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Positividade do risco e saúde: contribuições de estudos sobre trabalho para a saúde pública

Positivity of risk and health: contributions of studies on work for public health

Resumos

Este artigo procura retomar a positividade do conceito de risco como um instrumento de análise da atividade humana. Para tanto, partese de uma análise da utilização do conceito de risco ao longo da história da epidemia da Aids, buscando-se evidenciar os motivos que conduziram a sua superação parcial por meio da utilização do conceito de vulnerabilidade, que permite apreender as dinâmicas sociais dessa síndrome. Analisa-se também a maneira como o conceito de risco é apreendido no campo da saúde pública, evidenciando a dimensão positiva desse conceito, frequentemente ignorada em sua utilização. Com base na concepção de saúde de Canguilhem, um dos pilares centrais para a elucidação dessa dimensão positiva do risco, e por meio de uma análise do conceito de sociedade do risco, em que este conceito passa a ser apreendido na contemporaneidade como mecanismo de poder e como estratégia de governo das populações, chegou-se à explanação de Nouroudine acerca da dimensão positiva do risco como dimensão centrada na atividade. O artigo conclui sugerindo que a utilização dessa dimensão positiva do risco pode auxiliar na compreensão e na intervenção de vários fenômenos sociais de difícil apreensão pelo campo da saúde pública.

risco; atividade; saúde; saúde pública; trabalho


This article attempts to rescue [resume] the positivity of the concept of risk as a tool to analyze human activity. To achieve this, an analysis is made of the use of the concept of risk during the history of the Aids epidemic, seeking to show the reasons that led it to be partially overcome with the use of the concept of vulnerability, which allows one to learn the social dynamics of this syndrome. An analysis is also made of how the concept of risk is learned in the public health field, showing the positive dimensions of this concept, which is frequently ignored in its use. Based on the concept of health of Canguilhem, one of the main pillars to elucidate this positive dimension on risk, and by analyzing the concept of the society of risk, in which this concept is learned in modernity as a mechanism of power and as a strategy to govern the populations, one arrives at the explanation provided by Nouroudine regarding the positive dimension of risk as one focused on activity. The article concludes suggesting that using this positive dimension of risk can assist both in understanding and in intervening with several social phenomena that the field of public health has difficulties apprehending.

risk; activity; health; public health; work


ARTIGO ARTICLE

Positividade do risco e saúde: contribuições de estudos sobre trabalho para a saúde pública

Positivity of risk and health: contributions of studies on work for public health

Thiago Drumond Moraes1 1 Professor adjunto do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Vitória, Espírito Santo, Brasil. Doutor em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). < tdrumond@gmail.com> ,* * Correspondência: Universidade Federal do Espírito Santo, Campus Goiabeiras, Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento, Cemuni VI, Av. Fernando Ferrari, 514, CEP 29075910, Campus Universitário, Goiabeiras, Vitória, Espírito Santo, Brasil.

RESUMO

Este artigo procura retomar a positividade do conceito de risco como um instrumento de análise da atividade humana. Para tanto, partese de uma análise da utilização do conceito de risco ao longo da história da epidemia da Aids, buscando-se evidenciar os motivos que conduziram a sua superação parcial por meio da utilização do conceito de vulnerabilidade, que permite apreender as dinâmicas sociais dessa síndrome. Analisa-se também a maneira como o conceito de risco é apreendido no campo da saúde pública, evidenciando a dimensão positiva desse conceito, frequentemente ignorada em sua utilização. Com base na concepção de saúde de Canguilhem, um dos pilares centrais para a elucidação dessa dimensão positiva do risco, e por meio de uma análise do conceito de sociedade do risco, em que este conceito passa a ser apreendido na contemporaneidade como mecanismo de poder e como estratégia de governo das populações, chegou-se à explanação de Nouroudine acerca da dimensão positiva do risco como dimensão centrada na atividade. O artigo conclui sugerindo que a utilização dessa dimensão positiva do risco pode auxiliar na compreensão e na intervenção de vários fenômenos sociais de difícil apreensão pelo campo da saúde pública.

