ele são estruturados a partir das premissas que também dão forma a suas crônicas de jornal, fazendo com que Nelson seja um primeiro debatedor de suas próprias peças. É o que passamos a ver a seguir.

A tragédia do amor em Toda nudez será castigada

O início de Toda nudez será castigadajá indica a tragicidade da trama que se desenvolve na peça. Herculano, um homem de meia-idade, chega em casa e encontra uma fita gravada por sua esposa Geni. Nessa gravação, ela revela que estaria morta naquele momento, havia cometido suicídio, e iria lhe contar uma longa história. A peça se desenvolve por meio dessa narração de Geni e é organizada a partir de cenas rememoradas intercaladas por trechos da fita.

A história narrada por Geni tem início com uma cena na casa das tias solteironas de Herculano. Este está fechado em seu quarto, deprimido por causa da morte de sua primeira esposa. Na sala, estão as três tias e Patrício, irmão de Herculano. Patrício encarna, nesta peça, o modelo de indivíduo produzido pela modernidade, se tomamos como referência as crônicas jornalísticas produzidas por Nelson Rodrigues. Ele seria um típico “egoísta desinteressado”, tal como descrito por Gilbert Chesterton (2001CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. São Paulo: LTr, 2001., p. 104). Sua trajetória é toda ela marcada pelo cinismo, pela indiferença em relação aos valores e sentimentos humanos, pelo deboche e pelo individualismo; é um personagem que sempre está tentando tirar pequenas vantagens das situações. Logo nas primeiras páginas do texto, é perceptível que a relação entre os irmãos é marcada pela rivalidade e por um grande ódio por parte de Patrício. Herculano, por sua vez, seria um tipo muito distinto do irmão. Ele teria, por exemplo, uma relação com o sofrimento mais próxima da maneira que Nelson Rodrigues, em suas crônicas, chama de humana - e estranha à modernidade. Viúvo, ele experimenta a dor da separação até o limite, chegando a cogitar o suicídio.

Nesta primeira noite narrada na fita, Patrício começa a idealizar o plano que irá desenvolver ao longo da peça: um plano muito bem montado racionalmente, como o do protagonista de Crime e castigo, que seguirá uma trajetória retilínea - de causa e efeito - e pouco marcado por escrúpulos morais, todos eles relativizados. Ele sai para buscar um padre, a pedido das tias, mas vai ao encontro da prostituta Geni, a quem conta a história de seu irmão. Diz a Geni que ela pode tirar muito dinheiro de Herculano, o que a interessa. Patrício volta para a casa das tias e, a sós com Herculano, mostra para o irmão uma fotografia de Geni pelada e deixa-o sozinho com uma garrafa de uísque.

Três dias depois, Herculano acorda bêbado no quarto de Geni. Demora a entender onde está e ela lhe conta que ele chegara lá bêbado, tendo vomitado três vezes nela. A discussão que se estabelece entre os dois é extremamente violenta: Herculano chega a chamar a prostituta de “mictório! Público! Público!” (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 172). A intensidade emocional da discussão já é um indício do tipo de movimento que começava a se processar entre eles. Em primeiro lugar, Herculano experimenta um profundo espanto em relação a si mesmo. Até então, segundo seu relato e o de Patrício, sua conduta era bastante estável, morna, sem maiores percalços e excessos, tendo tido relações sexuais apenas com sua esposa, a quem considerava uma santa. A experiência da tormenta de um mundo onde bem e mal lutavam se dá a partir do momento em que conhece Geni. Desde o primeiro contato com ela, a trajetória do seu personagem entra numa estrutura marcada pelo desequilíbrio, pelo desconhecido, pelo enfrentamento de grandes desafios e de grandes experiências sentimentais - experiências estas que culminarão no sentimento do amor. Aqui Nelson Rodrigues faz funcionar claramente a concepção de que o pleno desenvolvimento do amor só seria possível após uma profunda desestabilização da economia psíquica e emocional do indivíduo, concepção que mobiliza o dramaturgo e os intelectuais com os quais dialoga e se alia.

