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A invisibilidade das pessoas LGBT no acesso à saúde

The invisibility of LGBT people in access to healthcare

La invisibilidad de las personas LGBT en el acceso a la salud

Resumo

Este artigo pretende problematizar a questão da invisibilidade de lésbicas, gays , bissexuais e transexuais (LGBT) e suas consequências no acesso e nas demandas em saúde dessas pessoas, tendo como pressuposto as necessidades e os problemas percebidos no movimento social que compõe os principais grupos que formam o Fórum Diversidade da Grande Florianópolis. Trata-se de uma investigação qualitativa que utilizou observação participante e entrevista. Foram realizadas nove entrevistas com lideranças do movimento LGBT da cidade de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Como resultado, observou-se que as oportunidades de acesso da população ficaram circunscritas por práticas profissionais excludentes e reprodutoras de violências, baseadas em atos de discriminação social. Muitas vezes, a exposição de sexualidades e identidades de gênero não-heteronormativas podiam agravar a vulnerabilidade das pessoas. O Sistema Único de Saúde mostrou-se atravessado por constantes práticas heteronormativas que desconsideravam as vivências das diferentes sexualidades existentes entre as pessoas. Devido a isso, a população LGBT mostrou-se resistente a buscar os serviços de saúde, por considerar esses espaços como lugares em que sofrem preconceito e discriminação.

Palavras-chave
saúde LGBT; acesso à saúde; violência; políticas públicas

Abstract

This article aims to problematize the issue of the invisibility of lesbians, gays, bisexuals, and transsexuals (LGBT) and its consequences on the access and health demands of these people, based on the needs and problems perceived in the social movement that makes up the main groups that form the Diversity Forum of Greater Florianopolis. This is a qualitative investigation that uses participant observation and interviews. Nine interviews were conducted with leaders of the LGBT movement in Florianopolis city, Santa Catarina, Brazil. As a result, it was observed that the population’s access opportunities were circumscribed by exclusionary and violence-producing professional practices based on acts of social discrimination. Often, exposure to non-heteronormative sexualities and gender identities could aggravate people’s vulnerability. The Unified Health System was crossed by constant heteronormative practices that disregarded the experiences of different sexualities among people. Due to this, the LGBT population was resistant to seeking health services, considering these spaces as places where they suffer prejudice and discrimination.

Keywords
LGBT health; access to health; violence; public policies

Resumen

Este artículo pretende problematizar la temática de la invisibilidad de lesbianas, gays , bisexuales y transexuales (LGBT) y sus consecuencias en el acceso y demanda de atención a la salud de estas personas, a partir de las necesidades y problemas percibidos por el movimiento social que integra los principales grupos que componen el Foro de la Diversidad de la Gran Florianópolis. Se trata de una investigación cualitativa que utilizó la observación participante y entrevistas. Se realizaron nueve entrevistas a líderes del movimiento LGBT de la ciudad de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Como resultado, se observó que las oportunidades de acceso de la población estaban circunscritas por prácticas profesionales excluyentes y reproductoras de violencia, basadas en actos de discriminación social. A menudo, la exposición de sexualidades e identidades de género no heteronormativas podía agravar la vulnerabilidad de las personas. El Sistema Único de Salud se mostró traspasado por constantes prácticas heteronormativas que despreciaban las vivencias de las personas con sexualidades diferentes. Como resultado, la población LGBT se resistía a acudir a los servicios de salud por considerar que estos espacios eran lugares donde sufrían prejuicios y discriminación.

Palabras clave
salud LGBT; acceso a la salud; violencia; políticas públicas

Introdução

O presente artigo pretende problematizar a questão da invisibilidade de LGBT (lésbicas, gays , bissexuais e transexuais) e o que isso acarreta ao acesso e às demandas em saúde dessas pessoas, tendo como pressuposto as necessidades e os problemas percebidos no movimento social que compõe os principais grupos que formam o Fórum Diversidade da Grande Florianópolis (FDGF).

A Saúde Coletiva pode ser entendida como a “área de produção de conhecimentos que tem como objeto as práticas e os saberes em saúde, referidos ao coletivo enquanto campo estruturado de relações sociais onde a doença adquire significação” (Fleury, 1985FLEURY, Sônia. As ciências sociais em saúde no Brasil. In: NUNES, Everardo D. (org.). As ciências sociais em saúde na América Latina: tendências e perspectivas. Brasília, DF: Organização Panamericana da Saúde, 1985. p. 87-109. , p. 87). Para Birman ( 1991 BIRMAN, Joel. A Physis da saúde coletiva. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 7-11, 1991. https://doi.org/10.1590/S0103-73312005000000002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/MGJKwBxGS4gZjRMtNMFQ8md/ .
https://doi.org/10.1590/S0103-7331200500...
), o postulado fundamental da Saúde Coletiva admite a saúde como algo mais abrangente e complexo do que a compreensão feita pela Medicina. Uma de suas marcas é a multidisciplinaridade, pois seus temas permitem diferentes análises e a elaboração de diferentes objetos teóricos, sem existir entre eles qualquer sentido valorativo ou de hierarquia.

Dessa forma, a saúde não se restringe ao natural ou biológico, a organização do discurso da Saúde Coletiva faz uso das Ciências Sociais para reescrever o entendimento de saúde, no qual se destacam as dimensões simbólicas, éticas e políticas da sociedade. O corpo não deve ser representado apenas como uma “máquina anatomofuncional”, mas deve ser reconhecido pelo seu caráter simbólico (Birman, 1991 BIRMAN, Joel. A Physis da saúde coletiva. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 7-11, 1991. https://doi.org/10.1590/S0103-73312005000000002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/MGJKwBxGS4gZjRMtNMFQ8md/ .
https://doi.org/10.1590/S0103-7331200500...
, p.12).

Seguindo essa linha de pensamento, recorremos às Ciências Sociais para ter aproximações sobre como as associações LGBT tratam da temática da saúde. Para isso, partiremos da ideia de que os processos sociais de discriminação e de exclusão vividos pelas pessoas LGBT provocam manifestações em muitas dimensões da sua saúde, quadro que se agrava devido à dificuldade de acesso aos serviços de saúde.

No Brasil, a partir da década de 1980, presenciamos um aumento da visibilidade e publicização na luta pelos direitos de lésbicas, gays , bissexuais, travestis e transexuais (LGBT). Aumentaram numericamente os grupos e associações que defendem os direitos das pessoas LGBT no Brasil. A força política desses movimentos vem se mostrando em diferentes momentos e eventos comemorativos, como é o caso da realização das famosas ‘paradas’, que conseguem mobilizar milhões de pessoas e podem ser consideradas uma das maiores manifestações de massa no país (Brasil, 2004aBRASIL. Brasil sem homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2004a. ).

