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Mudanças climáticas, vulnerabilidade e resiliência no Mediterrâneo medieval (apresentação)

Resumo:

Este artigo pretende apresentar um quadro geral da historiografia a respeito do tema das mudanças climáticas. Nosso foco não são as mudanças em si, mas a maneira como as comunidades reagiram a elas. Esse tem sido o principal objeto das reflexões mais recentes sobre o tema e, ao mesmo tempo, o eixo em torno do qual os autores deste dossiê redigiram os seus artigos. Pretendemos mostrar que é um equívoco atribuir às comunidades pré-modernas uma grande vulnerabilidade em relação aos fenômenos climáticos, na mesma medida em que se exagera a resiliência das sociedades contemporâneas a eles. A urgência climática e os seus impactos atuais mostram que é necessário colocar em xeque as velhas dicotomias entre o antigo e o moderno. Nesse sentido, as comunidades da bacia do Mediterrâneo no período medieval fornecem um excelente laboratório de análise.

Palavras-chave:
Mudanças climáticas; Vulnerabilidade; Resiliência

Abstract:

This article aims to present an overview of the historiography about climate change. Our focus is not on the changes themselves, but on how communities reacted to them. This has been the main object of the most recent reflections on the subject and, at the same time, the central point around which the authors of this dossier have written their articles. We intend to show that it is a mistake to attribute great vulnerability to climate phenomena to pre-modern communities, to the same extent that the resilience of contemporary societies to them is exaggerated. The climate emergency and its current impacts show that the old dichotomies between ancient and modern need to be challenged. In this sense, the communities of the Mediterranean basin in the medieval period provide an excellent laboratory for analysis.

Keywords:
Climate change; Vulnerability; Resilience

O objetivo deste dossiê é analisar como as comunidades da bacia do Mediterrâneo e da Europa reagiram às mudanças climáticas entre o final da Antiguidade e o fim da Idade Média e o que permitiu que algumas mudanças climáticas causassem crises e outras não. Como podemos identificar as crises climáticas no período pré-industrial e como lidamos com as incertezas que persistem? Como a mudança climática do final da Antiguidade e da Idade Média era percebida na época? É possível falar na existência de histórias culturais do clima? Essas são algumas das perguntas que orientaram o nosso dossiê. Os estudos aqui reunidos abordam diretamente as reconstruções climáticas, mas não operam sob a premissa de que as populações pré-industriais eram sempre incapazes de absorver ou reagir às mudanças climáticas ou, em outras palavras, que todas as mudanças climáticas provocavam crises sociais. É preciso ressaltar que mudanças climáticas em si não são uma crise, a incapacidade de uma sociedade de lidar com elas causa crises e, muitas vezes, as sociedades pré-industriais conseguiam lidar com elas.

Nesse sentido, é necessária uma análise comparativa dos modelos que os acadêmicos usam para investigar os impactos climáticos de forma a entender melhor as diferenças entre os estudos de resiliência e os estudos de vulnerabilidade. As estruturas que usamos para estudar a mudança climática no passado e seus impactos constituem uma nova perspectiva para a compreensão das sociedades antigas. Os artigos deste dossiê nos ajudarão a entender as maneiras heterogêneas pelas quais as comunidades responderam às crises ambientais, às vezes com resultados positivos, às vezes com resultados negativos. A resiliência e a vulnerabilidade dependem de como essas sociedades resolvem seus problemas, sua capacidade de desenvolver estratégias de adaptação distintas de forma preventiva e rápida no contexto das mudanças climáticas.

