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A ação jurídica e a emenda da consciência no Portugal dos Avis

The legal action and the amendment of conscience in Portugal during the Age of the Avis Dynasty

Resumo:

No Portugal do limiar século XV, a dinastia de Avis intensificou a reforma de costumes não apenas no âmbito da corte, mas em diversas regiões com a finalidade de edificar parâmetros cristãos de conduta para os nobres e demais homens. Tratava-se de uma política reforçada pela atuação de bispos interessados em estabelecer critérios de ação para clérigos e leigos a partir de constituições promulgadas em sínodos reformistas. Cruzando impressões de membros da casa de Avis com diferentes prescrições de bispos, este artigo visa examinar a complementaridade das ações monárquicas e eclesiásticas no fortalecimento do foro interior com destaque a autores da primeira metade do quatrocentos e às repercussões de seus debates em obras das décadas seguintes. Mais precisamente, o alvo consiste em analisar os jogos de poder que definiram os espaços de emenda da consciência no reino português quatrocentista.

Palavras-chave:
Portugal; Século XV; Reforma

Abstract:

In Portugal on the threshold of the 15th century, the Avis dynasty intensified the reform of customs not only within the court but also in various regions with the aim of establishing Christian parameters of conduct valid for nobles and other men. This was a policy reinforced by the actions of bishops interested in establishing criteria for action for clergy and laity based on constitutions promulgated in reformist synods. By juxtaposing impressions of members of the House of Avis with prescriptions of bishops, this article aims to examine the complementarity of monarchic and ecclesiastical actions in strengthening the inner forum, highlighting the authors of the first goal of the fifteenth century and the repercussions of their debates in works of the following decades. In other words, the aim is to analyze the power dynamics that defined the spaces for the amendment of conscience in the Portuguese kingdom of the fifteenth century.

Keywords:
Portugal; 15th century; Reform

Num período em que o poder monárquico português expandia a produção de obras de cunho catequético, o rei D. Duarte (1433-1438) produziu o Leal conselheiro, no qual compilou conselhos e advertências que havia elaborado durante a vida. Dirigido à formação dos nobres de Portugal, esse tratado notabiliza-se por ser escrito por um monarca e sustentar uma ação evangelizadora conduzida pela Coroa (Ventura, 1997VENTURA, Margarida Garcez. Igreja e poder no século XV: dinastia de Avis e liberdades eclesiásticas (1383-1450). Lisboa: Colibri, 1997., p. 52). Colocando-se como guia espiritual de seu séquito e responsável pela formação de seus pares, o Rei-Filósofo disserta sobre o poder curativo da caridade, das lágrimas e da confissão, apresentando um conjunto de exercícios espirituais prescritos na época por confessores, bispos e outras autoridades eclesiásticas para regular as práticas piedosas e penitenciais dos nobres portugueses. São recomendações como essa, em que o nobre é alvo de conselhos sobre a redenção dos pecados, que tornam a obra do rei letrado uma espécie de síntese das admoestações correntes no período para promover a aprendizagem de práticas devocionais em solo português.1 1 No que diz respeito à obra, o pesquisador José Gama (1991, p. 389), especialista na produção de D. Duarte, argumenta: “A profunda consciência do dever no exercício da sua missão governativa, com a administração geral da aplicação da Justiça e com o exemplo vivo da virtude que o rei deveria ser para os súbditos, aliavam-se à necessidade de orientar e solidificar a nova ordem política instaurada com a dinastia de Avis”.

Essa obra ajudou a construir um projeto não apenas de formação de uma corte virtuosa, mas também de um reino católico e devoto, na medida em que definia a reforma dos costumes dos nobres como uma política régia. Além disso, o tratado reconhece a correção e a admoestação dos súditos como uma das atribuições do poder monárquico, de modo que o governo das almas seria incluído no rol de tarefas dos reis de Avis. Embora não se configure como um espelho de príncipes nos moldes do Regimento de príncipes, de Egídio Romano (1243-1316) - obra que se tornou uma das principais referências desse gênero nas cortes católicas dos séculos XIV e XV -, o Leal conselheiro investe numa política de emenda de corpos e almas dos súditos portugueses edificando um modelo de gestão comprometido com a formação do indivíduo, célula basilar da sociedade, bem como com a condução das cidades e do reino (Gama, 1999GAMA, José. A geração de Avis. In: CALAFATE, Pedro (dir.). História do pensamento filosófico português. Lisboa: Caminho, 1999. v. 1, p. 379-411., p. 385). Esse tratado insere-se num movimento moralizante do final da Idade Média, encabeçado por obras como a de Egídio Romano, que fazem da exemplaridade do governante condição indispensável para a prática do ofício real. A direção do Estado demandava de seus gestores a obrigação de conduzir seus súditos por caminhos virtuosos, apresentando-se como inspiração e fazendo de suas leis uma estratégia para fiéis se preocuparem com sua salvação.2 2 Como destaca o filósofo Michel Senellart (2006, p. 31): “Um fio contínuo, com efeito, liga a conduta de si, a administração doméstica e a direção do Estado. O príncipe governa seu reino da mesma maneira que seus próprios desejos, sua mulher, seus filhos, seus domésticos: trata-se, em cada nível, de conduzir uma multidão para o fim virtuoso que lhe corresponde”. Nesse sentido, as práticas do governo estavam revestidas por um arcabouço teológico que alinhava o ato de reger aos compromissos espirituais do monarca, de maneira que as esferas públicas e privadas da vida se encontravam entrelaçadas pelos mesmos parâmetros morais.3 3 O surgimento de “uma teoria autoconsciente de Estado soberano” aparece posteriormente, com o Leviatã, de Thomas Hobbes (Skinner, 1996, p. 69).

Em Portugal, a primeira metade do século XV assiste tanto ao remodelamento da corte e da chancelaria com o surgimento das casas dos infantes D. Duarte, D. Pedro (1392-1449) e D. Henrique (1394-1460) (Homem, 1990HOMEM, Armando Luís de Carvalho. Portugal nos finais da Idade Média: Estado, instituições, sociedade política. Lisboa: Livros Horizonte, 1990., p. 24) quanto ao uso mais regular do vernáculo na prosa doutrinária (Gama, 1999GAMA, José. A geração de Avis. In: CALAFATE, Pedro (dir.). História do pensamento filosófico português. Lisboa: Caminho, 1999. v. 1, p. 379-411., p. 386). Nesse contexto de reestruturação do poder régio em que novos grupos de nobres se consolidavam ao lado de príncipes e de reis, uma aristocracia laica e eclesiástica tornava-se alvo de conselhos e advertências a fim de auxiliar no governo do reino, na gestão das pessoas e, inclusive, das almas daqueles sob suas responsabilidades. Por meio de tratados como o Leal conselheiro e outras obras escritas por outras modalidades de governantes como as constituições de sínodos, evidencia-se que os poderes régio e eclesiástico deveriam criar condições para os indivíduos atingirem a salvação (Cf. Muniz, 2001MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Os leais e prudentes conselhos de El-Rei D. Duarte. In: MONGELLI, Lênia Márcia (coord.). A literatura doutrinária na Corte de Avis. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 245-305., p. 248). Mais do que a concorrência de poderes ou as estruturas administrativas, o presente estudo foca nas ações complementares de reis e bispos que possibilitaram o enraizamento de um plano de governo de almas e corpos no Portugal quatrocentista. Em outras palavras, a proposta consistirá em analisar o estabelecimento de poderes que se notabilizaram pelo governo de almas, reforma dos costumes e correção da consciência de homens que se assumiam como pecadores.