Ao final da cena, Herculano vai embora do quarto de Geni jurando que jamais iria vê-la: “Eu sou um bêbado, que passou pela sua vida e sumiu” (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 176). Alguns dias depois, entretanto, ele telefona para ela e Geni adora receber sua ligação. Ela conta para Patrício e mostra-se encantada pelo viúvo: chorando, ela afirma que estava “maluca por esse cara!” (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 182). A partir daquele momento, sua conduta será guiada por um sentimento gratuito que desenvolvera por ele, longe das preocupações materiais e objetivas que até então a dominavam.

Patrício segue, assim, no seu plano, e orienta Geni a dizer para seu irmão que este só deveria tocá-la depois do casamento. Algum tempo depois, Herculano vai procurar Geni e num momento mais forte da cena, ela cai de joelhos e beija os seus sapatos, numa situação que Nelson Rodrigues traz para diversas de suas peças: a queda aos pés do ser amado em um ambiente marcado pela degradação, tal como se dera em Crime e castigo. No final da cena, quando os dois preparavam-se para o sexo, Geni coloca em prática a estratégia de Patrício: “Está tirando a roupa? Não tira a roupa! Cai fora! Sou de qualquer um, menos de você. Você só toca em mim casando! Só toca em mim casando!” (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 185).

O segundo ato de Toda nudez será castigada começa com uma cena de tensão entre Herculano e seu filho Serginho - que aparece pela primeira vez na peça neste momento e que faz uma defesa histérica do luto e da abstinência sexual, atitude comum a tantas peças rodrigueanas. Essa negação faz com que alguns personagens acabem por negar também a possibilidade do amor. Em Nelson Rodrigues, como vimos, a ideia de que o mundo é um campo de batalha, repleto de armadilhas, deveria ser enfrentada e vivenciada. Negar esta condição caída dos homens poderia levá-los à reclusão e à apatia. Nesse sentido, o personagem de Serginho representa a fuga e a castração absoluta da experiência do mundo de que Herculano começava a usufruir.

Num encontro entre Herculano e Geni após essa primeira cena, fica evidente (inclusive através das rubricas) que se intensifica a explosão sentimental entre eles: Geni fica nervosa e com as mãos geladas na presença do amante, ao mesmo tempo em que é explícita ao indicar sua atração sexual por ele - “Só de olhar você - e quando você aparece basta a sua presença - eu fico molhadinha!” (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 192). Herculano, por sua vez, se incomoda com o jeito de falar da mulher e teme ser visto com ela na rua. Nelson Rodrigues vai construindo, assim, através de Geni, uma personagem marcada pela forte contradição de, por um lado, estar completamente inserida no mundo natural do sexo puro, mas, por outro, de estar aberta para a experiência do amor e da desestabilização de si. Geni parece próxima, neste momento da peça, de encontrar a articulação entre sexo e amor tão defendida pelo dramaturgo em suas crônicas. Herculano, por sua vez, tinha mais obstáculos para chegar nesse ponto, conviviam nele o desejo sexual puro, o amor que começa a desenvolver por Geni, a preocupação com o filho, o sofrimento pela morte da mulher, estando esses elementos organizados de uma maneira tumultuada e pouco lógica. Em uma de suas conversas com Geni, Herculano diz: “há entre nós e a loucura um limite que é quase nada” (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 197).

Apesar de todas essas tensões, Herculano toma a decisão de se casar com Geni, com a condição de que ela abandonasse a prostituição. O casamento seria um recomeço. Geni aceita seu pedido. O grande empecilho para o matrimônio, entretanto, ainda era Serginho, mas Herculano tentaria resolver esse problema. Ele procura um médico e este vê na abstinência sexual do menino um problema, recomendando o sexo para ele como um tipo de atividade física. Em nenhum momento do seu diagnóstico ele associa a atividade sexual com o universo sentimental e amoroso de Serginho. Ele trata o sexo como os professores de educação sexual, fortemente criticados por Nelson Rodrigues em suas crônicas, que sonhava com o dia em que as escolas iriam acabar com as aulas de educação sexual e dar início às aulas de educação amorosa. Adiante, Herculano consulta um padre sobre a possibilidade de mandar Serginho para uma viagem, mas esse reforça a perspectiva das tias solteironas, que defendiam a reclusão e o pudor exagerado. Pergunta-se o religioso: “A troco de que soltar esse menino no mundo? Meu filho, você não percebe que não tem sentido? Você pode perder esse rapaz” (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 201). Dessa forma, os dois discursos sobre a experiência do homem no mundo estão centrados ou numa maneira mecânica e árida de se pensar (no caso do médico) ou num covarde temor dos obstáculos do mundo (no caso do padre). Eis um drama da modernidade exposto por Nelson. Diante desses discursos, parecia não ser mais possível que o homem tivesse a possibilidade de livremente experimentar o mundo como um campo de batalha a ser superado através do amor. O principal tema das crônicas rodrigueanas e de seu projeto estético, assim, explicita-se de maneira forte nessa peça em particular, configurando seu enredo.