O que queremos destacar também é a contribuição da interação entre as sociedades e a mudança climática para os processos de inventividade cultural, técnica e tecnológica e, portanto, a maneira como o ambiente moldou a constituição das sociedades antigas. Como enfatizamos, o estudo de crises passadas foi influenciado pela crise atual. Ao mesmo tempo, a maneira como escrevemos sobre a crise contemporânea é frequentemente moldada pela nossa percepção das crises do passado. Esperamos, portanto, que o nosso dossiê não apenas matize a compreensão das interações climáticas nas sociedades antigas, mas também que os casos de crise climática e adaptação climática analisados aqui influenciem a maneira como escrevemos sobre as mudanças climáticas atuais. As sociedades pré-modernas podem ser “laboratórios” privilegiados para testar hipóteses sobre os impactos sociais das crises ambientais. Ao mesmo tempo, é preciso ressaltar que o entendimento que temos hoje dessas sociedades do passado mudou consideravelmente nos últimos anos, inclusive no que diz respeito à sua capacidade de estabelecer formas racionais de organizar eficazmente a vida material, especialmente em contextos de crise alimentar ou epidemias (Cândido da Silva, Savy, 2023CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo; SAVY, Pierre. Medieval economic rationalities. Varia Historia, v. 39, n. 80, e23204, 2023. Disponível em: http://dx.doi.org/ 10.1590/0104-87752023000200004.
https://doi.org/10.1590/0104-87752023000...
, p. 1-7). Qualquer uso de uma sociedade pré-moderna como laboratório se torna obsoleto quando nossa apreciação dessa sociedade evolui consideravelmente.

A atual crise climática global exerceu, nas últimas duas décadas, profunda influência sobre a maneira como os historiadores analisam o passado. Temas clássicos, desde a “Queda de Roma” até a Grande Divergência e a colonização das Américas, foram reconsiderados sob a perspectiva de nossa emergência ambiental. Para citar um exemplo: em 2017, Kyle Harper propôs uma nova explicação para a queda de Roma, baseada, em última análise, no resfriamento climático do final da Antiguidade, que facilitou o surgimento de novas doenças que, no contexto da intensa globalização da era romana, assumiram proporções pandêmicas (Harper, 2017HARPER, Kyle. The Fate of Rome: Climate, Disease, and the End of an Empire. Princeton: Princeton University Press, 2017.). O argumento foi criticado, mas os temas do popular e influente livro de Harper, devemos reconhecer, são bastante atuais: “mudança climática”, “doença pandêmica” e “globalização”; essas são as principais preocupações do nosso tempo. Nos últimos anos, uma infinidade de estudos destacou as interações das comunidades locais com seu ambiente imediato como fundamentais para a compreensão da mudança social. A preocupação com as circunstâncias locais é evidente, por exemplo, na monografia de Guido Alfani, de 2013ALFANI, Guido. Calamities and the economy in Renaissance Italy: The grand tour of the Horsemen of the Apocalypse. Basingstoke: Palgrave Macmilan, 2013., sobre desastres (naturais e outros) e seu impacto na Península Italiana no início da época moderna (Alfani, 2013ALFANI, Guido. Calamities and the economy in Renaissance Italy: The grand tour of the Horsemen of the Apocalypse. Basingstoke: Palgrave Macmilan, 2013.), e em Coping with crisis, de Daniel Curtis, no qual ele faz a observação crucial de que diferentes regiões, culturas e comunidades são vulneráveis de forma diferente ao estresse ambiental (Curtis, 2014CURTIS, Daniel R. Coping with crisis: The resilience and vulnerability of pre-industrial settlements. Farnham: Ashgate, 2014.). Mais recentemente, Jean-Pierre Devroey, em La nature et le roi, refletiu sobre a relação entre as elites carolíngias e o meio ambiente, enfatizando novamente a importância das circunstâncias locais (Devroey, 2019DEVROEY, Jean-Pierre. La nature et le roi: Environnement, pouvoir et société à l’âge de Charlemagne (740-820). Paris: Albin Michel, 2019.; 2024DEVROEY, Jean-Pierre. De la grêle et du tonnerre: Histoire médiévale des imaginaires paysans. Paris: Éditions du Seuil, 2024.). A relação entre o poder carolíngio e a natureza, aliás, é o tema do artigo de David Patterson, “Political climate in the Carolingian world”. O autor analisa a disseminação, na corte carolíngia durante o século IX, de uma teoria da realeza que, segundo ele, teve origem na Inglaterra anglo-saxônica e medieval, a partir de uma tradição clássica e bíblica, e que associava o comportamento do imperador a um sentido cósmico, afirmando que sua conduta estava intimamente ligada à ordem do mundo natural. Assim, as tendências meteorológicas de longo prazo, um conceito que, de acordo com o argumento de Patterson, é semelhante ao clima, teriam sido lidas pelos autores carolíngios, especialmente durante os reinados de Luís, o Piedoso, e Carlos, o Calvo, do ponto de vista de uma reflexão sobre a estabilidade ou a instabilidade política.

