Resumo
O objetivo desta nota de conjuntura é analisar o desenvolvimento dos Programas Mais Médicos e Médicos pelo Brasil em áreas remotas e rurais amazônicas, apontando desafios e disputas decorrentes de implementações locais. Realizou-se levantamento bibliográfico e de dados observacionais sobre esses programas na Amazônia Legal e o provimento médico na Atenção Primária à Saúde brasileira entre 2013 e 2022. Identificou-se literatura com tendências positivas sobre o processo de trabalho, além de indicadores de cuidados primários com a implantação do Mais Médicos nessas localidades, mas que foram drasticamente afetados após a ruptura da cooperação Brasil-Cuba em 2018. Alternativas como a contratação de médicos brasileiros graduados no exterior pelo Mais Médicos e a promessa de carreira do Médicos pelo Brasil não se mostraram suficientes para garantir cobertura razoável das equipes locais. Percebe-se o esvaziamento progressivo do Mais Médicos na região sem equivalente reposição de profissionais do Médicos pelo Brasil. Reconhece-se a carência de estudos sobre o Mais Médicos na Amazônia, em especial após 2018, bem como de dados sobre os desdobramentos iniciais do Médicos pelo Brasil. Mostram-se necessários o preenchimento de lacunas e a superação dos retrocessos no provimento médico local, sob risco de perpetuação de iniquidades graves no campo da saúde.
Palavras-chave:
recursos humanos em saúde; zonas remotas; saúde rural; Amazônia; Programa Mais Médicos
Abstract
The objective of this conjuncture note is to analyze the development of the Programs Mais Médicos and Médicos pelo Brasil in remote and rural Amazonian areas, pointing out challenges and disputes arising from local implementations. A bibliographical and observational survey was carried out on these programs in the Legal Amazon and the medical provision in the Brazilian Primary Health Care between 2013 and 2022. Literature with positive trends on the work process was identified, as well as primary care indicators with the implementation of Mais Médicos in these localities, but were drastically affected after the rupture of Brazil-Cuba cooperation in 2018. Alternatives such as hiring Brazilian physicians graduates abroad by the Mais Médicos and the promise of career of doctors in Brazil were not enough to ensure reasonable coverage of local teams. Progressive emptying is noticed in Mais Médicos in the region, without the equivalent replacement of Médicos pelo Brasil. Lack of studies is recognized on the Mais Médicos in the Amazon, especially after 2018, as well as data on the initial developments of Médicos pelo Brasil. Filling gaps and overcoming setbacks are necessary in the local medical provision, at risk of perpetuating serious inequalities in the health field.
Keywords:
human resources in health; remote areas; rural health; Amazon; Mais Médicos Program
Resumen
El objetivo de esta nota coyuntural es analizar el desarrollo de los programas Mais Médicos y Médicos pelo Brasil en áreas remotas y rurales amazónicas, señalando los desafíos y disputas que surgen de las implementaciones locales. Entre 2013 y 2022 se realizó una encuesta bibliográfica y de datos observacionales sobre estos programas en la Amazonía Legal y la atención médica en la Atención Primaria de la Salud Brasileña. Se identificó literatura con tendencias positivas en el proceso de trabajo, además de indicadores de atención primaria con el despliegue de Mais Médicos en estas localidades, pero que se vieron dramáticamente afectados después de la ruptura de la cooperación Brasil-Cuba en 2018. Alternativas como la contratación de médicos brasileños graduados en el extranjero por el Mais Médicos y la promesa de carrera de Médicos pelo Brasil no han demostrado ser suficientes para asegurar una cobertura razonable de los equipos locales. Se percibe el progresivo vaciado de Mais Médicos de la región sin el equivalente reemplazo de profesionales de Médicos pelo Brasil. Se reconoce la falta de estudios sobre los Mais Médicos de la Amazonía, en particular después de 2018, así como de datos sobre los primeros despliegues de Médicos pelo Brasil. Es necesario llenar las lagunas y superar los retrocesos en la atención médica local, bajo el riesgo de perpetuación de graves iniquidades en el ámbito de la salud.
Palabras clave:
recursos humanos en salud; areas remotas; salud rural; Amazonía; Programa Mais Médicos
Introdução
Em todo o mundo, localidades situadas fora do eixo urbano têm se deparado com desafios importantes na organização e na disponibilidade de serviços de saúde, sobretudo em áreas rurais e remotas (Organização Mundial da Saúde, 2021ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Orientações da OMS para o desenvolvimento, atração, recrutamento e retenção da força de trabalho da saúde em zonas rurais e remotas: resumo. Genebra: OMS, 2021. https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/341130/9789240031494-por.pdf
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). Nesses cenários, questões como a baixa densidade demográfica e barreiras geográficas têm obrigado países de grande extensão territorial, como Austrália e Canadá, a proporem modelos sui generis que combinam o provimento emergencial da Atenção Primária à Saúde (APS), estratégias de acesso geográfico e adaptação a necessidades locais (Viscomi, Larkins e Gupta, 2013VISCOMI, Marco; LARKINS, Sarah; GUPTA, Tarun S. Recruitment and retention of general practitioners in rural Canada and Australia: a review of the literature. Canadian Journal of Rural Medicine, v. 18, n. 1, p. 13-23, 2013.). Em alguns casos, a contratação de médicos estrangeiros tem sido adotada como solução para prover a APS em áreas de maior carência profissional por meio de programas específicos, como os desenvolvidos nos Estados Unidos e no Reino Unido (Aguiar e Macedo, 2019AGUIAR, Raphael A. T.; MACEDO, Harineide M. O Programa Mais Médicos em áreas remotas: a experiência do grupo especial de supervisão no Pará, Brasil. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 23, e180042, 2019. Suplemento 1. https://doi.org/10.1590/Interface.180042. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/4w5CTXJtHDPxW3hC63WMtgm/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 1 set. 2022.
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).
No Brasil, essa realidade é observada de modo singular na região da Amazônia Legal, notoriamente conhecida pela rarefação populacional e pela vastidão de seu território (Fausto et al., 2022FAUSTO, Márcia C. R. et al. Sustentabilidade da Atenção Primária à Saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1.605-1.618, 2022. https://doi.org/10.1590/1413-81232022274.01112021. Disponível em: https://curtlink.com/Xb4TZZj. Acesso em: 1 set. 2022.
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). A região se estende por nove estados e ocupa uma área de mais de cinco milhões de quilômetros quadrados, o que corresponde a cerca de 60% do território nacional. Com exceção das capitais e do seu entorno, a região é composta majoritariamente por municípios rurais remotos (MRRs), agrupados por Bousquat e colaboradores (2022BOUSQUAT, Aylene et al. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 56, n. 73, 2022. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2022056003914. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rsp/a/zz4P4kHX9djGs9bk JtRpHPC/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 23 mar. 2023.
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) em dois territórios denominados de ‘Norte Águas’ e ‘Norte Estradas’, que optamos por utilizar quando nos referirmos aos municípios de difícil acesso. De acordo com os autores, ambos os grupos envolvem municípios com média de vinte mil habitantes, baixo índice de desenvolvimento humano (IDH-M) e quase metade da população sendo beneficiária de programas de transferência de renda.
A APS desses municípios é organizada em sua maioria segundo o modelo da Estratégia Saúde da Família (ESF), com concentração de equipes em unidades básicas de saúde (UBSs) da sede urbana e provimento itinerante de ações programáticas nas áreas mais isoladas. O acesso às comunidades ribeirinhas e vicinais é bastante limitado e condicionado à sazonalidade, com bloqueio frequente de estradas nos períodos de chuva e inviabilidade de navegação na vazante dos rios e igarapés. Além disso, são marcantes o alto custo e a irregularidade de transporte para a zona rural, a presença de grandes áreas sem cobertura assistencial e as limitações de custeio, provimento e fixação de profissionais (Fausto, Fonseca e Penzin, 2019FAUSTO, Márcia C. R.; FONSECA, Helena M. S.; PENZIN, Valéria M. (coord.). Atenção Primária à Saúde em territórios rurais e remotos no Brasil: relatório final. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/47633. Acesso em: 17 ago. 2022.
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; Lima et al., 2022LIMA, Juliana G. et al. Barreiras de acesso à Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos do Oeste do Pará. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 20, 2022, e00616190. https://doi.org/10.1590/1981-7746-ojs616. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/Dx3YmKdqfdJzMSJYBZp7KQg/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 26 mar. 2023.
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).
Entre as iniciativas federais de maior impacto para a região destaca-se o Programa Mais Médicos (PMM), criado em 2013 para enfrentar a escassez de médicos no país e que tem se mostrado fundamental na ampliação de cobertura e manutenção de equipes completas de ESF nas áreas remotas, seja em MRRs, seja nos distritos sanitários especiais indígenas (DSEIs) (Schweickardt, Lima e Ferla, 2021 SCHWEICKARDT, Júlio C.; LIMA, Rodrigo T. S.; FERLA, Alcindo A. O Programa Mais Médicos no território amazônico: acesso e qualidade na atenção básica, travessias de fronteiras e o direito à saúde das gentes. In: SCHWEICKARDT, Júlio C.; LIMA, Rodrigo T. S.; FERLA, Alcindo A. (org.). Mais Médicos na Amazônia: efeitos no território líquido e suas gentes. 1.ed. Porto Alegre: Editora Rede UNIDA, 2021. p. 40-52. ). Vale dizer que o DSEI é a unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI), ou seja, a gestão da saúde na área indígena se dá de forma exclusiva pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai/MS), representada nos territórios pelos DSEIs.
