Acessibilidade / Reportar erro

A inundação de Florença em 1333: narrativa escrita e proxies naturais diante de crises em contexto de variação climática

The flood of Florence in 1333: Written narrative and natural proxies in the face of crises in the context of climate variation

Resumo:

Desde períodos anteriores ao estabelecimento do atual padrão climático, as mudanças ambientais geraram uma onda de interesse pela história dessas variações. No entanto, os historiadores têm sido cautelosos em estabelecer relações muito estreitas entre quadros de variação climática e testemunhos escritos. Este artigo propõe colocar em relevo o aspecto positivo da questão, assumindo que tais variações, dificilmente podem ser dissociadas de crises em contexto de pejoração climática. Essa perspectiva favorece uma outra abordagem dos testemunhos e agrega à análise as ferramentas sociais capazes de afetar a reação a essas crises. O artigo analisa o registro da grande inundação de Florença em 1333 feito pelo cronista Giovanni Villani à luz da transição entre dois padrões de circulação atmosférica. Essa transição, bem documentada, será tomada como um fato de fundo para a reflexão sobre a percepção e a reação social a crises em contexto pré-antropogênico.

Palavras-chave:
Variação climática; Acidentes meteorológicos; Pejoração climática; Reações sociais à crise

Abstract:

Since before the establishment of the current climate regime climate change generated a wave of interest about the history of these variations. However, historians have been cautious about establishing close ties between climate variation frameworks defined from natural proxies and data extracted from written records. This article proposes to highlight the positive aspect of the issue, assuming that these variations can hardly be dissociated from crises in the context of climate pejoration. This perspective favors another approach to testimonies through specific issues of the climate issue and factors in the social tools that affected the occurrence of these crises. The article analyzes the record of the great flood of Florence in 1333 made by the chronicler Giovanni Villani in light of the transition between two patterns of atmos­pheric circulation. This transition, well documented, will be taken as a background fact for reflection on the perception and social occurrence of crises in a pre-anthropogenic context.

Keywords:
Climate variation; Meteorological accidents; Climate pejoration; Social reactions to the crisis

O recurso a proxies naturais para reconstrução de climas antigos não é novo.1 1 Qualquer evidência indireta utilizada para reconstituir condições climáticas do passado pode ser considerada um proxy. Autores que trabalham com a história do clima distinguem proxies naturais - provenientes de processos naturais e/ou biológicos - de proxies oriundos de fontes produzidas por seres humanos (Pfister, White, Mauelshagen, 2018, p. 1-4). Análises de núcleos de gelo remontam aos anos 1930 (Langway Jr., 2008LANGWAY. Chester JR C. The history of early Polar ice cores. Hanover: Cold Regions Research and Engineering Laboratory, 2008., p. 5). Análises dendrocronológicas baseadas na datação de isótopos estáveis em madeira são realizadas desde os anos 1940 (Levitt, Roden, 2022LEVITT, Steven W.; RODEN, John. Isotope dendrochronology: historical perspective. In: SIEGWOLF, Rolf T.W. et al. (eds.). Stable isotopes in tree rings: inferring physiological, climatic and environmental responses. Cham: Springer, 2022. p. 3-20., p. 3). Métodos mais antigos de datação de amostras de madeira precedem o advento da dendrocronologia isotópica em cerca de meio século (Levitt, Roden, 2022LEVITT, Steven W.; RODEN, John. Isotope dendrochronology: historical perspective. In: SIEGWOLF, Rolf T.W. et al. (eds.). Stable isotopes in tree rings: inferring physiological, climatic and environmental responses. Cham: Springer, 2022. p. 3-20., p. 3). Nas últimas duas décadas, o aumento da consciência de que o planeta está passando por mudanças rápidas no clima em razão da interferência humana ampliou o interesse da pesquisa histórica por esses dados. Hoje, eles são mais volumosos e precisos do que no passado e confirmam a ruptura do padrão climático planetário a partir da Era Industrial (Brázdil et al., 2005BRÁZDIL, Rudolf et al. Historical climatology in Europe: The state of the art. Climate Change, v. 70, p. 363-430, 2005., p. 9, 21-24). A disponibilidade desses dados não pode ser ignorada por historiadores de sociedades recuadas no tempo e que enfrentam uma documentação particularmente fragmentária, lacunar e limitada social e tematicamente.

As condições em que esses dados são recebidos hoje mudaram muito em relação àquelas em que se deram estudos pioneiros dos quais Histoire du climat depuis l’an mil de Emmanuel Le Roy Ladurie (1968)LE ROY LADURIE, Emmanuel. Histoire humaine et comparé du climat. Paris: Fayard, 2004-2009. 3v., ainda é o mais célebre.2 2 Le Roy Ladurie idealizou uma história tendo o clima como protagonista. A perspectiva humana da história do clima surge em sua obra recente (2004-2009). O contexto atual coloca ao menos duas grandes questões. A primeira de ordem teórico-metodológica diz respeito ao modo de aproveitamento desses dados pela história que envolve, de um lado, o delineamento do campo de estudo histórico3 3 Principal crítica à Histoire du climat depuis l’an mil em seu lançamento (Nicolaï, 1968). e, de outro, o alinhamento entre dados documentais e os proxies cuja temporalidade e propósitos são, evidentemente, de natureza bastante diferentes.

Tendo em vista as inegáveis ramificações que o tema tem ou pode ter nos debates contemporâneos, a segunda questão diz respeito ao compromisso da história com o debate democrático. As mudanças climáticas atuais, caracterizadas por uma aceleração exponencial das alterações da atmosfera global em razão da concentração de gases de efeito estufa decorrentes da atividade industrial - uso de combustíveis fósseis e mudanças no uso do solo - são um fenômeno único na história do planeta. Sua compreensão é extremamente complexa por vários motivos, sendo um dos mais importantes o fato de que exige a crítica do mundo no qual vivemos e com o qual, bem ou mal, nos identificamos. Assim, é importante que o estudo de períodos anteriores à Era Industrial se preocupe em reiterar a especificidade do contexto climático de que trata. Isso envolve um cuidado adicional no uso dos conceitos. No âmbito técnico é fundamental preservar a integridade e a assertividade dos dados vindos das ciências exatas e biológicas. O contexto social e não apenas o método exigem hoje diálogo próximo e permanente entre as pesquisas históricas envolvendo clima e as ciências da natureza.

Os padrões climáticos planetários naturais têm escala de milhares, por vezes, milhões de anos (Hobbs, Wallace, 2006HOBBS, Peter; WALLACE, John M. Atmospheric science: An introductory survey. New York: Elsevier, 2006. p. 25-62., p. 25-62). A lentidão de sua mudança é um dos fatores cruciais para a adaptação das espécies e das comunidades humanas. É igualmente natural que dentro dos grandes sistemas climáticos sejam verificados, pela conjunção de fatores específicos (uma atividade vulcânica incomum, por exemplo), movimentos de mudança mais curta - embora ainda em uma temporalidade muito mais ampla do que aquela a que as sociedades humanas são capazes de se mostrar sensíveis sem métodos específicos - que têm impacto sobre comunidades e modos de vida. Devido ao número de variáveis de que são compostas, oscilações podem também ter dimensões modestas, alcançando um impacto temporal e/ou geográfico limitado. Abordaremos uma dessas oscilações climáticas de menor envergadura partindo da hipótese de que um fenômeno de tais proporções torna mais factível o cruzamento com dados de documentos escritos. Nosso interesse não é estabelecer uma comparação sistemática e exaustiva, mas, por meio da aproximação entre dados paleoclimáticos e o registro escrito de um acidente meteorológico, refletir sobre as possibilidades de análise.