Os grupos LGBT organizados buscam atuar no enfrentamento da histórica situação de discriminação e marginalização ao qual foram colocados pela sociedade brasileira. Além disso, há um notável engajamento no combate a graves problemas de interesse público nas mais diversas áreas da cidadania, como saúde, educação e justiça (Brasil, 2004aBRASIL. Brasil sem homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2004a. ).

Dessa forma, o presente trabalho pretende abrir uma discussão sobre o movimento LGBT e a temática da saúde. Realizado com base em uma análise das atividades do Fórum Diversidade da Grande Florianópolis (FDGF), pretende contribuir e estabelecer o diálogo entre Saúde Coletiva e as demandas em saúde dessa população LGBT na perspectiva dos membros das associações que lutam pelos direitos dessas pessoas em Florianópolis.

O Ministério da Saúde reconhece que a orientação sexual e a identidade de gênero são situações complexas e constituem importantes fatores de vulnerabilidade para a saúde. Esses agravos se devem ao estigma e ao processo discriminatório e de exclusão social decorrentes de práticas sociais específicas da população LGBT (Brasil, 2004aBRASIL. Brasil sem homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2004a. ).

É importante ressaltar que a saúde é entendida com base no Movimento de Reforma Sanitária, que dá base à lei n. 8.080, em seu conceito ampliado. Isso significa dizer que, no Brasil, os níveis de saúde devem se expressar conforme a organização social e econômica do país, sendo influenciada por determinantes e condicionantes, como “a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, [...] a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais” (Brasil, 1990BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 128, n. 182, p. 18.055, 20 set. 1990. , art. 3º).

Nesse sentido, as ações em saúde devem garantir condições de bem-estar amplo às pessoas e à coletividade, respeitando as singularidades e as diversidades, de forma não exclusiva aos heterossexuais, independentemente de este ser o entendimento geralmente aplicado nas práticas dos serviços de saúde. Assim, partindo do conceito ampliado de saúde, torna-se mais acessível compreender como o preconceito contra pessoas LGBT influencia sua exclusão em relação aos direitos de cidadania à saúde.

A esse respeito, a Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que as pessoas LGBT sofrem discriminação nas mais variadas situações cotidianas, no trabalho, nas instituições de ensino, no acesso aos serviços de saúde, nos diversos espaços públicos e privados, tal como em seu meio familiar. Essas pessoas sofrem com a discriminação oficial, quando suas especificidades são desconsideradas ou inviabilizadas nas leis existentes, e com a discriminação não oficial, na forma de estigma social ou de invisibilização de sua singularidade como não-heterossexuais (ONU, 2013ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Nascidos livres e iguais: orientação sexual e identidade de gênero no regime internacional de direitos humanos. Brasília, DF: Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, 2013. ).

Diante desse cenário, as pessoas LGBT se reúnem e criam associações para lutar por seus direitos. Dessa forma, por meio dos movimentos sociais organizados, promove-se o debate sobre diversidade sexual e de gênero, aumentando a visibilidade das pessoas LGBT e evidenciando suas demandas e reivindicações decorrentes de suas particularidades expressas por suas orientações sexuais e identidades de gênero.

Método

Trata-se de uma investigação qualitativa com observação participante e entrevista. A observação participante foi realizada por meio do contato direto do primeiro autor com os movimentos LGBT de Florianópolis, objetivando obter informações a respeito da realidade e do contexto no qual as instituições e pessoas que participavam estão inseridas. As entrevistas semiestruturadas, com lideranças ativas selecionadas durante a observação participante, tiveram por objetivo obter informações sobre demandas da saúde LGBT contidas na fala das(os) entrevistadas(os).

Realizaram-se nove entrevistas com lideranças do movimento LGBT de Florianópolis, por serem informantes-chave sobre o cenário das lutas LGBT na cidade. Usou-se um roteiro semiestruturado para as entrevistas. Antes da coleta de dados, o projeto foi examinado e aprovado por Comitê de Ética e Pesquisa, cujo nome não é citado para garantia do anonimato dos participantes da pesquisa.

O contato com os prováveis participantes da pesquisa deu-se com a observação participante do FDGF, constituído por diversos coletivos, movimentos sociais, instituições, organizações e pessoas comprometidas com as questões LGBT em Florianópolis. Seu objetivo durante o período da pesquisa era promover uma comunicação ampla entre todos esses segmentos, tanto na esfera de poder público quanto no ambiente privado, contando com a participação de 24 entidades.

Segundo Minayo ( 1994MINAYO, Maria C. S. (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1994. , p. 54), para uma pesquisa de campo de sucesso, inicialmente, “[...] devemos buscar uma aproximação com as pessoas da área selecionada para o estudo”. Assim, acompanhou-se o FDGF desde a sua segunda reunião. O Fórum foi estabelecido inicialmente com o intuito de organizar a Parada da Diversidade de Florianópolis, mas posteriormente ampliou-se em busca de consolidação das lutas.

A observação participante foi importante para delinear as perspectivas do movimento LGBT de Florianópolis, das associações e dos participantes, em busca de uma aproximação dos trabalhos desenvolvidos pelas esferas de cada um deles de forma a apreender as características, posições e lideranças que direcionam as ações da sociedade civil de Florianópolis na defesa das pessoas LGBT. Dito de outra forma, nessa etapa, foi feito um mapeamento preliminar das lideranças que poderiam nos informar sobre as questões de saúde.

No caso do movimento LGBT, a cidade de Florianópolis tem especificidades absolutamente interessantes que a tornam um caso especial a ser estudado, entre elas, o senso comum midiático que veicula o conceito de a ‘capital gay ’ do Brasil. Outra é o fato de ser a capital brasileira com a maior concentração de casais de mesmo sexo que declararam viver uma união consensual em um mesmo domicílio, conforme o Censo Demográfico de 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2010INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo demográfico 2010: famílias e domicílios: resultados da amostra. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. ).

Gregori ( 1993GREGORI, Maria F. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. São Paulo: Paz e Terra; ANPOCS, 1993. ) alerta para a necessidade de que o estudo com movimentos sociais LGBT e feministas sejam feitos por meio da observação participante, pois isso implica a militância do pesquisador, necessária para conhecer a associação pesquisada. Nesse sentido, a autora afirma que nos movimentos LGBT existe uma tendência a criticar e desconfiar de tudo aquilo que fuja da vivência que é partilhada com o grupo, sendo vistos como suspeitos a academia, os partidos políticos, os profissionais e os meios de comunicação de massa.