O PMM, contudo, vem enfrentando graves turbulências nos últimos anos com a saída dos profissionais cubanos, a não renovação de contratos de centenas de médicos e as disputas na tentativa de substituição pelo Programa Médicos pelo Brasil (PMPB), lançado pelo governo federal em 2022. Tal sequência de mudanças, aparentemente simples, esconde rupturas significativas que têm resultado na desassistência de grandes áreas da Amazônia e impactado financeiramente os MRRs, já bastante fragilizados pela atual crise econômica do país (Cavalcante et al., 2020CAVALCANTE, Denise F. B. et al. Impacto financeiro da alteração do perfil de vulnerabilidade no Programa Mais Médicos. Revista de Saúde Pública , São Paulo, v. 54, p. 148, 2020. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2020054002156. Disponível em: https://curtlink.com/BnyxBEu. Acesso em: 1 set. 2022.
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; Jucá, 2020aJUCÁ, Beatriz. Com dificuldade para atrair médicos, Governo Bolsonaro prepara a readmissão de cubanos. El País, São Paulo, 15 fev. 2020a. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-02-15/com-dificuldade-para-atrair-medicos-governo-bolsonaro-prepara-a-readmissao-de-cubanos.html. Acesso em: 10 jun. 2022.
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; Pinto, Oliveira e Soares, 2022PINTO, Heider A.; OLIVEIRA, Felipe P.; SOARES, Ricardo. Panorama da implementação do Programa Mais Médicos até 2021 e comparação com o Programa Médicos pelo Brasil. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 46, n. 1, p. 32-53, jan./mar. 2022. https://doi.org/10.22278/2318-2660.2022.v46.n1.a3616. Disponível em: https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/rbsp/article/view/3616/2979. Acesso em: 1 set. 2022.
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; Luizeti et al., 2022LUIZETI, Bárbara O. et al. Demografia médica em municípios em extrema pobreza no Brasil. Revista Bioética, Brasília, v. 30, n. 1, p. 172-180, jan./mar. 2022. https://doi.org/10.1590/1983-80422022301517pt. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bioet/a/VhHJ7jGmPkT43tWDbPCCKMF/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 26 mar. 2023.
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).
Na esfera acadêmica, é notório o volume de produção científica sobre o PMM, sobretudo entre os anos de 2015 e 2018, e a visibilidade que ela trouxe ao programa em diversos níveis institucionais. Contudo, quase a totalidade dessas publicações encontra-se vinculada à realidade do país no contexto anterior à saída dos médicos cubanos, remetendo a percepções e indicadores ligados ao período de auge do PMM (Silva e Cecílio, 2019SILVA, Quelen T. A.; CECÍLIO, Luiz C. O. A produção científica brasileira sobre o Projeto Mais Médicos para o Brasil (PMMB). Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 43, n. 121, p. 559-575, abr./jun. 2019. https://doi.org/10.1590/0103-1104201912121. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/5f3Zg8Bp5mn6KLwfvLYx74g/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 1 set. 2022.
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; Soares et al., 2022SOARES, Catharina L. M. et al. O Programa Mais Médicos na produção científica brasileira: uma revisão integrativa. Revista Baiana Saúde Pública, Salvador, v. 46, n. 1, p. 98-118, jan./mar. 2022. https://doi.org/10.22278/2318-2660.2022.v46.n1.a3583. Disponível em: https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/rbsp/article/view/3583/2983. Acesso em: 1 set. 2022.
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). Em que pese o período de intenso ataque e esvaziamento do programa nos últimos anos, há pouca literatura sobre a realidade dos municípios no hiato de tempo entre 2019 e 2022, o que dificulta a compreensão dos problemas locais e a construção de mediações entre o PMM e o PMPB.
Tendo em vista as incertezas políticas apresentadas ao novo governo, com lacunas importantes sobre o destino dos dois programas, faz-se necessário aprofundar o olhar sobre tal processo com um recorte diferenciado para a Amazônia Legal. Nesse sentido, este trabalho destina-se a analisar o desenvolvimento do PMM e do PMPB em áreas remotas e rurais amazônicas em sua história recente, apontando os principais desafios e possíveis retrocessos na implementação das políticas de provimento médico na região.
Para fundamentar este artigo, realizou-se um levantamento das principais publicações sobre o PMM e o PMPB nos MRRs e DSEIs da Amazônia Legal, bem como leis, portarias e outras normativas federais sobre o provimento médico na APS brasileira entre os anos de 2013 e 2022 - particularmente as leis n. 12.871/2013 e n. 13.958/2019. Dada a escassez de referências sobre o contexto da região após 2018, foram incluídas fontes jornalísticas de conteúdo relevante obtidas em pesquisas de campo ou por meio da Lei de Acesso à Informação e dados de observação baseados na experiência dos autores, que trabalharam por mais de quatro anos com a supervisão acadêmica do PMM em áreas remotas e territórios indígenas da Amazônia.
Por fim, o texto foi estruturado por sequência cronológica em dois ciclos: 2013-2018, compreendido como o auge do PMM; e 2019-2022, como período de transição após a saída dos médicos cubanos e embate crítico entre os dois programas.
Primeiros anos: da criação ao ápice do PMM na Amazônia
O tema da insuficiência na oferta e formação de médicos em relação às necessidades do sistema de saúde encontra-se presente nas agendas governamentais brasileiras desde o final dos anos 1960. No entanto, alguns fatores se mostraram decisivos para a criação do PMM, dentre os quais o agravamento da escassez de médicos no país, o aumento de sua relevância entre os prefeitos, população e imprensa e a pressão decorrente dos protestos populares de 2013 (Pinto, Oliveira e Soares, 2022PINTO, Heider A.; OLIVEIRA, Felipe P.; SOARES, Ricardo. Panorama da implementação do Programa Mais Médicos até 2021 e comparação com o Programa Médicos pelo Brasil. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 46, n. 1, p. 32-53, jan./mar. 2022. https://doi.org/10.22278/2318-2660.2022.v46.n1.a3616. Disponível em: https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/rbsp/article/view/3616/2979. Acesso em: 1 set. 2022.
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).
A partir de 2011, com a troca do governo federal, deu-se início a um processo de mudanças decisórias que culminou na criação do PMM em 2013. O novo programa era composto por três eixos de atuação - ‘formação’, ‘infraestrutura’ e ‘provimento’ - que buscavam operar mudanças: 1) na graduação e residência médica do país, aumentando sua integração com as demandas do Sistema Único de Saúde (SUS); 2) na destinação de recursos para construção, ampliação e reforma de UBSs; 3) no provimento médico emergencial para a APS de áreas prioritárias do SUS. O eixo ‘provimento’ tornou possível a autorização do exercício profissional de médicos graduados no exterior na rede primária de saúde de municípios e DSEIs, o que viabilizou a chegada de mais de 11 mil profissionais cubanos no Brasil (Brasil, 2013BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis no 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e no 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12871.htm. Acesso em: 10 jun. 2022.
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; Pinto, Oliveira e Soares, 2022PINTO, Heider A.; OLIVEIRA, Felipe P.; SOARES, Ricardo. Panorama da implementação do Programa Mais Médicos até 2021 e comparação com o Programa Médicos pelo Brasil. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 46, n. 1, p. 32-53, jan./mar. 2022. https://doi.org/10.22278/2318-2660.2022.v46.n1.a3616. Disponível em: https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/rbsp/article/view/3616/2979. Acesso em: 1 set. 2022.
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).
No desenho elaborado pelo governo, os médicos do PMM deveriam receber visitas periódicas de supervisores acadêmicos vinculados a instituições de ensino locais, garantindo suporte pedagógico aos profissionais e dando respaldo institucional para a execução do programa (Brasil, 2013BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis no 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e no 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12871.htm. Acesso em: 10 jun. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, 2015BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 585, de 15 de junho de 2015. Dispõe sobre a regulamentação da supervisão acadêmica no âmbito do Projeto Mais Médicos para o Brasil e dá outras providências. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, n. 112, p. 11, 16 jun. 2015. Disponível em: https://www.unasus.gov.br/uploads/pagina/MAIS_MEDICOS/PORTARIA_5852015_SUPERVISAO_PMMB.pdf. Acesso em: 10 jun. 2022.
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). No caso dos MRRs e DSEIs amazônicos, contudo, a regularidade das visitas se mostrou inviável dadas as dificuldades de acesso a grande parte desses territórios, fazendo com que a supervisão fosse precarizada no primeiro ano do PMM. Assim, em 2014, foi criado o Grupo Especial de Supervisão (GES) pelo Ministério da Educação (MEC), em parceria com o Ministério da Defesa (MD), o que viabilizou a realização das supervisões e, em última instância, o funcionamento regular do PMM nessas localidades (Carvalho e Mendes, 2021CARVALHO, Natalia C.; MENDES, R. Supervisão acadêmica e apoio pedagógico do Programa Mais Médicos em áreas indígenas e remotas da Amazônia Legal: vivências, desafios e perspectivas. Revista de APS, Juiz de Fora, v. 24, p. 132-156, 2021. Suplemento 1. https://doi.org/10.34019/1809-8363.2021.v24.35188. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/aps/article/view/35188/24348 . Acesso em: 1 set. 2022.
https://periodicos.ufjf.br/index.php/aps...