Na segunda metade do século XIII, o planeta Terra passou por uma transição entre duas épocas marcadas por notáveis diferenças em variabilidade climática: a Anomalia Climática Medieval (ou MCA, todas as siglas são das denominações em inglês), comumente datada entre os séculos X e XIV (Graham et al., 2011), e um período subsequente, a Pequena Era do Gelo (LIA) - séculos XIV a XIX, embora alguns autores prefiram datações alternativas, como séculos XVI a XIX (Camenisch, Rohr, 2018CAMENISCH, Chantal; ROHR, Christian. When the weather turned bad: the research of climate impacts on society and economy during the Little Ice Age in Europe. An overview. Geographical Research Letters, v. 44, n. 1, p. 99-114, 2018.).4 4 A posição de alguns autores tem impacto sobre o período de transição apontado. Lamb (1965) avança o início da LIA para o século XVI, enquanto Rochier (1983), o recua ao século XIII. A predileção de certos trabalhos não significa que desconsiderem a validade das evidências. Como explicam Brázdil et al. (2005, p. 27-28), essa divergência é fruto da dificuldade em conciliar termos generalizantes com a “disponibilidade e resolução temporal de dados de proxies e de seus contextos regionais”. Ainda que essas épocas sejam frequentemente caracterizadas por variações notáveis de temperatura, a transição entre elas foi um fenômeno mais complexo que a mudança entre um período de alta temperatura e um de baixa temperatura média. Para Bruce Campbell (2016CAMPBELL, Bruce M. S. The great transition: climate, disease and society in the Late-Medieval World. Cambridge: Cambridge University Press, 2016., p. 38-39), essas épocas são melhor entendidas como períodos de variações sensíveis em padrões de circulação atmosférica, os quais tiveram, por conseguinte, efeitos na temperatura, embora não necessariamente constantes ou consistentes ao redor do globo.

Dois exemplos de sistemas que sofreram câmbios durante essa transição foram a Oscilação do Atlântico Norte (NAO) e o El Niño Oscilação Sul (Enso). A primeira é o nome dado à diferença entre as pressões atmosféricas ao nível do mar na região dos Açores e da Islândia, no Oceano Atlântico. Durante suas fases positivas, i.e., quando a pressão atmosférica nos arredores da Islândia se apresenta maior que nos Açores, a NAO amiúde é responsável por um aumento de precipitação no norte da Europa e por temperaturas mais secas na Bacia do Mediterrâneo. Em suas fases negativas, quando a pressão nos Açores é maior do que na Islândia, o inverso se observa (Cullen, 2009CULLEN, Heidi. North Atlantic Oscillation (NAO) Records. In: GORNITZ, Vivian(ed.) Encyclopedia of Paleoclimatology and Ancient Environments. Dordrecht: Springer, 2009. p. 619-624., p. 619). O Enso, por sua vez, é um padrão associado à alternância entre dois estados caracterizados pela temperatura das águas do Pacífico: La Niña, quando o leste do Oceano apresenta um esfriamento, provando condições mais úmidas na Ásia e Oceania e mais secas na costa americana e El Niño, quando o Pacífico Oriental apresenta um aquecimento, acarretando em um clima mais seco no oriente e mais úmido nas Américas. Em razão do tamanho do Oceano Pacífico, variações na Enso amiúde engatilham variações climáticas locais em várias regiões do planeta (Campbell, 2016CAMPBELL, Bruce M. S. The great transition: climate, disease and society in the Late-Medieval World. Cambridge: Cambridge University Press, 2016., p. 38-39).

Durante a MCA, a Enso e a NAO apresentaram quadros razoavelmente estáveis - no caso da primeira, caracterizada por um predomínio do estágio La Niña; no caso da segunda, por ocorrências de sua fase positiva (Campbell, 2016CAMPBELL, Bruce M. S. The great transition: climate, disease and society in the Late-Medieval World. Cambridge: Cambridge University Press, 2016., p. 39-45). Esse cenário se altera a partir de 1270, quando anomalias no comportamento desses padrões acarretam um regime climático instável com grande variabilidade anual de temperaturas (Slavin, 2018SLAVIN, Philip. The 1310s event. In: PFISTER, Christian; WHITE, Sam; MAUELSHAGEN, Franz (eds.). The Palgrave handbook of climate history. Londres: Palgrave MacMillan, 2018. p. 495-516., p. 496). No caso do Atlântico Norte, esse fenômeno se observa com particular ênfase entre as décadas de 1310 e 1350, quando as temperaturas das águas sofrem uma violenta dinâmica de pêndulo, passando de uma fase a outra em rápida sucessão e apresentando altas e baixas históricas. Esse câmbio foi provavelmente causado por um enfraquecimento gradual da NAO engatilhado, por sua vez, por um período de menor irradiação solar agravado por uma série de erupções vulcânicas (Campbell, 2016CAMPBELL, Bruce M. S. The great transition: climate, disease and society in the Late-Medieval World. Cambridge: Cambridge University Press, 2016., p. 53, 200). No norte da Europa, a expressão mais severa desses fenômenos foi um evento climático conhecido como a Anomalia Dantesca de 1311-1316 (Brown, 2001BROWN, Neville(ed.). History and climate change: a eurocentric perspective. London: Routledge, 2001., p. 251). Durante esses anos, a temperatura do Atlântico Norte subiu vertiginosamente, provocando condições atmosféricas mais frias, úmidas e chuvosas. O choque culminou em dois fracassos de colheita seguidos em 1315 e 1316 (Campbell, 2016, p. 192). O frio e a umidade também contribuíram para a disseminação de doenças entre populações de gado, como a fascíola hepática - provocada pela ingestão de vermes platelmintos, que proliferam em pastos alagados - e a peste bovina, que se tornou panzoótica na década de 1320 e arredores (Newfield, 2009NEWFIELD, Timothy P. A cattle panzootic in early fourteenth-century Europe. The Agricultural History Review, v. 57, n. 2, p. 155-190, 2009.). O resultado somado dessas tribulações foi um período de fome e carestia conhecido pela historiografia como a Grande Fome da Europa do Norte de 1315-1322 (Kershaw, 1973KERSHAW, Ian. The great famine and agrarian crisis in England, 1315-1322. Past & Present, n. 59, p. 3-50, 1973.).

A gravidade dessa crise de mortalidade e suas consequências a longo prazo para as sociedades do norte da Europa amiúde fizeram com que fosse tomada como metonímia para todo o Ocidente europeu. Um exemplo clássico dessa apropriação é o livro The Little Ice Age: how climate made history, 1300-1850 de Brian Fagan (2001FAGAN, Brian M. The little ice age: how climate made history 1300-1850. Nova York: Basic Books, 2001.). Embora conceda que “ainda que temperaturas mais frias afligiram o norte, a Europa como um todo se beneficiou com a mudança” (cap. 2, par. 11), o autor baseia seu retrato das calamidades quase que unicamente em fontes setentrionais, sem atentar para seu viés geográfico. O próprio Fagan reconhece o viés, que justifica com o argumento de que terras mediterrânicas dispõem de menos dados concernentes a choques climáticos - e que, por consequência, o efeito de tais choques “é ainda pouco entendido” (Prefácio, par. 11).

Alguns estudos recentes iluminaram essa questão. Analisando indícios de pólen, algas e outros proxies biológicos coletados na província de Rieti, Itália central, Mensing et al. (2018MENSING, Scott A. et al. Historical ecology reveals landscape transformation coincident with cultural development in central Italy since the Roman Period. Scientific Reports, v. 8, n. 2138, p. 1-9, 2018.) identificaram evidências de mudanças significativas na paisagem durante os séculos da Idade Média. A análise do grupo organizou as amostras de pólen em cinco faixas temporais: Zona 1 (700 aEC-1), Zona 2 (1-600), Zona 3 (875-1400), Zona 4 (1400-1750) e Zona 5 (1750-presente). Tais zonas foram divididas tendo em vista as especificidades e dificuldades próprias à datação de amostra de pólen (Mensing et al., 2018, p. 2). Como o leitor notará, elas não necessariamente apresentam uma correspondência exata com divisões temporais utilizadas por historiadores ou climatólogos históricos, algo que deve ser levado em consideração antes de extrapolarmos seus dados - sobretudo à luz da tendência problemática de Mensing et al. (p. 2) de equacioná-las a períodos com sentidos historiográficos específicos (ex. associando a Zona 3 à Idade Média e a Zona 4 à “Renascença e Período Moderno”).

Segundo os pesquisadores, as amostras referentes à Zona 3 (875-1400) evidenciam maior presença de espécies de grama, ervas daninhas e outras espécies indicativas de uma conversão de florestas em campos e pastos (Mensing et al., 2016MENSING, Scott A. et al. Human and climatically induced environmental change in the Mediterranean during the Medieval Climate Anomaly and Little Ice Age: A case from central Italy. Anthropocene, v. 15, p. 49-59, 2016., p. 52). Já a partir da zona 4 (1400-1750) os proxies indicam um processo contrário, com o rápido avanço de florestas sobre territórios outrora desmatados. Essa dinâmica coincide com variações da Oscilação do Atlântico Norte (NAO), que, como mencionado, exerce influência expressiva sobre a temperatura e precipitação na Bacia do Mediterrâneo. Períodos de NAO positiva incorrem em clima predominantemente seco nessa região; períodos negativos, por sua vez, provocam temporadas mais frias e chuvosas. Em Rieti, essas foram as condições predominantes entre 1380 e 1400, época em que a região também observou uma célere recuperação florestal (Mensing et al., 2016MOULINIER, Laurence; REDON, Odile. L’inondation de 1333 à Florence : Récits et hypothèses de Giovanni Villani. Médiévales, v. 36, p. 91-104, 1999., p. 51 e 54; 2018MENSING, Scott A. et al. Historical ecology reveals landscape transformation coincident with cultural development in central Italy since the Roman Period. Scientific Reports, v. 8, n. 2138, p. 1-9, 2018., p. 5).

