Acessibilidade / Reportar erro

As organizações internacionais durante a Guerra Fria: organizar o mundo, incorporar novos atores e discutir realidades possíveis

International organizations during the Cold War: organizing the world, incorporating new players and discussing possible realities

Resenha de KOTT, Sandrine. . Organizer le monde: Une autre histoire de la Guerre Froide . Paris: Seuil, 2021.

Resumo:

O livro Organizer le monde: Une autre histoire de la Guerre Froide analisa a trajetória da Guerra Fria do ponto de vista dos organismos internacionais e como esses são condicionados pelas disputas, assim como condicionam as políticas próprias e as das nações envolvidas.

Palavras-chave:
Guerra Fria; Organismos internacionais; Multilateralismo; História transnacional

Abstract:

The book Organizer le monde: Une autre histoire de la Guerre Froide analyzes the trajectory of the Cold War from the point of view of international organizations and how they are conditioned by the disputes, just as they condition their own policies and those of the nations involved.

Keywords:
Cold War; International organizations; Multilateralism, Transnational history

Os organismos internacionais começaram a ser estudados sob o impulso de uma dupla motivação. Por um lado, a proximidade do centenário da Liga das Nações, em 2019, incentivou os estudos sobre a criação de organizações que tinham como objetivo a regulação das relações entre as nações, logo depois do fracasso da diplomacia que derivou na Primeira Guerra Mundial. A outra motivação foi o renovado interesse pela história dos vínculos entre nações, coincidente com o crescimento da história global e transnacional. As críticas ao nacionalismo metodológico e a necessidade de compreender a conformação de instituições internacionais deram origem a uma série de estudos preocupados em compreender os fenômenos transnacionais e, principalmente, a constituição de um sistema de organismos e instituições que favorecessem políticas de diálogo entre as diferentes experiências nacionais. Nesta resenha vamos explicar o objetivo do livro Organizer le monde, de Sandrine Kott (2021KOTT, Sandrine. Organizer le monde: Une autre histoire de la Guerre Froide. Paris: Seuil, 2021.), assim como as suas motivações.

Esse processo de internacionalização e de estabelecimento de parâmetros comuns às sociedades ocidentais teve forte impulso com a Revolução Francesa. O ímpeto revolucionário se manifestou na expansão de organismos políticos renovados, como a consolidação da forma republicana de governo, ou instituições adaptadas às novas relações entre cidadãos e nações. Os cidadãos reivindicavam para si a possibilidade de administrar os Estados, não por direito natural, mas por eleição dos concidadãos, não importando naquele momento como pudesse ser essa eleição. Junto com a República veio um sistema para padronizar as medidas e, portanto, o comércio internacional. A imposição dessas novidades não foi automática nem instantânea, levou quase um século para que os Estados europeus se consolidassem na forma de repúblicas e para que o sistema métrico decimal, criado no primeiro período republicano francês, fosse adotado na Conferência Internacional de Pesos e Medidas (Paris, 1889KOTT, Sandrine. Organizer le monde: Une autre histoire de la Guerre Froide. Paris: Seuil, 2021.). Essa difusão de formas de governo e de medição do mundo foi se impondo juntamente com reflexões sobre a administração de conflitos entre nações e territórios, assim como para administrar o fluxo de mercadorias e pessoas. As crescentes interconexões de produtos dos novos meios de transporte, que se expandiam junto com a Revolução Industrial, levaram à busca de padrões para regular as relações inter-humanas em diferentes níveis, como a circulação internacional de pessoas que se deslocavam livremente em números nunca antes vistos. Esses deslocamentos traziam novos problemas a serem administrados, desde a filiação nacional dos migrantes à circulação de doenças antes restritas a determinados espaços.