; Aguiar e Macedo, 2019AGUIAR, Raphael A. T.; MACEDO, Harineide M. O Programa Mais Médicos em áreas remotas: a experiência do grupo especial de supervisão no Pará, Brasil. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 23, e180042, 2019. Suplemento 1. https://doi.org/10.1590/Interface.180042. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/4w5CTXJtHDPxW3hC63WMtgm/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 1 set. 2022.
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; Almeida, Macedo e Silva, 2019ALMEIDA, Erika R.; MACEDO, Harineide M.; SILVA, José C. Gestão federal do Programa Mais Médicos: o papel do Ministério da Educação. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 23, e180011, 2019. Suplemento 1. https://doi.org/10.1590/Interface.180011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/ssLScYZxzYfyjs3hbqZgqpx/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 1 set. 2022.
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).
O GES passou a contar com o apoio logístico das Forças Armadas para a segurança e o deslocamento dos supervisores e tutores por via terrestre, fluvial e aérea aos MRRs e territórios indígenas das regiões mais isoladas do Acre, do Amazonas, do Pará, de Roraima e, mais recentemente, do Amapá. Além do apoio direto aos médicos do programa, a supervisão acadêmica tem promovido a melhoria da interlocução com as gestões locais e dado, em certa medida, visibilidade às demandas mais críticas dos profissionais e usuários em outros níveis institucionais (Carvalho e Mendes, 2021CARVALHO, Natalia C.; MENDES, R. Supervisão acadêmica e apoio pedagógico do Programa Mais Médicos em áreas indígenas e remotas da Amazônia Legal: vivências, desafios e perspectivas. Revista de APS, Juiz de Fora, v. 24, p. 132-156, 2021. Suplemento 1. https://doi.org/10.34019/1809-8363.2021.v24.35188. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/aps/article/view/35188/24348 . Acesso em: 1 set. 2022.
https://periodicos.ufjf.br/index.php/aps...
; Aguiar e Macedo, 2019AGUIAR, Raphael A. T.; MACEDO, Harineide M. O Programa Mais Médicos em áreas remotas: a experiência do grupo especial de supervisão no Pará, Brasil. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 23, e180042, 2019. Suplemento 1. https://doi.org/10.1590/Interface.180042. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/4w5CTXJtHDPxW3hC63WMtgm/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 1 set. 2022.
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).
O avanço do PMM em áreas de difícil acesso da Amazônia ganhou rápida repercussão nos serviços, obtendo importante reconhecimento dos usuários já nos primeiros anos de sua implementação (Comes et al., 2016COMES, Yamila et al. Avaliação da satisfação dos usuários e da responsividade dos serviços em municípios inscritos no Programa Mais Médicos. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 21, n. 9, p. 2.749-2.759, 2016. https://doi.org/10.1590/1413-81232015219.16202016. Disponível em: https://curtlink.com/FRzNqgi. Acesso em: 1 set. 2022.
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). Estudos realizados em MRRs da Região Norte apontaram para redução da rotatividade médica na APS, aumento do número de consultas, ampliação do acesso aos serviços, aumento da produtividade das equipes e redução do número de encaminhamentos para as redes de urgência após a implementação do PMM (Schweickardt et al., 2016 SCHWEICKARDT, Júlio C. et al. O “Programa Mais Médicos” e o trabalho vivo em saúde em um município da Amazônia, Brasil. Saúde em Redes, Porto Alegre, v. 2, n. 3, p. 328-341, 2016. http://dx.doi.org/10.18310/2446-4813.2016v2n3p328-341. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/163611/001020009.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 1 set. 2022.
https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/hand...
; Pereira e Pacheco, 2017PEREIRA, Lucélia L.; PACHECO, Leonor. O desafio do Programa Mais Médicos para o provimento e a garantia da atenção integral à saúde em áreas rurais na região amazônica, Brasil. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 21, p. 1.181-1.192, 2017. Suplemento 1. https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0383. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/7X65VXdhKtRXty8WTRJbS4v/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 1 set. 2022.
https://www.scielo.br/j/icse/a/7X65VXdhK...
; Carneiro et al., 2018CARNEIRO, Vânia B. et al. Tecobé no Marajó: tendência de indicadores de monitoramento da atenção primária antes e durante o Programa Mais Médicos para o Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 7, p. 2.413-2.422, 2018. https://doi.org/10.1590/1413-81232018237.19052016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/hL6Q7WcqpfPNhBC3fZ8T3pz/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 10 jun. 2022.
https://www.scielo.br/j/csc/a/hL6Q7Wcqpf...
; Fausto, Fonseca e Penzin, 2019FAUSTO, Márcia C. R.; FONSECA, Helena M. S.; PENZIN, Valéria M. (coord.). Atenção Primária à Saúde em territórios rurais e remotos no Brasil: relatório final. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/47633. Acesso em: 17 ago. 2022.
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict...
). Em alguns casos, foram identificadas tendências de melhora sobre indicadores de cuidados primários, como cobertura de APS, efetividade do pré-natal, internações por condições sensíveis à atenção primária e mortalidade infantil (Carneiro et al., 2018CARNEIRO, Vânia B. et al. Tecobé no Marajó: tendência de indicadores de monitoramento da atenção primária antes e durante o Programa Mais Médicos para o Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 7, p. 2.413-2.422, 2018. https://doi.org/10.1590/1413-81232018237.19052016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/hL6Q7WcqpfPNhBC3fZ8T3pz/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 10 jun. 2022.
https://www.scielo.br/j/csc/a/hL6Q7Wcqpf...
).
No que se refere à saúde indígena, o PMM viabilizou no período compreendido entre 2013 e 2018 a incorporação média de trezentos médicos para a cobertura de todos os 34 DSEIs do país, dentre os quais cerca de 90% eram médicos cubanos (Quadro 1).
Com o novo aporte de profissionais, foi possível operar um acesso ampliado e contínuo a territórios que nunca tinham sido assistidos por médicos ou que permaneciam por muitos anos sem esses profissionais. Na realidade amazônica, constataram-se ainda avanços importantes no cuidado materno-infantil, na organização dos serviços, na qualidade dos registros e no diálogo com questões culturais das populações indígenas durante o período de atuação dos médicos do PMM (Almeida, Santana e Sousa, 2017ALMEIDA, Magda M.; SANTANA, Geísa C. O. M.; SOUSA, Rafaela B. Evidências advindas da implantação do PMM nos territórios indígenas. 2017. Disponível em: http://rededepesquisaaps.org.br/wp-content/uploads/2017/10/saude-indigenaSumula.pdf. Acesso em: 10 jun. 2022.
http://rededepesquisaaps.org.br/wp-conte...
; Brasil, 2019aBRASIL. Ministério da Saúde. Saúde indígena: análise da situação de saúde no SasiSUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2019a.; Schweickardt et al., 2020 SCHWEICKARDT, Júlio C. et al. O Programa Mais Médicos na saúde indígena: o caso do Alto Solimões, Amazonas, Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, v. 44, e24, 2020. https://doi.org/10.26633/RPSP.2020.24. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/51349/v44e242020.pdf?sequence=5&isAllowed=y. Acesso em: 1 set. 2022.
https://iris.paho.org/bitstream/handle/1...
). Contudo, as limitações estruturais e as fragilidades históricas das redes locais de saúde têm se apresentado como verdadeiros entraves ao desenvolvimento da APS para além do PMM.
Outras iniciativas, como as unidades básicas de saúde fluviais (UBSFs) e as equipes de saúde da família ribeirinhas (ESFRs), incentivadas pelo governo federal em formato mais ambientado a essas regiões, também vêm apresentando tímida adesão pelos MRRs amazônicos, devido, dentre outras questões, aos elevados custos de manutenção de infraestrutura e logística para o deslocamento dessas equipes e ao baixo capital político desses municípios no Congresso Nacional, o que tem dificultado a captação de recursos de emendas parlamentares para a construção e o custeio de barcos e pontos de apoio. Mesmo quando implantadas, as USBFs e as ESFRs têm sofrido com a escassez e a alta rotatividade de profissionais de saúde na região, em especial de médicos. Segundo Almeida e colaboradores (2019ALMEIDA, Erika R. et al. Atenção Básica à Saúde: avanços e desafios no contexto amazônico. In: SCHWEICKARDT, Júlio C.; El KADRI, Michele R.; LIMA, Rodrigo T.S. (org.). Atenção Básica na região Amazônica: saberes e práticas para o fortalecimento do SUS. 1.ed. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2019. p. 15-50.), a baixa qualificação e a instabilidade dos gestores da região vêm contribuindo para esse fenômeno e inviabilizando o desenvolvimento de políticas mais eficientes e duradouras na APS. O PMM, por meio dos intercambistas cubanos, contribuiu de modo considerável para o preenchimento dessas equipes e o aumento do seu tempo de permanência, favorecendo a construção de vínculos e a longitudinalidade do cuidado (Pereira e Pacheco, 2017PEREIRA, Lucélia L.; PACHECO, Leonor. O desafio do Programa Mais Médicos para o provimento e a garantia da atenção integral à saúde em áreas rurais na região amazônica, Brasil. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 21, p. 1.181-1.192, 2017. Suplemento 1. https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0383. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/7X65VXdhKtRXty8WTRJbS4v/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 1 set. 2022.
https://www.scielo.br/j/icse/a/7X65VXdhK...