Embora seja sedutor traçar uma correlação direta entre clima e transformações econômicas relacionadas a essas mudanças de paisagem, os autores atentam contra explicações monocausais envolvendo fenômenos naturais. A respeito da rápida perda florestal observada na região de Rieti a partir do século IX, Mensing et al. (2018MENSING, Scott A. et al. Historical ecology reveals landscape transformation coincident with cultural development in central Italy since the Roman Period. Scientific Reports, v. 8, n. 2138, p. 1-9, 2018., p. 5) afirmam que ela foi “grande demais para ser explicada apenas pelo clima”. Esse período observou “o impacto mais dramático e duradouro sobre as florestas” em toda a série estudada (p. 6) - boa parte do qual, como delinearam em artigo precedente (Mensing et al., 2016MOULINIER, Laurence; REDON, Odile. L’inondation de 1333 à Florence : Récits et hypothèses de Giovanni Villani. Médiévales, v. 36, p. 91-104, 1999., p. 54), tendo ocorrido em um intervalo de menos de 100 anos (c.870-925). Os autores notam a correspondência desse processo com mudanças administrativas, políticas e econômicas identificadas a partir de fontes históricas, como a anexação do norte da Itália ao Império Carolíngio no final do século VIII, a aquisição de grandes quantidades de terra pelo mosteiro de Farfa nos anos 870 e dinâmicas de incastellamento nos séculos XI e XII (Mensing et al., 2018MENSING, Scott A. et al. Historical ecology reveals landscape transformation coincident with cultural development in central Italy since the Roman Period. Scientific Reports, v. 8, n. 2138, p. 1-9, 2018., p. 5). Ademais, os autores apontam indícios de interferência humana nos sistemas hídricos locais. Amostras do século XIII revelam níveis de pólen do gênero Alnus - uma árvore que necessita de umidade para se desenvolver - comparáveis aos níveis atuais. Para a equipe, tal dado revela que a bacia foi drenada no período, a exemplo do que ocorreu na Era Industrial (Schoolman, Mensing, Piovesan, 2018SCHOOLMAN, Edward; MENSING, Scott; PIOVESAN, Gianluca. From the Late Medieval to Early Modern in the Rieti Basin (AD 1325-1601): Paleoecological and historical approaches. Historical Geography, v. 46, p. 103-128, 2018., p. 113-114). Da mesma forma, a recuperação florestal a partir do século XIV coincide com uma série de choques populacionais de naturezas diversas, como surtos de peste (a partir de 1349), uma sequência de terremotos em 1349 e uma fome acarretada por uma invasão de gafanhotos em 1365 (Galli, Naso, 2009GALLI, P; NASO, J. Unmasking the 1349 earthquake source (southern Italy): paleoseismological and archaeoseismological indications from the Aquae Iuliae fault. Journal of Structural Geology, v.31, p. 128-49, 2009.). Diante da influência de tais fenômenos, até que ponto seria possível tratar o clima como fator essencial nestas dinâmicas? Mensing et al. (2018MENSING, Scott A. et al. Historical ecology reveals landscape transformation coincident with cultural development in central Italy since the Roman Period. Scientific Reports, v. 8, n. 2138, p. 1-9, 2018., p. 7) demonstram ceticismo, argumentando que a “mudança ambiental abrupta estava mais intimamente ligada a transformações sociopolíticas e demográficas do que à mudança climática” a longo prazo. Isso não significa que o clima não pode ter tido influência indireta em conjunturas locais. Como exemplo, os autores citam a incidência de inundações mais frequentes no século XV. Medidas para drenar terra alagada - como, por exemplo, a construção de canais - às vezes acarretavam a inundação de outras terras, levando a conflitos políticos (Mensing et al., 2016MENSING, Scott A. et al. Historical ecology reveals landscape transformation coincident with cultural development in central Italy since the Roman Period. Scientific Reports, v. 8, n. 2138, p. 1-9, 2018., p. 56).

As análises de Mensing et al. explicitam algumas das principais dificuldades encontradas ao aliar as contribuições da paleoclimatologia à pesquisa histórica. Ainda que tenhamos evidências documentais de que fatores climático-ambientais e transformações humanas estejam relacionadas, nem sempre é fácil especificar qual associação existe entre ambos - ou mesmo se tal vínculo existe de todo em casos específicos. Bruce Campbell (2016CAMPBELL, Bruce M. S. The great transition: climate, disease and society in the Late-Medieval World. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.), que dedicou energia singular defendendo o papel da natureza como protagonista histórica, baseou boa parte de seus argumentos em correlações, mais do que em modelos causais bem entendidos e documentados. Como ele e Francis Ludlow salientaram, sequências de eventos extremos em rápida sucessão, à exemplo da Anomalia Dantesca, não são exclusivas da LIA. Ao contrário, aconteceram com relativa frequência ao longo dos séculos XII e XIII, amiúde acompanhando erupções datadas, aproximadamente, dos anos de 1108, 1170, 1182, 1229, 1257, 1275 e 1285 (Campbell, Ludlow, 2020CAMPBELL, Bruce M. S. The great transition: climate, disease and society in the Late-Medieval World. Cambridge: Cambridge University Press, 2016., p. 166). Tais choques, por si só, raramente perturbavam as condições meteorológicas por um período de tempo longo. Períodos de instabilidade eram seguidos por longos intervalos que davam ao ambiente e às sociedades humanas oportunidade para se recuperar. Contudo, a partir da segunda metade do século XIII, tais condições se aliaram a reveses comerciais e políticos que impossibilitaram o retorno ao status quo ante.5 5 No Mediterrâneo oriental, a queda dos Estados Cruzados levou a um embargo papal contra o comércio entre cristãos e mamelucos, dificultando a então próspera atividade mercantil entre repúblicas italianas e cidades como Acre e Antioquia. O cerco de Bagdá de 1258 e as subsequentes guerras entre mamelucos e o Ilcanato mongol provocaram sua própria cota de obstruções neste segmento da Rota da Seda. Já na Europa do norte, as feiras na região de Champanhe sofrem tribulações de outra natureza. Conde de Champanhe em virtude de seu casamento com Joana de Navarra, Felipe, o Belo, coroado rei da França em 1285, adotou medidas discriminatórias contra comerciantes flamengos e italianos forçando-os a depender de rotas marítimas diretas - porém, mais caras e perigosas - entre Flandres e o Mediterrâneo (Campbell, 2013, p. 253-254).

Lançando mão apenas de documentos escritos, Carole Puig aponta, no período de transição entre a MCA e a LIA, uma similaridade entre acidentes meteorológicos e suas consequências no sul da França, na Península Ibérica e na Península Itálica: predomínio de tempo frio e seco (1256-1258), frio e úmido (1276 e 1278) e fome (1284 e 1288). Seu estudo identifica, a partir de 1310, uma piora meteorológica na zona situada entre o Languedoque, o reino de Maiorca e a coroa de Aragão que teria atingido seu ápice nos anos 1330 (Puig, 2009PUIG, Carole. Les prémices du Petit Âge Glaciaire en Roussillon à travers le prisme des sources écrites. Archéologie du Midi Médiévale, v. 27, p. 191-205, 2009., p. 193). A partir desse período, nota no Roussillon uma intensa atividade para enfrentar o aumento do volume dos rios por meio de canalização, fechamento de portas e reforço de trechos de muralhas. Acrescenta, no entanto, que o avanço de aterros e drenagens entre os séculos XII e XIV também se explica por necessidade econômica e pela “fome de terra”. No século XIV esses empreendimentos começam a fracassar em decorrência de diversos fatores entre os quais se conta o aumento da umidade (Puig, 2009PUIG, Carole. Les prémices du Petit Âge Glaciaire en Roussillon à travers le prisme des sources écrites. Archéologie du Midi Médiévale, v. 27, p. 191-205, 2009., p. 196 e 198-199). Os estudos de Puig testemunham a consistência histórica dos efeitos de curto, médio e longo prazo da LIA.

