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A medievalística e o “território do historiador”: entrevista com Hilário Franco Júnior

Medievalism and the “historian’s territory”: Interview with Hilário Franco Júnior

Resumo:

Nesta entrevista, Hilário Franco Júnior (1948- ), professor livre-docente aposentado da Universidade de São Paulo, reflete sobre temas e debates propostos pelos medievalistas e sobre algumas fases de sua trajetória acadêmica, que reúne mais de uma dezena de livros sobre Idade Média e dois prêmios Jabuti.

Palavras-chave:
Idade Média; Medievalística brasileira; Hilário Franco Júnior (1948-)

Abstract:

In this interview, Hilário Franco Júnior (1948- ), retired professor at the University of São Paulo, reflects on the themes and debates proposed by medievalists, and some phases of his academic career, which brings together more than a dozen books about Middle Age and two Jabuti awards.

Keywords:
Middle Age; Medieval studies in Brazil; Hilário Franco Júnior (1948- )

Com uma longa carreira docente na Universidade de São Paulo e períodos como professor visitante em universidades do país e do exterior, Hilário Franco Júnior é reconhecido, no mundo acadêmico, como um dos principais medievalistas brasileiros. É membro fundador da Associação Brasileira de Estudos Medievais (Abrem), que presidiu entre 1998 e 2001, criando a primeira revista do Brasil dedicada exclusivamente aos estudos medievais. Aposentado das lides da docência, distante de relatórios e reuniões departamentais, vive hoje entre Portugal e França. Entretanto, continua integrando o conselho consultivo da Abrem, do Centro de Estudos Medievais da Universidade da Borgonha (CNRS), em Auxerre, pensando e escrevendo sobre a Idade Média.

Georgina Silva dos Santos: O impacto das transformações climáticas atuais tem desafiado historiadores a se debruçarem sobre o assunto. Mas a obra de Emmanuel La Roy Ladurie, Histoire du climat depuis l’an mil veio a público em 1967 e foi pioneira sobre o tema. Os medievalistas estiveram sempre na vanguarda da historiografia?

Hilário Franco Júnior: Desde Heródoto, por condição quase inelutável, os historiadores partem do presente para estudar o passado, não o contrário, como muitas vezes se pensa. Consciente ou inconscientemente, direta ou indiretamente, o presente do historiador fornece os temas sobre os quais ele trabalha. No caso em questão (Ladurie, 2009LADURIE, Emmanuel Le Roy. Histoire du climat depuis l’an mil. Paris: Flammarion, [1967] 2009.), não é despropositado imaginar que algumas anomalias climáticas do seu momento histórico estimularam sua curiosidade por fenômenos semelhantes no passado: em 1964, na França (e um pouco por toda Europa) o inverno foi seco, a primavera fria e com neve; em 1965, o verão foi frio, teve máximas entre 10oC e 14oC em várias cidades; em 1966, o verão além de frio, foi úmido, com nevadas em algumas regiões. Embora tenha, às vezes, trabalhado com temas medievais, sobretudo em Montaillou, village occitan de 1294-1324, que vendeu mais de dois milhões de exemplares em uma trintena de línguas (Ladurie, 2009), Ladurie foi modernista, não medievalista, de profissão. Contudo, seu vanguardismo lembra o dos medievalistas, que, é verdade, desde Johan Huizinga e Marc Bloch, passando por Georges Duby e Jacques Le Goff, em vários momentos estiveram na ponta da historiografia por seus métodos e temas, ampliando o “território do historiador”, na consagrada expressão de Ladurie. É a estreiteza original do território dos medievalistas - documentação comparativamente restrita e sociologicamente viciada, produzida na quase totalidade pelo clero - que os força a explorar de forma criativa aquilo que têm em mãos.

GSS: Que pensadores influenciaram a sua formação intelectual? Por que?