; Almeida et al., 2019ALMEIDA, Erika R. et al. Atenção Básica à Saúde: avanços e desafios no contexto amazônico. In: SCHWEICKARDT, Júlio C.; El KADRI, Michele R.; LIMA, Rodrigo T.S. (org.). Atenção Básica na região Amazônica: saberes e práticas para o fortalecimento do SUS. 1.ed. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2019. p. 15-50.).
Apesar dos impactos positivos e da popularidade do PMM, o programa sofreu forte oposição de entidades médicas brasileiras e outros adversários políticos do governo federal. As críticas se voltavam principalmente ao processo de importação de profissionais estrangeiros sem a revalidação de diplomas no Brasil, colocando dúvidas acerca da qualidade da formação desses médicos e das distorções resultantes no mercado de trabalho no setor (Dias, Lima e Lobo, 2021DIAS, Henrique S.; LIMA, Luciana D.; LOBO, Maria S. C . Do ‘Mais Médicos’ à pandemia de Covid-19: duplo negacionismo na atuação da corporação médica brasileira. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 45, n. 2, p. 92-106, 2021. https://doi.org/10.1590/0103-11042021E207. Disponível em: https://curtlink.com/yq8d9pu. Acesso em: 1 set. 2022.
https://curtlink.com/yq8d9pu...
).
O principal grupo opositor do PMM é descrito por Pinto e Côrtes (2022PINTO, Heider A.; CÔRTES, Soraya M. V. O que fez com que o Programa Mais Médicos fosse possível? Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 27, n. 7, p. 2.543-2.552, 2022. https://doi.org/10.1590/1413-81232022277.22322021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/jJRZDGRRJ8zJ777PyY4kTpy/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 1 set. 2022.
https://www.scielo.br/j/csc/a/jJRZDGRRJ8...
) como a comunidade política ‘Defesa da Medicina Liberal’ (CP-M Liberal), liderada por parlamentares médicos e dirigentes de entidades médicas, hospitais, cursos de medicina e programas de residência médica. Entre suas pautas, destacam-se a defesa da autorregulação profissional da medicina e a oposição a medidas de aumento do número de médicos no mercado de trabalho do país. Embora gozando de grande prestígio entre os poderes Executivo e Legislativo, a CP-M Liberal foi suplantada por outras comunidades políticas e pela pressão dos usuários e prefeitos pró-PMM, que se mostraram decisivos na sustentação do programa.
Em 2016, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a ascensão ao poder do vice-presidente Michel Temer, dá-se início a uma severa política de austeridade, com ajuste fiscal em setores essenciais e aprovação do congelamento de gastos públicos por um período de vinte anos. Esse novo cenário atinge drasticamente os recursos nas pastas da saúde e da educação e provoca mudanças na gestão e no corpo técnico dos ministérios, que repercutem negativamente no PMM. Mesmo não havendo, naquele momento, mudanças no desenho do programa, Almeida e colaboradores (2019ALMEIDA, Erika R. et al. Atenção Básica à Saúde: avanços e desafios no contexto amazônico. In: SCHWEICKARDT, Júlio C.; El KADRI, Michele R.; LIMA, Rodrigo T.S. (org.). Atenção Básica na região Amazônica: saberes e práticas para o fortalecimento do SUS. 1.ed. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2019. p. 15-50.) descrevem um processo gradativo de desmonte do PMM no MEC, que atingiu a supervisão acadêmica e outros aspectos das parcerias com a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) e a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). No Ministério da Saúde (MS), o novo ministro ampliou a proximidade com representantes da CP-M Liberal e paralisou as ações relacionadas aos eixos ‘Formação’ e ‘Infraestrutura’ do PMM, limitando-o em última instância ao eixo ‘Provimento’ (Pinto, Oliveira e Soares, 2022PINTO, Heider A.; OLIVEIRA, Felipe P.; SOARES, Ricardo. Panorama da implementação do Programa Mais Médicos até 2021 e comparação com o Programa Médicos pelo Brasil. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 46, n. 1, p. 32-53, jan./mar. 2022. https://doi.org/10.22278/2318-2660.2022.v46.n1.a3616. Disponível em: https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/rbsp/article/view/3616/2979. Acesso em: 1 set. 2022.
https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/r...
).
Seguindo o plano de substituição dos profissionais intercambistas, previsto desde a concepção do PMM, a proporção de médicos brasileiros apresentou um crescimento gradual que ajudou a melhorar a aceitação corporativa do programa, reduzindo o número de médicos cubanos de 11.400, em 2014, para 8.300 em meados de 2018. A concentração dos profissionais brasileiros, entretanto, se deu principalmente nos grandes centros e em áreas menos vulneráveis; e seu tempo de permanência no PMM manteve-se em aproximadamente um ano, três vezes inferior à média dos cubanos (Pinto, Oliveira e Soares, 2022PINTO, Heider A.; OLIVEIRA, Felipe P.; SOARES, Ricardo. Panorama da implementação do Programa Mais Médicos até 2021 e comparação com o Programa Médicos pelo Brasil. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 46, n. 1, p. 32-53, jan./mar. 2022. https://doi.org/10.22278/2318-2660.2022.v46.n1.a3616. Disponível em: https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/rbsp/article/view/3616/2979. Acesso em: 1 set. 2022.
https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/r...
).
O aumento do número de brasileiros no programa, nesses termos, foi praticamente invisível à realidade dos MRRs e DSEIs amazônicos, que permaneceram fortemente dependentes da presença dos médicos cubanos. O estado do Amazonas, por exemplo, chegou a dispor de 435 médicos em atuação pelo PMM em 2016, dentre os quais 351 eram intercambistas cubanos. No mesmo ano, oitenta médicos cubanos e apenas um brasileiro atuavam nos DSEIs do estado (Silva, 2017SILVA, Diego F. L. O Programa Mais Médicos no Amazonas: um olhar sobre a força de trabalho médica e a infraestrutura das Unidades Básicas de Saúde. 2017. 87 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2017. ). Vale lembrar que os médicos cubanos estavam no Brasil por meio de uma cooperação internacional firmada entre os dois países no âmbito do PMM. O acordo foi rompido por Cuba após analisar o discurso e as intenções para com os médicos cooperados por parte do candidato vencedor das eleições para a presidência, Jair Bolsonaro, como descrito por Alves (2018ALVES, Lise. Cuban doctors’ withdrawal from Brazil could impact health. Lancet, London, v. 392, n. 10.161, p. 2.255, nov. 2018. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(18)32975-1.
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(18)32...
, p. 1):
The decision was made after Brazil’s president-elect, Jair Bolsonaro, stated that Cuban doctors would be allowed to remain in the programme only if they took an exam to validate their medical credentials, started to receive full wages paid by the Brazilian Government, and were allowed to bring their families to Brazil.
Com o rompimento, o governo cubano requisitou a saída imediata dos médicos intercambistas do Brasil, reduzindo pela metade o número de profissionais do programa - uma queda abrupta de 16 mil para 8.400 médicos (Pinto, Oliveira e Soares, 2022PINTO, Heider A.; OLIVEIRA, Felipe P.; SOARES, Ricardo. Panorama da implementação do Programa Mais Médicos até 2021 e comparação com o Programa Médicos pelo Brasil. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 46, n. 1, p. 32-53, jan./mar. 2022. https://doi.org/10.22278/2318-2660.2022.v46.n1.a3616. Disponível em: https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/rbsp/article/view/3616/2979. Acesso em: 1 set. 2022.
https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/r...
).
Na Amazônia, o impacto da ruptura foi imediato com o esvaziamento de diversos postos de trabalho médico, o que afetou principalmente indígenas e ribeirinhos. Segundo o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), pelo menos 285 cidades e 26 DSEIs do país ficaram sem nenhum médico em novembro e dezembro de 2018. A saída dos cubanos deixou cerca de trinta milhões de pessoas desassistidas em todo o Brasil, dentre as quais cinco milhões de crianças (Conasems e FNP, 2018CONSELHO NACIONAL DE SECRETARIAS MUNICIPAIS DE SAÚDE (CONASEMS). Frente Nacional de Prefeitos. Nota sobre o Programa Mais Médicos e a saída dos profissionais cubanos do país. 14 nov. 2018. Disponível em: https://curtlink.com/2ymwJ3M. Acesso em: 10 jun. 2022.
https://curtlink.com/2ymwJ3M...
; Francesconi et al., 2020FRANCESCONI, Gabril V. et al. Mortality associated with alternative policy options for primary care and the MaisMédicos (More Doctors) program in Brazil: forecasting future scenarios. Revista Panamericana Salud Pública, v. 44, e31, 2020. https://doi.org/10.26633/RPSP.2020.31. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/51532/v44e312020.pdf?sequence=3&isAllowed=y. Acesso em: 1 set. 2022.
https://iris.paho.org/bitstream/handle/1...
).
Nas regiões mais vulneráveis do país, 14 municípios apresentaram aumento de mais de 50% no total de mortes evitáveis de crianças até cinco anos entre 2018 e 2019 - incluindo cinco MRRs do Pará, dois do Amazonas e um do Acre (Nascimento, 2022 NASCIMENTO, Solano. Os pequenos que se foram: como o desmonte do Mais Médicos matou crianças brasileiras. Folha de São Paulo, edição 184, jan. 2022. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/os-pequenos-que-se-foram/. Acesso em: 17 ago. 2022.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o...