Palavras-chave: risco; atividade; saúde; saúde pública; trabalho.

ABSTRACT

This article attempts to rescue [resume] the positivity of the concept of risk as a tool to analyze human activity. To achieve this, an analysis is made of the use of the concept of risk during the history of the Aids epidemic, seeking to show the reasons that led it to be partially overcome with the use of the concept of vulnerability, which allows one to learn the social dynamics of this syndrome. An analysis is also made of how the concept of risk is learned in the public health field, showing the positive dimensions of this concept, which is frequently ignored in its use. Based on the concept of health of Canguilhem, one of the main pillars to elucidate this positive dimension on risk, and by analyzing the concept of the society of risk, in which this concept is learned in modernity as a mechanism of power and as a strategy to govern the populations, one arrives at the explanation provided by Nouroudine regarding the positive dimension of risk as one focused on activity. The article concludes suggesting that using this positive dimension of risk can assist both in understanding and in intervening with several social phenomena that the field of public health has difficulties apprehending.

Keywords: risk; activity; health; public health; work.

Os profissionais que atuam em um serviço especializado de assistência aos casos de Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis (DST) se deparam com variadas experiências pessoais no campo da sexualidade. Nesse terreno, se manifestam e se inventam numerosas possibilidades de se viver-ser, dando-se novas formas às forças sociais, pulsões sexuais, pressões biológicas, desejos e curiosidades. Estes elementos se juntam de maneira a tornar a sexualidade uma potência de experimentação às vezes tão intensa que as pessoas parecem perder o controle consciente de suas ações. É o que os adolescentes anunciam quando tentam explicar uma gravidez não planejada: "não deu para segurar o tesão!". Um pequeno relato, baseado em um caso do Serviço de Referência às DST/Aids do município de Vitória (ES), permite ilustrar a complexidade de elementos em torno da experiência da sexualidade, sugerindo caminhos que podem nos auxiliar a compreender e atuar melhor diante dessa diversidade.

Isabelle - nome fictício de uma senhora de 53 anos - reside em um bairro de classe média da cidade. Casou-se pela primeira vez aos 21 anos, com um homem dez anos mais velho. Após uma vida conjugal infeliz, se divorciou aos 31. Sentia-se muito imatura à época do casamento, e só aguentou o tempo de casada por conveniência social. Durante esse período não pôde conhecer o prazer sexual, ou mesmo uma intensa experiência afetiva. Investiu, após o divórcio, todos os seus desejos em sua vida profissional, obtendo aí uma satisfação afetiva e autorrealizadora. Entretanto, sentia insistentemente a necessidade de construir uma relação afetiva com alguém.

Recentemente conheceu uma pessoa. Ademar - nome também fictício -, um pouco mais velho que Isabelle, muito bonito e bastante simpático, logo encantou os seus desejos. Alguns encontros depois já estavam namorando, Ademar sempre se mostrando muito atencioso e sincero. Logo levou Isabelle para conhecer a sua família, o que a deixou bastante segura e esperançosa. Diante de tanto respeito, e com a certeza de que encontrara ali uma pessoa realmente hábil em acolher as suas angústias e sentimentos, Isabelle sentiuse confortável para experimentar o seu corpo juntamente com o de outra pessoa. Foram para a cama. Ademar, logo de início, solicitara a Isabelle para não usar preservativo, o que ela prontamente recusara. E mesmo sob contínua insistência, conseguiu sustentar o seu desejo, preservando a sua segurança. Mas os prazeres não se manifestaram no mesmo tom: Ademar não conseguiu manter uma ereção por muito tempo!!! Alegava insistentemente que o preservativo lhe causava insensibilidade, inviabilizando o prazer que ele garantia que proporcionaria àquela senhora. A decepção foi tão intensa quanto o sentimento de culpa de Isabelle. Num outro dia, após um intenso debate interno, Isabelle resolveu partilhar seu corpo sem o preservativo. Entregando-se em corpo e espírito, Isabelle percebera que aquele era um dia muito feliz...