Embora os dados sobre o Roussillon não possam ser transpostos para a Península Itálica sem um estudo aprofundado das fontes locais, eles nos ajudam a estabelecer um quadro comparativo prévio mais detalhado para a consideração dos impactos da LIA nessa região do que aquele fornecido pelos proxies naturais. Os dados paleoclimáticos documentam acontecimentos potencialmente determinantes sobre quadros de vida. As grandes linhas das variações climáticas persistem silenciosas sob os quadros temporais e espaciais analisados pelos historiadores. Os documentos escritos - embora de forma esparsa e imprecisa - apresentam resultantes decorrentes da interação de outros fatores de ordem natural (ex: a topografia) e indicam a diversidade das reações sociais.

Na busca por registros de catástrofes naturais do passado é compreensível que os historiadores demonstrem particular interesse por textos do gênero histórico, como crônicas, histórias e anais. No entanto, quando se trata da Idade Média, mesmo esses textos estão longe da objetividade esperada. Diante da falta de confiabilidade dos dados relativos a danos e à causa dos eventos concretos - além da necessária atribuição de um papel à divina providência nos assuntos terrenos -, por vezes somos surpreendidos por textos de riqueza incomum. Um deles é a narrativa da grande inundação de Florença pelo rio Arno acontecida em 1333, feita por uma testemunha excepcionalmente bem-informada: Giovanni Villani (c.1280-1348) “mercador viajado, diplomata de alta posição, político Guelfo”, conhecedor íntimo da vida florentina, com uma ampla vivência no espaço europeu (Schenk, 2007SCHENK, Gerrit Jasper. “...prima ci fu la cagione de la mala provedenza de’ Fiorentini...”: Disaster and “life world”: reactions in the Commune of Florence to the flood of November 1333. The Medieval History Journal, v. 10, n. 1-2, p. 355-386, 2007., p. 356). Escrita a partir dos anos 1315-1320, a Nuova cronica6 6 Nossa análise se baseia primeiramente em: GIOVANNI VILLANI, Nuova cronica; PORTA, Giuseppe (ed.), Milão: Guanda, 1990-1991, 3v. Outras edições acessíveis da crônica são a de Ignazio Moutier, relevante pelo seu rico aparato crítico (Firenze: Sansone Coen, 1845); a de Bartolomeo Zanetti, primeira versão impressa, de 1537 (https://archive.org/details/cronichedimesser00vill/page/n5/mode/2up. Acesso: 13 set. 2023); o manuscrito Chigiano L.VIII.296, único códice (L.VIII.296, Biblioteca Vaticana. https://digi.vatlib.it/view/MSS_Chig.L.VIII.296 Acesso: 13 set. 2023) e o manuscrito Riccardiano 532, notável pelo estado de conservação (http://teca.riccardiana.firenze.sbn.it/index.php/it/?option=com_tecaviewer&view=showimg&myId=fd57b387-6425-41c5-9975-322fd2f2bb15&search= Acesso: 13 set. 2023). também se tornou notável como registro interrompido da mortalidade de 1347-1348, que vitimou seu autor.

As chuvas intensas de 1333 começaram em uma segunda-feira, 1o de novembro, dia de Todos os Santos, e prosseguiram ininterruptamente por quatro dias. Segundo Laurence Moulinier e Odile Redon (1999MOULINIER, Laurence; REDON, Odile. L’inondation de 1333 à Florence : Récits et hypothèses de Giovanni Villani. Médiévales, v. 36, p. 91-104, 1999., p. 94), a inundação “foi de tal modo excepcionalmente grave na Toscana que teve eco na memória escrita de Parma, Bolonha e Ferrara”. Em Florença, no entanto, suas consequências foram mais graves. Villani o afirma7 7 NC, v.1, livro 1, cap.1: “desde que a cidade de Florença foi destruída por Totila, Flagellum Dei, não sofreu adversidades e danos tão grandes quanto estes”. e reforça com testemunhos, entre os quais se conta a longa carta que, em 3 de dezembro, o rei de Nápoles Roberto, o Sábio, (1309-1343) enviou aos habitantes de Florença lamentando “o acidente inesperado e brutal, e o desastre catastrófico, devido ao excesso da inundação”.8 8 NC, v.1, livro 12, cap.1. Villani informa que apenas na recuperação de pontes, muros e ruas, Florença teria gastado 150 mil florins, o que equivaleria a 530 quilos de ouro (Schenk, 2007, p. 368).

Embora seja difícil afirmar que os episódios de chuvas torrenciais tenham motivado a escrita da crônica, é possível dizer que ocupam um lugar de destaque em seu foco narrativo. Pela recorrência do tema e profundidade de seu tratamento, pode-se dizer que o autor lhe era sensível. Com efeito, Villani foi testemunha ocular da grande chuva, da inundação e de seus efeitos. Ele também teve a oportunidade de ouvir relatos de sobreviventes de outra grande enchente que marcou a história de Florença, acontecida em 1269. A partir dos dados que recolheu de eventos similares podemos imaginar que tivesse um interesse deliberado pelo tema e lhe atribuísse um valor particular no histórico da cidade. A expressão coletiva atribuída aos dados e situações por ele descritas fazem crer que aborda um tema caro à cidade e presente em seus temores, e mais, constitutivo da memória social.

Nesse sentido, os dois capítulos que abrem a Nuova cronica parecem significativos. Sabemos que Villani trabalhou na obra por cerca de duas décadas antes de falecer. Trata-se, portanto, de um texto planejado e maduro que permite atribuir sentido às escolhas realizadas pelo autor. O que temos nos dois primeiros capítulos são temas que se desdobram ao longo da obra e que apontam para uma história de Florença pensada sob o signo da destruição. No capítulo primeiro, Villani justifica a escrita da crônica para que não se repetisse o que aconteceu com a memória remota da cidade perdida por negligência e devido à destruição perpetrada pelo godo Totila por ocasião da invasão da cidade. A lembrança de Totila reaparece na grande enchente de 1333 pela queda da imagem equestre de Marte nas águas do Arno, o que teria acontecido antes, por ocasião da entrada de seu exército na cidade em 450. Villani registra a memória de um antigo vaticínio que apontava essa segunda queda - esperada! - como sinal de “grande perigo e mudança” para a cidade.9 9 NC, v.1, livro 1, cap. 1. Segundo Villani, a estátua foi derrubada no Arno por ocasião da invasão da cidade pelos godos de Totila: “os antigos disseram e escreveram que quando a estátua de Marte caísse ou fosse movida, a cidade de Florença passaria por grande perigo ou mudança” (NC, v.3, livro 12, cap. 1). Outras referências à relação entre a estátua de Marte e a destruição de Florença: NC, v.1, livro 3, cap. 1; NC, v.1, livro 4, cap. 1; NC, v. 2, livro 9, cap. 39.

A destruição diluviana10 10 O uso do termo “dilúvio” para evocar a enormidade de um evento chuvoso e sua qualificação por meio de frases bíblicas saídas do episódio do Dilúvio - como acontece na crônica de Villani - é comum nos textos da Idade Média e do Renascimento (Moulinier, Redon, 1999, p. 92). - que acometerá a estátua de Marte em 1333 - aparece pela primeira vez no segundo capítulo do primeiro livro da crônica, no qual o autor procura definir as bases mais antigas da história de Florença. Durante a Idade Média é comum textos de história começarem com a origem do mundo. Na maior parte das vezes, a preferência dos autores recai sobre episódios da narrativa da Criação. Villani, no entanto, escolhe partir do recomeço da humanidade após o Dilúvio. Assim, o Dilúvio, Noé e seus filhos são colocados na origem da história longínqua da cidade. O relato destaca que a Europa foi povoada pelos filhos de Noé, sendo que Jano, um de seus filhos nascidos após o Dilúvio, teria dado origem a muitos grandes senhores e povos da Itália.11 11 (NC, v. 1, livro 1, cap. 2 e 5). Villani registra que Nimrod, um dos descendentes de Noé e o primeiro rei após o Dilúvio, construiu a Torre de Babel para escapar a outro cataclisma do mesmo tipo (NC, v.1, livro 1, cap. 2).