). Nesse cenário, Francesconi e colaboradores (2020FRANCESCONI, Gabril V. et al. Mortality associated with alternative policy options for primary care and the MaisMédicos (More Doctors) program in Brazil: forecasting future scenarios. Revista Panamericana Salud Pública, v. 44, e31, 2020. https://doi.org/10.26633/RPSP.2020.31. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/51532/v44e312020.pdf?sequence=3&isAllowed=y. Acesso em: 1 set. 2022.
https://iris.paho.org/bitstream/handle/1...
) estimaram um excesso de cinquenta mil mortes prematuras no Brasil em 12 anos (2019-2030) em caso de manutenção das políticas de austeridade do governo federal e do fim do PMM.
No caso dos DSEIs, grande parte das entradas de equipes em territórios indígenas foi suspensa por falta de médicos, deixando as populações aldeadas ainda mais vulneráveis e dependentes da estrutura emergencial dos municípios. Em relato sobre a situação do MRR de Manoel Urbano (AC) e do DSEI Alto Rio Purus após a saída dos cubanos, Nascimento (2022 NASCIMENTO, Solano. Os pequenos que se foram: como o desmonte do Mais Médicos matou crianças brasileiras. Folha de São Paulo, edição 184, jan. 2022. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/os-pequenos-que-se-foram/. Acesso em: 17 ago. 2022.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o...
, p. 1) descreveu a tragédia sanitária e cultural de indígenas da etnia Kulina com o aumento da mortalidade de crianças das aldeias da região:
Para os indígenas, morrer na cidade é um suplício. Quando uma criança Kulina morre na aldeia, seu corpo é preparado com folhas aromáticas, enrolado em uma rede e colocado em um pequeno caixão feito com partes de velhas canoas ou outras tábuas. Sob o comando do pajé, faz-se um ritual com cânticos (...) e a criança é enterrada em um cemitério nas cercanias da aldeia. Na cultura Kulina, esse ritual serve para ajudar o espírito do morto a seguir seu caminho. Quando uma criança indígena morre na cidade, é sepultada ali mesmo. ‘As crianças ficam no cemitério de Manoel Urbano ou até no de Rio Branco (...) e nem a família pode mais visitar o túmulo.’ As mortes na cidade roubam dos Kulina o corpo da criança e o ritual de despedida.
Com isso, encerra-se o primeiro período de análise deste estudo que caminha até o ápice do PMM e, por fim, passa a ser marcado por retrocessos no quadro assistencial das áreas remotas da Amazônia. Tal cenário é descrito com similaridade por Pinto, Oliveira e Soares (2022PINTO, Heider A.; OLIVEIRA, Felipe P.; SOARES, Ricardo. Panorama da implementação do Programa Mais Médicos até 2021 e comparação com o Programa Médicos pelo Brasil. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 46, n. 1, p. 32-53, jan./mar. 2022. https://doi.org/10.22278/2318-2660.2022.v46.n1.a3616. Disponível em: https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/rbsp/article/view/3616/2979. Acesso em: 1 set. 2022.
https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/r...
) como as fases de ‘Implementação inicial acelerada’ e ‘Implementação sustentada’ do programa - que, com o impeachment da presidenta Dilma, seriam sucedidas pelas fases de ‘Implementação parcialmente bloqueada’ e ‘Implementação residual’. A derrubada da presidenta e a virada político-ideológica do novo governo, de viés neoliberal, viriam a abrir espaço para um combate ainda mais feroz ao PMM e serviriam de base para o crescimento da extrema-direita no país, como descrito a seguir.
Provimento médico em transição: disputas e desafios na ótica da assistência na Amazônia
Dentre as últimas medidas do governo Temer, no encerramento de 2018, esteve a publicação de dois editais do PMM para a contratação emergencial de mais de oito mil médicos brasileiros para tentar suprir as vagas deixadas pelos cubanos. O presidente minimizou a saída desses profissionais; afirmou que as lacunas dos municípios seriam preenchidas rapidamente e garantiu que não deixaria problemas de vazios assistenciais para o próximo governo (Dias, Lima e Lobo, 2021DIAS, Henrique S.; LIMA, Luciana D.; LOBO, Maria S. C . Do ‘Mais Médicos’ à pandemia de Covid-19: duplo negacionismo na atuação da corporação médica brasileira. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 45, n. 2, p. 92-106, 2021. https://doi.org/10.1590/0103-11042021E207. Disponível em: https://curtlink.com/yq8d9pu. Acesso em: 1 set. 2022.
https://curtlink.com/yq8d9pu...
).
Com o amplo apoio da CP-M Liberal, o primeiro edital obteve 7.100 inscritos e o segundo, 1.300 - preenchendo com médicos brasileiros quase todas as vagas disponibilizadas até dezembro de 2018. A partir de 2019, contudo, o número de desistências do PMM ganhou corpo, totalizando cerca de mil médicos até março e 1.300 até maio. Muitos profissionais desistiram do programa mesmo antes de se apresentarem nos municípios, ao descobrirem as localidades onde trabalhariam, em especial nas áreas mais isoladas. No Amazonas, dos 91 médicos que se inscreveram para o trabalho na Saúde Indígena, oitenta sequer se apresentaram e outros sete desistiram após assumirem os cargos (Bessa, 2019BESSA, Indiara. Mais de 95% de profissionais do Mais Médicos ainda não se apresentaram para trabalhar em DSEIs no AM. G1 AM, Amazonas, 9 jan. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2019/01/09/mais-de-95-de-profissionais-do-mais-medicos-ainda-nao-se-apresentaram-para-trabalhar-em-dseis-no-am.ghtml. Acesso em: 10 jun. 2022.
https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia...
).
A vacância nas equipes da ESF após janeiro de 2019 resultou ainda em prejuízos nos indicadores da pactuação interfederativa de 2018 e nos repasses federais condicionados a diversos municípios. Os MRRs foram especialmente afetados por concentrarem grande parte das vagas não preenchidas do programa, porém dispondo de menor dotação orçamentária para a contratação de profissionais por recursos próprios (Bessa, 2019BESSA, Indiara. Mais de 95% de profissionais do Mais Médicos ainda não se apresentaram para trabalhar em DSEIs no AM. G1 AM, Amazonas, 9 jan. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2019/01/09/mais-de-95-de-profissionais-do-mais-medicos-ainda-nao-se-apresentaram-para-trabalhar-em-dseis-no-am.ghtml. Acesso em: 10 jun. 2022.
https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia...
).
Além das desistências, as migrações de vínculos nos municípios se tornaram cada vez mais frequentes com a saída de contratos temporários/precarizados para o PMM. No Acre, dos 110 médicos alocados no programa no início de 2019, 48 já tinham vínculo com a APS, reduzindo em mais de 40% o acréscimo de cobertura previsto.
Com a persistência das lacunas em grande parte dos MRRs e dos DSEIs, o governo Bolsonaro, recém-empossado, viu como alternativa o chamamento de médicos brasileiros formados no exterior para o PMM. Na época, o número de estudantes brasileiros em faculdades de medicina estrangeiras já ultrapassava 65 mil, e via-se, em grande medida, o programa como uma oportunidade de retorno ao país e início da carreira profissional. Por outro lado, a aplicação do exame de revalidação de diplomas médicos (Revalida) permaneceu judicializada no Brasil entre 2017 e 2020, o que gerou uma grande fila de profissionais que só poderiam atuar no país por meio do PMM (Carvalho e Mendes, 2021CARVALHO, Natalia C.; MENDES, R. Supervisão acadêmica e apoio pedagógico do Programa Mais Médicos em áreas indígenas e remotas da Amazônia Legal: vivências, desafios e perspectivas. Revista de APS, Juiz de Fora, v. 24, p. 132-156, 2021. Suplemento 1. https://doi.org/10.34019/1809-8363.2021.v24.35188. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/aps/article/view/35188/24348 . Acesso em: 1 set. 2022.
https://periodicos.ufjf.br/index.php/aps...
). Assim, com a abertura de novos editais do programa em 2019, as vagas remanescentes foram parcialmente preenchidas por esses profissionais, ainda que em número bastante inferior ao ocupado anteriormente pelos cubanos (Jucá, 2020aJUCÁ, Beatriz. Com dificuldade para atrair médicos, Governo Bolsonaro prepara a readmissão de cubanos. El País, São Paulo, 15 fev. 2020a. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-02-15/com-dificuldade-para-atrair-medicos-governo-bolsonaro-prepara-a-readmissao-de-cubanos.html. Acesso em: 10 jun. 2022.
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-02...
).
Os editais de 2019, contudo, foram voltados exclusivamente para médicos brasileiros (graduados no país ou no exterior) ou com diplomas revalidados no país, não contemplando a contratação de profissionais estrangeiros sem revalidação. Essa realidade afetou diretamente 2.500 médicos cubanos que optaram por permanecer no Brasil mesmo após a ruptura do acordo de cooperação. Com o encerramento de seus contratos e sem conseguirem ser readmitidos no PMM, alguns desses profissionais chegaram a trabalhar com serviços gerais e como vigias nas UBSs em que eram lotados. Tal cenário contrastava com a persistência de postos de trabalho médico em aberto no país - até julho de 2019, mais de 2.100 vagas do PMM não haviam sido preenchidas, dentre as quais 51% se concentravam no Amazonas e no Pará (Jucá, 2020bJUCÁ, Beatriz. Municípios perdem um quinto dos médicos financiados pelo Governo federal após saída de cubanos. El País, 17 fev. 2020b. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-02-17/municipios-brasileiros-perdem-um-quinto-dos-medicos-financiados-pelo-governo-federal-apos-saida-de-cubanos.html. Acesso em: 10 jun. 2022.