Enquanto o casamento não se efetivava, Herculano leva Geni para morar numa casa de sua família no subúrbio. O período em que Geni fica praticamente encarcerada e isolada nessa casa é extremamente difícil para ela, o que abala a relação dos dois. Após uma longa discussão, eles se beijam e dão início a um período descrito assim por Geni na sua gravação: “Então, começou a nossa loucura. Três dias e três noites sem parar. Virei o espelho para a cama. Te chamei para o jardim. Eu te pedia para me bater, para me morder. Eu também te batia e te mordia. Ah, te dei tanto na cara!” (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 205). Esses dias encerram-se com a chegada de uma das tias solteironas, que invade a casa para trazer uma notícia trágica: Serginho vira os dois fazendo sexo, foi para um bar, bebeu muito, brigou, foi preso e, na prisão, sofreu um estupro por parte de um ladrão boliviano. Nesse momento, ele estava no hospital. Esse ato da peça é encerrado com a seguinte fala da tia: “Meu menino não conhecia mulher, nunca teve um desejo. As cuecas vinham limpinhas, nada de sexo. (Súbito, a tia vira-se para o alto. Fala nítido como uma fanática.) Meu menino era impotente como um santo” (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 209).

No início do terceiro ato de Toda nudez..., Serginho encontra-se internado. Chega a receber Herculano, mas é bastante ofensivo com o pai, diz que tem nojo dele e que não iria ao seu enterro. Geni também vai visitar o garoto e, da mesma forma, é maltratada. O menino sofria a forte influência de Patrício, que encontra um meio de chegar ao desfecho do plano que tramava. Ele vai até Serginho e sugere que o menino peça que o pai se case com Geni. Uma vez os dois casados, ele poderia seduzir a madrasta e trair o próprio pai. “Os dois se casam. Um dia, há uma ceia na família. Todo mundo presente. Teu pai numa cabeceira e você na outra. E você, então, diz isso, apenas uma palavra basta: - ‘Cabrão’. Só, nada mais!” (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 223). Patrício calcula, assim, de maneira fria e racional, a partir de relações de causa e efeito, sua vingança contra o homem que odiava.

Após uma série de idas e vindas, Serginho pede que o pai se case com Geni, o que sensibiliza enormemente Herculano. Envolto pelo amor, ele não percebe que por trás desse aparente gesto de bondade havia um plano que se desenvolvia secretamente. De todo modo, Herculano consegue, naqueles dias, vivenciar plenamente o seu amor por Geni. Tratava-se de um amor tão forte que o fazia acreditar mais convictamente em Deus. Quando encontra com um médico, perto do seu casamento, ele se esforça para convencê-lo de que Deus existe: “Doutor, o senhor não pode viver sem Deus! O senhor tem que acreditar em Deus! Quer queira, quer não, o senhor é eterno!” (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 230). O amor colocava-o em contato direto com a transcendência e com a eternidade. Experimentar o amor, nesse caso, seria experimentar o sentimento de Deus - tal como Nelson defendia tão insistentemente em suas crônicas.

Herculano e Geni se casam diante das tias solteironas, que passam a dizer que a mulher fora ao altar virgem. Apesar de não serem personagens típicas da modernidade - como o jovem, o estudante, o militante de esquerda -, essas tias também seriam marcadas por certa falência de um tipo de funcionamento dos valores defendida por Nelson em seus textos jornalísticos. A atitude delas fortalece a impotência sentimental seja através dos seus olhares repressores que impediam sempre o contato com o desejo e a consequente possibilidade do amor - como já analisado anteriormente -, seja através da hipocrisia que gerava uma seleção racional e interessada dos sentimentos que lhes acometiam.