Durante a enchente de 1333, o sincretismo que permite a relação entre a imagem de Marte e o destino da cidade colocada sob o patronato de São João Batista fortalece sua representação coletiva como lugar vulnerável, desde o passado longínquo.12 12 Esse sincretismo se caracteriza pela vinculação da estátua e da cidade ao planeta Marte. Mesmo em contexto cristão, a condição astrológica da cidade continua vinculada a Marte (NC, v. 3, livro 12, cap. 1- 2). Como o próprio Villani destaca, a cidade foi vitimada por muitas enchentes catastróficas. A escolha por permanecer em um local vulnerável a desastres parece ter como contrapartida o desenvolvimento de mecanismos de atenção ao risco. Esses podem ter tido um papel importante na reação às crises pelas quais passou a cidade. A crônica e outros registros históricos das enchentes, a estátua de Marte e a ligação da origem da história comum ao Dilúvio constituem lugares de memória que vinculam a identidade cívica ao risco e à crise.

O dilúvio volta com força à narrativa a partir do livro 8, culminando na enchente de 1333, descrita como aquela de consequências mais terríveis. Em oposição às catástrofes longínquas, situadas em um tempo de frágil memória, os episódios de “dilúvio” descritos a partir do livro 8 se concentram entre os anos de 1269 e 1345, ou seja, na faixa temporal em que Villani pode contar com vivacidade aquilo que viu ou ouviu de outros testemunhos. O autor descreve uma impressionante sequência de chuvas notáveis pelo seu volume ocorridas em regiões próximas, se levarmos em conta referenciais de latitude e longitude. No total, Villani registra nove chuvas extremas, seguidas de enchentes - ou, em suas próprias palavras, “dilúvios” - ocorridos ao longo de 76 anos. Florença é vitimada por sete desses eventos. As chuvas e enchentes se concentram em Florença nos anos de 1269,13 13 NC, v.1, livro 8, cap. 34. Danos documentados: desabamentos e mortes. 1282,14 14 NC, v.1, livro 8, cap. 88. Danos documentados: afogamentos e carestia. 1284.15 15 NC, v.1, livro 8, cap. 97. Danos documentados: desabamentos e mortes. Em 128816 16 NC, v.1, livro 8, cap. 126. atingem Florença e Pisa. Em 1324, serão construídos muros em trechos das margens do Arno devido a enchentes na área.17 17 NC, v.1, livro 10, cap. 256. Em 132818 18 NC, v.2, livro 11, cap. 93. Danos documentados: destruição de mil casas e mortes por afogamento. Giovanni traz a notícia de chuvas catastróficas na região do Ródano. Em 133019 19 NC, v.2, livro 11, cap. 168. Danos documentados: 28 dias de chuva, desabamentos e sete mil mortos. a calamidade se abate sobre Chipre e Sevilha e, em 133320 20 NC, v.3, livro 12, cap. 217 e 227; v. 2, livro 12, cap. 1-4 e 96. e 1334,21 21 NC, v.3, livro 12, cap. 50. Danos documentados: destruição de pontes e açudes e pessoas desalojadas. volta a assediar Florença, sendo que em 1333 o evento atingiu toda a Toscana e Romagna. Em 1345, nova enchente atinge Florença. Essa sequência de eventos que os contemporâneos entenderam como excepcionais, parece apontar para a plausibilidade de se investigar a influência da LIA em sua ocorrência. Dados climatológicos permitem saber que a enchente de 1333, em particular, começou após um verão extremamente quente e seco, o que ajudaria a explicar a intensidade das chuvas quando a temperatura começou a cair com a mudança de estação.22 22 Schoolman, Mensing, Piovesan (2018, p. 114). A Nuova cronica traz uma informação importante sobre a correlação entre astrologia e observação meteorológica quando se lê a respeito dos fenômenos celestes que antecederam a inundação de 1333: “para os sábios religiosos e pela demonstração dos astrólogos foi pregado em Florença, o que ouvimos, que isso significava grande secura no verão seguinte e depois, em oposição a esse eclipse, grande transbordamento de águas” (NC, v.3, livro 12, cap. 2). Pelas mãos de Villani, a rica sequência de eventos não dá lugar a considerações que estabeleçam uma relação sistemática entre eles. Villani confronta apenas os “dilúvios” de 1269 e 1333.

O registro que Villani apresenta da inundação de 1333 começa com a descrição do início das chuvas e a avassaladora progressão das águas sobre diferentes áreas da cidade, a subida vertiginosa de seu volume e a consequente devastação. Foram invadidos casas, praças, pontes e edifícios, identificados por suas funções cívicas concretas e simbólicas (o dormitório dos frades, o palácio do povo, o palácio da comuna, a abadia, o mercado novo e o mercado velho, o castelo Altafronte, a torre da guarda etc.). Villani inventaria as perdas de vidas humanas (300 homens e mulheres entre “pequenos” e “grandes”), animais, estoques, sementes, árvores. Os danos materiais são indiscerníveis daqueles, mais profundos, relacionados à própria organização do modo de vida. Da cheia de 1333 o autor nos legou algumas vozes raras que, em meio ao desespero enquanto as águas subiam, clamam: “Misericórdia, misericórdia!”.23 23 NC, v. 3, livro 12, cap. 1. Panelas e utensílios não são o bastante e, nas áreas mais ameaçadas, as pessoas sobem nos telhados, passando por meio deles de casa em casa procurando fugir. Com o rompimento das muralhas a água começa a baixar. Nesse momento, a cidade volta a si e muitos se entregam a ritos de penitência e comunhão.24 24 NC, v. 3, livro 12, cap. 2 “Em Florença, o dilúvio provocou grande admiração e temor em todos. Não duvidando que se tratasse de um juízo de Deus pelos nossos pecados, pois depois que baixou o dilúvio não parava de chover com trovões e relâmpagos apavorantes. A maioria das pessoas recorreu à penitência e à comunhão, e isso foi bom para apaziguar a ira de Deus”. A despeito da viva narrativa de Villani, falta-nos o conhecimento preciso das perdas e das reações decisivas para contê-las ainda durante a crise. No entanto, em relação à posteridade, o próprio texto da crônica, sua pungência e diagnóstico da catástrofe, podem ser entendidos como parte de uma vontade de promover o que entendemos hoje por adaptação e resiliência.25 25 Para esses conceitos, ver Bavel (2020, p. 35-38).

A reconstrução da cidade levou bastante tempo. Apenas para a retirada da lama fétida, foram necessários seis meses. A abertura de novos poços de água também foi uma das medidas emergenciais. Junto com os primeiros gestos surgiram também perguntas e a exigência por respostas. A crônica de Giovanni Villani permite uma ideia das inquietações que um evento como a grande inundação de 1333 poderia despertar. Seu texto registra perguntas que ele nos faz crer, circularam pelas mentes, debates e boatos da cidade após o final das chuvas.

A primeira pergunta feita foi sobre o que causou a chuva desastrosa. A cidade convoca sábios teólogos e astrólogos.26 26 NC, v. 3, livro 12, cap. 2: “fizeram perguntas a sábios religiosos e mestres em teologia, e do mesmo modo, a filósofos da natureza e a astrólogos, se o dilúvio tinha se dado pelo curso da natureza ou pelo juízo de Deus”. Quer ouvir e ponderar suas respostas. A explicação da interferência da vontade divina para a correção dos pecados - defendida pelos teólogos - como esperado, tem destaque, mas divide o espaço com o que dizem os astrólogos que ressaltam a interferência dos astros sobre os elementos e o destino da cidade. Na discussão pública, Villani permite vislumbrar a força dos argumentos da astrologia entre os sábios de seu tempo e, em particular, na cidade de Florença.27 27 NC, v. 3, livro 12, cap. 2. A atenção à influência dos astros é bastante frequente na crônica. Laurence Moulinier e Odile Redon (1999MOULINIER, Laurence; REDON, Odile. L’inondation de 1333 à Florence : Récits et hypothèses de Giovanni Villani. Médiévales, v. 36, p. 91-104, 1999. e 2005) deram atenção a esse aspecto da Nuova cronica no qual identificaram uma predileção do cronista por não optar por uma causa única. No que se refere às causas sobre-humanas e cósmicas há de fato uma convergência; esta é, em boa medida, construída pelos próprios teólogos e astrólogos, que, partícipes da categoria comum de acadêmicos cristãos, afirmam que a conjunção funesta dos astros só poderia ter acontecido com a anuência divina.