A coleta de dados envolveu participantes, todos maiores de idade, com média de 35 anos, em um universo de indivíduos que se autodefiniram como lésbicas, gays , bissexuais e transexuais. Além disso, foi uma preocupação garantir o anonimato das(os) entrevistadas(os). Por esta razão, evita-se a exposição de elementos de identificação individual (idade, sexo, cor, escolaridade, profissão, orientação sexual, identidade de gênero, associação de que participa, entre outros), da mesma forma que foram suprimidas partes das entrevistas que poderiam permitir a sua identificação e a de outras pessoas e instituições citadas.

É importante ressaltar que durante a observação no campo notou-se que várias das organizações listadas como participantes do FDGF não compareciam às reuniões. Muitos dos grupos participantes não se engajavam em iniciativas visíveis no contexto do movimento LGBT na Grande Florianópolis. Por conseguinte, optou-se por entrevistar apenas os membros das associações que estavam presentes nos eventos do Fórum.

Saúde, SUS e a população LGBT

Neste trabalho, tomou-se a questão da invisibilidade das identidades LGBT como o ponto de partida para abordar a dinâmica do movimento LGBT em Florianópolis e suas demandas em saúde. Isso se deveu à importância que esse tema suscitou em discussões sobre questões da população LGBT, e também por ser o primeiro ponto de debate observado no movimento. Além disso, essa questão teve uma grande recorrência em todos os espaços do movimento.

Desde logo, para melhor compreensão da invisibilidade LGBT, parece-nos recomendável deslindar acerca do corpo, entendendo que este não deve ser tomado pelo campo fechado do biológico em um sistema de fronteiras finitas entre a anatomia e a fisiologia, mas como um corpo que existe, como diz Butler ( 2015BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. , p. 85), em um tempo e espaço que não cabe a ele controlar, e que “não apenas existe no vetor dessas relações, mas também é o próprio vetor”. Nesse sentido, a autora afirma que o corpo é onde se encontram as variadas perspectivas, nossas ou não, de como sou apreendido e mantido, dependendo das redes sociais e políticas de como a pessoa é considerada e tratada e de como isso possibilita a vida ser vivível ou não (Butler, 2015BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. ).

Quando a autora menciona a expressão “vida vivível”, ela argumenta que algumas vidas – não todas – são consideradas “vidas humanas que são dignas de proteção, amparo, subsistência e luto” (Butler, 2015BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. , p. 85). Retornando ao contexto deste estudo, surgem reflexões pertinentes: será que a sociedade percebe a vida de todas as lésbicas, gays , bissexuais, transexuais e travestis como vidas ‘vivíveis’? Será que esses corpos são considerados dignos de cuidados com a saúde?

Ao falarmos sobre a invisibilidade das identidades LGBT, estamos nos referindo a um público que tem suas demandas ocultadas, encobertas e ignoradas. Isso pode ser percebido, por exemplo, no relato de ausência de atendimentos de saúde que contenham uma atenção específica a essa população LGBT e ainda na dificuldade que essas pessoas encontram para acessar o serviço de saúde.

Eu acho que, prioritariamente, ter o atendimento. O atendimento de um modo geral como de qualquer outra pessoa. A pessoa chegar na unidade de saúde e ser atendida. Isso é o básico. Depois eu percebo que há uma demanda específica.

Nessa lógica, o debate sobre a criação de políticas de saúde para grupos específicos no país gera discussões pertinentes, pois, aparentemente, contraria a definição do primeiro princípio do SUS estabelecido na lei n. 8.080/1990, o da universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência (Lionço, 2008 LIONÇO, Tatiana. Que direito à saúde para a população GLBT?: considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 11-21, jun. 2008. https://doi.org/10.1590/S0104-12902008000200003 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/NdCpsvRwnJVYHZhSwRNhnfs/?lang=pt . Acesso em: 1 jun. 2024.
https://doi.org/10.1590/S0104-1290200800...
).

Tal princípio remete à concepção de que “todos têm o mesmo direito de obter ações e serviços de que necessitam, independentemente de complexidade, custo e natureza dos serviços envolvidos”, da mesma forma que “as condições socioeconômicas e a inserção no mercado de trabalho não devem implicar em acesso diferenciado” (Noronha, Lima e Machado, 2008NORONHA, José C.; LIMA, Luciana D.; MACHADO, Cristiani V. O Sistema Único de Saúde: SUS. In: GIOVANELLA, Lígia et al. (org.). Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008. p. 365-393. , p. 435).

Além disso, parece contrariar o artigo 196 da Constituição Federal, no qual “a saúde é direito de todos e dever do Estado [...]”, sendo garantido o “[...] acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Brasil, 1988 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 1 jun. 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
, art. 196).

De fato, segundo o arcabouço legal do Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil, 2011BRASIL. Decreto n. 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 28 jun. 2011. ), toda pessoa LGBT possui o direito à saúde. Até este ponto, tudo parece estar em ordem. Contudo, surge uma questão: será que toda pessoa LGBT realmente tem acesso à saúde? Nesse momento, podemos argumentar que as condições de existência dessas pessoas LGBT, marcadas pelo preconceito e pela discriminação, frequentemente impedem o acesso ao SUS, apesar de este ser teoricamente de acesso universal.

Muitas vezes, existe uma divergência nas questões referentes aos princípios de igualdade e equidade que necessita de um debate acerca da universalização e da focalização. A universalização garante que todos tenham acesso a determinados serviços públicos de saúde. Entretanto, alguns grupos que estão em “desvantagem”, como as minorias políticas, necessitam ser “indivíduos-alvo” de políticas focalizadas. Esses grupos possuem necessidades não satisfeitas e necessitam de complementação para superar as limitações que possam assegurar uma “vida normal” (Medeiros, 1999MEDEIROS, Marcelo. Princípios de justiça na alocação de recursos em saúde. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 1999. , p. 6).

No que tange às questões LGBT, suas necessidades diferenciadas de políticas públicas de saúde são reconhecidas principalmente por meio da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays , Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSILGBT), implantada pela portaria n. 2.836, de 1º de dezembro de 2011 (Brasil, 2013aBRASIL. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013a. ). Sua formulação seguiu as diretrizes colocadas no Programa Brasil Sem Homofobia que compunha o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) (Brasil, 2010BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Brasília, DF: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2010. ).

O texto da PNSILGBT localiza seu embasamento jurídico conforme os princípios assegurados na Constituição Federal de 1988, que garantem a cidadania e a dignidade da pessoa humana, reforçados no objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Brasil, 1988 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 1 jun. 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
, art. 3º, inc. IV).

Mostra-se como uma iniciativa para maior equidade no SUS, tendo como marco o entendimento das discriminações e exclusões no processo saúde-doença da população LGBT. A PNSILGBT reafirmou os princípios doutrinários da universalidade, da integralidade e da participação popular do SUS como intento para a fundamentação de seu objetivo geral (Brasil, 2013aBRASIL. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013a. ).