Um dia depois, ainda extasiada pela noite anterior, procurou Ademar para repetir a lindíssima experiência da madrugada. Este, sorrateiramente, deu uma desculpa, indicando compromissos profissionais e desmarcou o encontro. No outro dia a cena se repetiu. Algumas semanas depois, Isabelle não conseguia nem mesmo notícias de seu amado. Cadê ele? O que aconteceu? Será que não gostou de mim? Será que ele estava passando por algum problema sério? Será que tinha alguma coisa e estava fugindo de mim? Ou será que ele só queria aproveitar-se do meu corpo e me passar alguma coisa? Será que estava com Aids e queria me infectar?

Com essas indagações em mente, Isabelle passou a sentir-se muito angustiada. Para piorar as condições, começou a emagrecer e a ter uma diarreia que não sarava. Diante de tanta evidência, apenas uma constatação passava pela sua cabeça: "Ai, meu Deus! Estou com Aids." Essa era uma terrível e angustiante certeza que pairava na cabeça de Isabelle quando ela procurou uma unidade de saúde de referência em DST e Aids do município.

Esse relato nos servirá, neste artigo, para discutir algumas questões que merecem atenção no campo da saúde pública e que são continuamente ignoradas no cotidiano da atenção à saúde: a compreensão da experiência humana de experimentar, inventar, criar seu mundo, seu meio e a si, como um ato da afirmação da vida, da normatividade que caracteriza a saúde. Saúde, como diria Canguilhem (1995), remete à potência de inventar realidades, lançando-se no vazio de determinações a priori, arriscando-se a recompor novas existências. Em razão de esse espaço de invenção, experimentação e debates de valores ser mais ou menos aberto às indeterminações, o total controle sobre a ação, a atividade e, principalmente, sobre as resultantes de cada experiência escapa de quem quer que seja, deixando, nesse meio, o rastro da aposta que as pessoas fazem na vida. Os efeitos deletérios dessa aposta podem ser traduzidos, a posteriori e por intermédio de saberes disciplinares, como risco (Castiel, 1999).

Discutir-se-á neste artigo, num momento, algumas das possíveis conceituações de risco:

• De um lado, uma afirmação dos riscos à saúde numa perspectiva negativa, como é comumente expresso nas campanhas da saúde pública e na epidemiologia, e que se remete tanto aos cálculos de probabilidade de ocorrência um dano/patologia em uma população em determinado período de tempo quanto, principalmente, aos efeitos práticos e políticos dos desdobramentos desses riscos em comportamentos - e futuros - que se tornam indesejáveis, medicalizáveis e combatidos (Almeida Filho, Castiel e Ayres, 2009);

• De outro lado, visualiza-se uma questão fundamental nas atuais análises sobre a sociedade contemporânea: as relações entre a experiência do risco e as dinâmicas do poder e de governo das populações. Assim, pretende-se situar politicamente o debate sobre o conceito de risco, buscando compreender os eixos que sustentam uma produção da experiência do risco como negativo, por um lado, e positivo, por outro, com base no que Spink (2001) denomina de riscoaventura. Decorre dessa constatação uma tentativa de se articular o problema do risco à dimensão do poder e da temporalidade;

• Entre esses dois polos (risco compreendido como conceito científico ou como instrumento de governo das populações (Foucault, 1979b), retomaremos uma discussão mais recente que apreende uma possível positividade dos comportamentos e experiências sociais que são denominados como de risco com base nessas concepções negativas provenientes, entre outras áreas, das ciências e das práticas de saúde pública. Essa conceituação reconhece o comportamento e a experiência que envolve riscos à saúde e à vida também como tentativa de afirmação da vida sobre a vida, propiciando aí um campo de intervenções em que o que está em jogo é menos um controle sobre o comportamento da população e, muito mais, a garantia dos meios de se exercer a autonomia sobre si e sobre sua atividade. Trata-se, pois, de uma positividade do conceito de risco não apreendida unicamente como mecanismo de poder, mas como afirmação de uma potência da vida. Analisarseá, nessa direção, mesmo que parcialmente, algumas discussões sobre o conceito de vulnerabilidade, conceito que emerge como uma das possibilidades de operar uma possível positividade dos comportamentos e experiências de risco, mesmo que, para nós, apresente alguns limites significativos.