Passado um tempo do casamento de Herculano e Geni, esta começa a ter um caso com Serginho. Após um certo período de estabilidade nessa situação de adultério, Patrício, atento à situação, começa a exigir do sobrinho a execução do plano que ele havia elaborado.Uma das últimas cenas do texto se dá na intimidade de Serginho e Geni. Ela demonstra ter muitos ciúmes do amante e estar completamente apaixonada por ele. A piedade que sentira pelo menino crescera tanto que se transformara num grande amor, um amor que transformava completamente Geni. Ela mesmo identifica as mudanças que sofrera a partir dele:

Sou outra mulher, por tua causa. Eu não prestava. Mudei, você não sente que eu mudei? Te juro! Quer ver uma coisa? Ontem, eu saltei do automóvel e caiu um frasco de perfume que eu tinha acabado de comprar. Então, sem querer, eu disse: - merda. Não era nem palavrão. Se você soubesse a vergonha, o remorso que eu tive. Vergonha, remorso, por nós, pelo nosso amor. Depois que eu conheci o amor, eu não quero ser prostituta nunca mais, nunca mais! (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 234).

Eis aí, de modo claro, uma manifestação do amor capaz de transformar completamente aquele que o experimenta, alterar a sua economia psíquica e as próprias feições da pessoa. Após um processo de desestabilização, o amor purificaria a pessoa, colocando-a em contato com a pureza da transcendência. No início da peça, Geni afirmava o seguinte: “Toda mulher já foi menina. Eu, não. Eu posso dizer de boca cheia que nunca fui menina” (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 179). Pode-se entender, então, que o amor - que ela começa a experimentar com Herculano e consolida com seu filho - faz com que ela experimente essa infância que não houve. Infância entendida como um momento de descoberta sentimental, de experiência do mundo, de pureza, de contato direto com os sentimentos e os valores.

Nesta cena em que Geni fala de suas transformações, Serginho anuncia que vai viajar - o que a deixa desesperada. O menino, perversamente, diz que só vai com a autorização dela e faz com que esta, apesar de contrariada, peça que ele parta. O personagem de Serginho se mostra radicalmente nessa cena como uma pessoa incapaz de amar e se solidarizar com o amor do outro. Ele encarnara bem o tipo do jovem perverso depois que abandonou a atitude reclusa e histericamente mórbida.

Na noite em que Serginho viaja, Geni dormia sozinha em casa quando Patrício vem lhe fazer uma visita. Ele está bêbado e eufórico. Conta para a cunhada que Serginho partira com o ladrão boliviano que o violentara na cadeia - informação que não se confirma mais no texto, podendo ser entendida como mais uma peça do plano de Patrício. Diz ele: “É uma viagem de núpcias com o ladrão boliviano. Vão continuar a lua de mel. Serginho não voltará mais, nunca mais” (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 237). Para que Patrício não fizesse um escândalo no aeroporto, Serginho lhe dera um cheque. A notícia, evidentemente, desestabiliza profundamente Geni enquanto Patrício mostra-se esfuziante por perceber que sua vingança estava próxima. Ele diz que quer ver Herculano morto, com algodão nas narinas.

É esta a situação que leva Geni a gravar uma fita para Herculano e se matar em seguida. A gravação termina da seguinte forma:

Teu filho fugiu, sim, com o ladrão boliviano. Foram no mesmo avião, no mesmo avião. Estou só, vou morrer só. (Num rompante de ódio) Não quero nome no meu túmulo! Não ponham nada! (Exultante e feroz) E você, velho corno! Maldito você! Maldito o teu filho, e essa família só de tias. (Num riso de louca) Lembranças à tia machona! (Num último grito) Malditos também os meus seios! (Rodrigues, 1981RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238., p. 238).

Nessa última fala, Herculano é chamado de “velho corno”, percebendo tudo o que acontecia à sua volta. Eis a concretização completa da vingança de Patrício.