Mas um grupo de perguntas de outra ordem demanda resposta e decorre da confrontação sistemática entre fatos históricos e naturais. Os habitantes da cidade querem saber por que o desastre foi maior em Florença do que em Pisa? Indo um pouco além, e recorrendo aos sábios que haviam sido testemunhas da enchente anterior, querem saber qual havia sido mais caudalosa, a de 1269 ou a de 1333? A resposta dada pela maioria dos anciãos é que o volume de chuvas de 1333 não foi maior do que aquele de 1269. Tal resposta deu forma à última pergunta: se o volume de chuvas foi equivalente, porque os danos de 1333 foram maiores do que os de 1269? A resposta dada pelos anciãos e que circula pela cidade - três vezes reiterada por Villani - é que a má administração pública havia permitido a multiplicação descontrolada de barragens ao longo do Arno a fim de viabilizar a construção de moinhos promovendo, durante as fortes chuvas, acúmulo incomum de água na cidade e em seu entorno.28 28 NC, v. 3, livro 12, cap. 1.: “a enchente foi tão grande que o Arno não teve capacidade para contê-la e devido às muitas barragens da cidade para os moinhos, o Arno subiu nessas localidades mais de VII braças acima de seu leito” e “A maioria [dos anciãos] disse que o antigo [dilúvio] não teve menos água, e que o aumento do leito do Arno ocorreu devido à má previsão do Município que deixou aqueles que tinham moinhos construírem barragens”. NC, v. 3, livro 12, cap. 2.: “Também perguntaram aos astrólogos por que a referida inundação atingiu mais Florença do que Pisa, que também ficava no Arno, e estando mais abaixo, deveria sofrer mais, ou em outras terras da Toscana. Foi respondido que em primeiro lugar a causa se devia à má previsão dos florentinos devido, como dito, à altura das barragens.”

Nesse ponto, Villani realiza uma pequena interferência em primeira pessoa no texto para confessar uma divergência que amplia a percepção de que a voz a que se contrapõe é coletiva. Se não discorda das causas das chuvas, Villani, pessoalmente, discorda da explicação para o volume incomum de água. Segundo ele, um terremoto teria somado águas subterrâneas ao volume das chuvas.29 29 NC, v. 3, livro 12, cap. 1.: “acreditamos que este dilúvio foi muito maior que o antigo, não tanto devido à chuva como devido a um terremoto.” Não existem registros comprobatórios desse evento. Portanto, a convergência de explicações apontada por Moulinier e Redon não é completa. Mais importante, as explicações não operam no mesmo nível nem têm as mesmas consequências. Se as respostas envolvem, por um lado, a compreensão sobre-humana dos acontecimentos, por outro, consideram a experiência e as decisões imediatas que permitirão a mitigação das causas.

O clamor popular em torno das causas terrenas e da responsabilidade da administração comunal parece ter sido grande, pois, segundo Villani,

em decorrência do problema das barragens incontinentes foi feito decreto da Comuna de Florença de que não deveria haver barragem ou moinho sob pontes, nem duas mil braças [cerca de 1.200 metros] acima da [ponte] Rubaconte nem três mil braças [cerca de 2.300 metros] abaixo da [ponte] Carraia, sob grave pena; e dada a ordem, foram chamados oficiais para que fossem refeitas as pontes e os muros caídos.30 30 NC, v. 3, livro 12, cap. 1.

Somando à Nuova cronica outros testemunhos, Gerrit Jasper Schenk confirma essa resposta das autoridades públicas às causas da vulnerabilidade florentina, apontada pela população da cidade. Segundo Schenk (2007SCHENK, Gerrit Jasper. “...prima ci fu la cagione de la mala provedenza de’ Fiorentini...”: Disaster and “life world”: reactions in the Commune of Florence to the flood of November 1333. The Medieval History Journal, v. 10, n. 1-2, p. 355-386, 2007., p. 373-374), o governo da cidade já havia banido o excesso de barragens em 9 de agosto de 1330, mas a decisão não foi executada. Isso ajuda a explicar a rápida reação da cidade e, em seguida, as decisões públicas já no conselho de 12 e 13 de novembro de 1333. A despeito disso e do rigor da punição anunciada - perda de uma a mão ou a decapitação - essa decisão também ficou sem efeito. Os gestores deixaram de lado as ações preventivas em favor das ações paliativas, sem dúvida necessárias, mas insuficientes para evitar novas catástrofes. O foco dos poderes públicos se concentra então na reconstrução de estruturas de comunicação (ruas, pontes) - necessária para o abastecimento, chegada da ajuda externa e outras trocas - e de proteção (muralhas).

A comparação com as chuvas de 1269 permite concluir que a cidade fora mais alagada e sofrera maiores danos em 1333 porque, nesse intervalo de tempo, os poderes públicos haviam autorizado a construção de mais barragens para moinhos e estas haviam tornado a inundação mais aguda. Outra prova indireta que Villani apresenta dessa perspectiva vem do fato de que, embora as chuvas torrenciais tenham se verificado em toda a Toscana e Romagna, ao que parece, apenas em Florença a situação levou à tal destruição que foi preciso contar com a ajuda de outras cidades para o fornecimento de farinha e pães.32 32 NC, v. 3, livro 12, cap. 1.: “houve em Florença grande escassez de farinha e pão devido à avaria dos moinhos e fornos; mas os de Pistoia, Prato, Colle e Poggio e as demais terras do interior e arredores, ajudaram com grande abundância de pão e farinha.” NC, v. 3, livro 12, cap. 2: “a ruína não permitiu que perecesse completamente graças às orações do povo santo e religiosos da nossa cidade e arredores, e pelas grandes esmolas que dão a Florença”. O texto é claro ao afirmar que a ajuda veio de cidades das imediações que, a despeito das chuvas, continuaram operacionais. Assim, pelo menos em relação ao evento de 1333, o que a crônica relata é a percepção de que a destruição se deveu ao desastre tecnológico - a construção de barragens para o aumento do número de moinhos - e não ao desastre natural decorrente das chuvas torrenciais. A percepção da cidade permite afirmar que a tecnologia acentuou a vulnerabilidade local em relação ao acidente climático, produzindo a catástrofe.

Os dados climatológicos não deixam dúvida de que a sequência de cheias destacadas por Villani aconteceram durante a LIA. Também é certo que o cronista e seus contemporâneos, aí incluídos os astrólogos - figuras mais próximas aos climatólogos em seu tempo - não notaram a pejoração climática. Naquela sociedade e naquele tempo, isso não impediu a reconstrução da vida coletiva. Na verdade, naquelas condições, ela não se rompeu completamente, permitindo a reconstrução.

A partir da Nuova cronica, podemos dizer que em 1333 a resiliência de Florença esteve baseada em uma série de fatores ligados à forma como a vida na cidade estava estruturada. Em primeiro lugar, um tecido social atravessado pela consciência da vulnerabilidade firmada em práticas de memória (a lembrança de outras catástrofes e a comparação entre o passado e o presente). Desses elementos se destaca a atenção coletiva dada ao rio. Ele é objeto de memória, preocupação, discussão, boatos e deliberação. Em uma cidade como Florença, a percepção do espaço físico no cotidiano ainda era significativa porque a vida (econômica, política, social, cultural, religiosa, familiar) ainda estava fortemente vinculada a ele. No momento em que as águas do Arno começam a subir, a cidade é simultaneamente avisada pelo repique dos sinos de todas as igrejas. Esse movimento comunal dá lugar a ações individuais para salvar bens - panelas e potes são dispostos para enfrentar as chuvas dentro das casas - e, depois, para salvar vidas - as pessoas nas regiões mais vulneráveis sobem nos telhados e fogem aos gritos devido ao risco de desabamento diante da força da correnteza.

Assim que a água começou a baixar, rapidamente, os mecanismos de cooperação começaram a ser resgatados. Os boatos fomentam discussões e promovem os primeiros alinhamentos da comunidade no que se refere à percepção da crise e às respostas a ela. Penitência e comunhão reconstituem simbolicamente os vínculos identitários locais, e, junto com esses ritos, a comunidade não perde de vista o contingencial. Esse é o contexto social que assegura a capacidade coletiva de diagnosticar a causa da catástrofe. Essa coalizão de percepções e vontades pressiona os poderes públicos à ação. Normas são criadas - num claro reconhecimento de responsabilidade pelas autoridades - e a cidade está pronta para começar sua reconstrução física.

Mas no meio do caminho há a fome, um flagelo contra o qual, depois da destruição trazida pelo “dilúvio”, a cidade não tem como enfrentar sozinha. Entra em cena então o último elemento capital da resiliência florentina ao desastre de 1333, a ajuda das cidades e vilarejos do entorno. A atuação desse coletivismo extralocal pode ser explicada por muitos fatores, entre os quais podemos contar relações econômicas complementares, interesses políticos, laços de identidade histórica e religiosa estabelecendo vínculos de solidariedade necessária. No entanto, é preciso notar, também, que a ajuda só foi possível porque o entorno não sofreu a catástrofe, permitindo que atuasse como uma zona de compensação ecológica para as perdas que Florença não tinha condições de enfrentar sozinha.