Seus objetivos específicos se configuram por ações e programas que constituem medidas concretas a serem tomadas em todas as esferas de gestão do SUS. Entre elas, a instituição de mecanismos de gestão para a atenção e resolução das demandas e necessidades em saúde da população LGBT, a ampliação do acesso e a qualificação da rede do SUS para atenção e cuidado integral à saúde da população LGBT (Brasil, 2013aBRASIL. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013a. ).

É de particular interesse para o presente artigo destacar a diretriz de número IX da PNSILGBT, que reforça a necessidade de fortalecer a representação do movimento social organizado da população LGBT nos Conselhos de Saúde e em outras instâncias de participação popular.

Outro aspecto importante que vale marcar é a própria Política como resultado de um amplo processo democrático e participativo. A conquista de representação no Conselho Nacional de Saúde (CNS) pelo segmento LGBT, em 2006, colocou questões dessa temática em pauta e as suas repercussões na saúde. Na 13ª Conferência Nacional de Saúde, em 2007, a orientação sexual e a identidade de gênero foram captadas como determinantes sociais da saúde.

Ainda assim, a invisibilidade das pessoas LGBT fez com que as suas especificidades nas demandas em saúde fossem desprezadas pelos profissionais. Em vários momentos da pesquisa de campo, esse assunto entrou em pauta, além de aparecer em diversas falas das(os) ativistas entrevistadas(os).

Hoje essa população não é tão invisível. Agora o que falta é justamente não só as pessoas nos reconhecerem como tal, mas verem que nós temos demandas específicas e que essas demandas elas [ sic ] fazem parte das obrigações do Estado [...].

É relevante ressaltar que, em diversas situações, os entrevistados reconhecem que houve melhorias na visibilidade das pessoas LGBT nos últimos tempos, porém também concordam que ainda há progresso a ser feito.

Faz muito tempo que os trans e as trans, principalmente as trans, estão saindo de dia, digamos assim. Estão circulando de dia, estão indo nos lugares que devem ir, não estão apenas indo na emergência de madrugada no hospital.

No entanto, é pertinente salientar que a melhoria na visibilidade não foi acompanhada pela implementação de políticas públicas que garantam verdadeiramente os direitos dessa população.

Só que essa visibilidade e esse reconhecimento hoje nós temos que garantir [em] leis que nos protejam e nos amparem para que tenhamos esses mecanismos que façam valer a visibilidade conquistada.

No âmbito da saúde, essa invisibilidade se manifesta na dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Com base nas entrevistas realizadas com membros do movimento LGBT e na observação efetuada, constatou-se que o acesso à saúde pela população LGBT é identificado como a principal demanda, ou seja, os indivíduos LGBT frequentemente relatam que o acesso aos serviços de saúde é negado em muitas ocasiões.

A pessoa chegar na unidade de saúde e ser atendida. Isso é o básico. Primeiramente a questão do acesso, a questão dos encaminhamentos em relação às suas especificidades.

É importante destacar que essa negação de acesso, muitas vezes, não ocorre de forma direta, ou seja, nem sempre os profissionais de saúde se recusam a atender as pessoas LGBT. No entanto, nos serviços de saúde, há certas dificuldades, obstáculos e entraves que são utilizados para impedir o acesso dessas pessoas.

E negar acesso não é dizer não, ‘não vou atender’. Negar acesso é criar obstáculos ou ainda negar a elas o direito ao nome social, negar a elas entender sobre o que afinal estamos falando, de uma violência gerada por machismo, sexismo, racismo.

Durante as entrevistas, foram frequentes os relatos de indivíduos que enfrentaram negativas de acesso aos serviços de saúde. O preconceito emergiu como o principal obstáculo enfrentado por essa população. Ademais, diversos relatos descreveram experiências de atendimento desrespeitoso e abusivo. No que diz respeito ao atendimento de saúde para pessoas trans, os relatos se configuram da seguinte maneira:

O acesso para elas da mesma forma que o posto de saúde é aterrorizante. Então, a possibilidade de ir em um posto de saúde e tirar uma senha, fazer um cadastro para ser atendido era situação de pânico e ainda é para a maioria.

O decreto n. 7.508, de 28 de junho de 2011 (Brasil, 2011BRASIL. Decreto n. 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 28 jun. 2011. ), dispõe que o acesso universal, igualitário e ordenado às ações e serviços de saúde deve se iniciar pelas portas de entrada do SUS, sendo elas: atenção primária, urgência e emergência, atenção psicossocial e especiais de acesso aberto. Entretanto, entre as quatro portas de entrada do SUS, a atenção primária deveria se configurar como o principal ordenador do acesso.

Portanto, um aspecto encontrado na pesquisa a ser enfatizado é que a atenção primária não se configura como a porta de entrada inicial dos serviços de saúde para a população LGBT. Relatou-se que a maioria só consegue acesso pelos serviços de atenção de urgência e emergência.

Mas muitas vezes o que as meninas e os meninos preferem? Ficar mal e ter que ir pra uma emergência, porque lá você é atendido. Quem está lá é obrigado a atender. Não importa quem você é.

Nesse sentido, Jesus e Assis ( 2010 JESUS, Washington L. A.; ASSIS, Marluce M. A. Revisão sistemática sobre o conceito de acesso nos serviços de saúde: contribuições do planejamento. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 161-170, jan. 2010. https://doi.org/10.1590/S1413-81232010000100022 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/NCd8MxwvT6MrXDdHtMCrpks/?lang=pt . Acesso em: 1 jun. 2024.
https://doi.org/10.1590/S1413-8123201000...
) alertam que a efetivação de um acesso equitativo é um desafio para o sistema de saúde, pois processos sociais de exclusão geram diferentes demandas que, muitas vezes, não são percebidas pelo poder público ou, quando são, os gestores não possuem um acúmulo reflexivo capaz de formular políticas adequadas.

Um estudo realizado por Crenitte et al. ( 2022 CRENITTE, Milton R. F. et al. Transforming the invisible into the visible: disparities in the access to health in LGBT+ older people. Clinics, São Paulo, v. 78, p. 100-149, 2022. https://doi.org/10.1016/j.clinsp.2022.100149 . Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1807593222033506?via%3Dihub . Acesso em: 1 jun. 2024.
https://doi.org/10.1016/j.clinsp.2022.10...
) evidenciou que o número de testes preventivos realizados e as experiências com os serviços de saúde foram piores no grupo LGBT do que nos seus pares não-LGBT. Esses resultados apontam para as dificuldades e as barreiras de acesso aos cuidados de saúde enfrentadas por essa população.