A vitória de Patrício, ao final do texto, evidencia a oposição de dois tipos de trajetórias construídas por Nelson Rodrigues que podem ser relacionadas tanto com o seu projeto estético como com suas matrizes intelectuais. De um lado, há a trajetória de Geni e Herculano. Os dois personagens iniciam a peça de forma bastante distinta. Ele acabara de perder a esposa com quem vivera um casamento tedioso, sem a marca de fortes paixões. Com a viuvez, experimentava uma forte depressão. Ela, por outro lado, era a prostituta interessada em seus problemas financeiros. O encontro dos dois coloca-os diante de novas e arrebatadoras experiências humanas. Começam a experimentar a intensidade do amor de forma perturbadora, o que faz com que suas ações não sigam mais um caminho calculado e controlado. Traçam uma trajetória marcada por percalços, por mudanças bruscas, vivendo o mundo plenamente em sua carga emocional intensa, tendo que estar em contato com o mal, os perigos, as fortes oposições e se guiar sempre a partir dos valores - que não seguem trajetórias retas. Nem Herculano e nem Geni, entretanto, concluem seus percursos realizando, de forma estável, o amor - o que evidencia uma tragicidade própria ao projeto estético rodrigueano, que busca construir o horror no público.

Paralelamente ao rumo divinizado que Herculano e Geni deram às suas vidas, guiando-as pelo amor, diversos personagens percorreriam outros caminhos: todos marcados pela impotência sentimental. As tias hipócritas e reclusas, o médico ateu e moderno, o padre, Serginho e, principalmente, Patrício, apresentam uma forte cegueira em relação ao amor. Patrício, do início ao fim da peça, sempre atua de forma estratégica, calculada, não apresentando um único momento de solidariedade, de fraternidade, de amor. Apenas a razão guia sua trajetória retilínea. É um sujeito fechado ao mundo dos valores. Ele é controlado pelo domínio da natureza, levando sempre adiante a deterioração e a podridão. Dessa maneira, a peça apresenta trajetórias de amor bloqueadas pela ação do mal, da razão e da indiferença - todos estes elementos centrais das discussões presentes nas crônicas rodrigueanas e nos autores com os quais elas dialogam.

Em 19 de junho de 1965, às vésperas da estreia da peça, o Diário de Notícias publicou a seguinte nota: “Nelson Rodrigues não considera chocante o título de sua peça Toda nudez será castigada. Explica ele: ‘Na realidade, devia, contudo, ser esclarecido que toda nudez, sem amor, será castigada’” (Periscópio, 19 jun. 1965PERISCÓPIO. Diário de Notícias (Rio de Janeiro). p. 7, 19 jun. 1965. , p. 7). Tendo em vista a leitura aqui proposta para a peça, a partir do modelo discursivo criado por Nelson Rodrigues em suas crônicas, tal esclarecimento possui um sentido forte. Em seu texto, o dramaturgo mostra como o mundo moderno e diversos dos seus tipos impedem o pleno desenvolvimento do amor, dentro do qual a nudez seria possível. Fora do domínio do amor, a nudez seria a pura natureza, a pura degradação, o que, por si só, já representaria um castigo.

O universo de crença construído por Nelson Rodrigues

Pierre Bourdieu é muito preciso ao identificar, num diálogo que estabeleceu com Roger Chartier, um aspecto decisivo para a produção de obras artísticas na cultura contemporânea: “Se, querendo produzir um objeto cultural, qualquer que seja, eu não produzo simultaneamente o universo de crença que faz com que seja reconhecido como um objeto cultural, [...] se não produzo isso, não produzi nada, apenas uma coisa” (Chartier; Bourdieu, 2001CHARTIER, Roger; BOURDIEU, Pierre. A leitura: uma prática cultural. In: CHARTIER, Roger (org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p. 231-253., p. 241). O caso de Nelson Rodrigues aqui apresentado revela a atuação de um dramaturgo que busca, de maneira contundente, controlar a recepção de sua obra, produzindo uma série de discursos sobre ela e propondo a atribuição de um sentido aos seus textos. A análise da construção, por parte dos artistas, de um universo de crença que sustente suas obras é uma possibilidade de trabalho, de certa forma, recente e que pode oferecer à historiografia teatral inovações significativas.