Vale registrar aqui que, embora se utilizem, como ponto de partida, as discussões sobre o campo teórico desenvolvido pelos estudos da Aids, não se pretende circunscrever o presente debate neste ou em outro campo empírico qualquer. O que se objetiva, de fato, é apontar caminhos para empreender práticas de saúde pública mais complexas, eficientes e eficazes, acarretando a possibilidade de se ultrapassarem as fronteiras do campo de análise nas quais nos baseamos inicialmente. Isso porque reconhecemos que algumas questões que atravessam o campo da Aids e o de outras áreas da saúde pública são semelhantes àquelas que se desenvolvem no campo do trabalho, por exemplo, e que dizem respeito, em última instância, ao humano, sua saúde e sua vida, e que por isso devem ser abordadas em sua complexidade.

Isabelle e o risco

Se utilizarmos a lógica de certa tradição das práticas de prevenção e assistência às doenças sexualmente transmissíveis (DST) e Aids, já suficientemente criticada, mas ainda recorrente no país, tenderemos a analisar qualquer caso de contaminação por HIV como efeito tanto da desinformação das pessoas sem condições econômicas e sociais satisfatórias quanto da falta de prudência em seus comportamentos. Essa perspectiva profissional tem várias motivações, mas, no fundo, Trata-se de uma tentativa de solapar o outro da relação (por exemplo, os usuários de um serviço, uma comunidade específica, um grupo etário para quem se destina a prática de prevenção etc.), tornando-o pura abstração e um 'mero' depositário de informações que, se adequadamente preenchido com as 'verdades' fornecidas pelo 'representante da verdade' - o profissional da saúde -, irá atingir 'definitivamente' a prevenção dos comportamentos 'sabidamente' relacionados a determinadas doenças e, consequentemente, uma vida 'cheia' de 'saúde'. Garantir uma mídia (meio) da informação adequada, observando-se as diversas linguagens e populações a que ela se destina e criando-se imagens e signos apropriados a seus universos linguísticos e culturais, parece ser a condição suficiente para os indivíduos evitarem o comportamento sexual inseguro.

Parker (2000c), inventariando teorias da psicologia que se enquadram nesse modelo de prevenção - modelo de crenças em saúde, teoria da autoeficácia, por exemplo -, sugere que elas partilham um eixo central de intervenção: o comportamento do indivíduo, que se transforma em 'comportamento de risco', quando identificado como potencialmente propiciador de danos à saúde. Essas teorias se resumem, basicamente, na tentativa de construir, junto com os sujeitos individuais, um conjunto de signos, atitudes e crenças que lhes permite, antes ou durante uma situação, identificála como de risco, reconhecendo, avaliando e mudando seus comportamentos em tempo de evitar os possíveis malefícios, previamente conhecidos, decorrentes daquela situação. Necessita-se, assim, garantir que a informação transmitida ao indivíduo se transforme em crenças e atitudes favoráveis à manutenção da prática sexual segura e, principalmente, em uso de preservativos em todas as relações sexuais, em procura da testagem da condição sorológica ou em não compartilhamento das seringas (Ayres et al., 2003, p. 120-121). Trata-se, em suma, de prevenir os possíveis efeitos danosos (redução de risco), fornecendo conhecimentos para a proteção da vida, considerando-se que tais instrumentos são relativamente modelizados, idealizados e adequados aos cálculos de risco e de segurança definidos por modelos científicos.