Os autores sugerem que as políticas públicas devem ser construídas para reduzir essas vulnerabilidades e para garantir a inclusão das pessoas LGBT. Apenas assim essa população pode ter acesso a uma vida mais saudável e um envelhecimento melhor, superando as desigualdades e a invisibilidade que enfrentam ao longo da vida (Crenitte et al., 2022 CRENITTE, Milton R. F. et al. Transforming the invisible into the visible: disparities in the access to health in LGBT+ older people. Clinics, São Paulo, v. 78, p. 100-149, 2022. https://doi.org/10.1016/j.clinsp.2022.100149 . Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1807593222033506?via%3Dihub . Acesso em: 1 jun. 2024.
https://doi.org/10.1016/j.clinsp.2022.10...
).

Os(as)entrevistados(as) descreveram vários episódios de tratamento inadequado. Um relato envolve uma mulher transexual que estava sofrendo com dores nos testículos. Durante uma consulta em que precisou se despir, o médico que a atendia chamou várias pessoas para observá-la nua. Segundo o relato, ela foi examinada pelo médico enquanto outros funcionários do local observavam por curiosidade. É importante ressaltar que esse incidente, de acordo com a fonte do relato, não ocorreu em um hospital universitário.

Com base nos depoimentos, o atendimento recebido pela população LGBT nos serviços de saúde pode ser considerado violento pelas(os) entrevistadas(os), de tal forma que o tratamento recebido é motivo de desistência em buscar ajuda nos serviços de saúde.

O sujeito não é visto em sua integralidade. Se tiver outras questões em nível de integralidade, isso não é muito bem elaborado. Isso é frustrante. Quando a gente sabe que a pessoa passa pela unidade básica de saúde, que normalmente é a porta de entrada do SUS, essa pessoa passa, não é devidamente atendida e não busca de novo por receio de ser mal atendida, negligenciada, desprezada.

São diversos os motivos que levam as pessoas LGBT a desistirem de buscar ajuda nos serviços públicos de saúde.

[...] chegando lá precisando do atendimento, em busca do atendimento, desistiu por não ser chamada pelo nome social, ou desistiu porque enquanto estava na sala de espera foi ao banheiro e foi proibida de usar o banheiro conforme seu gênero, e isso fez com que desistisse de seu tratamento [...]. Isso já é marcador de violência inicial, já na recepção.

Esse trecho ilustra um problema frequentemente citado no movimento em relação ao atendimento que as pessoas LGBT recebem nos serviços de saúde. É interessante observar que, ao discutir o preconceito dentro desses espaços, não se limita apenas aos profissionais que atuam na ponta do serviço, como médicos, dentistas e enfermeiros.

Relatos indicam que o preconceito começa antes mesmo desse contato. Inicia-se com a recusa por parte dos funcionários da recepção em chamar uma pessoa trans pelo seu nome social, por exemplo. Além disso, são mencionadas situações de piadas, brincadeiras ou ofensas proferidas por trabalhadores da saúde contra as pessoas LGBT. Esses episódios frequentemente levam aqueles que buscam atendimento a desistir de procurar ajuda, impedindo-os de alcançar os profissionais que atuam diretamente na assistência.

As pessoas responsáveis pela limpeza, segurança, às vezes a discriminação vem da porta de entrada... Quando você vai com médicos, enfermeiros, técnicos eles dizem, mas essas pessoas não chegam aqui. Não vão chegar. Começou antes a questão.

Dessa forma, pode-se considerar a existência de uma violência institucional dentro dos serviços públicos de saúde.

[...] a violência institucional é muito presente, seja a piadinha na porta até o médico que olhar com olhar estranho e faz perguntas, enfim, indevidas. Os abusos e como são tratados.

Quando questionados sobre o motivo pelo qual os trabalhadores da saúde não atendem adequadamente as pessoas LGBT, os entrevistados entendem que há uma questão de natureza pessoal envolvida nisso.

Se a pessoa que gerencia aquela unidade de saúde é preconceituosa, conservadora, ao menos que o chefe incida – ou você faz ou você vai ser exonerada e volta pra casa, ou você vai ser transferido –, ele vai continuar fazendo.

A análise dos dados recolhidos na pesquisa mostrou uma marcada invisibilidade da população LGBT nos serviços de saúde de Florianópolis. Tal invisibilidade faz com que o acesso dessa população aos serviços seja, muitas vezes, dificultado. Entretanto, mesmo quando se consegue o atendimento, relatou-se constantemente que existe uma incapacidade dos profissionais de saúde de lidarem com as diferentes demandas das pessoas LGBT.

[...] que foi no SUS e lá as pessoas pediram pra que fosse numa clínica maior, mais antiga, porque ali eles não sabiam como fazer um exame em uma mulher lésbica.

Os profissionais de saúde frequentemente usam como desculpa para não atender adequadamente às pessoas LGBT o argumento de que não sabem como lidar com essa população. Durante as entrevistas, citaram-se diversos casos nos quais associações promoveram cursos de capacitação para os trabalhadores da saúde. No entanto, também se observou que havia pouco interesse por parte de muitos profissionais em participar desses eventos.

[...] não que eu ache que todo profissional tem que ser expert em trans, não é essa a questão. [...] com capacitação, só que o que a gente percebeu é que não vale apenas capacitar. Infelizmente quando a gente fala das questões LGBT parece que nós falamos de questões ideológicas: do que eu acredito, do que eu acho, do que eu acho que o outro sente, eu aceito ou não aceito. Ai, eu aceito o casamento LGBT...

A existência de uma sexualidade heterossexual compulsória foi identificada como um problema significativo no contexto do atendimento às pessoas LGBT. Este fenômeno, baseado na crença de que a heterossexualidade é a única orientação sexual válida e normativa, influencia diretamente as interações entre profissionais de saúde e pacientes LGBT.

Nesse contexto, é relevante proceder a uma análise do conceito de heteronormatividade. De acordo com Foster ( [s.d.] FOSTER, David W. Consideraciones sobre el estudio de la heteronormatividade en la literatura latinoamericana. Letras: Literatura e Autoritarismo, Santa Maria, n. 22, p. 49-53, jan./jun. 2001. https://doi.org/10.5902/2176148511823 . Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11823/7251 . Acesso em: 24 jun. 2024.
https://doi.org/10.5902/2176148511823...
), a heteronormatividade refere-se à reprodução das práticas e códigos heterossexuais. Além de ser uma norma heterossexual, Pelúcio ( 2011 PELÚCIO, Larissa. Marcadores sociais da diferença nas experiências travestis de enfrentamento à Aids. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 76-85, mar. 2011. https://doi.org/10.1590/S0104-12902011000100010 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/7DLHvcVH93dQpHGkMKbykhC/?lang=pt# . Acesso em: 1 jun. 2024.
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201100...
) destaca que a heteronormatividade também abrange as instituições e estruturas que hierarquizam os tipos de sexualidade, posicionando a heterossexualidade como padrão superior, conferindo-lhe privilégios em diversos discursos, incluindo o médico, e sendo percebida como natural e moralmente correta.