Os Estados europeus, e pouco depois os americanos, recorreram a acordos negociados com o objetivo de diminuir a tensão entre si, inicialmente por meio de congressos de nações com as mesmas orientações ideológicas, como os diferentes encontros entre os governos monarquistas que se sucederam ao Congresso de Viena (1814 a 1815). Esses encontros continuaram posteriormente para tratar de questões pontuais ou assuntos regionais. Também foram realizados encontros para discutir temas específicos, como a Conferência de Berlim, de 1885, que discutiu a partilha da África. Nas Américas, as conferências interamericanas se sucederam do período independentista até 1884, quando se transformaram em encontros regulares com o nome de conferências panamericanas, visando reunir todos os países do continente. Se a Conferência de Berlim e, posteriormente, a de Bruxelas, se ampararam em questões humanitárias como o fim da escravidão e da venda de armas e álcool na África para estabelecer zonas de influência e administração nesse continente, as conferências panamericanas tiveram como objetivo ratificar a influência dos Estados Unidos no continente mas também iniciar a padronização das relações entre cidadãos, administrar as relações comerciais com sistemas que se inter-relacionassem, criar vínculos educacionais, científicos, turísticos entre outros.

Regular e organizar as relações entre Estados ou cidadãos de diferentes nações passou a ser recorrente no final da belle époque, principalmente com o estabelecimento de acordos internacionais como a Convenção de Genebra (1864 e 1906) e os Tratados de Haia (1899 e 1907), cujo objetivo era regular aspectos específicos da guerra e do tratamento de civis e feridos. Como parte dessas convenções e acordos foi criada, em 1864, a Cruz Vermelha. Aos poucos um novo sistema de organismos e acordos internacionais foi gerado, com o objetivo de regular as relações entre os Estados em momentos críticos, como a guerra. Depois da Primeira Guerra Mundial foram criadas, em 1919, outras duas importantes instituições: a Sociedade de Nações e a Organização Internacional do Trabalho, que reuniram grande parte dos Estados independentes do período. Essa breve e incompleta descrição da organização das instituições internacionais mostra que a história nacional tem seu desdobramento com a internacionalização e regulação das relações entre os Estados. A Primeira Guerra Mundial dinamizou as iniciativas para estabelecer uma paz duradoura, mantendo a hegemonia europeia e incluindo os Estados Unidos.

Mesmo com tais antecedentes, os historiadores não tínhamos nos preocupado com o tema, ou as abordagens estavam limitadas a histórias institucionais ou oficiais, como o livro de Alcock (1971ALCOCK, Antony. History of International Labor Organization. New York: Octagon Books, 1971.). A obra de Sandrine Kott aporta uma leitura renovada dos organismos internacionais, não como parte da história das relações internacionais, centrada em doutrinas e instituições, ou no vínculo entre países. É uma aproximação que parte da construção de uma história social e política que não está restrita ao âmbito do local ou do nacional. Desde o livro de Akira Iriye, Global community (2002IRIYE, Akira. Global community: The role of international organizations in the making of the contemporary world. Berkeley: University of California Press, 2002.), os organismos internacionais começaram a ser vistos como instituições que dão sentido à forma em que determinados temas e preocupações circulam e se tornam chaves interpretativas da contemporaneidade. Temas que iam das relações trabalhistas à forma de organização das finanças nacionais, antes restritos ao âmbito nacional, ganharam perspectiva transnacional. Os historiadores temos a tendência a pensar que esses temas são produto das discussões nacionais, enfatizando essa perspectiva, sem perceber o papel legitimador ou o sentido prévio que adquirem na comunidade internacional. A interpretação de Iriye teve como ponto de partida a necessidade de compreender como funcionava a globalização e foi produto de uma nova tendência historiográfica que viria a ser conhecida como história transnacional. O livro de Sandrine Kott está centrado em entender a Guerra Fria, uma vez que a globalização é parte da nossa compreensão da realidade.