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-02...
).
Ao tentar dar respostas à bandeira da carreira médica federal, defendida há anos pela CP-M Liberal, e substituir o PMM, cuja imagem era fortemente associada às gestões anteriores, o governo federal propôs a criação do PMPB por meio da medida provisória n. 890/2019, posteriormente convertida na lei n. 13.958/2019. O novo programa propunha um conjunto de mudanças na gestão do trabalho dos médicos realizada até então pelo PMM: exigência de registro nos CRMs, com extinção da certificação profissional provisória oferecida pelo MS; aumento da carga horária assistencial (de 32 horas para quarenta horas semanais) e de especialização (de oito para vinte horas semanais); e contratação por meio da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com plano de cargos e salários, componente de pagamento por desempenho, gratificações adicionais para áreas remotas e DSEIs e progressão predefinida após o cumprimento de dois anos de trabalho em regime bolsista. Foram realizadas mudanças nos critérios de alocação das vagas nos municípios, com previsão de aumento das vagas sobretudo para a Região Nordeste, para os DSEIs e para municípios de tipologia ‘Rural Remoto’, ‘Rural Adjacente’ e ‘Intermediário Remoto’. Além dessas mudanças, foram propostas alterações no desenho do apoio pedagógico, extinguindo a supervisão acadêmica e substituindo-a por tutorias clínicas com visitas periódicas às UBSs de tutores de referência. O PMPB seria executado por meio da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS), serviço social autônomo a ser constituído posteriormente pelo governo (Brasil, 2019b; Wollmann, D’Avila e Harzheim, 2020WOLLMANN, Lucas; D’AVILA, Otávio P.; HARZHEIM, Erno. Programa Médicos pelo Brasil: mérito e equidade. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 15, n. 42, p. 2.346, 2020. https://doi.org/10.5712/rbmfc15(42)2346. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/2346/1524. Acesso em: 1 set. 2022.
https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/...
; Santos et al., 2023SANTOS, Caroline. M. J. et al. Doctors for Brazil program: first results. SciELO Preprints, 2023. https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.5364. Disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/5364/10374. Acesso em: 26 mar. 2023.
https://preprints.scielo.org/index.php/s...
).
A CP-M Liberal apoiou fortemente o novo desenho do PMPB, apesar da frustração com a proposta de ‘carreira médica’ bastante distinta do almejado modelo de carreira da magistratura federal, com melhores remunerações e estabilidade. Contudo, a exigência de registro no CRM para os ingressos no programa obteve o peso necessário para suplantar as críticas do movimento naquele período (Dias, Lima e Lobo, 2021DIAS, Henrique S.; LIMA, Luciana D.; LOBO, Maria S. C . Do ‘Mais Médicos’ à pandemia de Covid-19: duplo negacionismo na atuação da corporação médica brasileira. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 45, n. 2, p. 92-106, 2021. https://doi.org/10.1590/0103-11042021E207. Disponível em: https://curtlink.com/yq8d9pu. Acesso em: 1 set. 2022.
https://curtlink.com/yq8d9pu...
).
O clima de euforia política pela criação do PMPB destoava da realidade das áreas remotas da Amazônia, que viam seu efetivo médico sendo suprido de modo insuficiente pelos brasileiros formados no exterior e, em casos pontuais, por profissionais com registro no CRM. Nessas localidades, os médicos precisavam trabalhar em regime de rodízio para cobrirem as UBSs sem profissionais, tentando mitigar a desassistência das comunidades mais vulneráveis. No entanto, a divisão e a dispersão da carga horária desses médicos entre vários serviços acabaram comprometendo o cuidado longitudinal e reforçando um modelo assistencial imediatista e baseado em queixas agudas (Lima et al., 2022LIMA, Juliana G. et al. Barreiras de acesso à Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos do Oeste do Pará. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 20, 2022, e00616190. https://doi.org/10.1590/1981-7746-ojs616. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/Dx3YmKdqfdJzMSJYBZp7KQg/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 26 mar. 2023.
https://www.scielo.br/j/tes/a/Dx3YmKdqfd...
).
A partir do primeiro semestre de 2020, o Brasil foi alvejado pela pandemia de Covid-19, que se alastrou com grande velocidade em todo o seu território e após três anos viria a vitimar mais de setecentas mil pessoas. A crise sanitária resultante da saída dos médicos cubanos deixou o país ainda mais vulnerável ao avanço da Covid-19, o que afetou de modo contundente as populações da Amazônia rural (Brasil, 2021BRASIL. Senado Federal. Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia: Instituída pelos Requerimentos nos 1.371 e 1.372, de 2021. Relatório Final. Brasília, DF: 2021. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/fc73ab53-3220-4779-850c-f53408ecd592. Acesso em: 10 jun. 2022.
https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter...
).
Em resposta ao crescimento da doença no país, o MS optou por lançar editais do PMM para contratação e renovação de contratos de médicos em 1.800 municípios e 19 DSEIs. A seleção fez elevar o total de profissionais do programa para cerca de 16 mil, mesmo após a aprovação da lei do PMPB, cuja agência de desenvolvimento ainda se encontrava em fase de regulamentação. Os editais, contudo, eram destinados apenas a médicos com registro no CRM, o que resultou num aporte de menos de duzentos profissionais para a Região Norte, os quais acabaram se concentrando nas capitais e em suas regiões metropolitanas (Brasil, 2020BRASIL. Ministério da Saúde. Projeto Mais Médicos segue com reforço na APS durante pandemia. 30 nov. 2020. Disponível em: http://maismedicos.gov.br/noticias/318-projeto-mais-medicos-segue-com-reforco-na-aps-durante-pandemia. Acesso em: 10 jun. 2022.
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).
Paralelamente a esse processo, o governo publicou a portaria interministerial n. 04/2019, que concedia o direito à solicitação de residência no Brasil pelo período de dois anos para os médicos cubanos que integraram o PMM. A medida viria a se somar ao arcabouço da lei do PMPB, que possibilitava o trabalho em regime excepcional dos cubanos na condição de naturalizados, residentes ou com pedido de refúgio em programas de provimento médico emergencial. Com isso, novos editais específicos do PMM foram publicados em 2020, viabilizando a recontratação de 1.800 médicos cubanos sem a revalidação de diplomas, sendo a Região Norte beneficiada com cerca de 240 profissionais. Mesmo com a alocação de parte desses profissionais na Amazônia rural, o montante correspondia a apenas 21% do total de intercambistas presentes no país em 2018 (Brasil, 2019bBRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 13.958, de 18 de outubro de 2019. Institui o Programa Médicos pelo Brasil, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), e autoriza o Poder Executivo federal a instituir serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). 2019b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13958.htm. Acesso em: 10 jun. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
; 2020BRASIL. Ministério da Saúde. Projeto Mais Médicos segue com reforço na APS durante pandemia. 30 nov. 2020. Disponível em: http://maismedicos.gov.br/noticias/318-projeto-mais-medicos-segue-com-reforco-na-aps-durante-pandemia. Acesso em: 10 jun. 2022.
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; Jucá, 2020aJUCÁ, Beatriz. Com dificuldade para atrair médicos, Governo Bolsonaro prepara a readmissão de cubanos. El País, São Paulo, 15 fev. 2020a. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-02-15/com-dificuldade-para-atrair-medicos-governo-bolsonaro-prepara-a-readmissao-de-cubanos.html. Acesso em: 10 jun. 2022.
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-02...
).
Nos anos de 2020 e 2021, a Covid-19 avançou de forma trágica nas áreas remotas da Amazônia, com elevado número de mortes entre as populações mais vulneráveis. A precariedade socioeconômica dos MRRs e as fragilidades das redes locais de saúde foram incrementadas por decisões abjetas do governo federal - atrasos na vacinação contra Covid-19; estímulo à desinformação sobre vacinas, medidas de isolamento social e uso de máscaras; e fornecimento de medicações ineficazes contra a Covid-19 -, o que resultou num cenário desastroso para a região. Entre os povos indígenas, a situação foi acentuada com a invasão de seus territórios por madeireiros, grileiros e garimpeiros e a entrada indiscriminada de missionários que aceleraram o processo de propagação do vírus (Brasil, 2021BRASIL. Senado Federal. Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia: Instituída pelos Requerimentos nos 1.371 e 1.372, de 2021. Relatório Final. Brasília, DF: 2021. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/fc73ab53-3220-4779-850c-f53408ecd592. Acesso em: 10 jun. 2022.
https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter...
). No mesmo período, os estados do Pará, de Rondônia e Tocantins foram acometidos duplamente com o crescimento das queimadas no arco de desmatamento do sul da Amazônia, cuja fumaça tem provocado toxicidade respiratória adicional à população, tornando-a mais suscetível a infecções virais como a Covid-19 (Hacon et al., 2019HACON, Sandra et al. Amazônia Brasileira: potenciais impactos das queimadas sobre a saúde humana no contexto da expansão da COVID-19. Nota Técnica, mar. 2021. Disponível em: https://wwfbr.awsassets.panda.org/downloads/nota_tecnica_covid_x_queimadas_na_amazonia_arquivo_fiinal.pdf. Acesso em: 10 jun. 2022.
https://wwfbr.awsassets.panda.org/downlo...