Nas últimas décadas, a área da história do teatro passou por enormes mudanças, ampliando-se e abrindo-se para o diálogo com outras disciplinas e práticas intelectuais. Num texto publicado já há vinte anos e que teve forte repercussão no campo, Tania Brandão propõe a superação definitiva da história do teatro brasileiro moderno como uma história da dramaturgia, tendência que predominou por muito tempo na historiografia nacional. Segundo a autora, “em larga medida o teatro de nosso tempo, posto que moderno, é espetáculo e não dramaturgia, condição que não desautoriza os estudos dramatúrgicos, mas que exige apenas que o estudo do teatro não se reduza a esta abordagem” (Brandão, 2001BRANDÃO, Tania. “Ora direis ouvir estrelas”: historiografia e história do teatro brasileiro. Sala Preta (São Paulo). v. 1, n.1, p. 199-217, 2001., p. 202). Como se observa, a perspectiva da história do espetáculo propõe um novo lugar para o estudo do texto dramático, entendido na lógica da construção da cena para o qual foi produzido. Ainda de acordo com Brandão, “em tais condições, a História do Teatro necessita surgir como exegese de projetos poéticos e de poéticas, fazeres que dialogam entre si e que se inscrevem no tempo” (2001, p. 202). Os textos dramáticos, assim, a partir da perspectiva aqui proposta, passam a ser entendidos como peças no interior de projetos mais amplos que mobilizam atores, diretores, produtores e outras tantas figuras imbuídas da defesa de diferentes proposições artísticas.

Mais recentemente, numa outra obra que também se propõe a um balanço crítico da historiografia teatral, Rosangela Patriota e Jacó Guinsburg trazem a noção de “ideias-força” como uma ferramenta analítica própria para a análise de fenômenos teatrais do passado. Segundo os autores, estas “ideias-força” possuiriam “um poder hipnótico para subsidiar reflexões, por um lado, e qualificar inúmeras iniciativas, de outro” (Patriota; Guinsburg, 2012PATRIOTA, Rosangela, GUINSBURG, Jacó. Teatro brasileiro: ideias de uma história. São Paulo: Perspectiva, 2012., p. 23-24). Por essa perspectiva, ainda mais abrangente, a história do teatro deveria identificar as ideias centrais que promoveriam tanto a produção das obras como a sua análise (pela crítica, pela historiografia, pelo público em geral). Nelson Rodrigues seria um grande criador e mobilizador de “ideias-força”, atuando insistentemente nesses subsídios necessários para a produção e o consumo das obras.

Observada em sua evolução, assim, a historiografia teatral brasileira parte da análise de textos dramáticos e, a partir de diversas reformulações, inclui em seus estudos novos dados que constituem a experiência do teatro de maneira mais ampla, notadamente as condições da encenação desses textos e as ideias que orientam sua produção. Abrindo um olhar que, a princípio, centrava-se no texto, uma nova performance pode merecer maior atenção por parte dos historiadores do teatro: a performance do autor. Esse percurso também pode ser observado nos estudos rodrigueanos. O teatro de Nelson Rodrigues, até o momento, foi analisado a partir de duas grandes perspectivas. Nos anos 1970, surgem os primeiros estudos de maior fôlego sobre esse objeto e eles concentram-se em interpretações do material dramatúrgico. Muitas vezes, por essa perspectiva, suas peças foram analisadas a partir de referências intelectuais e filosóficas de vulto, produzindo sentidos particulares para elas. Destacam-se, nesse tipo de abordagem, os estudos de Ângela Leite Lopes (1993LOPES, Ângela Leite. Nelson Rodrigues: trágico, então moderno. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Tempo Brasileiro, 1993.) e Flora Süssekind (1977SÜSSEKIND, Maria Flora. Nelson Rodrigues e o fundo falso. Brasília: Ministério da Educação e Cultura/Departamento de Documentação e Divulgação, 1977.). Um segundo tipo de análise privilegia o entendimento das montagens de Nelson Rodrigues, dedicando-se ao enorme impacto que essa obra teve no ambiente teatral. Essa é a tendência de abordagem encontrada na maior parte das “histórias do teatro brasileiro” (inclusive na mais recente, organizada por João Roberto Faria, que traz um texto de Alberto Guzik sobre Nelson Rodrigues, analisando cada uma das peças do dramaturgo a partir de suas montagens). De maneira mais extensa, num livro unicamente dedicado ao assunto, Sábato Magaldi (1987MAGALDI, Sábato. Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações. São Paulo: Edusp; Perspectiva, 1987.) traz uma das contribuições mais importantes a esse tipo de análise da obra do dramaturgo entendida no interior da dinâmica da vida teatral brasileira.