A partir desse momento, instituições e políticas setoriais foram analisadas pelos pesquisadores considerando uma política específica ou uma instituição em particular. Dessa forma, temos estudos sobre uma instituição determinada, como a Organização Internacional do Trabalho ou a Liga das Nações (como é o caso de Maul, 2017MAUL, Daniel. Derechos humanos, desarrollo y descolonización: La Organización Internacional del Trabajo entre 1940 y 1970. Barcelona: Plaza y Janes, 2017.; Ferreras, 2012FERRERAS, Norberto O. La construcción de una Communitas del Trabajo: las relaciones de la Organización Internacional del Trabajo (OIT) y América del Sur durante la década de 1930. Dimensões: Revista de História da Ufes, v. 29, p. 3-21, 2012. ou Cottrell, 2018COTTRELL, Patrick. The League of Nations: Enduring legacies of the first experiment at world organization. London: Routledge, 2018.). Em paralelo, temos estudos sobre políticas para questões específicas da comunidade internacional como a escravidão (ver Miers, 2003MIERS, Suzanne. Slavery in the twentieth century: The evolution of a global problem. London: Altamira Press, 2003. e Ribi Forclaz, 2015RIBI FORCLAZ, Amalia. Humanitarian imperialism: The politics of anti-slavery activism, 1880-1940. Oxford: Oxford University Press, 2015.), a questão indígena (como Rodríguez-Piñeiro, 2005RODRÍGUEZ-PIÑEIRO, Luis. Indigenous peoples, postcolonialism, and international law: The ILO regime, 1919-1989. Oxford: Oxford University Press, 2005.) ou as políticas feministas, entre outros temas e questões (por exemplo, Boris, Hoehtker e Zimmermann, 2018BORIS, Eileen; HOEHTKER, Dorothea; ZIMMERMANN, Susan(eds.). Women’s ILO: Transnational networks, global standards, and gender equity, 1919 to present. Leiden: Brill; ILO, 2018.; e Boris, Trudgen Dawson e Molony, 2021BORIS, Eileen; TRUDGEN DAWSON, Sandra; MOLONY, Barbara(eds). Engendering transnational transgressions: From the intimate to the global. London: Routledge, 2021.). O interessante dessas pesquisas é que os autores alargaram o escopo da análise, demonstrando interesse por circulação de saberes, ampliação da escala das políticas, conformação de uma burocracia transnacional, divergências entre os países membros, entre outros temas. As organizações internacionais deixaram de ser instituições monolíticas com posições homogêneas, passando a ser vistas e analisadas como campos de discussão sobre as posições de cada país membro e como espaço de circulação de saberes.

O livro de Sandrine Kott se inscreve nessa tradição. É uma nova leitura dessas instituições assim como uma aproximação que complexifica o estudo dos organismos internacionais. A autora não discute a conformação de uma comunidade global; o interesse do livro está na forma como essa comunidade global constrói sentidos em contextos determinados. Sem ser uma narrativa da Guerra Fria, o livro assume esse marco temporal, desde os seus inícios até a queda do bloco soviético. Porém, a preocupação está centrada na conformação de uma comunidade profissional e epistêmica que tem como objetivo organizar o mundo, tal o subtítulo do livro. Portanto, a autora vai percorrer diversos caminhos para poder responder a essa questão, analisando a conformação de instituições permanentes que tratam de questões transnacionais, as políticas dessas instituições, os seus funcionários, a forma como se financiam, a constituição de um corpo profissional transnacional que atua nas diversas instituições e o impacto que têm em determinadas áreas. A Guerra Fria é o contexto e o subtexto para compreender as motivações e ações das lideranças dessas organizações. A autora nos apresenta antecedentes e origem de boa parte dos escolhidos para coordenar essas instituições e seus principais programas. O livro nos mostra que as instituições são formadas por pessoas que têm trajetórias prévias. E essas trajetórias, vínculos, preocupações e relações condicionam a forma como as políticas são enunciadas em assembleias multitudinárias onde a voz dos Estados membros e seus interesses são decisivos, porém, no momento do planejamento e da execução, os responsáveis são funcionários de carreira ou temporários que dependem tanto da sua expertise quanto dos seus contatos e vínculos profissionais preexistentes.

O período estudado é o da Guerra Fria, que deve ser visto como o momento de disputa entre dois modelos diferentes e em conflito, o que acaba ordenando o funcionamento dessas organizações. Para a autora, a Guerra Fria é a disputa entre o modelo do capitalismo liberal, que priorizava liberdade e democracia, e o socialismo de Estado, baseado na igualdade e na solidariedade. Ambos, capitalismo e socialismo, são polos ideológicos e não refletiam necessariamente o comportamento desses dois blocos ante determinados temas. Colocado dessa forma, o livro pareceria retomar parte dos debates clássicos da Guerra Fria: Estados Unidos em conflito com a União Soviética. Porém, Sandrine Kott vai nos levar pelos corredores e salas dessas organizações para mostrar que esses dois horizontes ideais tiveram que lidar com interesses próprios e de seus aliados, com a idiossincrasia dos funcionários designados, com a necessidade de acordos entre as partes para que as instituições funcionassem e com a expertise dos corpos profissionais encarregados.