).
Apenas em dezembro de 2021, tempos após os momentos mais críticos da pandemia, o PMPB conseguiu finalizar seus trâmites administrativos e publicar seu primeiro edital. A procura pelo novo programa foi intensa, com mais de 16 mil médicos inscritos até janeiro de 2022. A convocação de abertura, realizada em abril de 2022, recrutou apenas 529 médicos, dentre os quais 26 foram destinados à Região Norte. O Acre foi beneficiado com apenas um médico, e os estados do Amapá e de Roraima não constaram na primeira lista. As chamadas seguintes, até o início de agosto, ampliaram o número de profissionais no país para 2.200 e, para a Região Norte, apenas 161 (ADAPS, 2022aAGÊNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE (ADAPS). Portaria ADAPS nº 04, de 21 de junho 2022. Aprova o regulamento do estágio de experiência remunerado do Programa Médicos pelo Brasil. Brasília, 2022a. Disponível em: https://www.adapsbrasil.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Regulamento_EER.pdf. Acesso em: 1 set. 2022.
https://www.adapsbrasil.com.br/wp-conten...
, 2022bAGÊNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE (ADAPS). Processo seletivo. 2022b. Disponível em: https://sistemafibra.org.br/iel/editais/processo-seletivo. Acesso em: 1 set. 2022.
https://sistemafibra.org.br/iel/editais/...
). Até o fim de 2022, o PMPB contava com 4.800 profissionais (entre tutores e médicos assistentes), pouco mais de 20% do previsto inicialmente pela ADAPS. A taxa de desligamentos no período foi de apenas 4,6% (Santos et al., 2023SANTOS, Caroline. M. J. et al. Doctors for Brazil program: first results. SciELO Preprints, 2023. https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.5364. Disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/5364/10374. Acesso em: 26 mar. 2023.
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), embora a maior parte da saída de profissionais costume acontecer nos meses de fevereiro e março, quando ocorre o ingresso na maioria dos programas de residência médica, o que não havia se verificado até dezembro de 2022.
Após um início conturbado, a ADAPS conseguiu finalizar em junho de 2022 as disposições do Estágio Experimental Remunerado do PMPB, com duração de dois anos, que englobam a formação em serviço, as atividades teórico-aplicadas e a tutoria clínica. Em portaria, instituíram-se os parâmetros de hospedagem, translado e diárias dos médicos bolsistas para as UBSs dos tutores clínicos, incluindo viagens com distâncias superiores a quinhentos quilômetros, dadas a escassez desses especialistas em diversas localidades do país (ADAPS, 2022cAGÊNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE (ADAPS). Orientações da ADAPS: Programa Médicos pelo Brasil. Abr. 2022c. Disponível em: https://www.adapsbrasil.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Orientacoes-aos-Gestores_03052022.pdf. Acesso em: 1 set. 2022.
https://www.adapsbrasil.com.br/wp-conten...
). Até o final de 2022, as tutorias clínicas ainda não se encontravam em execução periódica na região da Amazônia rural.
Mesmo que em tamanho reduzido, foram abertos quatro editais para novos profissionais do PMM ao longo de 2022, em grande parte para reposição de profissionais que haviam abandonado o programa. O preenchimento das vagas na Amazônia rural, contudo, permaneceu extremamente baixo, como no caso do DSEI Yanomami-Ye’kwana (DSEI-Y), onde foram abertas 19 vagas em julho de 2022, mas apenas uma ocupada.
Ainda não existem estudos suficientes para a avaliação do PMPB nos MRRs e nos DSEIs amazônicos, mas alguns pontos já podem ser observados com base na vivência na supervisão do GES. Os poucos profissionais com CRM na região começaram a migrar do PMM para o PMPB, relatando melhores faixas de remuneração e expectativa de benefícios da futura carreira CLT. Por outro lado, não se percebeu a apresentação de novos médicos pelo PMPB, o que reforça a dificuldade de atração profissional dessas localidades por ambos os programas.
Outra questão identificada foram os desligamentos de grande número de médicos do PMM em atuação nos DSEIs do Amazonas após a não renovação de seus contratos no primeiro semestre de 2022. A maioria desses profissionais era composta por brasileiros formados no exterior que se encontravam há pelo menos três anos em atuação nos territórios indígenas, com possibilidade de extensão contratual. O DSEI Parintins, por exemplo, teve três dos seus dez médicos desligados, mesmo dispondo de várias equipes sem profissionais. No mesmo período, o MS publicou um comunicado informando a migração de dezenas de vagas do PMM em MRRs para o PMPB e o remanejamento compulsório de profissionais do PMM para municípios próximos, com a justificativa de “interesse público” (Brasil, 2022BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Saúde da Família. Coordenação-Geral de Provisão de Profissionais para Atenção Primária. Edital SAPS/MS nº 8, de 14 de abril de 2022: prorrogação do 19º ciclo. Resultado final. Disponível em: http://maismedicos.gov.br/images/2022/04-Abr/resultado-final_LISTA-3-_19.04.2022.pdf. Acesso em: 10 ago. 2022.
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). Os dois movimentos transmitiam, dessa forma, o sentimento de uma implantação verticalizada do novo programa, reduzindo deliberadamente o tamanho do PMM na Amazônia em troca da promessa de preenchimento dessas vagas - o que, posteriormente, não viria a se concretizar.
Somada a esse processo, a retomada da aplicação do Revalida a partir de 2020 (com taxa de aprovação em 2021, de 33,2%) contribuiu para um grande êxodo de médicos aprovados no exame, que se encontravam trabalhando provisoriamente na Amazônia enquanto tentavam revalidar seus diplomas. Após a aprovação, a maioria desses médicos tem migrado para os grandes centros, com destaque para os estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Com isso, acentuou-se o esvaziamento de postos de trabalho médico na Amazônia rural, o que provoca em algumas localidades um cenário de escassez de profissionais não visto desde 2013 (pré-PMM) (Carvalho e Mendes, 2021CARVALHO, Natalia C.; MENDES, R. Supervisão acadêmica e apoio pedagógico do Programa Mais Médicos em áreas indígenas e remotas da Amazônia Legal: vivências, desafios e perspectivas. Revista de APS, Juiz de Fora, v. 24, p. 132-156, 2021. Suplemento 1. https://doi.org/10.34019/1809-8363.2021.v24.35188. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/aps/article/view/35188/24348 . Acesso em: 1 set. 2022.
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).
A saída - seja por não renovação contratual, seja por aprovação no Revalida ou outras motivações - de dezenas de médicos do PMM na Amazônia sem recomposição no período colocou os profissionais da supervisão em uma situação crítica, pois, diante desse novo cenário, o MEC optou pelo corte de metade dos supervisores do GES e pela redistribuição dos MRRs e DSEIs de referência de cada profissional e tutor, redesenhando o mapa de atuação do grupo. Foi ampliada a relação de médicos/supervisor ao seu limite máximo, levando em alguns casos à supervisão simultânea de mais de um MRR e DSEI, praticamente inviável com as grandes distâncias locais.
O ano de 2022 é marcado, por fim, pelas eleições presidenciais que resultaram na vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, que assume o novo governo diante de importantes desafios sanitários. A primeira questão apresentada, ainda em janeiro de 2023, foi o agravamento da tragédia humanitária envolvendo indígenas do DSEI-Y, que se encontravam em estado de desnutrição grave, com elevadas taxas de contaminação por mercúrio e aumento exponencial do número de mortes de crianças na região. Além das medidas sanitárias e de segurança mais imediatas, o governo anunciou um edital extraordinário do PMM para a atuação nos territórios indígenas de todo o país, que resultou no envio de 117 médicos brasileiros formados no exterior - dentre os quais, 14 para o DSEI-Y (Brasil, 2023bBRASIL. Ministério da Saúde. Ministério da Saúde envia 117 novos profissionais pelo programa Mais Médicos para Distritos Indígenas. 14 mar. 2023b. Disponível em: https://curtlink.com/jIohw7Q. Acesso em: 26 mar. 2023.
https://curtlink.com/jIohw7Q...
).
A grande mobilização de médicos para os DSEIs se deu em paralelo à taxa de aprovação de apenas 3,75% no Revalida de 2022, a menor em toda a história do exame, o que pode ter provocado efeitos de represamento de profissionais formados no exterior, semelhante ao período de judicialização da prova entre 2017 e 2020.
No dia 20 de março de 2023, por meio da medida provisória n. 1.165/2023, o governo anunciou o relançamento do PMM com ampliação do número de vagas e criação de novos incentivos aos profissionais, dentre os quais maiores ofertas educacionais e descontos de grande porte no pagamento do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Segundo o MS, até o final de 2023 haverá o aporte de mais 15 mil vagas e investimentos da ordem de R$ 712 milhões - cinco mil vagas em edital ainda no mês de março e mais dez mil, em formato com contrapartida dos municípios, a serem lançadas ao longo do ano. Durante o evento, o presidente Lula anunciou que será dada a prioridade aos médicos portadores de CRM e que, se não houver quantitativo para o provimento das regiões, o governo optará pela contratação complementar de brasileiros graduados no exterior e, posteriormente, de médicos estrangeiros (Brasil, 2023aBRASIL. Ministério da Saúde. Governo Federal anuncia a retomada do Programa Mais Médicos. 20 mar. 2023a. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/marco/governo-federal-anuncia-a-retomada-do-programa-mais-medicos. Acesso em: 26 mar. 2023.
https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/...