HFJ: Ao contrário do que era comum na minha época de graduando e de doutorando, nunca tive um pensador-mestre, sempre acreditei, como Tomás de Aquino, que é preciso desconfiar (ele fala em “temer”) do homem de um livro só. Sobretudo se é um livro que “ensina” como pensar. Aqui acompanho Nietzsche: “desconfio de todos fabricantes de sistemas e me afasto de seu caminho.” Por outro lado, é evidente, ninguém pensa ex nihilo, e tive, ainda tenho, uma longa série de autores que me guiam, me estimulam, embora não poucas vezes me afaste de algumas de suas reflexões e proposições. Para reduzi-los ao essencial, fiquemos com três deles: Montaigne, Freud, Le Goff. Montaigne pela sua independência intelectual, pela sua humanidade, pelo relativismo com que olhava todas as coisas numa época muito presa a convicções de todos os tipos (como neste princípio de século XXI). Sua lição é preciosa: “Para mim, todos os argumentos são igualmente férteis.” O elogio que ele faz à ignorância não é a da ausência de conhecimento, e sim de uma ignorância erudita que, graças a muita leitura, muita observação, muita vivência, muita reflexão, percebe que só domina saberes parciais, fragmentados, incompletos. Dessa maneira, pode-se chegar socraticamente à única sabedoria sólida, a de saber que nada se sabe. Freud, por permitir explorar facetas do comportamento humano que a história anteriormente desconhecia, mesmo se continua em aberto na psicanálise o problema da aplicação para coletividades de conceitos formulados para indivíduos. Como Montaigne, mas com outros métodos, ele também detecta o relativismo que se deve ter, mesmo em relação ao próprio trabalho, como faz ao perguntar, retoricamente, em carta a Einstein: “Não será verdade que toda ciência se reduz, no final das contas, a um certo tipo de mitologia?” Relativismo indispensável, em especial a respeito de matérias que o negam por definição: “toda religião é uma religião de amor para aqueles que a adoram, e inclinada à crueldade e à intolerância para aqueles que estão excluídos dela.” Le Goff, por saber ler para além do sentido literal dos documentos históricos, revelando uma riqueza anteriormente insuspeita da Europa medieval. A fecundidade do seu trabalho fica patente ao verificar a amplidão de novos temas, tratados na sua visão de conjunto da Europa em La civilisation de l’Occident médiéval, traduzido em vinte línguas, inclusive o português (Le Goff, 1983), temas que ele próprio ou seus discípulos desenvolveriam depois em livros específicos: cores, gestos, corpo, iconografia (“abordar a civilização medieval apenas por meio dos textos seria ter dela uma imagem falsa e edulcorada”), sensibilidades etc. Tudo isso, ciente de que a nova massa de dados assim levantada não é importante em si mesma, pois a história não é um conjunto de fatos, é o significado atribuído a eles, o que muda a cada uma ou duas gerações de historiadores.

GSS: Você foi um dos grandes responsáveis pela consolidação da área de história medieval no país em um tempo em que só a história do Brasil merecia o respeito acadêmico. Como foi esse processo?

HFJ: Eu diria que no princípio, década de 1980, não foi fácil. O pouco que havia de financiamento de pesquisa raramente era destinado a trabalhos de história medieval, os editores eram reticentes em aceitar textos dessa área. Mas, a bem da verdade, nas universidades privadas e públicas em que trabalhei o interesse dos alunos nunca faltou. Talvez devido a esse movimento vindo de baixo, é que, com o tempo, a posição dos órgãos financiadores e dos editores tenha começado a mudar. Como expressão dessa nova popularidade da área, em 1996 um grupo de colegas, do qual fiz parte, pôde criar a Associação Brasileira de Estudos Medievais (Abrem), cujos congressos sempre contaram com um grande público e despertaram entusiasmo. Nesse contexto, na minha presidência da Abrem criei, em 1998, a primeira revista brasileira dedicada exclusivamente à Idade Média: a Signum.1 1 O periódico da Associação Brasileira de Estudos Medievais está disponível em https://abrem.org.br/index.php/signum. Acesso em: 10 jun. 2024. Revista, ouso dizer, de nível internacional, graças à colaboração preciosa de duas amigas e colegas, Lênia Márcia Mongelli (Letras-USP) e Eliana Magnani (CNRS-França). Apesar da inevitável flutuação de prestígio, dependente de cada geração de pesquisadores e professores, acredito que se possa afirmar que hoje a história medieval está solidamente instalada na paisagem acadêmica brasileira.