Poder pastoral e paternal

Sobre a responsabilidade do governante, o monarca D. João I (1357-1433), pai de D. Duarte, afirma que o rei não poderia esquecer que Deus lhe entregara “muita gente” para ser regida e, por isso, tinha um grande encargo na Terra (D. João I, 1918, cap. V, p. 34).4 4 “[...] e quando o corresse por esta entençom, em parando mentes, em como Deus lhe deu a reger tam muyta gente, e como lhe tem dado tam grande encarrego pera o bem reger [...]”. No corpo do artigo, atualizamos o português e deixamos a citação do documento em nota. O ato de governar se configurava como uma espécie de exercício espiritual por preparar a alma do príncipe para a sua salvação, isto é, sempre que o governante regesse em prol de sua comunidade poderia beneficiar-se da graça divina. Esta perspectiva ecoou pela Virtuosa benfeitoria,5 5 Obra escrita pelo irmão de D. Duarte e também filho de D. João I, o infante D. Pedro, junto com o confessor frei João Verba. obra em que o príncipe é descrito como o “atamento pelo qual as pessoas do povo são entre si juntadas”,6 6 Trata-se de uma premissa de Sêneca, retirada da obra Da clemência. sendo um muro que protegeria os súditos, já que sem os conselhos de um “principal senhor” estariam desamparados (D. Pedro, Verba, 1981D PEDRO; VERBA, João. O livro da virtuosa benfeitoria. In: ALMEIDA, Manuel Lopes (dir.). Obras dos príncipes de Avis. Porto: Lello & Irmão, [c.1430/1433], 1981. p. 529-763., cap. XVI, p. 595).7 7 “Desto Seneca em o primeyro liuro de clemençia, falla prolongadamente, dizendo o prinçipe he atamento per o quall as perssoas do poboo som antre sy iuntadas, elle he muro, en que os sobiectos som guardados, e spirito perque a multidooem he defessa, a quall non seendo soportada per consselho de huu- principal senhor, ella per suas meesmas forças seria quebrantada, e premuda do seu proprio peso”. A tarefa de protetor da fé também lhe teria sido outorgada por conjuntos de leis, como as Ordenações afonsinas, obra em que se determina que todo rei e príncipe tem de agir para proteger os súditos “dos pecados e maldades tangentes ao Senhor Deus, de cuja mão tem o regimento, e seu Real Estado”. O governante que assim não fizesse teria de ser “reputado por indigno, e desmerecedor da mercê e benefício que Dele recebeu”; como se tivesse “incorrido em pecado de ingratidão” (Ordenações afonsinas, 1792, livro V, tít. 1, art. 1, p. 3).8 8 “E pois que todo Rey, e Princepy antre todallas outras cousas deve principalmente amar, e guardar justiça, deve-a guardar, e manteer em especial á cerca dos peccados, e maldades tangentes ao Senhor DEOS, de cuja maaõ tem o regimento, e seu Real Estado, como dito he; e aquelle, que o assy nom fezesse, deveria seer reputado por indigno, e desmerecedor da mercee, e beneficio, que delle recebeo; e assy como aquelle que ouvesse encorrido em peccado de ingratidooem [...]”. Trata-se de um capítulo sobre a punição dos hereges pelo poder régio que confirma a autoridade do gládio temporal como esfera responsável pela preservação da justiça.

O príncipe incorporava a função de pastor de seus súditos, porquanto, como vigário de Cristo na Terra, precisava garantir todas as condições para que eles professassem sua fé (Ventura, 1997VENTURA, Margarida Garcez. Igreja e poder no século XV: dinastia de Avis e liberdades eclesiásticas (1383-1450). Lisboa: Colibri, 1997., p. 76-77), ou seja, deveria proteger igrejas, zelar pela celebração dos sacramentos e defender o catolicismo de qualquer ameaça. Como pastor, os monarcas avisinos tanto investiam na produção e/ou tradução de livros para o espírito (Marques, 2001MARQUES, António H. de Oliveira. Introdução. In: MONGELLI, Lênia Marcia (coord.). A literatura doutrinária na Corte de Avis. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. XI-XXVI., p. XII) como assumiam como causa régia a reforma do clero português, permitindo uma atuação mais eficiente dos clérigos e exigindo que fossem zelosos por seu estado (Carvalho, 2016CARVALHO, José Adriano de Freitas. Antes de Lutero: a Igreja e as reformas religiosas em Portugal no século XV. Anseios e limites. Porto: Citcem; Afrontamento, 2016., p. 20-21). Além disso, o monarca teria de facilitar o enraizamento de práticas devocionais e se evidenciar como modelo de cristão devoto para seus súditos (Ventura, 2013, p. 103-104). A tarefa do príncipe não se resumia apenas a administrar a chancelaria, zelar pela paz ou praticar a guerra justa; além disso, teria igualmente, de garantir aos indivíduos condições para que manifestassem sua fé, se convencessem do potencial salvífico da palavra divina e se sentissem seguros em suas habitações.

A Virtuosa benfeitoria considera que os príncipes são, além de pastores em seus reinos, “pais de seus próprios súditos” e responsáveis por acorrê-los em suas mínguas (D. Pedro, Verba, 1981D PEDRO; VERBA, João. O livro da virtuosa benfeitoria. In: ALMEIDA, Manuel Lopes (dir.). Obras dos príncipes de Avis. Porto: Lello & Irmão, [c.1430/1433], 1981. p. 529-763., cap. IX, p. 578).9 9 “Porem como os principes seiam padres dos seus proprios subdictos, os quaaes eles geeram assy como naturaaes marydos com a terra que he seu senhorio. Seguesse que lhes deue fazer bem acorrendo aas minguas das suas feyturias”. O caráter paternal da atuação dos príncipes é bem evidenciado pelo emprego do verbo “governar” no sentido de conduzir ou dirigir (Machado, 2015MACHADO, José Barbosa. Dicionários dos primeiros livros impressos. Braga: Edições Vercial, 2015. v. 2., v. 2, p. 548), ou seja, percebe-se o apelo para a noção do governo como guia de almas e corpos. Assim, o governante teria de orientar seus súditos com o mesmo afinco com que cuidava de seus filhos, esposa e outras pessoas de sua casa e, como uma espécie de pai, deveria zelar por todos os fiéis de seu reino para lhe obedecerem, seguirem suas leis e diretrizes. Não se tratava, pois, de um poder coercitivo que anulasse vontades individuais ou precisasse submeter à força, num movimento vertical de dominação, princípios e regras (Senellart, 2006SENELLART, Michel. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2006., p. 99). Essa definição de governante justo e virtuoso reverberou em Portugal através da Cartinha para ensinar a ler, do bispo de Ceuta e Viseu, D. Diogo Ortiz (1457-1519), obra esta mais tardia e impressa no início do século XVI. Partindo dos “Salmos” de Salomão e se inspirando no espelho de príncipe De regno, de São Tomás de Aquino (1225-1274), o prelado elenca cinco tipos de prudência: “monástica, econômica, política, regnativa e militar” (Cartinha..., 2019CARTINHA para ensinar a ler. In: TEODORO, Leandro Alves (ed.). Guias dos costumes cristãos: os primeiros opúsculos pastorais em língua portuguesa. São Paulo: Editora Unifesp, 2019. p. 341-387., p. 377).10 10 “Cinco maneiras a de prudencia, scilicet, modestica yconomica /25v/, poletica, regnativa e militar” (Ortiz, 15-, f. 25r-25v). A prudência regnativa servia para ensinar ao “o rei e governador como hão de reger e governar o reino, o povo, os súditos e a comunidade, dando algumas doutrinas”. A primeira dessas doutrinas é: “se queres que teus súditos te amem, obedeçam, sirvam e façam tua vontade, faz tu assim a Deus, teu Senhor. A segunda, toda tua governação e todo teu regimento sejam endereçados ao serviço de Deus, ao bem do reino e da comunidade. A terceira: procura mais seres amado do que temido” e continua com outras recomendações, contabilizando-se um total de doze conselhos sobre esse segmento da prudência (Cartinha..., 2019CARTINHA para ensinar a ler. In: TEODORO, Leandro Alves (ed.). Guias dos costumes cristãos: os primeiros opúsculos pastorais em língua portuguesa. São Paulo: Editora Unifesp, 2019. p. 341-387., p. 379).11 11 “A prudencia regnativa ensina el rey e governador como a de reger e governar ho regno, povoo, subditos e comunidade, dando algumas doctrinas. A primeira se queres que teus subditos te amam e obedeçam e sirvam e façam tua vontade, faz tu assy a Deos teu Senhor. A .ii. toda tua governaçam e regimento seja endereçado ao serviço de Deos e ao bem do reyno e comunidade. A .iii. procura mais de seres amado que temido” (Ortiz, 15--, f. 27r).

A edificação de um reino virtuoso demandava um princípio diretor, isto é, um governante comprometido em dirigir uma comunidade rumo ao bem comum (Senellart, 2006SENELLART, Michel. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2006., p. 176). No Cathecismo pequeno, impresso em 1504, D. Diogo Ortiz diferencia a prudência da astúcia, alegando que, enquanto a primeira prepara o governo para o bom fim, a segunda “é achar caminhos convenientes para mau fim” (Ortiz, 2001ORTIZ, Diogo. Cartinha pera e[n]sinar leer: cõ as doctrinas da prude[n]cia e regra de viuer em paz. Lixboa: per Germã Galharde, 1509., Segunda Parte, cap. XVI, p. 201).12 12 “Prudencia falsa he achar caminhos cõvenientes pera mao fim, e chama se astucia”. Nessa perpectiva a trajetória de um homem e de toda sociedade estava ordenada para um mesmo propósito transcendente, o Juízo Final e a glória da beatitude divina (Cf. Caillé, 2004CAILLÉ, Alain. Amor de Deus, da caridade à beatitude. In: CAILLÉ, Alain; LAZZERI, Christian; SENELLART, Michel (orgs.). História argumentada da filosofia moral e política: a felicidade e o útil. Tradução de Alessandro Zir. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004. p. 119-194., p. 187-188; Senellart, 2006SENELLART, Michel. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2006., p. 176); o governante não poderia perder esse princípio de vista e deveria se esforçar para se encaminhar os súditos para a felicidade plena.