As análises realizadas a partir de proxies naturais, até o momento, têm tornado evidente a dificuldade para ajustarmos as escalas muito distintas entre fenômenos climáticos e processos sociais. De modo geral, mesmo hoje, as sociedades respondem apenas a acidentes meteorológicos, sendo pouco ou nada responsivas a dados de mudança climática e oscilações climáticas que envolvem padrões de longa duração. Os testemunhos escritos reagem a essa limitação da percepção humana a um tempo e lugar. A historiografia tem dificuldade em construir um registro que concilie essas temporalidades. O primeiro desafio para romper o impasse consiste em ampliar o trabalho com séries documentais constituídas segundo zonas de influência meteorológica. Tal empreitada não estaria, evidentemente, a serviço da história do clima, mas tampouco deveria se restringir à história do desastre. Seria interessante, em primeiro lugar, que seus propósitos estivessem ligados à investigação de como as sociedades percebem e reagem às crises e aos inventários das condições envolvidas em sua eficácia. Em segundo lugar, seria desejável a construção de uma narrativa histórica capaz de apoiar a percepção de fatos de natureza climática em sua temporalidade própria a fim de apoiar a produção de resiliência em nosso próprio tempo.

Os dados paleoclimáticos exibem um contexto da vida das sociedades que não pode ser desconsiderado, sobretudo quando falamos de crises em que estão envolvidos acidentes meteorológicos. Como argumenta Carole Puig (2009PUIG, Carole. Les prémices du Petit Âge Glaciaire en Roussillon à travers le prisme des sources écrites. Archéologie du Midi Médiévale, v. 27, p. 191-205, 2009.), se para os períodos anteriores à Era Industrial é difícil estabelecer a correlação entre crise econômica, demográfica e social e variação climática, certos eventos - como o abandono de regiões habitadas em que as evidências materiais apontam para assoreamento ou para obras de contenção e orientação de cursos de água, como reforma e ampliação de muralhas e canalização de rios - mostram também que a variação climática dificilmente pode ser dissociável de tais crises.