GSS: A Eva barbada e os Três dedos de Adão discutem, com máxima competência, as relações entre mito e história e o caráter extrabíblico de muitos elementos da mitologia cristã. O diálogo com a antropologia, a pluralidade das fontes, a erudição, são incontornáveis para quem estuda o imaginário religioso de uma época. E o que mais forma um bom medievalista?

HFJ: Marc Bloch dizia que o bom historiador deve ser como o ogro da lenda, gostar de carne humana e procurá-la em toda parte. A imagem tornou-se famosa, tendo sido aplicada a grandes medievalistas homenageados por obras coletivas, como L’ogre historien: Autour de Jacques Le Goff, dirigida por Jacques Revel e Jean-Claude Schmitt (1999REVEL, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude(orgs.). L’ogre historien: Autour de Jacques Le Goff. Paris: Gallimard, 1999.) e Come l’orco della fiaba: Studi per Franco Cardini, organizado por Marina Montesano (2010MONTESANO, Marina(org.). Come l’orco della fiaba: Studi per Franco Cardini. Firenze: Sismel-Galluzzo, 2010.). Com isso quero dizer que não basta a erudição específica sobre a Idade Média, é preciso um olhar aberto a outras áreas e épocas. A curiosidade intelectual é essencial. Por isso, nas duas obras citadas na pergunta (Franco Júnior, 1996; 2010) e talvez mais ainda na terceira parte dessa trilogia de ensaios sobre a mitologia medieval, A serpente, espelho de Eva (no prelo pela Edusp) há reflexões de método fundadas não somente nas ciências humanas. E estudos que acompanham determinados fenômenos na longa duração histórica. E recurso à documentação dos mais variados tipos e procedências. Enfim, penso que bom medievalista é aquele que conhece não apenas uns poucos temas ou décadas, e sim o conjunto - alargado, aquilo que Le Goff chamou de “longa Idade Média” - daqueles séculos nas suas múltiplas facetas.

GSS: Em um mundo que flerta com um futuro distópico, como o tema das utopias medievais, recorrente em sua obra, pode promover uma reflexão propositiva?

HFJ: Antes de tudo, queria ressaltar que o historiador das utopias não é um utopista. Posto isso, é claro que se pode extrair ensinamentos importantes das utopias do passado examinadas em profundidade, isto é, no cruzamento da história social com a história das ideias, a história religiosa, a antropologia, a psicologia. Na construção desse objeto, a questão conceitual é essencial, porque está cercada de muitas imprecisões e polêmicas. Por essa razão, no meu Em busca do paraíso perdido: as utopias medievais (Franco Júnior, 2021) reservei a ela uma das três partes do livro, 153 páginas. Equacionada essa questão, embora nunca chegue a ser consensual, quero crer que o leitor atento tem material suficiente para realizar suas próprias reflexões. Mas - é evidente - com os devidos cuidados para não transpor mecanicamente para o século XXI propostas concebidas para a realidade medieval. Dito de outra maneira, estudar as utopias medievais é um exercício intelectualmente estimulante, sem que possa disso extrair soluções para as dificuldades presentes.

GSS: Com uma carreira muito bem-sucedida como medievalista, você lançou seu olhar sobre o futebol e surpreendeu o público ao escrever dois livros sobre o tema. O interesse por torneios esportivos foi gestado em paralelo com suas pesquisas sobre Idade Média?