A eficiência do poder régio e eclesiástico não ocorria pela interdição, ameaça ou apenas coação, mas, especialmente a partir da incitação à prática da virtude, assim devendo o governante se conceber como exemplo aos seus súditos. A envolvência paterna que revestia a figura de um monarca confirmava essa perspectiva ao torná-lo cativante, e não ameaçador, ao fazer de seu corpo fonte de inspiração. Aliás, o modelo de rei cristão, fincado na Bíblia (Dt. 17:14-20), distinguia-se por suas qualidades como protetor dos súditos e garantidor das práticas devocionais sendo elas, portanto, opostas às ações deliberativas de dominação de homens e terras (Senellart, 2006SENELLART, Michel. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2006., p. 113). Num cenário movido pela crença da prestação de contas da alma no Juízo, a opressão e a dominação eram vistas como desvirtudes de um rei, de modo que o bom governante deveria ser um católico de ações exemplares em diferentes segmentos de sua existência.13 13 A necessidade de destacar a atuação dos monarcas em diferentes segmentos de suas vidas é notória nas crônicas régias, como na de D. Duarte, elaborada pelo terceiro cronista-mor e guarda-mor da Torre do Tombo, Rui de Pina. Sobre a vida desse monarca, assevera o cronista: “[...] foy Principe muy Catholico e amigo de Deos, de que deu clara prova a boa vontade e grande devaçam com que sempre recebia os Sacramentos, e ouvya os Officios Divinos, e compria muy perfeiramente as Obras da Misericordia [...] nacêo natural eloquente, porque Deos ho dotou pera ysso com muitas graças: no comêr, e beber, e dormir foi muy temperado, e asy dotado de todalas outras perfeiçoo˜es do corpo, e d’alma”. O fato de uma crônica como essa abrir espaço para historiar o cotidiano da vida de um rei é um forte indício da importância dada na época para fazer dessas ações pessoais espelho de conduta (Pina, 1977, cap. III, p. 495).

A gestão da vida doméstica complementava o governo de outras esferas da existência na medida em que a prática do poder demandava cuidados consigo, com seus familiares e com aqueles sob sua proteção corporal e espiritual. Num amplo plano que engloba o governo da própria alma, das vilas e, numa escala maior, de Portugal, a lealdade é apontada por D. Duarte como a virtude responsável por estabelecer a harmonia nesses três âmbitos.14 14 Como afirma D. Duarte: “E assi presta muito no boo estado dos reinos, cidades e vilas. Por ende me parece seer muito necessaria em todos tres regimentos, scilicet no da pessoa, por manteer lealdade a Nosso Senhor, como dicto é; no da casa, por aguardar a el, que toda maldade nos defende; e desi a todos home-s e molheres, segundo é razom” (D. Duarte, 1999, cap. CIII, p. 374-375). Para a conservação da saúde do espírito no nível mais elementar da existência, o rei letrado recomenda que se preserve “a lealdade a Nosso Senhor”, ou seja, que se mantenha a devoção como meio de contrição e respeito a Deus. Além disso, os fiéis, em especial os governantes, deveriam ser leais aos seus filhos, maridos ou esposas, alimentando a relação tanto com o plano divino quanto com seus familiares por meio de emoções sinceras (D. Duarte, 1999D. DUARTE. Leal conselheiro. Edição crítica, introdução e notas de Maria Helena Lopes de Castro. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, [1435-1438], 1999., cap. CIII, p. 374).15 15 “E pera guardar esta lealdade acerca de Nosso Senhor, o mais que tenho em este trautado scripto esto conselha, ensina e avisa [...]. / No regimento da casa, quanto bem faz lealdade, e mal se recrece non seendo guardada antre marido e molher, padre e filhos, senhor e servidores, e antre os boos amigos, os exempros bem o demonstram; ca non é outra cousa maior fundamento pera com todas estas pessoas viver em paz e boa concordia, ca lealdade com boo entender bem guardada. Ca esta nos faz chegar e assessegar em verdadeira amizade, que per todos sabedores é tam louvada”.

São aspectos do governo da alma do governante que também foram abordados em outro tratado português, o Do governo da república pelo rei (De republica gubernanda per regem), de Diogo Lopes Rebelo (14??-1498), publicado em 1496. Ao abordar as práticas dos governantes, este jurista e gramático recomenda que “[...] deve o rei ser muito solícito nos ofícios divinos, para que com muita devoção e reverência os ouça”. Além disso, “se os outros cristãos não são obrigados a ouvir a missa, senão ao domingo [...], o rei, pela excelência da sua dignidade, deve ouvi-la todos os dias com muita devoção e, durante a sua celebração, meditar nos mistérios da Sacratíssima Paixão de Cristo [...]” (Rebelo, 2000REBELO, Diogo Lopes. Do governo da república pelo rei:tratado das produções das pessoas [divinas]. Edição de Manuel Cadafaz de Matos; tradução de Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Tavola Redonda, [1496] 2000., cap. 4, p. 75). Assim como D. Duarte, Diogo Lopes Rebelo defende que o governante seja modelo de devoção tendo não apenas de meditar cotidianamente sobre a consagração da hóstia e a presença de Cristo no mundo, mas também agir para o fortalecimento da Igreja; ou seja, para ele, a fé se confirmava ao se refletir sobre os sacramentos e ao colaborar com as políticas pastorais. É por isso que ele acrescenta: “Trabalhará também o rei, quanto puder, para que o culto divino aumente incessantemente” e encarregará os benefícios eclesiásticos a clérigos “probos, doutos e sábios” (Rebelo, 2000REBELO, Diogo Lopes. Do governo da república pelo rei:tratado das produções das pessoas [divinas]. Edição de Manuel Cadafaz de Matos; tradução de Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Tavola Redonda, [1496] 2000., cap. 4, p. 75-76).

Dos primeiros tratados avisinos à obra de Diogo Lopes Rebelo notabiliza-se o objetivo de potencializar a força diretiva dos reis para cuidar da paz do reino e da saúde da alma dos súditos, de maneira que a integridade material se complementava pela preservação da devoção. Ao invés de ser desrespeitoso e tirânico, o príncipe de Avis tinha de ser leal de coração aos seus súditos e assim se esforçar para agir como pai e pastor na gestão do reino. Tal combinação de feição pastoral e paternal servia para responsabilizá-lo, dessa forma, pela salvação de seus súditos (Ventura, 1997VENTURA, Margarida Garcez. Igreja e poder no século XV: dinastia de Avis e liberdades eclesiásticas (1383-1450). Lisboa: Colibri, 1997., p. 77).

Jurisdição territorial

O processo de revestimento das ações dos monarcas de uma esfera pastoral e paternal acompanhou a restauração do papel dos bispos como guias espirituais de suas dioceses de modo que a construção de um poder público imbuído do dever de corrigir, punir, legislar e aconselhar se solidificou a partir dessa simbiose entre dois campos, o laical e o clerical. Da mesma forma que o poder monárquico se alimentou de elementos próprios da prática governativa de um prelado, especialmente do cuidado com a formação espiritual de seus súditos, o poder episcopal tornou-se uma extensão dos olhos e ouvidos dos monarcas em diferentes regiões podendo criar leis, penas e expandir uma política de preservação de sua unidade religiosa. Acerca da formação espiritual, D. Duarte foi enfático ao recomendar que os súditos procurassem as pessoas certas para cada necessidade; por isso, enquanto os médicos eram os profissionais corretos para curar as enfermidades do corpo, os confessores ou bispos auxiliavam em matérias relacionadas à consciência (D. Duarte, 1999D. DUARTE. Leal conselheiro. Edição crítica, introdução e notas de Maria Helena Lopes de Castro. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, [1435-1438], 1999., cap. LXXIX, p. 287-288).16 16 “Ensina esso medês conhecer os sentidos e nembranças que havemos da parte racional, e os da sensetiva, pera demostrar com que remedios os falicimentos havemos de emmendar e correger e nos b˜ees manteer e acrescentar. E tambem nos faz conhecer em que cousas per nosso juizo, segundo que sabemos e praticamos, devemos determinadamente falar e obrar, e quaes convem seerem leixadas a prelados e confessores e feito da consciência, e a legistas e degratistas no que perteece a dereito, e aos fisicos e celurgiães em as infirmidades”. Em um mundo em que a correção dos pecados se destacava como condição indispensável para a vida útil e saudável, os reis faziam dos bispos os seus conselheiros e confessores e as peças-chave para a emenda de seus súditos. Embora o poder monárquico possuísse um caráter pastoral, o rei apenas garantiria com leis e proteção militar aquilo que os clérigos poderiam proporcionar com seus gestos e palavras: a conversão e a salvação (Ventura, 1997VENTURA, Margarida Garcez. Igreja e poder no século XV: dinastia de Avis e liberdades eclesiásticas (1383-1450). Lisboa: Colibri, 1997., p. 77).