Referências

  • BAVEL, Bas von. Disasters and history: The vulnerability and resilience Cambridge: Cambridge University Press, 2020.
  • BRÁZDIL, Rudolf et al. Historical climatology in Europe: The state of the art. Climate Change, v. 70, p. 363-430, 2005.
  • BROWN, Neville(ed.). History and climate change: a eurocentric perspective London: Routledge, 2001.
  • CAMENISCH, Chantal; ROHR, Christian. When the weather turned bad: the research of climate impacts on society and economy during the Little Ice Age in Europe. An overview. Geographical Research Letters, v. 44, n. 1, p. 99-114, 2018.
  • CAMPBELL, Bruce M. S. The great transition: climate, disease and society in the Late-Medieval World Cambridge: Cambridge University Press, 2016.
  • CAMPBELL, Bruce; LUDLOW, Francis. Climate, disease and society in late-medieval Ireland. Proceedings of the Royal Irish Academy: Archaeology, Culture, History, Literature, v. 120C, p. 159-252. 2020.
  • CULLEN, Heidi. North Atlantic Oscillation (NAO) Records. In: GORNITZ, Vivian(ed.) Encyclopedia of Paleoclimatology and Ancient Environments Dordrecht: Springer, 2009. p. 619-624.
  • FAGAN, Brian M. The little ice age: how climate made history 1300-1850 Nova York: Basic Books, 2001.
  • GALLI, P; NASO, J. Unmasking the 1349 earthquake source (southern Italy): paleoseismological and archaeoseismological indications from the Aquae Iuliae fault. Journal of Structural Geology, v.31, p. 128-49, 2009.
  • HOBBS, Peter; WALLACE, John M. Atmospheric science: An introductory survey New York: Elsevier, 2006. p. 25-62.
  • KERSHAW, Ian. The great famine and agrarian crisis in England, 1315-1322. Past & Present, n. 59, p. 3-50, 1973.
  • LAMB, Herbert H. The Early Medieval warm epoch and its sequel. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology, v. 1, p. 13-37, 1965.
  • LANGWAY. Chester JR C. The history of early Polar ice cores Hanover: Cold Regions Research and Engineering Laboratory, 2008.
  • LE ROY LADURIE, Emmanuel. Histoire du climat depuis l’an mil Paris: Flammarion, 1967.
  • LE ROY LADURIE, Emmanuel. Histoire humaine et comparé du climat Paris: Fayard, 2004-2009. 3v.
  • LEVITT, Steven W.; RODEN, John. Isotope dendrochronology: historical perspective. In: SIEGWOLF, Rolf T.W. et al. (eds.). Stable isotopes in tree rings: inferring physiological, climatic and environmental responses Cham: Springer, 2022. p. 3-20.
  • MENSING, Scott A. et al. Human and climatically induced environmental change in the Mediterranean during the Medieval Climate Anomaly and Little Ice Age: A case from central Italy. Anthropocene, v. 15, p. 49-59, 2016.
  • MENSING, Scott A. et al. Historical ecology reveals landscape transformation coincident with cultural development in central Italy since the Roman Period. Scientific Reports, v. 8, n. 2138, p. 1-9, 2018.
  • MOULINIER, Laurence; REDON, Odile. L’inondation de 1333 à Florence : Récits et hypothèses de Giovanni Villani. Médiévales, v. 36, p. 91-104, 1999.
  • MOULINIER, Laurence; REDON, Odile. “Pareano aperte le cataratte del cielo”: le ipotesi di Giovanni Villani sull’inondazione del 1333 a Firenze. In: BOESCH-GAJANO, Sofia; MODICA, Marilena (eds.). Miracoli: Dai segni alla storia Rome: Viella, 2005. p. 137-154.
  • NEWFIELD, Timothy P. A cattle panzootic in early fourteenth-century Europe. The Agricultural History Review, v. 57, n. 2, p. 155-190, 2009.
  • NICOLAÏ, Henri. Emmanuel Le Roy Ladurie, histoire du climat depuis l’an mil... Revue Belge de Philologie et d’Histoire, v. 46, n. 3, p. 882-889, 1968.
  • PFISTER, Christian; WHITE, Sam; MAUELSHAGEN, Franz. General introduction: weather, climate, and human history. In: PFISTER, Christian; WHITE, Sam; MAUELSHAGEN, Franz(eds.). The Palgrave handbook of climate history Londres: Palgrave MacMillan, 2018. p. 1-18.
  • PUIG, Carole. Les prémices du Petit Âge Glaciaire en Roussillon à travers le prisme des sources écrites. Archéologie du Midi Médiévale, v. 27, p. 191-205, 2009.
  • SCHENK, Gerrit Jasper. “...prima ci fu la cagione de la mala provedenza de’ Fiorentini...”: Disaster and “life world”: reactions in the Commune of Florence to the flood of November 1333. The Medieval History Journal, v. 10, n. 1-2, p. 355-386, 2007.
  • SCHOOLMAN, Edward; MENSING, Scott; PIOVESAN, Gianluca. From the Late Medieval to Early Modern in the Rieti Basin (AD 1325-1601): Paleoecological and historical approaches. Historical Geography, v. 46, p. 103-128, 2018.
  • SLAVIN, Philip. The 1310s event. In: PFISTER, Christian; WHITE, Sam; MAUELSHAGEN, Franz (eds.). The Palgrave handbook of climate history Londres: Palgrave MacMillan, 2018. p. 495-516.
  • 1
    Qualquer evidência indireta utilizada para reconstituir condições climáticas do passado pode ser considerada um proxy. Autores que trabalham com a história do clima distinguem proxies naturais - provenientes de processos naturais e/ou biológicos - de proxies oriundos de fontes produzidas por seres humanos (Pfister, White, Mauelshagen, 2018, p. 1-4).
  • 2
    Le Roy Ladurie idealizou uma história tendo o clima como protagonista. A perspectiva humana da história do clima surge em sua obra recente (2004-2009).
  • 3
    Principal crítica à Histoire du climat depuis l’an mil em seu lançamento (Nicolaï, 1968).
  • 4
    A posição de alguns autores tem impacto sobre o período de transição apontado. Lamb (1965) avança o início da LIA para o século XVI, enquanto Rochier (1983), o recua ao século XIII. A predileção de certos trabalhos não significa que desconsiderem a validade das evidências. Como explicam Brázdil et al. (2005, p. 27-28), essa divergência é fruto da dificuldade em conciliar termos generalizantes com a “disponibilidade e resolução temporal de dados de proxies e de seus contextos regionais”.
  • 5
    No Mediterrâneo oriental, a queda dos Estados Cruzados levou a um embargo papal contra o comércio entre cristãos e mamelucos, dificultando a então próspera atividade mercantil entre repúblicas italianas e cidades como Acre e Antioquia. O cerco de Bagdá de 1258 e as subsequentes guerras entre mamelucos e o Ilcanato mongol provocaram sua própria cota de obstruções neste segmento da Rota da Seda. Já na Europa do norte, as feiras na região de Champanhe sofrem tribulações de outra natureza. Conde de Champanhe em virtude de seu casamento com Joana de Navarra, Felipe, o Belo, coroado rei da França em 1285, adotou medidas discriminatórias contra comerciantes flamengos e italianos forçando-os a depender de rotas marítimas diretas - porém, mais caras e perigosas - entre Flandres e o Mediterrâneo (Campbell, 2013, p. 253-254).
  • 6
    Nossa análise se baseia primeiramente em: GIOVANNI VILLANI, Nuova cronica; PORTA, Giuseppe (ed.), Milão: Guanda, 1990-1991, 3v. Outras edições acessíveis da crônica são a de Ignazio Moutier, relevante pelo seu rico aparato crítico (Firenze: Sansone Coen, 1845); a de Bartolomeo Zanetti, primeira versão impressa, de 1537 (https://archive.org/details/cronichedimesser00vill/page/n5/mode/2up. Acesso: 13 set. 2023); o manuscrito Chigiano L.VIII.296, único códice (L.VIII.296, Biblioteca Vaticana. https://digi.vatlib.it/view/MSS_Chig.L.VIII.296 Acesso: 13 set. 2023) e o manuscrito Riccardiano 532, notável pelo estado de conservação (http://teca.riccardiana.firenze.sbn.it/index.php/it/?option=com_tecaviewer&view=showimg&myId=fd57b387-6425-41c5-9975-322fd2f2bb15&search= Acesso: 13 set. 2023).
  • 7
    NC, v.1, livro 1, cap.1: “desde que a cidade de Florença foi destruída por Totila, Flagellum Dei, não sofreu adversidades e danos tão grandes quanto estes”.
  • 8
    NC, v.1, livro 12, cap.1. Villani informa que apenas na recuperação de pontes, muros e ruas, Florença teria gastado 150 mil florins, o que equivaleria a 530 quilos de ouro (Schenk, 2007, p. 368).
  • 9
    NC, v.1, livro 1, cap. 1. Segundo Villani, a estátua foi derrubada no Arno por ocasião da invasão da cidade pelos godos de Totila: “os antigos disseram e escreveram que quando a estátua de Marte caísse ou fosse movida, a cidade de Florença passaria por grande perigo ou mudança” (NC, v.3, livro 12, cap. 1). Outras referências à relação entre a estátua de Marte e a destruição de Florença: NC, v.1, livro 3, cap. 1; NC, v.1, livro 4, cap. 1; NC, v. 2, livro 9, cap. 39.
  • 10
    O uso do termo “dilúvio” para evocar a enormidade de um evento chuvoso e sua qualificação por meio de frases bíblicas saídas do episódio do Dilúvio - como acontece na crônica de Villani - é comum nos textos da Idade Média e do Renascimento (Moulinier, Redon, 1999, p. 92).
  • 11
    (NC, v. 1, livro 1, cap. 2 e 5). Villani registra que Nimrod, um dos descendentes de Noé e o primeiro rei após o Dilúvio, construiu a Torre de Babel para escapar a outro cataclisma do mesmo tipo (NC, v.1, livro 1, cap. 2).
  • 12
    Esse sincretismo se caracteriza pela vinculação da estátua e da cidade ao planeta Marte. Mesmo em contexto cristão, a condição astrológica da cidade continua vinculada a Marte (NC, v. 3, livro 12, cap. 1- 2).
  • 13
    NC, v.1, livro 8, cap. 34. Danos documentados: desabamentos e mortes.
  • 14
    NC, v.1, livro 8, cap. 88. Danos documentados: afogamentos e carestia.
  • 15
    NC, v.1, livro 8, cap. 97. Danos documentados: desabamentos e mortes.
  • 16
    NC, v.1, livro 8, cap. 126.
  • 17
    NC, v.1, livro 10, cap. 256.
  • 18
    NC, v.2, livro 11, cap. 93. Danos documentados: destruição de mil casas e mortes por afogamento.
  • 19
    NC, v.2, livro 11, cap. 168. Danos documentados: 28 dias de chuva, desabamentos e sete mil mortos.
  • 20
    NC, v.3, livro 12, cap. 217 e 227; v. 2, livro 12, cap. 1-4 e 96.
  • 21
    NC, v.3, livro 12, cap. 50. Danos documentados: destruição de pontes e açudes e pessoas desalojadas.
  • 22
    Schoolman, Mensing, Piovesan (2018, p. 114). A Nuova cronica traz uma informação importante sobre a correlação entre astrologia e observação meteorológica quando se lê a respeito dos fenômenos celestes que antecederam a inundação de 1333: “para os sábios religiosos e pela demonstração dos astrólogos foi pregado em Florença, o que ouvimos, que isso significava grande secura no verão seguinte e depois, em oposição a esse eclipse, grande transbordamento de águas” (NC, v.3, livro 12, cap. 2).
  • 23
    NC, v. 3, livro 12, cap. 1.
  • 24
    NC, v. 3, livro 12, cap. 2 “Em Florença, o dilúvio provocou grande admiração e temor em todos. Não duvidando que se tratasse de um juízo de Deus pelos nossos pecados, pois depois que baixou o dilúvio não parava de chover com trovões e relâmpagos apavorantes. A maioria das pessoas recorreu à penitência e à comunhão, e isso foi bom para apaziguar a ira de Deus”.
  • 25
    Para esses conceitos, ver Bavel (2020, p. 35-38).
  • 26
    NC, v. 3, livro 12, cap. 2: “fizeram perguntas a sábios religiosos e mestres em teologia, e do mesmo modo, a filósofos da natureza e a astrólogos, se o dilúvio tinha se dado pelo curso da natureza ou pelo juízo de Deus”.
  • 27
    NC, v. 3, livro 12, cap. 2. A atenção à influência dos astros é bastante frequente na crônica.
  • 28
    NC, v. 3, livro 12, cap. 1.: “a enchente foi tão grande que o Arno não teve capacidade para contê-la e devido às muitas barragens da cidade para os moinhos, o Arno subiu nessas localidades mais de VII braças acima de seu leito” e “A maioria [dos anciãos] disse que o antigo [dilúvio] não teve menos água, e que o aumento do leito do Arno ocorreu devido à má previsão do Município que deixou aqueles que tinham moinhos construírem barragens”. NC, v. 3, livro 12, cap. 2.: “Também perguntaram aos astrólogos por que a referida inundação atingiu mais Florença do que Pisa, que também ficava no Arno, e estando mais abaixo, deveria sofrer mais, ou em outras terras da Toscana. Foi respondido que em primeiro lugar a causa se devia à má previsão dos florentinos devido, como dito, à altura das barragens.”
  • 29
    NC, v. 3, livro 12, cap. 1.: “acreditamos que este dilúvio foi muito maior que o antigo, não tanto devido à chuva como devido a um terremoto.” Não existem registros comprobatórios desse evento.
  • 30
    NC, v. 3, livro 12, cap. 1.
  • 32
    NC, v. 3, livro 12, cap. 1.: “houve em Florença grande escassez de farinha e pão devido à avaria dos moinhos e fornos; mas os de Pistoia, Prato, Colle e Poggio e as demais terras do interior e arredores, ajudaram com grande abundância de pão e farinha.” NC, v. 3, livro 12, cap. 2: “a ruína não permitiu que perecesse completamente graças às orações do povo santo e religiosos da nossa cidade e arredores, e pelas grandes esmolas que dão a Florença”.
  • 31
    Os testemunhos em primeira mão são três: o do pregoeiro Antonio Pucci; o do pequeno burguês mercador de grãos, Domenico Lenzi, e o dos irmãos Francisco e Alessio di Borghino Baldovinetti. Além destes, há a carta admoestatória ao povo e ao governo do monge agostiniano Simone Fidatti e documentos da comuna (Schenk, 2007, p. 359-360).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2024
  • Aceito
    11 Abr 2024
EdUFF - Editora da UFF Instituto de História/Universidade Federal Fluminense, Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bloco O, sala 503, 24210-201, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, tel:(21)2629-2920, (21)2629-2920 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: tempouff2013@gmail.com