HFJ: Sim, porque historiador não é alguém que vive no passado. Marc Bloch contou um episódio expressivo a respeito, que reproduzo de memória. Ele passeava por uma cidade junto com outro grande medievalista, o belga Henri Pirenne, que disse querer visitar um edifício ali recentemente construído e justificou sua intenção: se fosse antiquário aquela modernidade não lhe interessaria, mas sendo historiador estava aberto às obras humanas de todos os períodos. Foi nesse episódio que Marc Bloch se inspirou para criar a metáfora do ogro historiador. Ora, o futebol é um produto social que me parece merecer atenção acadêmica, longe das platitudes jornalísticas, dos chavões populares. E foi, pessoalmente, um exercício muito interessante, no qual pude aplicar a um novo objeto leituras e reflexões de antropologia, ciência religiosa, linguística, psicanálise, sociologia. O alargamento dessas reflexões, acredito, enriqueceram meus seguintes trabalhos medievalísticos. Nunca é demais insistir que o conhecimento é um grande bloco, que se, atualmente, ninguém pode pretender abarcar, como fizeram Aristóteles ou Leonardo da Vinci nas suas épocas, não deve ser recortado em campos impermeável e esterilmente isolados. Sei que as regras atuais do jogo acadêmico levam a recortes estreitos e rígidos, porém, o historiador deve antes de tudo ser um intelectual, na acepção etimológica do termo, sem a conotação elitista e pejorativa que a palavra ganhou nos últimos tempos. Idealmente, o historiador para bem compreender o período que estuda, qualquer que seja ele, precisa conhecer a fundo sua arte, literatura, filosofia, religião, política, economia, demografia.

GSS: Você formou várias gerações de medievalistas na USP. Como vê a produção da área atualmente?

HFJ: Estando há vários anos fora do país, não posso dizer que tenho uma visão abrangente e precisa da situação atual. Mas tenho indicações positivas. Hoje as condições de bolsas de estudo, de atualização de bibliotecas universitárias, de importação pessoal de livros, de acesso informático a fontes primárias e textos - tudo, ou quase, inexistente na minha época - permite um salto, qualitativo, significativo da produção medievalística nacional. Os resultados continuam, todavia, a depender muito das competências e empenho pessoais de cada um. E também da capacidade de evitar certas armadilhas do contexto acadêmico. Como lembrei, anteriormente, todo historiador tem a tendência muito humana de projetar no passado as angústias e expectativas do seu presente. O fato é incontornável, porém, precisa ser policiado pelo próprio historiador, sobretudo em período de radicalismos como o nosso. Por exemplo, é preciso cuidado para, da globalização atual, não se extrapolar para uma suposta “história conectada” da Idade Média: os contatos e as trocas interculturais sempre existiram, mas colocar nisso a tônica do período é exagero. Outro exemplo é o da atual indignação pelo escravagismo e imperialismo da Época Moderna, atitude moralmente legítima, contudo, epistemologicamente anacrônica, por julgar (e isso não cabe jamais ao historiador) uma época tomando como referencial os valores de outra época. Em suma, se o potencial existente for bem explorado e os filtros ideológicos funcionarem a contento, pode-se ser otimista quanto ao futuro da medievalística brasileira.

Referências

  • FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval São Paulo: Edusp, 1996.
  • FRANCO JÚNIOR, Hilário. Os três dedos de Adão: ensaios de mitologia medieval São Paulo: Edusp, 2010.
  • FRANCO JÚNIOR, Hilário. Em busca do paraíso perdido: as utopias medievais. Cotia: Ateliê, 2021.
  • FRANCO JÚNIOR, Hilário. A serpente, espelho de Eva: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Edusp, no prelo.
  • LADURIE, Emmanuel Le Roy. Histoire du climat depuis l’an mil Paris: Flammarion, [1967] 2009.
  • LADURIE, Emmanuel Le Roy. Montaillou: cátaros e católicos numa aldeia francesa (1294-1324). Lisboa: Edições 70, [1975] s.d.
  • LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval Lisboa: Estampa, [1964] 1983. 2v.
  • MONTESANO, Marina(org.). Come l’orco della fiaba: Studi per Franco Cardini Firenze: Sismel-Galluzzo, 2010.
  • REVEL, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude(orgs.). L’ogre historien: Autour de Jacques Le Goff Paris: Gallimard, 1999.
  • 1
    O periódico da Associação Brasileira de Estudos Medievais está disponível em https://abrem.org.br/index.php/signum. Acesso em: 10 jun. 2024.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2024
  • Aceito
    10 Jun 2024
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