O poder episcopal destacava-se por “uma tríplice natureza: ordem, jurisdição e magistério” (Paiva, 2006PAIVA, José Pedro. Os bispos de Portugal e do Império: 1495-1777. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006., p. 8). Desse modo, a atuação do prelado diocesano era respaldada pelos seus poderes de ministerium, relativo à celebração dos sacramentos; de imperium, que o autorizava a exercer a justiça eclesiástica em sua prelazia; e, por fim, de magisterium, que lhe atribuía competências na catequização de fiéis e no ensino da doutrina católica (Paiva, 2006PAIVA, José Pedro. Os bispos de Portugal e do Império: 1495-1777. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006., p. 8-9). O caso mais emblemático de Portugal era o arcebispado de Braga em que seus arcebispos, além de catequizadores e executores do direito eclesiástico, eram senhores de suas terras.17 17 “Em 1110 e 1112, o conde D. Henrique e D. Teresa doaram ao arcebispo D. Maurício e sucessores o couto de Braga com os respectivos direitos fiscais” (Costa, 1962, p. 14). Sobre o assunto, consultar Lencart (2021, p. 78). Tratava-se, portanto, de uma dupla responsabilidade, já que o prelado deveria agir como pastor no plano espiritual e administrador no temporal (Sousa, 2006SOUSA, Pio G. Alves de. D. Diogo de Sousa: Arcebispo e Senhor de Braga. In: Simpósio no V Centenário da sua Missão como Arcebispo de Braga (1505-1532), 2006, Braga. Anais... Braga: [Faculdade de Teologia-Braga (UCP)], 2006., p. 31). Empossado como arcebispo de Braga em 1505, depois de ocupar a função de bispo do Porto, D. Diogo de Sousa (c.1461-1532) promoveu quer a reforma do clero quer a da administração dessa cidade, expandindo vias e criando edifícios. Tal como uma espécie de “príncipe”, ele restaurou a sé, construiu igrejas e ruas e celebrou um sínodo para revigorar Braga em ambos os planos, o urbanístico e o litúrgico (Torres, 2006TORRES, Amadeu. D. Diogo de Sousa no contexto cultural do Renascimento. In: SIMPÓSIO D. DIOGO DE SOUSA E O SEU TEMPO 2005, Braga ,. Anais... Braga, 2006., p. 44).

Essa história de concentração de poderes temporais e eclesiásticos nas mãos de um único prelado teve início no ano de 1112 quando D. Teresa (c.1080-1130), mãe de D. Afonso Henriques (c.1106-1185), cedeu aos arcebispos de Braga a posição de senhores desse território. Com essa medida, foram transferidos para os prelados bracarenses direitos fiscais e legislativos que antes pertenciam apenas aos condes portucalenses. Apesar de D. João I recuperar os direitos temporais de Braga, D. Afonso V (1432-1481) preferiu devolver ao arcebispo e ao cabido de Braga a administração de suas terras em 1472. Nesse ínterim, D. Fernando da Guerra (c.1385-1467) foi o único arcebispo desta arquidiocese que não foi considerado Senhor de Braga (Marques, 2006MARQUES, António H. de Oliveira. Introdução. In: MONGELLI, Lênia Marcia (coord.). A literatura doutrinária na Corte de Avis. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. XI-XXVI., p. 47). Os poderes de governar e de ensinar, por parte dos prelados diocesanos de Braga, foram potencializados com essas providências e um dos resultados dos esforços desses eclesiásticos para a consolidação de uma política de reforma foi o número elevado de sínodos celebrados nessa prelazia. De 1215 ao limiar do XVI, foram celebrados setenta e três sínodos dos quais, vinte e oito em Braga, treze em Lisboa, onze no Porto, oito em Évora, quatro em Coimbra, quatro em Valença do Minho, dois em Viseu, dois em Lamego e um na Guarda (García y García, 1982GARCÍA Y GARCÍA, Antonio. (dir.). Synodicon Hispanum. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1982. v. 2., p. XVII). Dessa lista, os celebrados na arquidiocese de Braga são, em número, mais que o dobro dos oficiados, por exemplo, em Lisboa. Eram as constituições promulgadas nos sínodos um dos principais guias espirituais de clérigos e a base de leigos orientados em matérias relacionadas aos rudimentos da fé. Os clérigos não dispunham de livros como o Leal conselheiro ou a Virtuosa benfeitoria para admoestar leigos, mas de manuais de confessores e/ou textos prescritivos elaborados pelos prelados diocesanos.18 18 Quanto ao valor dos sínodos, explica o historiador Saul Gomes: “Os sínodos diocesanos, em hierarquia aos sínodos provinciais - em que foi tão fértil a Península Ibérica-, derivam antes de mais da estrutura legislativa geral da Igreja. Que era, como referimos, uma administração centralizada, controlada eficazmente pelas cúpulas directivas e burocráticas, mas também a garantia de um poder regional ou local, conferido aos bispos diocesanos, não tanto enquanto portadores de ordinis de sagração, mas antes enquanto legítimos administradores da ordem iurisditionis. Reuniam-se sínodos diocesanos com frequência” (Gomes, 2000, p. 399). Por isso, os bispos eram líderes que não deveriam se furtar à tarefa de admoestar o clero local por meio da promulgação de constituições de sínodos.

Além do potencial de Braga como polo reformista do clero português esses números revelam outro fato importante: a existência de sínodos celebrados em nove dioceses do reino. Embora nem todas as constituições promulgadas e que chegaram aos nossos dias tenham tido a finalidade de promover uma política pastoral severa e reformar costumes do clero, parte desses textos conjugou o poder de legislar, educar e governar do prelado. Em linhas gerais, o poder pastoral do monarca apenas se concretizava pela existência de iniciativas semelhantes, fomentadas pelos próprios prelados diocesanos, para facilitar a salvação das almas de seus súditos. São poderes que, apesar de terem divergido em diferentes momentos,19 19 A respeito das disputas entre os dois poderes, conferir Marques (1999, p. 217-256). se complementaram no que dizia respeito à instauração de uma unidade de práticas religiosas em Portugal.

Os reis procuravam interferir no poder dos arcebispos de Braga como senhores dessas terras. Em 22 de dezembro de 1477, embora o duque de Guimarães - sobrinho do monarca D. Afonso V - tivesse recrutado homens para a guerra contra Castela sem consultar o prelado, e daí tivessem nascido embates entre os poderes monárquico e senhorial (Marques, 2006, p. 50), esse tipo de rivalidade não impediu a arquidiocese de Braga de se tornar um polo pastoral e reformador. Foi a partir dessa relação paradoxal com a Coroa que as dioceses, especialmente Braga, ajudaram com seu quinhão a estabelecer um plano de reforma dos súditos dos reis de Avis. Também não se pode esquecer que os bispos compunham a aristocracia portuguesa e, por esta razão, possuíam mais facilidade na comunicação com os reis.

É certo também que a totalidade de setenta e três sínodos não correspondia à expectativa do IV Concílio de Latrão em relação à celebração de uma assembleia por ano, mas indica a existência de um movimento reformista em Portugal. Tal revigoramento de práticas clericais a serviço de uma política de conversão mais ordenada foi definido por D. Pedro Vaz Gavião (14??-1516), bispo da Guarda, nestas palavras:

Considerando nós, dom Pedro, por mercê de Deus e da santa Igreja de Roma, bispo da Guarda, do Conselho do rei nosso senhor e seu capelão-mor, quanto à dignidade episcopal, a que posto que indigno somos chamados, nos obriga desejarmos e trabalharmos para nossos súditos serem bem doutrinados e regidos, assim no que à salvação de suas almas pertence como no bom governo e regimento das igrejas e cousas eclesiásticas, tomando exemplo dos santos padres que os santos cânones estabeleceram e ordenaram para governança e bom regimento da universal Igreja e assim dos outros inferiores prelados que, para regimento e boa ensinança de seus súditos, constituições e estatutos fizeram (García y García, 1982GARCÍA Y GARCÍA, Antonio. (dir.). Synodicon Hispanum. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1982. v. 2., p. 224).20 20 Sínodo de P. Pedro Vaz Gavião; 12 de maio de 1500: “Considerando nós, dom Pedro, por mercê de Deus e da santa Igreja de Roma, bispo da Guarda, do Conselho del-rei nosso senhor e seu capelão-mor, quanto a dignidade episcopal, a que posto que indigno somos chamado, nos obriga desejarmos e trabalharmos de nossos súbditos serem bem doutrinados e regidos, assim no que à salvação de suas almas pertence como no bom governo e regimento das igrejas e cousas eclesiásticas, tomando exemplo dos santos padres que os santos cânones estabeleceram e ordenaram para governança e bom regimento da universal Igreja e assim dos outros inferiores prelados que para regimento e boa ensinança de seus súbditos constituições e estatutos fizeram”.

Primeiramente o prelado destaca sua fidelidade ao rei D. Manuel I (1469-1521), colocando-se como seu súdito e conselheiro, e na sequência, ele explica que era obrigado a produzir regimentos para que seus súditos, clérigos seculares e regulares aprendessem a celebrar os sacramentos e cumprissem sua missão catequética. Desse modo, como o rei governava súditos, produzia normas e zelava por suas ações em todas as esferas de sua existência para servir ao povo como modelo de conduta e aos eclesiásticos como um pai e pastor. São, portanto, dois poderes complementares pelo fato de agirem em prol da saúde da alma dos portugueses. Os bispos eram peões, súditos e aliados dos reis no que dizia respeito à efetivação de um plano pastoral de âmbito reinol.