É curioso observar que a fortuna crítica rodrigueana, se acompanha grandes tendências da historiografia teatral brasileira - centrando-se na análise dos materiais dramatúrgicos e na história dos espetáculos -, também aponta para promissoras e desafiadoras possibilidades ligadas a uma dimensão ainda pouco explorada por essa historiografia: a própria performance do autor no ambiente em que sua obra é consumida. Se muito já se disse sobre uma performance própria do texto rodrigueano, assim como sobre a performance da encenação e da atuação que deu corpo a suas peças, ainda não se explorou suficientemente a atuação performática do dramaturgo que acompanhou, incansavelmente, as montagens e a recepção de seus textos. Nelson Rodrigues, como aqui se apresentou nos limites de um artigo e de um caso escolhido, acompanhou a evolução de seu teatro produzindo uma quantidade enorme de textos na imprensa que buscavam, no limite, produzir um sentido específico para suas peças. Esses materiais jornalísticos, ainda pouco estudados,5 5 As crônicas jornalísticas de Nelson Rodrigues que tratam de seu teatro, apesar de muito citadas por seus estudiosos, pouco foram estudadas sistematicamente. Vale destacar aqui, como duas exceções, os estudos de Adriana Facina (2004), que se propõe a fazer uma leitura antropológica desses textos, e outro por mim produzido (Gusmão, 2011), que propôs uma sistematização das crônicas que desse a ver um projeto estético rodrigueano. oferecem-nos a possibilidade de entender como o sentido de uma obra é construído num determinado ambiente social a partir de disputas nas quais atuam diferentes agentes, dentre os quais os seus próprios criadores. Vale reforçar aqui a significativa relevância que uma história intelectual pode oferecer, assim, ao estudo da produção e do consumo de obras artísticas. A disputa de ideias-força, de produções de sentido e de universos de crença torna-se fundamental para uma compreensão histórica precisa que as obras tiveram no seu tempo.

É preciso, finalmente, recorrer o óbvio ululante: múltiplos são os sentidos que podem ser atribuídos a um mesmo texto, múltiplos podem ser os universos de crenças criados em torno de uma mesma obra - o que torna ainda mais dinâmico o jogo que articula autores, obras, leituras e interpretações das mesmas. Esses sentidos alternam-se de acordo com seus condicionantes históricos, sociais, subjetivos, como uma história e uma sociologia da leitura já debateram de maneira consistente. Desse modo, o sentido atribuído pelo autor de um texto à sua obra é apenas um deles, não necessariamente melhor, não necessariamente mais preciso, mais sincero, não necessariamente aquele que sobreviverá junto com seu texto. No caso de Nelson Rodrigues, o debate e o estatuto de sua obra nos dias de hoje guardam muito pouco do sentido que seu autor insistia em lhe atribuir. Toda nudez será castigada, nos anos 1970, é levada para o cinema por Arnaldo Jabor, causa grande impacto no Brasil e em outros países, e, já nesse momento, é lida como uma peça libertária, que reforça um movimento social de mudança e liberação dos costumes contra o qual seu autor tanto se posicionava. Entender porque um modo de ler determinada obra triunfa em detrimento de outros modos - mesmo aqueles sustentados pelos seus autores - é uma tarefa bem mais complexa e que traria novas e grandes exigências para este artigo. Não foi esse meu objetivo, centrei minha atenção no sentido que Nelson atribuía à sua peça. De todo modo, é possível terminar esta reflexão com uma constatação: Toda nudez será castigada, assim como outras peças de Nelson Rodrigues, parecem fazer sentido muito consistentemente em regimes discursivos bastante diversos. O mesmo texto pode ser lido tanto a partir de princípios fortes do catolicismo de combate dos anos 1950-1960 como por olhares contemporâneos que em nada se aproximam desse universo religioso. A peça funciona bem nos dois registros. Tal plasticidade é um forte testemunho da riqueza e complexidade de uma dramaturgia que marcou, de modo definitivo, o teatro brasileiro no século XX.