Embora várias abordagens tenham sido adotadas nas histórias do clima pré-industrial nos últimos anos, desde a macro-história de Harper, segundo a qual teria havido uma grande mudança na história mundial, até a preocupação de Curtis com histórias locais do Norte da Europa, de modo geral, não testemunhamos um retorno ao determinismo climático, como defendido por Montesquieu e outros há muito tempo. Esse determinismo, embora possa estar subjacente a obras como a de Harper, raramente aparece agora. Há um interesse renovado na história do clima e, em particular, no estresse que a mudança climática causou nas sociedades do passado. Em alguns dos estudos mais cuidadosos, também estamos testemunhando o surgimento de novas metodologias, aquelas que se inclinam para o local e visam situar a mudança climática em contextos culturais, demográficos e econômicos específicos, um movimento que se distancia da simples projeção de modelos explicativos contemporâneos no passado a partir de uma visão panorâmica.

Nesse sentido, o artigo de John Haldon, “Society, climate and history: a case study and its methodological challenges” (Sociedade, clima e história: um estudo de caso e seus desafios metodológicos), apresenta uma questão importante sobre o papel dos fatores climáticos na organização das sociedades, com base em um estudo de caso da Arábia romana tardia. Usando registros hidroclimáticos do sul da Arábia e seus arredores, incluindo um novo registro de estalagmite de alta resolução do norte de Omã, Haldon identifica uma seca sem precedentes, com a aridez mais severa ocorrendo entre aproximadamente 500 e 530 E.C. Haldon se pergunta até que ponto essas secas contribuíram para minar a resistência dos himiaritas, o poder dominante na região até então, e, portanto, para o contexto ambiental do surgimento do Islã. Crucialmente, a interpretação de Haldon não adota uma perspectiva determinista. Em vez disso, ele conclui que não é possível provar nenhuma conexão direta entre as principais mudanças climáticas e sociais. Entretanto, Haldon mostra que a seca muito severa e relativamente prolongada deve ter causado alguns impactos negativos na agricultura himiarita, o que provavelmente exacerbou as tensões entre as comunidades agrárias e os pastores.

Em outro registro, Kathleen Pribyl, em “Climate induced crisis: The 1430s in England, a difficult decade” (Crise induzida pelo clima: a década de 1430 na Inglaterra, uma década difícil), mostra uma relação muito mais clara entre clima e crise. Isso se deve, em parte, ao conjunto de dados mais denso e robusto da autora sobre condições climáticas extremas e seus impactos sociais, que ela reuniu a partir de uma ampla variedade de fontes inglesas. Pribyl argumenta que, apesar de todos os esforços das autoridades centrais e municipais para garantir o fornecimento de grãos para Londres e para a família real, as condições climáticas extremas e as falhas na colheita aumentaram a taxa de mortalidade, uma tendência que deve ter sido exacerbada por ondas de peste e outras doenças epidêmicas.

Como dissemos anteriormente, nossa crise ambiental afetou a maneira como os historiadores percebem as crises do passado. Uma compreensão mais clara do papel dos fatores exógenos (como o forçamento climático solar e vulcânico e as emissões de gases de efeito estufa) e endógenos (como as flutuações na circulação oceânica e atmosférica) na variabilidade do sistema climático contemporâneo levou os historiadores a se perguntarem sobre o efeito desses fenômenos nas sociedades antigas. Além disso, os pesquisadores se interessaram em como as diferentes sociedades pré-modernas reagiram às mudanças climáticas. Essa linha de questionamento é possível porque temos hoje um conjunto muito mais completo de dados paleoclimáticos do que há algumas décadas. Cabe ressaltar, no entanto, que os acadêmicos especularam sobre as vulnerabilidades históricas às mudanças climáticas durante décadas, mesmo quando não havia reconstruções robustas do clima passado - tamanho o interesse em estudar as relações entre o homem e o clima no passado. Os arquivos naturais do clima antigo e os proxies que construímos a partir deles permitem cada vez mais a qualificação empírica das condições climáticas passadas a partir de indicadores biológicos, geoquímicos ou sedimentares. A disponibilidade de arquivos e proxies é muito variável no tempo e no espaço, mas, para várias regiões do Mediterrâneo e da península europeia existem várias reconstruções climáticas de alta e baixa resolução para os últimos dois milênios. Alguns desses proxies, como os baseados em pólen, espeleotemas e anéis de árvores, possibilitam a reconstrução das principais mudanças e anomalias climáticas que afetaram a Europa e o Mediterrâneo desde os primeiros séculos da Era Comum.