Antes da ascensão ao trono dos reis de Avis, os bispos já eram considerados figuras centrais nos jogos edificantes da Igreja e admoestados em concílios e obras pastorais para se comportarem como guias espirituais e gestores de suas dioceses. Utilizavam o espaço do sínodo como canal de advertência de clérigos não compromissados com seu ofício, orientando-os a zelar por suas vestimentas, igrejas, práticas devocionais e sermões realizados nas missas, lançando mão de constituições em português para que seus conselhos fossem ainda mais inteligíveis aos simples clérigos.21 21 A respeito do conteúdo das constituições sinodais de Portugal, consultar Pereira (1978, p. 37-74).

As primeiras constituições sinodais conhecidas em português foram elaboradas pelo arcebispo D. Gonçalo Pereira (12??-1348), em 1333. Trata-se de um texto do tempo dos reis afonsinos que antecipa um dos eixos da política moralizante dos reis avisinos: a fixação de lições sobre cuidados com os corpos e as almas. Quase dezessete décadas antes do referido sínodo de D. Pedro Vaz Gavião, o arcebispo já havia asseverado que, ao percorrer a diocese, descobrira que muitas “igrejas são ermas e despovoadas e as casas derribadas e as searas das vinhas desfeitas e que se não dizem aí missas nem Horas, nem se faz aí serviço de Deus”. Em razão desses casos, tomou esta decisão: “[....] estabelecemos e mandamos que todos os abades, priores, reitores e vigários perpétuos dos ditos mosteiros e igrejas venham fazer residência pessoalmente nesses mosteiros e igrejas [...]” (García y García, 1982GARCÍA Y GARCÍA, Antonio. (dir.). Synodicon Hispanum. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1982. v. 2., p. 47).22 22 Sínodo de D. Gonçalo Pereira; 6 de setembro de 1333: “Nós Gonçalo pela merçee de Deus e da sancta eigreja de Roma arcebispo de Bragaa, visitando os moesteiros e as eigrejas do nosso arcebispado, assi como somos teudos de nosso offizio, porque achamos que moitas dessas eigrejas som hermas e despoboadas e as casas derribadas e as searas das vinhas desfeitas e que se nom acham hi missas nem Horas, nem se faz hi o serviço de Deus. [...] stabelecemos e mandamos que todolos abbades, priores, rectores e vigairos perpetuus dos ditos moesteiros e eigrejas venham fazer residença pessoalmente en esses moesteiros e eigrejas [...]”. Os concílios recomendavam que arcebispos e bispos visitassem as igrejas, santuários e mosteiros a fim de conhecerem os principais desafios do clero local (Mazel, 2016MAZEL, Florian. L’évêque et le territoire. l’invention médiévale de l’espace (Ve-XIIIe siècle). Paris: Éditions du Seuil, 2016., p. 321); com isso os pecados mais comuns praticados numa dada região e o estado de conservação do patrimônio material da diocese estava sob sua responsabilidade (Gomes, 2000GOMES, Saul. A religião dos clérigos: vivências espirituais, elaboração doutrinal e transmissão cultural. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.). História religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000. v. 1, p. 339-421., p. 400). Dado que uma das funções do bispo era fiscalizar os seus súditos, ele ou o vigário-geral tinham de se deslocar uma vez por ano pela prelazia e conhecer o ritmo de vida de clérigos e leigos admoestando pessoas e coletando dados para serem reportados nos sínodos, assim como fez D. Gonçalo Pereira.

A partir do século XIII, os sínodos deixaram de ser apenas uma assembleia em que o bispo demonstrava sua auctoritas ou resolvia conflitos de sua diocese, já que serviram especialmente para aprovar leis, reformar a vida dos leigos e clérigos, e para enraizar novos estatutos jurídicos (Gomes, 2000GOMES, Saul. A religião dos clérigos: vivências espirituais, elaboração doutrinal e transmissão cultural. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.). História religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000. v. 1, p. 339-421., p. 399). Além disso, os sínodos asseguravam o sucesso dos projetos catequéticos da diocese e garantiam aos bispos condições mais certeiras para promover medidas pastorais, elaboradas de acordo com as demandas locais e aplicadas às igrejas por eles quando vistoriadas nas visitações. Os bispos foram, nesse sentido, importantes para unir as regiões do reino sob uma mesma órbita moralizante, assegurando uma unidade de lições edificantes em grande parte do reino. Trata-se de um movimento reformista que mobilizou diferentes centros - Braga, Porto, Évora, Guarda, Coimbra e outras dioceses - em torno das mesmas causas: a efetivação do poder episcopal e a correção da consciência dos fiéis portugueses.

A correção da consciência entre dois poderes

Nas Ordenações afonsinas foram reunidas leis de diferentes naturezas, inclusive as que aludiam à vida de clérigos e religiosos. No título Das barregaãs dos clerigos foi recuperada uma lei de D. João I outorgada nas Cortes de Braga de 1387 sobre elas:

Dom Joham, &c. A quantos esta carta virem fazemos saber, que fazendo Nós Cortes na cidade de Braga com os bispos, e ordens, e fidalgos, e concelhos de nossos reinos, que os procuradores dos ditos concelhos, dos ditos nossos reinos, que às ditas cortes vieram, nos disseram que muitos clérigos e religiosos tinham barregãs em suas casas a olhos e face dos prelados e de todo o povo, e as trazem vestidas e guarnidas tão bem, e melhor que os leigos trazem as suas mulheres [...] (Ordenações afonsinas, 1792, livro V, título 19, art.1, p. 58-59).23 23 “Dom Joham, &c. A quantos esta Carta virem Fazemos saber, que fazendo nós Cortes na Cidade de Bragaa com os Bispos, e Horde˜es, Fidalgos, e Concelhos de nossos Regnos, que os Procuradores dos ditos concelhos dos ditos nossos Regnos, que aas ditas Cortes vierom, nos disserom, que muitos Clerigos, e Religiosos tinham barregaãs em suas casas, a olhos e face dos Prelados, e de todo o Povoo, e as trazem vestidas e guarnidas taõ bem, e milhor, que os leigos trazem as suas molheres”.

As críticas aos clérigos e religiosos que viviam com barregãs eram um tópico presente na produção legislativa do período, ocupando espaço na regulamentação monárquica e eclesiástica. A lei de D. João I, atualizada pelo seu neto, D. Afonso V, reverbera um princípio moral que remete ao II Concílio de Latrão (1139), o qual considerara inválidos os casamentos de clérigos de ordens sacras. Os filhos dessa união não poderiam herdar possessões paternas e estavam proibidos de receber qualquer benefício eclesiástico como a tonsura (Pereira, 1978PEREIRA, Isaías da Rosa. A vida do clero e o ensino da doutrina cristã através dos sínodos medievais portugueses. Lusitania Sacra, n. 10, p. 37-74, 1978., p. 43). Além de denunciar os desvios dos clérigos, a lei também comenta que os prelados eram informados sobre a necessidade de admoestá-los em suas constituições para estimulá-los a evitar esse pecado público. A compilação dessa lei joanina nas Ordenações afonsinas não somente reforça o caráter pastoral da ação dos monarcas, como também evidencia a sua estreita relação com os prelados diocesanos.

Cabia aos reis cuidarem do patrimônio eclesiástico e coibirem a ação de clérigos que não se mostrassem doutos. Acerca disso, as Cortes de Santarém de 1406, as de Lisboa de 1410 e as de Leiria-Santarém, de 1433, foram certeiras por condenarem os prelados que julgassem leigos em seus tribunais por casos não competentes à esfera eclesiástica.24 24 Para uma síntese dos capítulos gerais apresentados pelo povo nas cortes portuguesas, ver Sousa (1990, v. 2). No que toca à indisciplina eclesiástica, um caso emblemático é o das Cortes de Évora-Viana de 1481-1482 que censuraram os clérigos e religiosos não obedientes às regras de vida de seus estados. As Ordenações afonsinas, bem como as prescrições dos reinos conferidas em Cortes concederam à casa de Avis autoridade para interferir na gestão das igrejas, mas sem retirar dos prelados o direito de atuarem no foro das almas e manterem os tribunais eclesiásticos em consonância com as leis do reino.