). Não houve menções a novos acordos de cooperação com o governo cubano.
O Conselho Federal de Medicina (CFM), no dia seguinte ao anúncio do governo, emitiu nota direcionando críticas ao formato do PMM e à retomada da contratação de médicos sem revalidação de diploma. Além disso, defendeu a continuidade do PMPB e a carreira médica federal e cobrou o chamamento dos 16 mil profissionais inscritos no primeiro edital do programa, indicando que esta seria uma estratégia mais adequada para o provimento médico emergencial nas regiões de maior carência (CFM, 2023CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Nota aos médicos e à população: Conselho Federal de Medicina manifesta seu posicionamento quanto ao Programa Mais Médicos (MP 1.165/2023). 22 mar. 2023. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/wp-content/uploads/2023/03/mais-medicos_nota-1.pdf. Acesso em: 26 mar. 2023.
https://portal.cfm.org.br/wp-content/upl...
).
O novo governo, por sua vez, ainda não se posicionou publicamente sobre o destino do PMPB e da ADAPS. Não foram realizados novos chamamentos de profissionais em 2023, tampouco foram regulamentadas as condições e as fontes de custeio da carreira CLT na qual deveriam ingressar os médicos que concluíssem os dois anos do estágio experimental remunerado.
Ainda em março de 2023, ocorreu um conjunto de denúncias que resultou no afastamento da diretoria da ADAPS, investigada por possíveis irregularidades na contratação de profissionais e prestadores de serviço. Em relatório preliminar elaborado por uma comissão do MS, foram apontados indícios de conflito de interesse e de vícios e inconformidades na seleção do corpo técnico-administrativo da agência, com risco de tráfico de influência na definição dos atos finalísticos da ADAPS e falta de transparência da instituição (Brasil, 2023cBRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Deliberativo da ADAPS decide pelo afastamento cautelar da atual diretoria. 24 mar. 2023c. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/canais-de-atendimento/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/2022/conselho-deliberativo-da-adaps-decide-pelo-afastamento-cautelar-da-atual-diretoria. Acesso em: 26 mar. 2023.
https://www.gov.br/saude/pt-br/canais-de...
).
O segundo período desta análise se encerra, assim, com um embate na transição dos programas: inicialmente reduzindo-se de modo progressivo o quantitativo de médicos do PMM na Amazônia enquanto tentava-se ferozmente emplacar o PMPB até 2022; e a partir de 2023 com um cenário invertido pró-PMM após a mudança de governo. No Quadro 2, apresentam-se de forma sintética os principais desafios identificados nas frentes de provimento médico nos últimos anos.
Discussão e considerações finais
As áreas remotas da Amazônia possuem características diferenciadas e amargam mazelas sociopolíticas que tornam ainda mais complexa a missão de ofertar uma APS universal e resolutiva à luz dos pressupostos do SUS. As políticas de provimento médico emergencial poderiam ser acompanhadas, nesse sentido, de mudanças estruturantes de longo prazo nas redes de saúde e condições de vida da população dos MRRs e DSEIs. Por outro lado, para a tomada de decisões de curto prazo, devem ser reconhecidos as dificuldades de fixação profissional nessas localidades e o livre desejo de mudança para os grandes centros, em relação ao que o PMM pós-2018 e o PMPB têm falhado plenamente.
Constata-se, embora sob críticas, que a única alternativa que conseguiu prover médicos na Amazônia rural em número satisfatório e durante períodos superiores a um ano foi o PMM, por meio dos intercambistas cubanos. O modelo vigente, de recrutamento de brasileiros graduados no exterior (mesmo durante a judicialização do Revalida), ou a proposta de ‘carreira médica’ trazida pelo PMPB, não se mostrou atrativo o suficiente para garantir uma cobertura razoável das equipes da região. Nem mesmo a implantação de UBSFs e ESFRs por meio de incentivos federais conseguiu avançar nesse flanco sem a ocupação majoritária de suas vagas pelos intercambistas cubanos.
Apesar do crescimento no total de médicos no Brasil ocorrido na última década, no bojo do PMM, os municípios do interior da Região Norte (12,6 milhões de habitantes) ainda contam com a baixíssima média de 0,54 médico/1.000 hab. Sua população rural fora de regiões metropolitanas, estimada em 5,2 milhões de pessoas, possui uma realidade ainda mais crítica, com razão de 0,25 (quase dez vezes inferior à média nacional de 2,48), o que reforça a importância de se oferecerem respostas imediatas a essas localidades (Scheffer, 2020SCHEFFER, Mário (org.). Demografia médica no Brasil 2020. São Paulo: FMUSP, CFM, 2020. ).
Mesmo diante de todos esses desafios, o PMM sofreu entre 2016 e 2022 ataques constantes e resistiu a dois governos que defenderam abertamente a sua extinção - enfrentou a paralisação dos eixos ‘formação’ e ‘infraestrutura’, teve seu orçamento reduzido, encolheu o aporte da supervisão acadêmica e não renovou contratos de médicos em áreas de grande vulnerabilidade. O PMPB, apesar dos avanços, tem precisado competir com o PMM em recursos, aparato de gestão e reserva de vagas, o que levou o governo anterior a agir forçosamente em diversas localidades para viabilizar a presença do novo programa. Na Amazônia rural, contudo, o resultado se mostrou trágico - à medida que se enfraquecia deliberadamente o PMM, o PMPB não conseguiu ultrapassar a fronteira da retórica ministerial, passando ao largo de vazios assistenciais e decepcionando grande número de usuários e gestores da região.
O relançamento do PMM em 2023, com novos incentivos mas mantendo em grande medida o desenho institucional do programa, pode acabar sofrendo mais uma vez com a baixa procura de médicos nas áreas mais remotas do país. Após a saída dos intercambistas cubanos, as restrições de trabalho aos médicos formados no exterior têm se mostrado como a força motriz mais relevante para a atração de profissionais na Amazônia rural, o que acaba tornando o PMM bastante dependente do formato e da periodicidade de execução do Revalida. Nos últimos anos, por exemplo, maiores taxas de aprovação no exame têm resultado numa saída mais acelerada e volumosa dos médicos da região, mesmo com os benefícios oferecidos pelo programa. Com isso, outras frentes governamentais necessitam ser integradas ao PMM além da simples publicação de mais editais de chamamento de profissionais.
A coexistência do PMM com o PMPB também é apresentada como uma possibilidade a longo prazo, ainda que improvável. A desprecarização de vínculos e a proposta de carreira médica são pautas preciosas, mas a exigência de diploma nacional ou revalidado nos moldes do PMPB tem reduzido a quase zero o número de médicos dispostos a ingressar na Amazônia rural, contrastando em absoluto com o período de auge do PMM. Além disso, o remanejamento compulsório de médicos do PMM vem revelando tendências contraprodutivas na sobreposição dos programas que podem colocar em xeque o atual modelo de provimento misto.
Uma terceira alternativa, formulada anteriormente como o ‘Segundo Ciclo de Formação’ (prevista na medida provisória do PMM), acabou derrotada pela oposição à época e terminou sendo suprimida do texto da lei n. 12.871/2013. A medida, que exigia a realização de um estágio obrigatório de dois anos em setores de maior necessidade do SUS para a conclusão do curso de medicina, ainda se mostra como uma opção factível em médio prazo, mas que precisaria avançar em consensos entre as comunidades políticas e vencer obstáculos inconclusos para sua aprovação - o que seria quase impensável na atual conjuntura política do país.
Seria, portanto, uma nova cooperação Brasil-Cuba a saída para o provimento médico emergencial na APS da Amazônia rural? Embora o PMM tenha alcançado resultados expressivos, o contexto político se mostra bastante distinto do encontrado pelo governo Dilma após o crescimento acelerado no número de médicos no país e o fortalecimento da CP-M Liberal nos governos Temer e Bolsonaro. Nesse sentido, o modelo de governança política dos novos gestores se mostrará determinante na reprodução do status quo e do arranjo institucional vigente; ou na construção de mudanças que enfrentem efetivamente a escassez de médicos na Amazônia, seja em parcerias internacionais nos moldes do PMM, seja em outros arranjos de recrutamento médico.
Por fim, reconhece-se a carência de estudos sobre o PMM na Amazônia, em especial no período após a saída dos médicos cubanos, bem como de dados sobre os desdobramentos iniciais do PMPB, o que dificulta o estabelecimento de conclusões além do debate aqui trazido. Longe de oferecer respostas simples, este artigo se dedica a fomentar a discussão sobre a complexidade das redes de saúde na Amazônia rural com base na observação da trajetória dos dois programas, apontando as principais lacunas e os retrocessos decorrentes de sua implementação. Esperamos que a agenda política dos futuros gestores possa incluir de fato essa temática, ampliando os olhares sobre o provimento médico e as iniquidades em saúde tão marcantes na região.
Referências
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Financiamento
Não se aplica. -
Aspectos éticos
Não se aplica. -
Apresentação prévia
Não se aplica.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Maio 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
29 Set 2022 -
Aceito
10 Abr 2023