A gente já parte de uma heterossexualidade presumida. Então, quando vai no médico [...] ele já te trata como heterossexual. Então, uma mulher que não tem relação com homem vai ser tratada como?

As entrevistadas apontam que as demandas específicas da população LGBT também surgem devido à diversidade nas práticas sexuais realizadas por essas pessoas, exigindo cuidados diferenciados para cada segmento desse grupo.

Primeiramente temos que pensar que a população LGBT é uma população muito ampla e diversificada e que as demandas são muitas e de todas as áreas [...] a gente tem as especificidades por causa da maneira que a gente tem a prática sexual e que têm seus cuidados. Não por ser LGBT como um todo, mas separar, como a gente fala, pela sopa de letrinhas, separar para poder entender cada caso, cada indivíduo, em termos da sua sexualidade [...].

Exemplos dessa diferença de atendimento podem ser notados na seguinte frase de uma das entrevistadas:

Já as mulheres têm um grande problema, no incentivo das mulheres lésbicas, de fazer os exames ginecológicos. Assim como da população trans que tem problemas para encontrar proctologista.

No caso das pessoas transexuais, as demandas mais citadas pelas entrevistadas referiram-se ao uso do nome social, à necessidade de respeito à sua identidade de gênero, ao acesso a hormônios e às consequências do uso de silicone industrial e hidrogel.

No que tange à população de travestis e transexuais, é justamente a questão do atendimento, de entenderem elas [ sic ] com necessidades de mulheres. Então, a questão do nome social, dos hormônios, a questão das cirurgias que são necessárias para que elas adequem o corpo.

Além da PNSILGBT, no que se refere à saúde da população LGBT, é preciso acrescentar outras ações que contemplem questões relacionadas às suas demandas. Uma das mais importantes de se aludir é a portaria n. 1.820, de 13 de agosto de 2009, que dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde. Em seu artigo 4º, ela assegura ao cidadão o atendimento acolhedor e livre de discriminação, constando como seu direito o atendimento acolhedor na rede de serviços de forma humanizada e livre de qualquer restrição e negação baseada em discriminação por idade, raça, cor, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, entre outros (Brasil, 2009aBRASIL. Portaria n. 1.820, de 13 de agosto de 2009. Dispõe sobre direitos e deveres dos usuários da saúde. Diário Oficial da União: seção 1, 14 ago. 2009a. ). Ainda estabelece como direito o registro do nome pelo qual o usuário quer ser chamado, independentemente do registro civil, ou seja, assegura o nome social (Brasil, 2009aBRASIL. Portaria n. 1.820, de 13 de agosto de 2009. Dispõe sobre direitos e deveres dos usuários da saúde. Diário Oficial da União: seção 1, 14 ago. 2009a. ).

Seria de especial interesse realizar uma análise sobre as pessoas que desejam ser reconhecidas como trans, mas que optam por não se submeter a cirurgias para alterar características físicas de seus corpos. Tais pessoas enfrentam dificuldades para realizar a modificação dos caracteres secundários por meio da hormonioterapia, uma vez que os serviços de saúde condicionam esse tratamento àqueles que possam comprovar o desejo de realizar a intervenção cirúrgica. Isso resulta na exclusão de outras pessoas que não têm acesso aos mesmos serviços e tecnologias que possibilitariam a alteração das características secundárias de seus corpos (Lionço, 2009 LIONÇO, Tatiana. Atenção integral à saúde e diversidade sexual no Processo Transexualizador do SUS: avanços, impasses, desafios. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 43-63, 2009. https://doi.org/10.1590/S0103-73312009000100004 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/pxSyLfDd8pZzdQ6tknGbWnx/?lang=pt . Acesso em: 1 jun. 2024.
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).

A portaria n. 2.803, de 19 de novembro de 2013, redefine e amplia o Processo Transexualizador no SUS (Brasil, 2013bBRASIL. Portaria n. 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 225, 20 nov. 2013b. ). Essa norma resultou de várias reivindicações dos movimentos sociais LGBT, principalmente das pessoas transexuais e travestis, e deveria garantir o processo transexualizador nas modalidades ambulatorial e hospitalar. Por ela se assegura a hormonioterapia no processo transexualizador mesmo que a pessoa não deseje fazer a cirurgia de redesignação sexual, sendo a Atenção Básica a porta de entrada para o processo transexualizador no SUS.

Para as lésbicas, as principais demandas apontadas pelos membros do movimento foi para que os ginecologistas saibam atender corretamente e que solicitem exames específicos. A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) (Brasil, 2004bBRASIL. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: princípios e diretrizes. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2004b. (Série C. Projetos, Programas e Relatórios). ), em uma de suas diretrizes, determina que devem ser resguardadas as especificidades de diferentes grupos populacionais de mulheres, incluindo as de orientação homossexual. O mesmo documento aponta que os serviços de saúde devem ter profissionais habilitados que saibam atender as mulheres lésbicas dentro de suas especificidades, pois parte da clientela pode ser formada por mulheres que fazem sexo com mulheres.

Entre as preocupações que os profissionais da saúde deveriam ter em relação às lésbicas está a compreensão de que pode haver mulheres que nunca tiveram relações sexuais com homens ou que nunca se envolveram em atividades sexuais com penetração. Da mesma forma, nas entrevistas apareceu relato de despreocupação por parte dos médicos em relação à transmissão de doenças sexualmente transmissíveis em lésbicas. Ou seja, os profissionais não entendem que lésbicas podem estar no grupo com comportamento de risco.

[...] porque nem todas as lésbicas têm relação sexual com penetração. Nós temos profissionais na área de ginecologia que não sabem como atender uma mulher madura, mulher com mais de trinta, por exemplo, para fazer um Papanicolau, para fazer um exame de toque, porque quando fez faculdade ninguém falou que poderia haver mulheres que nunca tiveram um relacionamento com penetração.

Os dados disponíveis para o Brasil são muito escassos em relação à saúde e homossexualidade feminina, de tal forma que pouco se conhece sobre as demandas e riscos específicos para essas mulheres, pois os estudos se concentram em mulheres brancas e com maior escolaridade (Barbosa e Koyama, 2008 BARBOSA, Regina M.; KOYAMA, Mitti A. H. Comportamento e práticas sexuais de homens e mulheres, Brasil 1998 e 2005. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 42, p. 21-33, jun. 2008. Suplemento 1. https://doi.org/10.1590/S0034-89102008000800005 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/rsp/a/6WPxqggPKM6ZjrFvY63Tx9r/?lang=pt . Acesso em: 1 jun. 2024.
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).