A respeito da configuração política, Diogo Lopes Rebelo considera - no Do governo da república pelo rei - que “pertence à dignidade e ao poder judicial do rei impor aos seus súditos leis, com que possam viver em boa paz”. O jurista adita que os reis e príncipes precisam possuir “a seu lado varões doutos, sábios e jurisperitos que possam consultar no que toca ao foro da consciência, e no estabelecer leis e constituições honestas”. Nesse sentido, era tarefa do rei garantir a paz partir da promulgação de variadas leis que pudessem facilitar a correção da alma e punir os crimes, articulando os foros interior e exterior e dando aos clérigos condições para exercerem seus papéis na sociedade. Esse duplo caráter da ação administrativa dependia, contudo, da capacidade do governante de proteger os direitos eclesiásticos, já que “os reis e imperadores não devem promulgar leis contra o direito divino. São doutro foro e jurisdição” (Rebelo, 2000REBELO, Diogo Lopes. Do governo da república pelo rei:tratado das produções das pessoas [divinas]. Edição de Manuel Cadafaz de Matos; tradução de Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Tavola Redonda, [1496] 2000., cap. 11, p. 127-129). Além de serem de jurisdições diferentes, havia uma “igualdade entre estes dois estados, o secular e o eclesiástico, todavia os reis precisam dos pontífices para a vida eterna, e os pontífices do auxílio dos reis para as coisas temporais” (Rebelo, 2000REBELO, Diogo Lopes. Do governo da república pelo rei:tratado das produções das pessoas [divinas]. Edição de Manuel Cadafaz de Matos; tradução de Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Tavola Redonda, [1496] 2000., cap. 11, p. 131). Enquanto era recomendável ao rei se lançar aos joelhos do sacerdote beijando a sua mão direita para pedir amparo divino, ele teria de ser regente dos bens da Igreja e saber se aquele clérigo tinha condições de exercer os ofícios litúrgicos. (Rebelo, 2000REBELO, Diogo Lopes. Do governo da república pelo rei:tratado das produções das pessoas [divinas]. Edição de Manuel Cadafaz de Matos; tradução de Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Tavola Redonda, [1496] 2000., cap. 11, p. 131). A devoção do rei materializava-se, portanto, ao rezar e receber os sacramentos e também ao cuidar da qualidade dos serviços litúrgicos oferecidos em Portugal. Eram obras como essa de Diogo Lopes Rebelo que associavam a aprendizagem da arte de governo com a experimentação da doutrina.

Dessa combinação de poderes, estabelece-se a manutenção da ordem pública e de uma harmonia social. A chancelaria régia unia-se, desse modo, aos sínodos para facilitar a execução de uma política reinol de preparação de corpos para o juízo das almas. Assim como D. Gonçalo Pereira, D. João I revelava-se preocupado com as práticas do clero português afirmando: “E porque disto [da barregania] se seguia grande dano à nossa terra e grande perigo às almas dos ditos Clérigos e Religiosos, e, outrossim, dos leigos [...]” (Ordenações afonsinas, 1792, livro V, tít. 19, art. 2, p. 59).25 25 “E porque se desto seguia grande dapno aa nossa terra, e grande perigoo aas almas dos ditos Clerigos, e Religiosos, e outro sy dos leigos”. A lei considerava que os leigos “desprezavam os sacramentos dos ditos Clérigos, porque eram barregueiros públicos, e perdiam devoção nas igrejas, e muitos deles não queriam se confessar aos Clérigos”, por esse motivo (Ordenações afonsinas, 1792, livro V, tít. 19, art. 1, p. 59).26 26 “E outro sy a maior parte dos leigos desprezavam os Sacramentos dos ditos Clerigos, porque eram barregueeiros pubricos, e perdiam devaçom nas Igrejas, e muitos delles se nom queriam meemfestar aos Clerigos”. D. João I aproximar-se-ia dos prelados para costurar alianças com estas autoridades e manter as dioceses sob sua vigília, de modo a fazer das constituições dos sínodos uma extensão de seu poder pastoral. Na opinião de D. João I, reiterada pelas Ordenações de seu neto, o governo de um reino demandava a criação de leis que potencializassem a ação dos clérigos e os tornassem, por essa via, exemplos de virtudes cristãs. Nesse sentido, o plano político dos reis de Avis apenas teria êxito se os clérigos beneficiados residissem em suas igrejas, celebrassem os sacramentos e se responsabilizassem pela cura das enfermidades espirituais de seus súditos. A partir da elaboração de tratados no âmbito da corte e do uso da prensa móvel para imprimir obras pastorais e catequéticas no final do século XV,27 27 Os dois primeiros livros impressos em língua portuguesa foram tratados de caráter pastoral, a saber: Sacramental (1488), de Clemente Sánchez de Vercial (c.1365-c.1436), e o Tratado de confissom (1489), de autoria anônima. a correção das práticas dos clérigos tornou-se pauta corrente.

Com a finalidade de ampliar a política reformista de seu pai, o monarca D. Duarte esforçou-se, em 1437, na obtenção junto a Roma da autorização para que o beneditino Gomes Eanes fosse visitador-geral do clero em Portugal, mas sofreu resistência por parte da Abadia de Santa Maria de Alcobaça, não conseguindo concretizar o plano (Carvalho, 2016CARVALHO, José Adriano de Freitas. Antes de Lutero: a Igreja e as reformas religiosas em Portugal no século XV. Anseios e limites. Porto: Citcem; Afrontamento, 2016., p. 20). Embora a proposta não tivesse avançado, os príncipes tinham como um de seus objetivos de governo a reforma da Igreja e das práticas devocionais de seus súditos a fim de facilitar a ação de pregadores e clérigos (Ventura, 2013VENTURA, Margarida Garcez. A Corte de D. Duarte: política, cultura e afectos. Vila do Conde: Verso da História, 2013., p. 101). No Leal conselheiro encontram-se críticas aos eclesiásticos, especialmente numa parte em que clérigos são denunciados por almejarem apenas riquezas e menosprezarem as práticas de seu ofício. Acerca dos desvios dos eclesiásticos, D. Duarte apregoa: “[...] os oradores querem as riquezas, honras, reverências, liberdades, segurança de sagral justiça e dos feitos da guerra [...]”, cultivando fracas orações, “[...] não querendo por ofícios e corregimentos honrar Deus, nem suas igrejas, não ensinando, regendo, ministrando sacramento aos que são obrigados, e a todos dão exemplo de escândalo e de pouca devoção e mal viver” (D. Duarte, 1999D. DUARTE. Leal conselheiro. Edição crítica, introdução e notas de Maria Helena Lopes de Castro. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, [1435-1438], 1999., cap. IV, p. 26-27).28 28 “[...] os oradores querem as riquezas, honras, reverenças, liberdades, segurança de sagral justiça e dos feitos da guerra, usando de pouca e fraca oraçom, nom querendo per ofícios e corregimentos honrar Deos nem suas igrejas, nom ensinando, regendo, ministrando sagramento aos que som obrigados, e a todos dam exemplo de scandalo e de pouca devaçom e mal viver”. Em suas obras, D. Duarte e D. Pedro foram incisivos ao fazer do combate à prática dos pecados mortais uma política de governo, conduzida pelo rei e efetivada por confessores e bispos. Na mencionada Virtuosa benfeitoria, D. Pedro e o seu confessor, frei João Verba, destacam que todos os príncipes seriam obrigados a pôr remédios “aos injuriosos males que nascerem em seu povo”, tendo de zelar pelos clérigos (D. Pedro, Verba, 1981, cap. XVI, p. 596).29 29 “[...] todos os prinçipes som theudos segundo dereyta consçiençia de poher iustamente rremedios aos eniuriosos males que naçerem em o seu poboo”.