O uso de proxies climáticos não é totalmente novo entre os historiadores da Antiguidade e da Idade Média. Por exemplo, Georges Duby dedicou as primeiras páginas de seu Guerriers et paysans para discutir como as variações climáticas no início da Idade Média - ao menos tal como eram percebidas no início da década de 1970 - influenciaram o crescimento econômico do período. Para fazer isso, Duby usou dados sobre o avanço e o recuo das geleiras alpinas (Duby, 1973DUBY, Georges. Guerriers et paysans, VIIIe-XIIe siècles. Premier essor de l’économie européenne. Paris: Gallimard, 1973., p. 13-19). Esses são os mesmos dados que Emmanuel Le Roy Ladurie usou em sua história do clima desde o ano 1000, publicada na década anterior (Le Roy Ladurie, 1967LE ROY LADURIE, Emmanuel. Histoire du climat depuis l’an mil. Paris: Flammarion, 1967.). No entanto, o estudo da história do clima avançou bastante. Os dados de proxy disponíveis são muito abundantes, de alta resolução e robustos. No entanto, embora os dados científicos dificilmente sejam finitos, as fontes escritas o são, e os historiadores vêm coletando com afinco evidências escritas relevantes para o estudo do tempo e do clima do passado há muitos anos. Alguns dos levantamentos mais completos dessas evidências de fenômenos climáticos na Europa medieval são o trabalho de Fritz Curschmann (1900CURSCHMANN, Fritz. Hungersnöte im Mittelalter: Ein Beitrag zur deutschen Wirtschaftsgeschichte des 8. bis 13. Jahrhunderts. Leipzig: B. G. Teubner, 1900.), Le climat en Europe au Moyen Âge, de Pierre Alexandre (1987ALEXANDRE, Pierre. Le climat en Europe au Moyen Âge: Contribution à l’histoire des variations climatiques de 1000 à 1425, d’après les sources narratives. Paris: Éditions de l’École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 1987.), e, pelo menos para os séculos IX e X, a tese de doutorado de Timothy Newfield (2010NEWFIELD, Timothy. The contours of disease and hunger in Carolingian and early Ottonian Europe (c.750-c.950 CE). Tese (Doutorado em História e Estudos Clássicos), McGill University. Montreal, 2010.), e, mais recentemente, o Projeto Epifame, desenvolvido em parceria entre o Centre de Recherches Histoire, Arts et Culture des Sociétés Anciennes, Médiévales et Modernes (Sociamm) da Université Libre de Bruxelles e o Laboratório de Estudos Medievais (Leme) da Universidade de São Paulo.1 1 Ver http://epifame.fflch.usp.br/.