A Rede Feminista de Saúde alerta para a existência de alguns fatores de risco e demandas específicas relacionadas ao câncer de mama e de colo de útero em mulheres lésbicas (Facchini e Barbosa, 2006FACCHINI, Regina; BARBOSA, Regina M. Saúde das mulheres lésbicas: promoção da equidade e da integralidade. Belo Horizonte: Rede Feminista de Saúde, 2006. ). No caso do câncer de mama, os fatores de risco incluem maior consumo de álcool, sobrepeso, nuliparidade (nunca ter engravidado) e baixa frequência de exames preventivos. Quanto ao câncer de colo de útero, sua detecção é mais comum em mulheres homossexuais, independentemente da presença de relações sexuais com homens, sugerindo transmissão durante relações sexuais entre mulheres.

Ademais, observa-se uma menor frequência de exames de Papanicolau, especialmente entre mulheres exclusivamente homossexuais. Isso sugere que os profissionais solicitam menos exames para mulheres lésbicas ou que estas nem sempre procuram os cuidados necessários. Os motivos para essa procura menor por serviços de saúde estão relacionados à existência de discriminação, ao despreparo dos profissionais para lidar com as especificidades desse grupo populacional, às dificuldades enfrentadas pelas mulheres ao assumirem a sua homossexualidade ou bissexualidade e à negação do risco (Facchini e Barbosa, 2006FACCHINI, Regina; BARBOSA, Regina M. Saúde das mulheres lésbicas: promoção da equidade e da integralidade. Belo Horizonte: Rede Feminista de Saúde, 2006. ).

Um estudo realizado por Araújo et al. ( 2006 ARAÚJO, Maria A. L. et al. Relação usuária-profissional de saúde: experiência de uma mulher homossexual em uma unidade de saúde de referência de Fortaleza. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 323-327, ago. 2006. https://doi.org/10.1590/S1414-81452006000200022 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/ean/a/wMjBQCZ6m97V63Q5Vc3HLTG/?lang=pt . Acesso em: 1 jun. 2024.
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) descreve a experiência vivenciada por uma mulher homossexual atendida em uma unidade básica de saúde (UBS) de Fortaleza, no Ceará, e mostra a fragilidade que existe nas relações interpessoais entre mulheres e os profissionais de saúde, relatando dificuldades de comunicação e não atenção às questões relacionadas à sexualidade. O estudo mostrou que profissionais da saúde tendem a não questionar sobre a sexualidade das mulheres. Dessa forma, o atendimento se dá pela visão que o profissional possui sobre a saúde da mulher, sendo um atendimento fictício, descontextualizado e não personalizado.

Encontrou-se resultado semelhante em outro estudo realizado por Valadão e Gomes ( 2011 VALADÃO, Rita C.; GOMES, Romeu. A homossexualidade feminina no campo da saúde: da invisibilidade à violência. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, p. 1.451-1.467, dez. 2011. https://doi.org/10.1590/S0103-73312011000400015 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/6JStvdySYqWv9mPddGSwNRr/?lang=pt . Acesso em: 1 jun. 2024.
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), e mostra que mulheres lésbicas e bissexuais não são apoiadas pelos profissionais da saúde a verbalizar suas orientações sexuais quando buscam assistência à saúde. Segundo os mesmos autores, essa situação impede um atendimento seguro e produz exclusões.

Nesse ponto, Facchini e Barbosa ( 2006FACCHINI, Regina; BARBOSA, Regina M. Saúde das mulheres lésbicas: promoção da equidade e da integralidade. Belo Horizonte: Rede Feminista de Saúde, 2006. ) ressaltam que, entre mulheres de camadas mais populares, as que nunca tiveram sexo com homens ou que possuem uma aparência mais masculinizada encontram maiores dificuldades para acessar os serviços ginecológicos quando comparada com as demais que pertencem à mesma classe socioeconômica.

No que diz respeito aos homens gays , as questões mais discutidas referem-se à necessidade de um atendimento diferenciado de acordo com a prática sexual. A partir do surgimento da epidemia de Aids na década de 1980, amplamente associada à imagem dos homens gays , houve uma disseminação de ideias negativas e preconceituosas em relação a eles (Valle, 2002 VALLE, Carlos G. Identidades, doença e organização social: um estudo das “Pessoas vivendo com HIV e AIDS”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 8, n. 17, p. 179-210, jun. 2002. https://doi.org/10.1590/S0104-71832002000100010 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/HFxjkCBBsCnvHdN8Nfk7ncS/?lang=pt . Acesso em: 1 jun. 2024.
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).

Em 2007, o Ministério da Saúde publicou o Plano Nacional de Enfrentamento da Epidemia de Aids e das DST entre Gays , HSH e Travestis (Brasil, 2007BRASIL. Plano Nacional de Enfrentamento da Epidemia de Aids e das DST entre Gays, HSH e Travestis. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2007. ). Além de estabelecer objetivos, metas e atividades para combater essas infecções, o plano destaca o preconceito e o estigma como agravantes que contribuem para a invisibilidade e a clandestinidade desses grupos.

A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH) (Brasil, 2009bBRASIL. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: princípios e diretrizes. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2009b. ) possui como um de seus objetivos específicos promover a atenção integral à saúde dos homens nas populações de gays , bissexuais, travestis e transexuais. O enfoque em gênero, orientação sexual e identidade de gênero deve ser incorporado, por meio da educação, às informações sobre medidas preventivas contra agravos e enfermidades que afetam a população masculina.

Ao analisar o PNAISH e o PNAISM, destaca-se como as questões de identidade de gênero e orientação sexual, embora presentes, ainda recebem uma atenção limitada dentro dessas políticas. É pertinente questionar como a questão da saúde das mulheres trans e travestis é abordada apenas nas considerações da PNAISH, negligenciando-as como mulheres.

O preconceito sexual internalizado pelos homossexuais provocado pela aceitação das atitudes negativas veiculadas na sociedade pela homossexualidade resulta em sentimentos negativos sobre si mesmos. Os indivíduos estigmatizados sofrem ameaças diretas e indiretas à sua autoestima. A internalização dos estereótipos de que homossexuais são inferiores aos heterossexuais os torna incapazes de alcançar os objetivos que contradizem o preconceito (Nunan, 2003NUNAN, Adriana. Homossexualidade: do preconceito aos padrões de consumo. Rio de Janeiro: Caravansarai, 2003. ).

Existem evidências de que os profissionais da saúde, de maneira geral, possuem limitações para lidar com a necessidade de saúde da população LGBT, seja no tratamento pessoal a ser dado ou no respeito às suas individualidades, seja no entendimento de seus modos de vida ou no cuidado a agravos de sua saúde. Observa-se, ainda, um embaraço para entender a multiplicidade de demandas específicas relacionadas à identidade de gênero e às práticas sexuais existentes nessa população, impedindo, dessa forma, um atendimento que possa ser eficaz e eficiente.