A correção dos clérigos tinha espaço na produção jurídica por serem os ministros dos sacramentos, divulgadores da fé cristã e figuras participativas na administração do Estado (Genet, 2018GENET, Jean-Philippe. Introduction. In: BOUCHERON, Patrick; FOLIN, Marco; GENET, Jean-Philippe (orgs.). Entre idéel et matériel: espace, territoire et légitimation du pouvoir (v. 1200 -v. 1640). Paris: Éditions de la Sorbonne, 2018. , p. 17). Além disso, no governo do próprio corpo com vistas à salvação da alma os reis reconheciam a importância de seus confessores como conselheiros em matérias relacionadas à correção de seus pecados. Assim, se o governante deveria ser exemplar como fiel, pai e gestor; o cura de almas tornar-se-ia personagem-chave para orientá-lo e para prescrever penitências. É por isso que D. Duarte reconhece que todos os jejuns recomendados pela Igreja, por prelados e confessores deveriam ser seguidos sem hesitação (D. Duarte, 1999, cap. XXXIII, p. 130),30 30 “Quanto aa primeira som boos todos aqueles [jejuns] que som mandados per a Sancta Igreja, nossos prelados ou confessores. E aquesto por a virtude da obediencia da qual ao Senhor mais praz que do sacrificio”. por transmitirem, como define em outra passagem do Leal conselheiro, conhecimentos e certezas que não competiam ao leigo evitar ou contestar (D. Duarte, 1999D. DUARTE. Leal conselheiro. Edição crítica, introdução e notas de Maria Helena Lopes de Castro. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, [1435-1438], 1999., cap. XXXIV, p. 134-135). A tarefa do príncipe consistia em garantir a integridade da atuação da Igreja, a segurança dos confessores e a possibilidade de tornar os exercícios espirituais de redenção dos pecados um patrimônio comum aos portugueses. Já aos prelados diocesanos cabia a missão de formar confessores, fiscalizá-los e puni-los, como relatavam nos sínodos. D. Diogo de Sousa comentara, tanto no sínodo do Porto (1496) quanto no de Braga (1505) que existiam abades e capelães nas dioceses que eram ignorantes e não administravam corretamente os sacramentos da Igreja. Em ambas as assembleias, apregoara: “[...] deviam os sacerdotes com muita diligência e perseverança estudar e saber como, julgando as vidas e consciências dos outros, não danassem por ignorância as suas [vidas] e também aquelas que julgam” (García y García, 1982GARCÍA Y GARCÍA, Antonio. (dir.). Synodicon Hispanum. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1982. v. 2., const. XXXVI, p. 381; Sousa, const. VIII, 2019, p. 51).31 31 “[...] deviam os sacerdotes com muita diligencia e perseverancia estudar e saber como julgando as vidas e conciencias dos outros nam danassem per inorancia as suas e assi aquellas que julgam” (original da constituição do sínodo do Porto editado no Synodicon Hispanum). Um dos resultados esperados com essa prédica era o fortalecimento do foro interior, o do tribunal da consciência, de maneira a tornar os confessores conscientes da grandeza e responsabilidade do ofício de corrigir e reparar a consciência dos fiéis.32 32 No que toca à importância dos confessores, o pesquisador Paolo Prodi (2005, p. 72) ressalta: “O sacerdote é o juiz que deve ter a ciência e a capacidade de inquirir aquele que se apresenta diante do seu tribunal, capaz de interrogar e de avaliar as circunstâncias agravantes ou atenuantes do pecado de fazer emergir também os pecados que o penitente esconde de si mesmo”. A emenda da consciência seria uma das grandes políticas da Casa de Avis, e D. Duarte, na sua condição de gestor de corpos e almas, também não se absteve de apresentar sugestões semelhantes que os bispos realizavam em seus sínodos. Repleto de orientações pastorais, o Leal conselheiro propôs que a sua corte confiasse aos prelados e confessores os assuntos relativos ao juízo da consciência (D. Duarte, 1999D. DUARTE. Leal conselheiro. Edição crítica, introdução e notas de Maria Helena Lopes de Castro. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, [1435-1438], 1999., cap. LXXIX, p. 287-288).33 33 “E tambem nos faz conhecer em que cousas per nosso juizo, segundo que sabemos e praticamos, devemos determinadamente falar e obrar, e quaes convem seerem leixadas a prelados e confessores e feito da consciência [...]”.

Num período de consolidação do poder régio e de expansão de seus territórios no norte da África os reis e príncipes de Avis investiam em medidas de coesão social, hasteando a própria fé como elemento de união dos portugueses e fazendo da correção da consciência uma das engrenagens do sistema administrativo régio. A política de iniciação na fé deixava de ser apenas um plano de enriquecimento moral da corte e se tornava, de uma maneira cada vez mais sistemática, uma pauta de governo. Na medida em que o rei cumpria as exigências de natureza espiritual e divina, o poder monárquico passaria a criminalizar o pecado criando instrumentos para sustentar o seu poder de vigília sobre as ações de seus súditos. A reformatio quer das práticas devocionais quer do aparelho eclesiástico que deveria atender às demandas espirituais dos leigos marcou o século XV em Portugal, sobretudo em razão do interesse dos príncipes de Avis de fazerem da renovação do foro interno um caminho de revigoramento moral do reino (Carvalho, 2016CARVALHO, José Adriano de Freitas. Antes de Lutero: a Igreja e as reformas religiosas em Portugal no século XV. Anseios e limites. Porto: Citcem; Afrontamento, 2016., p. 21-22). A correção das práticas dos clérigos era o primeiro passo de um projeto mais ordenado e sistematizado de criação de um plano pastoral em solo português. Como destacado, esse projeto apenas alcançaria os resultados esperados com a participação ativa dos bispos, de modo que se articulasse um duplo movimento político: o da corte na direção das dioceses; e o dos sínodos para o interior de Portugal, contemplando as igrejas mais longínquas de catedrais e dos grandes centros. Da mesma maneira que os reis e os bispos deveriam estar em sintonia, estas autoridades eclesiásticas tinham de manter as paróquias de sua prelazia atentas às recomendações propostas nas constituições de sínodos, nos manuais de confessores e em outros guias espirituais. As recomendações presentes em leis, em espelhos de príncipes e em constituições de sínodos permitem entrever, portanto, uma troca entre a esfera monárquica e a diocesana na medida em que o combate aos pecados públicos cometidos por clérigos e leigos era tarefa de reis e dos prelados.

Considerações finais

A ação dos reis avisinos na gestão do reino de Portugal encontrava-se revestida de ares pastorais e paternais, de maneira que os seus poderes se assemelhavam, em certa medida, aos dos prelados por também possuírem responsabilidades na gestão não apenas da Igreja, mas dos corpos e das almas dos fiéis portugueses. Enquanto o poder pastoral dos bispos se caracterizava pela celebração de sacramentos, pelo ensino da palavra e através da gestão do patrimônio eclesiástico; os monarcas deveriam proteger as igrejas, a vida dessas autoridades e garantir a manutenção das práticas devocionais tanto na corte quanto fora dela, em qualquer paróquia que seus súditos frequentassem no território português. A ação pastoral dos reis também consistia em legitimar a missão de pregadores e de confessores reconhecendo o mérito da emenda da consciência como política de governo, e não somente como sendo de responsabilidade de abades ou de bispos.

A manutenção de uma política pastoral que abarcasse todo o território português devia-se, contudo, à simbiose de duas jurisdições: a monárquica e a episcopal. Assim, se reis como D. João I se mostravam convencidos da necessidade de reformar o clero de Portugal, eles não deixavam de legar aos prelados diocesanos o peso de sua atuação no sucesso dessa missão; pois eram os bispos quem deveriam fiscalizar o clero em suas visitações, admoestá-lo durante os sínodos e também promulgar constituições que fossem certeiras na correção de seus males. A garantia de um poder monárquico forte e centralizado demandava, portanto, a existência de um poder eclesiástico com múltiplos centros e várias dioceses, o qual deveria ser capaz de enraizar as lições e os direcionamentos acordados por reis, pelos bispos e por outras autoridades do período.