Do ponto de vista dos dados paleoclimáticos, o quadro mudou radicalmente nos últimos dez anos. O crescente interesse dos paleoclimatologistas nas variações climáticas do final da Antiguidade e da Idade Média e o avanço dos métodos paleoclimatológicos produziram um volume de dados sem precedentes e novas classificações da variabilidade climática. Ao mesmo tempo, regimes climáticos abrangentes identificados no século XX, como o “Ótimo climático romano” e o “Período quente medieval”, foram questionados, matizados e redefinidos. Estudos multiproxy são agora a norma na paleoclimatologia e a interdisciplinaridade colaborativa significativa, em que historiadores escrevem histórias climáticas com paleoclimatologistas, é cada vez mais comum (Degroot et al., 2021DEGROOT, Dagomar et al. Towards a rigorous understanding of societal responses to climate change. Nature, v. 591, n. 7851, p. 539-550, 2021.; Haldon et al., 2018HALDON, John et al. History meets palaeoscience: Consilience and collaboration in studying past societal responses to environmental change. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 115, n. 13, p. 3210-3218, 2018.). Essas histórias totalmente interdisciplinares já existem para os quatro períodos ou classificações climáticas abrangentes da Idade Média: o LALIA (Late Antiquity Little Ice Age, c.535-c.660), o DACP (Dark Age Cold Period, c.660-765 ), MCA (Medieval Climate Anomaly, 900-1200) e LIA (Little Ice Age, 1250-1700). Deve-se observar que a duração da LALIA foi questionada, e muitos agora adotam um período de tempo mais restrito, limitado ao século VI (Helama, Jones, Briffa, 2017HELAMA, Samuli; JONES, Phil D.; BRIFFA, Keith R. Dark ages cold period: A literature review and directions for future research. The Holocene, v. 27, n. 10, p. 1600-1606, 2017.). Muitos episódios (ou anomalias climáticas de curto prazo, como a que se seguiu à erupção de Eldgjá de 939-940) dentro dessas classificações abrangentes também já foram estudados. Os dados são tais que agora podemos diferenciar as anomalias por seu grau de intensidade. À medida que mais dados paleoclimáticos se tornam disponíveis, nossa compreensão de quais crises foram as mais graves e quais foram as mais duradouras e espacialmente mais significativas está melhorando muito. Assim, por exemplo, entre 1315 e 1317, durante a LIA, o norte da Europa foi atingido, uma temporada após a outra, por chuvas e inundações, o índice pluvial mais significativo do milênio, mas as mesmas chuvas não ocorreram no sul da Europa ou no Mediterrâneo. Entretanto, o sul da Europa não foi poupado de anomalias climáticas excepcionais no início do século XIV, como Guido Alfani e outros demonstraram. Esses dados cada vez mais robustos e numerosos nos permitem construir cronologias e geografias de crises climáticas, muitas das quais são utilizadas neste dossiê.

O tema da relação entre dados paleoclimáticos e textos escritos é abordado no artigo de Néri de Barros Almeida e Vinicius Marino Carvalho, “A inundação de Florença em 1333: narrativa escrita e proxies naturais diante de crises em contexto de variação climática”. Os autores enfatizam que os historiadores têm sido cautelosos ao estabelecer uma relação muito próxima entre quadros de variação climática definidos com base em proxies naturais e dados extraídos de testemunhos escritos. Eles se propõem a destacar o aspecto positivo da questão, assumindo que os fatos da variação climática dificilmente podem ser dissociados das crises no contexto da deterioração do clima. Entretanto, esse não seria um problema exclusivo das sociedades antigas. Néri Almeida e Vinicius Carvalho argumentam que, até a época contemporânea, as sociedades geralmente respondiam apenas a acidentes meteorológicos, sendo pouco ou nada sensíveis a dados de mudanças climáticas e oscilações climáticas envolvendo padrões de longo prazo.

Embora tenhamos privilegiado as anomalias climáticas neste dossiê, não estamos adotando a posição de muitos cientistas naturais, arqueólogos e até mesmo historiadores que usam indicadores climáticos para explicar monocausalmente as mudanças históricas culturais, políticas e socioeconômicas. Muitos estudiosos, em vários campos relevantes, presumiram que os povos pré-industriais das regiões do Mediterrâneo e da Europa eram incapazes de absorver as anomalias climáticas ou de reagir aos desafios impostos pelas mudanças climáticas. Em outras palavras, as sociedades pré-modernas tendem a ser vistas de forma pessimista devido à sua baixa capacidade técnica (segundo os padrões modernos). O fato de as populações pré-industriais serem mais vulneráveis do que as populações industriais, entretanto, é discutível. O foco deste dossiê não são as anomalias climáticas em si, que agora podemos identificar, mas seus efeitos sobre as populações, as percepções desses efeitos e as respostas a esses efeitos em diferentes comunidades das regiões mediterrânea e europeia. Nossas histórias do clima passado não devem se resumir a um conjunto de indicadores, elas devem se envolver com as experiências sociais concretas, como a fome, geradas pelas mudanças climáticas, e também envolver formulações conceituais dessas experiências. Além disso, a história do clima não pode ser considerada simplesmente uma história de crise. Não só algumas mudanças climáticas, como verões mediterrâneos um pouco mais úmidos, podem ter beneficiado as populações pré-industriais, como também, mesmo em tempos de crise, algumas populações teriam se beneficiado, embora às custas de outras.

Referências

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  • 1
    Ver http://epifame.fflch.usp.br/.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2024
  • Aceito
    20 Maio 2024
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