É importante ressaltar que os serviços de saúde devem ser locais estratégicos para o acolhimento da população LGBT, e as equipes de saúde devem realizar um atendimento humanizado considerando os marcadores de gênero, raça e cor, etnia e orientação sexual (Pinto et al., 2020 PINTO, Isabella V. et al. Perfil das notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 23, 2020. Suplemento 1. https://doi.org/10.1590/1980-549720200006 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbepid/a/YV7VvNY5WYLwx4636Hq9Z5r/abstract/?lang=pt# . Acesso em: 1 jun. 2024.
https://doi.org/10.1590/1980-54972020000...
). Para Albuquerque et al. ( 2016 ALBUQUERQUE, Grayce A. et al. Access to health services by lesbian, gay, bisexual, and transgender persons: systematic literature review. BMC International Health and Human Rights, v. 16, jan. 2016. https://doi.org/10.1186/s12914-015-0072-9 . Disponível em: https://bmcinthealthhumrights.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12914-015-0072-9 . Acesso em: 1 jun. 2024.
https://doi.org/10.1186/s12914-015-0072-...
), é necessário garantir que existam profissionais formados e desprovidos de atitudes discriminatórias mediante medidas importantes como: introdução desse tema nos currículos de graduação dos profissionais de saúde; realização de treinamentos com profissionais já atuantes; monitoramento da implementação de leis que abordam a homofobia social; e desenvolvimento de estratégias de empoderamento da população LGBT, para que seja possível atuar na busca incessante de seus direitos, tornando-se visíveis como sujeitos de sua própria história.

O despreparo dos profissionais de saúde deve ser analisado considerando a invisibilidade histórica imposta pela sociedade heteronormativa às pessoas LGBT. A exclusão social assume uma dimensão de negação, na qual aqueles que não se encaixam no padrão heterossexual binário são apagados e ignorados. Essa formação inadequada não é neutra, nem apenas resultado de displicência por parte das instituições formadoras e dos profissionais da educação. Tal despreparo é politicamente orientado para manter a ordem repressora existente pelo poder, pela influência econômica, pela supressão da voz dos oprimidos, pela questão de gênero ou pela orientação sexual.

Considerações finais

O presente artigo abordou as condições de acesso e atendimento aos serviços de saúde pelas pessoas LGBT com base na análise de entrevistas realizadas com integrantes do movimento social LGBT na cidade de Florianópolis, em Santa Catarina.

Aproveita-se esse espaço de considerações finais para ousar fazer um alerta aos pesquisadores em Saúde Coletiva. A população LGBT vem conquistando espaços e está cada vez mais visível. Alguns direitos e demandas específicas já se tornaram realidade e estão se expandindo cada vez mais. Junto delas, a necessidade de que o acesso à saúde seja adequado às diferentes identidades de gênero e orientação sexual que existem na sociedade.

Cabe, agora, aos diferentes trabalhadores, pesquisadores e profissionais da área da saúde encontrar formas de colaborar com pesquisas e ações que sustentem o enfrentamento das dificuldades que muitas pessoas LGBT encontram ao buscarem acesso aos serviços de saúde e, assim, colocar em prática o desafio de um sistema único de saúde verdadeiramente universal, equânime e integral.

O Ministério da Saúde tem reafirmado, em diversos documentos mencionados ao longo deste artigo, que o preconceito, o estigma e a exclusão social enfrentados pela população LGBT acarretam prejuízos à sua saúde. Assim, a Saúde Coletiva, com sua abordagem interdisciplinar, destaca-se como um espaço crucial para a integração entre as pessoas LGBT e os responsáveis em todos os níveis pelo acesso à saúde.

Neste artigo, evidencia-se continuamente que as oportunidades de acesso da população LGBT aos serviços de saúde não são frequentes. Pelo contrário, são limitadas por práticas profissionais excludentes e que perpetuam violências. O acesso aos serviços de saúde das pessoas LGBT ainda é marcado por práticas discriminatórias, e a exposição de sexualidades e identidades de gênero não heteronormativas muitas vezes agrava a vulnerabilidade delas.

O SUS revelou-se permeado por práticas heteronormativas persistentes, as quais ignoram as experiências das diversas sexualidades presentes na sociedade. O atendimento é baseado na suposição de que todas as pessoas são heterossexuais e se encaixam em um modelo binário de gênero. Essa abordagem resulta na negligência das necessidades específicas da população LGBT por parte dos profissionais de saúde.

Como resultado, a comunidade LGBT demonstra resistência em procurar os serviços de saúde, pois os percebe como ambientes onde enfrentam preconceito e discriminação. Devido à dificuldade de acesso, os cuidados de saúde são considerados uma prioridade pelo movimento social LGBT.

É necessário, portanto, incorporar conteúdos que abordem as particularidades das identidades LGBT nos currículos dos cursos de graduação e pós-graduação em saúde, proporcionando uma compreensão mais ampla e sensível das questões relacionadas à diversidade sexual e de gênero. Os profissionais de saúde devem ser capacitados para reconhecer e respeitar as diferentes identidades de gênero e orientações sexuais, além de adotar práticas inclusivas e livres de discriminação em seu atendimento. Isso inclui o desenvolvimento de habilidades de comunicação culturalmente sensíveis, o estabelecimento de ambientes acolhedores e seguros para todos os pacientes e o combate ativo ao preconceito e à estigmatização.

Além das mudanças na legislação, é imperativo promover adaptações nas práticas de atendimento dos profissionais de saúde, refletindo sobre a urgência e necessidade desse ajuste. Nesse sentido, a visibilidade das pessoas LGBT emerge como um fator crucial para aprimorar o atendimento nos serviços de saúde, destacando-se como uma área de intervenção prioritária. Essas considerações destacam a importância de uma abordagem inclusiva e sensível à diversidade sexual e de gênero na formação e na prática dos profissionais de saúde, contribuindo, assim, para a construção de um sistema de saúde mais equitativo e acessível para todos.

Referências

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  • Financiamento

    Um dos autores era bolsista da Capes.
  • Aspectos éticos

    O projeto do estudo foi examinado por Comitê de Ética em Pesquisa e aprovado em 27 de novembro de 2019, mediante o parecer n. 3.729.477 e CAAE n. 24963919.4.0000.0121. Reservamo-nos o direito de não citar o nome do CEP para garantia de preservação do anonimato dos participantes da pesquisa.
  • Como citar:

    TESSER JUNIOR, Zeno C. et al. A invisibilidade das pessoas LGBT no acesso à saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 22, 2024, e02743254. https://doi.org/10.1590/1981-7746-ojs2743

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Jan 2024
  • Aceito
    08 Maio 2024
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