A diversidade de organismos e o funcionamento mais ou menos curto ou prolongado são centrais para cada um dos períodos em que a autora divide a Guerra Fria, porque entende que esses organismos são sujeitos vivos, que não têm sua existência garantida.

O livro interpela os estudos da Guerra Fria ao tratar a questão dos organismos internacionais pelo lado de dentro, assim como analisa os temas que foram se impondo em cada etapa do período. Os objetivos dos organismos foram mudando. Nos momentos iniciais, a preocupação estava restrita à reconstrução da Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial, com políticas assimétricas para a União Soviética, o principal aliado na derrota ao nazismo e o novo inimigo no dia posterior ao conflito. Para poder acompanhar as mudanças são analisados os organismos internacionais considerando que nem todos incluíam todos os países, pois alguns eram regionais, e que as instituições vão construindo objetivos próprios. Sandrine Kott nos leva a considerar os diferentes tipos de organizações: o sistema da ONU, os organismos regionais, as organizações internacionais que complementavam ou influenciavam os organismos anteriores e, ainda, as grandes fundações internacionais, que tanto podiam complementar os trabalhos do sistema da ONU quanto tinham seus próprios objetivos.

A forma como Organiser le monde está periodizado nos obriga a repensar as etapas da Guerra Fria: da Europa bipolar como ponto de partida, o livro mostra como surge o Segundo Mundo e, posteriormente, o Terceiro Mundo. Em meio a esses processos temos a internacionalização da Guerra Fria e a convergência europeia em temas específicos, finalizando com a deriva do internacionalismo ao globalismo. Definitivamente, Organiser le monde de Sandrine Kott nos obriga a pensar as relações internacionais a partir das práticas e políticas discutidas e apresentadas pelos organismos internacionais. Esses não são o centro da Guerra Fria, mas devem ser vistos como espaços de disputa e de ação no cenário internacional.

O livro Organiser le monde foi publicado em inglês em 2023 com o título A world more equal: An internationalist perspective on the Cold War publicado pela Columbia University Press.

Referências

  • ALCOCK, Antony. History of International Labor Organization New York: Octagon Books, 1971.
  • BORIS, Eileen; HOEHTKER, Dorothea; ZIMMERMANN, Susan(eds.). Women’s ILO: Transnational networks, global standards, and gender equity, 1919 to present Leiden: Brill; ILO, 2018.
  • BORIS, Eileen; TRUDGEN DAWSON, Sandra; MOLONY, Barbara(eds). Engendering transnational transgressions: From the intimate to the global London: Routledge, 2021.
  • COTTRELL, Patrick. The League of Nations: Enduring legacies of the first experiment at world organization London: Routledge, 2018.
  • FERRERAS, Norberto O. La construcción de una Communitas del Trabajo: las relaciones de la Organización Internacional del Trabajo (OIT) y América del Sur durante la década de 1930. Dimensões: Revista de História da Ufes, v. 29, p. 3-21, 2012.
  • IRIYE, Akira. Global community: The role of international organizations in the making of the contemporary world Berkeley: University of California Press, 2002.
  • KOTT, Sandrine. Organizer le monde: Une autre histoire de la Guerre Froide Paris: Seuil, 2021.
  • MAUL, Daniel. Derechos humanos, desarrollo y descolonización: La Organización Internacional del Trabajo entre 1940 y 1970 Barcelona: Plaza y Janes, 2017.
  • MIERS, Suzanne. Slavery in the twentieth century: The evolution of a global problem London: Altamira Press, 2003.
  • RIBI FORCLAZ, Amalia. Humanitarian imperialism: The politics of anti-slavery activism, 1880-1940 Oxford: Oxford University Press, 2015.
  • RODRÍGUEZ-PIÑEIRO, Luis. Indigenous peoples, postcolonialism, and international law: The ILO regime, 1919-1989 Oxford: Oxford University Press, 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2023
  • Aceito
    20 Fev 2024
EdUFF - Editora da UFF Instituto de História/Universidade Federal Fluminense, Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bloco O, sala 503, 24210-201, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, tel:(21)2629-2920, (21)2629-2920 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: tempouff2013@gmail.com