Referências

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  • 1
    No que diz respeito à obra, o pesquisador José Gama (1991, p. 389), especialista na produção de D. Duarte, argumenta: “A profunda consciência do dever no exercício da sua missão governativa, com a administração geral da aplicação da Justiça e com o exemplo vivo da virtude que o rei deveria ser para os súbditos, aliavam-se à necessidade de orientar e solidificar a nova ordem política instaurada com a dinastia de Avis”.
  • 2
    Como destaca o filósofo Michel Senellart (2006, p. 31): “Um fio contínuo, com efeito, liga a conduta de si, a administração doméstica e a direção do Estado. O príncipe governa seu reino da mesma maneira que seus próprios desejos, sua mulher, seus filhos, seus domésticos: trata-se, em cada nível, de conduzir uma multidão para o fim virtuoso que lhe corresponde”.
  • 3
    O surgimento de “uma teoria autoconsciente de Estado soberano” aparece posteriormente, com o Leviatã, de Thomas Hobbes (Skinner, 1996, p. 69).
  • 4
    “[...] e quando o corresse por esta entençom, em parando mentes, em como Deus lhe deu a reger tam muyta gente, e como lhe tem dado tam grande encarrego pera o bem reger [...]”. No corpo do artigo, atualizamos o português e deixamos a citação do documento em nota.
  • 5
    Obra escrita pelo irmão de D. Duarte e também filho de D. João I, o infante D. Pedro, junto com o confessor frei João Verba.
  • 6
    Trata-se de uma premissa de Sêneca, retirada da obra Da clemência.
  • 7
    “Desto Seneca em o primeyro liuro de clemençia, falla prolongadamente, dizendo o prinçipe he atamento per o quall as perssoas do poboo som antre sy iuntadas, elle he muro, en que os sobiectos som guardados, e spirito perque a multidooem he defessa, a quall non seendo soportada per consselho de huu- principal senhor, ella per suas meesmas forças seria quebrantada, e premuda do seu proprio peso”.
  • 8
    “E pois que todo Rey, e Princepy antre todallas outras cousas deve principalmente amar, e guardar justiça, deve-a guardar, e manteer em especial á cerca dos peccados, e maldades tangentes ao Senhor DEOS, de cuja maaõ tem o regimento, e seu Real Estado, como dito he; e aquelle, que o assy nom fezesse, deveria seer reputado por indigno, e desmerecedor da mercee, e beneficio, que delle recebeo; e assy como aquelle que ouvesse encorrido em peccado de ingratidooem [...]”.
  • 9
    “Porem como os principes seiam padres dos seus proprios subdictos, os quaaes eles geeram assy como naturaaes marydos com a terra que he seu senhorio. Seguesse que lhes deue fazer bem acorrendo aas minguas das suas feyturias”.
  • 10
    “Cinco maneiras a de prudencia, scilicet, modestica yconomica /25v/, poletica, regnativa e militar” (Ortiz, 15-, f. 25r-25v).
  • 11
    “A prudencia regnativa ensina el rey e governador como a de reger e governar ho regno, povoo, subditos e comunidade, dando algumas doctrinas. A primeira se queres que teus subditos te amam e obedeçam e sirvam e façam tua vontade, faz tu assy a Deos teu Senhor. A .ii. toda tua governaçam e regimento seja endereçado ao serviço de Deos e ao bem do reyno e comunidade. A .iii. procura mais de seres amado que temido” (Ortiz, 15--, f. 27r).
  • 12
    “Prudencia falsa he achar caminhos cõvenientes pera mao fim, e chama se astucia”.
  • 13
    A necessidade de destacar a atuação dos monarcas em diferentes segmentos de suas vidas é notória nas crônicas régias, como na de D. Duarte, elaborada pelo terceiro cronista-mor e guarda-mor da Torre do Tombo, Rui de Pina. Sobre a vida desse monarca, assevera o cronista: “[...] foy Principe muy Catholico e amigo de Deos, de que deu clara prova a boa vontade e grande devaçam com que sempre recebia os Sacramentos, e ouvya os Officios Divinos, e compria muy perfeiramente as Obras da Misericordia [...] nacêo natural eloquente, porque Deos ho dotou pera ysso com muitas graças: no comêr, e beber, e dormir foi muy temperado, e asy dotado de todalas outras perfeiçoo˜es do corpo, e d’alma”. O fato de uma crônica como essa abrir espaço para historiar o cotidiano da vida de um rei é um forte indício da importância dada na época para fazer dessas ações pessoais espelho de conduta (Pina, 1977, cap. III, p. 495).
  • 14
    Como afirma D. Duarte: “E assi presta muito no boo estado dos reinos, cidades e vilas. Por ende me parece seer muito necessaria em todos tres regimentos, scilicet no da pessoa, por manteer lealdade a Nosso Senhor, como dicto é; no da casa, por aguardar a el, que toda maldade nos defende; e desi a todos home-s e molheres, segundo é razom” (D. Duarte, 1999, cap. CIII, p. 374-375).
  • 15
    “E pera guardar esta lealdade acerca de Nosso Senhor, o mais que tenho em este trautado scripto esto conselha, ensina e avisa [...]. / No regimento da casa, quanto bem faz lealdade, e mal se recrece non seendo guardada antre marido e molher, padre e filhos, senhor e servidores, e antre os boos amigos, os exempros bem o demonstram; ca non é outra cousa maior fundamento pera com todas estas pessoas viver em paz e boa concordia, ca lealdade com boo entender bem guardada. Ca esta nos faz chegar e assessegar em verdadeira amizade, que per todos sabedores é tam louvada”.
  • 16
    “Ensina esso medês conhecer os sentidos e nembranças que havemos da parte racional, e os da sensetiva, pera demostrar com que remedios os falicimentos havemos de emmendar e correger e nos b˜ees manteer e acrescentar. E tambem nos faz conhecer em que cousas per nosso juizo, segundo que sabemos e praticamos, devemos determinadamente falar e obrar, e quaes convem seerem leixadas a prelados e confessores e feito da consciência, e a legistas e degratistas no que perteece a dereito, e aos fisicos e celurgiães em as infirmidades”.
  • 17
    “Em 1110 e 1112, o conde D. Henrique e D. Teresa doaram ao arcebispo D. Maurício e sucessores o couto de Braga com os respectivos direitos fiscais” (Costa, 1962, p. 14). Sobre o assunto, consultar Lencart (2021, p. 78).
  • 18
    Quanto ao valor dos sínodos, explica o historiador Saul Gomes: “Os sínodos diocesanos, em hierarquia aos sínodos provinciais - em que foi tão fértil a Península Ibérica-, derivam antes de mais da estrutura legislativa geral da Igreja. Que era, como referimos, uma administração centralizada, controlada eficazmente pelas cúpulas directivas e burocráticas, mas também a garantia de um poder regional ou local, conferido aos bispos diocesanos, não tanto enquanto portadores de ordinis de sagração, mas antes enquanto legítimos administradores da ordem iurisditionis. Reuniam-se sínodos diocesanos com frequência” (Gomes, 2000, p. 399).
  • 19
    A respeito das disputas entre os dois poderes, conferir Marques (1999, p. 217-256).
  • 20
    Sínodo de P. Pedro Vaz Gavião; 12 de maio de 1500: “Considerando nós, dom Pedro, por mercê de Deus e da santa Igreja de Roma, bispo da Guarda, do Conselho del-rei nosso senhor e seu capelão-mor, quanto a dignidade episcopal, a que posto que indigno somos chamado, nos obriga desejarmos e trabalharmos de nossos súbditos serem bem doutrinados e regidos, assim no que à salvação de suas almas pertence como no bom governo e regimento das igrejas e cousas eclesiásticas, tomando exemplo dos santos padres que os santos cânones estabeleceram e ordenaram para governança e bom regimento da universal Igreja e assim dos outros inferiores prelados que para regimento e boa ensinança de seus súbditos constituições e estatutos fizeram”.
  • 21
    A respeito do conteúdo das constituições sinodais de Portugal, consultar Pereira (1978, p. 37-74).
  • 22
    Sínodo de D. Gonçalo Pereira; 6 de setembro de 1333: “Nós Gonçalo pela merçee de Deus e da sancta eigreja de Roma arcebispo de Bragaa, visitando os moesteiros e as eigrejas do nosso arcebispado, assi como somos teudos de nosso offizio, porque achamos que moitas dessas eigrejas som hermas e despoboadas e as casas derribadas e as searas das vinhas desfeitas e que se nom acham hi missas nem Horas, nem se faz hi o serviço de Deus. [...] stabelecemos e mandamos que todolos abbades, priores, rectores e vigairos perpetuus dos ditos moesteiros e eigrejas venham fazer residença pessoalmente en esses moesteiros e eigrejas [...]”.
  • 23
    “Dom Joham, &c. A quantos esta Carta virem Fazemos saber, que fazendo nós Cortes na Cidade de Bragaa com os Bispos, e Horde˜es, Fidalgos, e Concelhos de nossos Regnos, que os Procuradores dos ditos concelhos dos ditos nossos Regnos, que aas ditas Cortes vierom, nos disserom, que muitos Clerigos, e Religiosos tinham barregaãs em suas casas, a olhos e face dos Prelados, e de todo o Povoo, e as trazem vestidas e guarnidas taõ bem, e milhor, que os leigos trazem as suas molheres”.
  • 24
    Para uma síntese dos capítulos gerais apresentados pelo povo nas cortes portuguesas, ver Sousa (1990, v. 2).
  • 25
    “E porque se desto seguia grande dapno aa nossa terra, e grande perigoo aas almas dos ditos Clerigos, e Religiosos, e outro sy dos leigos”.
  • 26
    “E outro sy a maior parte dos leigos desprezavam os Sacramentos dos ditos Clerigos, porque eram barregueeiros pubricos, e perdiam devaçom nas Igrejas, e muitos delles se nom queriam meemfestar aos Clerigos”.
  • 27
    Os dois primeiros livros impressos em língua portuguesa foram tratados de caráter pastoral, a saber: Sacramental (1488), de Clemente Sánchez de Vercial (c.1365-c.1436), e o Tratado de confissom (1489), de autoria anônima.
  • 28
    “[...] os oradores querem as riquezas, honras, reverenças, liberdades, segurança de sagral justiça e dos feitos da guerra, usando de pouca e fraca oraçom, nom querendo per ofícios e corregimentos honrar Deos nem suas igrejas, nom ensinando, regendo, ministrando sagramento aos que som obrigados, e a todos dam exemplo de scandalo e de pouca devaçom e mal viver”.
  • 29
    “[...] todos os prinçipes som theudos segundo dereyta consçiençia de poher iustamente rremedios aos eniuriosos males que naçerem em o seu poboo”.
  • 30
    “Quanto aa primeira som boos todos aqueles [jejuns] que som mandados per a Sancta Igreja, nossos prelados ou confessores. E aquesto por a virtude da obediencia da qual ao Senhor mais praz que do sacrificio”.
  • 31
    “[...] deviam os sacerdotes com muita diligencia e perseverancia estudar e saber como julgando as vidas e conciencias dos outros nam danassem per inorancia as suas e assi aquellas que julgam” (original da constituição do sínodo do Porto editado no Synodicon Hispanum).
  • 32
    No que toca à importância dos confessores, o pesquisador Paolo Prodi (2005, p. 72) ressalta: “O sacerdote é o juiz que deve ter a ciência e a capacidade de inquirir aquele que se apresenta diante do seu tribunal, capaz de interrogar e de avaliar as circunstâncias agravantes ou atenuantes do pecado de fazer emergir também os pecados que o penitente esconde de si mesmo”.
  • 33
    “E tambem nos faz conhecer em que cousas per nosso juizo, segundo que sabemos e praticamos, devemos determinadamente falar e obrar, e quaes convem seerem leixadas a prelados e confessores e feito da consciência [...]”.
  • **
    Financiamento Auxílio à Pesquisa Jovem Pesquisador, da Fapesp, “O ensino da fé cristã na Península Ibérica” (17/11111-9)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2023
  • Aceito
    08 Mar 2024
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