Referências

  • BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
  • BRANDÃO, Tania. “Ora direis ouvir estrelas”: historiografia e história do teatro brasileiro. Sala Preta (São Paulo). v. 1, n.1, p. 199-217, 2001.
  • CHARTIER, Roger; BOURDIEU, Pierre. A leitura: uma prática cultural. In: CHARTIER, Roger (org.). Práticas da leitura São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p. 231-253.
  • CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia São Paulo: LTr, 2001.
  • EVDOKIMOV, Paul. Dostoïevski et le problème du mal Paris: Desclée de Brouwer, 1979.
  • FACINA, Adriana. Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
  • GUSMÃO, Henrique Buarque de. “Ficções purificadoras e atrozes”: o projeto estético do teatro de Nelson Rodrigues Tese (Doutorado em História Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
  • LOPES, Ângela Leite. Nelson Rodrigues: trágico, então moderno Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Tempo Brasileiro, 1993.
  • MAGALDI, Sábato. Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações São Paulo: Edusp; Perspectiva, 1987.
  • MICHALSKI, Yan. O psicodrama de Nelson (I). Jornal do Brasil (Rio de Janeiro). Segundo Caderno, p. 2, 2 jul. 1965.
  • PATRIOTA, Rosangela, GUINSBURG, Jacó. Teatro brasileiro: ideias de uma história São Paulo: Perspectiva, 2012.
  • PERISCÓPIO. Diário de Notícias (Rio de Janeiro). p. 7, 19 jun. 1965.
  • PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia: a filosofia da religião em Dostoiévski São Paulo: Editora 34, 2003.
  • RODRIGUES, Nelson. O autor explica porque toda nudez será castigada. O Globo (Rio de Janeiro). p. 6, 15 jul. 1965.
  • RODRIGUES, Nelson.Toda nudez será castigada. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo 4: tragédias cariocas II Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 155-238.
  • RODRIGUES, Nelson.O óbvio ululante: primeiras confissões São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
  • RODRIGUES, Nelson. A cabra vadia: novas confissões São Paulo: Companhia das Letras , 1995a.
  • RODRIGUES, Nelson. O reacionário: memórias e confissões São Paulo: Companhia das Letras , 1995b.
  • RODRIGUES, Nelson. O remador de Ben-Hur: confissões culturais São Paulo: Companhia das Letras , 1996.
  • SÜSSEKIND, Maria Flora. Nelson Rodrigues e o fundo falso Brasília: Ministério da Educação e Cultura/Departamento de Documentação e Divulgação, 1977.
  • WOLF, Fausto. Toda nudez será castigada (I). Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro). Segundo Caderno, p. 2, 29 jun. 1965.
  • 1
    Ao longo de sua trajetória como jornalista, Nelson Rodrigues coloca em questão este processo de desumanização em suas memórias, no debate sobre obras artísticas de seu presente e passado, ao tratar de personagens políticos, da vida social, de eventos pontuais, de grandes mudanças estruturais etc. Desde os anos 1940, é possível identificar a presença dessa discussão em seus textos jornalísticos. Quando estes são analisados em conjunto, observa-se que essa discussão atravessa os anos muitas vezes com a repetição extensiva de argumentos ou mesmo de fragmentos já publicados anteriormente. Dessa forma, as citações aqui apresentadas são retiradas de textos de diferentes períodos. O critério que me levou à escolha das passagens apresentadas foi a possibilidade de tornar mais claros os argumentos discutidos. Há trechos citados de textos publicados alguns anos após a temporada de Toda nudez será castigada, mas, certamente, os argumentos ali veiculados já estavam sendo utilizados por Nelson em 1965.
  • 2
    No original: “la chute se produit dans l’esprit de l’homme [...]”. Tradução nossa.
  • 3
    No original: “s’est déroulé non en droite ligne mais en zig-zag.” Tradução nossa.
  • 4
    Realizei um estudo mais sistematizado e longo do projeto estético de Nelson Rodrigues em minha tese de doutorado. Cf. Gusmão (2011GUSMÃO, Henrique Buarque de. “Ficções purificadoras e atrozes”: o projeto estético do teatro de Nelson Rodrigues. Tese (Doutorado em História Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.).
  • 5
    As crônicas jornalísticas de Nelson Rodrigues que tratam de seu teatro, apesar de muito citadas por seus estudiosos, pouco foram estudadas sistematicamente. Vale destacar aqui, como duas exceções, os estudos de Adriana Facina (2004)FACINA, Adriana. Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004., que se propõe a fazer uma leitura antropológica desses textos, e outro por mim produzido (Gusmão, 2011), que propôs uma sistematização das crônicas que desse a ver um projeto estético rodrigueano.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2020
  • Aceito
    18 Maio 2021
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