Aplicando essa perspectiva teórica ao caso de Isabelle, percebemos que ele não se encaixa tão adequadamente nesse modelo. Este pressupõe que Isabelle não estava informada suficiente e/ou significativamente sobre os malefícios da doença e/ou seus modos de transmissão. Mas, como vimos, Isabelle parecia ter as informações necessárias. Alguns defensores desse modelo, em resposta a essa última consideração, poderiam sugerir que os conhecimentos de Isabelle sobre os modos de transmissão, por motivos de ordem cognitiva ou cultural, não se transformaram em mudança de comportamento porque, por exemplo, ela ainda acreditaria na existência de 'grupos de risco'. Por meio dessa crença, talvez Isabelle entendesse que, como Ademar era 'tão gentil', provavelmente não se encaixaria nesse grupo, já que 'grupo de risco = mau-caráter'; assim, seria improvável que Ademar estivesse contaminado. De acordo com essa interpretação, o 'comportamento de risco' de Isabelle ainda seria explicado principalmente conforme seus condicionamentos, crenças e comportamentos. É sobre essas informações, crenças e condicionamentos que se atuaria, procurando protegêla de crenças incorretas e indesejadas. Enfim, um modelo de prevenção que é calcado, sobretudo, na experiência e no comportamento individual, mesmo que se reconheçam relações entre os comportamentos individuais e as condições ambientais, mais que propriamente sociais, em que esses são eliciados. No entanto, quando se levam em consideração aspectos sociais e culturais relacionados aos comportamentos, em geral eles são apreendidos na condição de facilitadores ou limitadores da apreensão das informações 'adequadas' pelo grupo-alvo das campanhas de prevenção. Ou seja, não se procuram modificar as condições político-econômicas desse grupo, nem mesmo instrumentalizá-lo para que isso ocorra, mas tão somente descrevê-las para contextualizar adequadamente os meios de transmissão das informações.

Todavia, analisar o comportamento de Isabelle apenas pelo prisma das teorias cognitivo-comportamentais parece não responder a uma série de questões que se apresentam, sobretudo após constatarmos seu desespero, a posteriori, por estar contaminada: por que, de fato, as informações que possuía não se transformaram em comportamento que a saúde pública considera 'prevenido' ou 'seguro'? Será que ela não tinha dimensão 'real' dos 'riscos' que estava correndo ao aceitar 'transar' sem camisinha? O que, de fato, estava em jogo naquela decisão? Seria possível, para a vida de Isabelle, construir uma relação concreta e afetiva se o seu parceiro não fosse suficientemente 'potente' sexualmente? Existiam alternativas? Será que os estigmas sexuais, os valores que Isabelle carrega sobre o que é ser uma mulher e que tipo de homem amar, valores que definem quem Isabelle é, não interferiram em sua decisão? Será que, para ela, 'comportamento seguro' é 'se prevenir' ou 'ser amada'? Será que Isabelle não fazia ali uma aposta de construção de uma relação de carinho e afeto, em que pudesse compartilhar momentos de amor, dor e prazer com alguém, esperando outra vida para si? E se queria outra vida, não é porque sua vida atual lhe causava insatisfação? E os modelos sugeridos para sua proteção, estariam eles ancorados em valores de Isabelle ou afirmavam apenas os valores esperados e idealizados pela ciência e seus defensores, tais como os profissionais de saúde?

Diante dessas questões, devemos considerar que o campo das informações não é o único estruturador do comportamento, visto que, no momento do compartilhar seu corpo com outrem, forças diversas vão produzindo ou interferindo na maneira como as pessoas vivem. O que está de fato em jogo aqui é um duelo de interpretações que tem como efeito práticas fundamentalmente diferentes. Interpretar o comportamento do indivíduo, na ótica única da responsabilização individual (ou, no máximo, incorporando nessa análise alguns valores socioculturais), pode produzir resultados reais e eficazes, mas limitados. 'Reais' porque, como constatamos no caso da Aids no Brasil, a epidemia está relativamente estabilizada, graças, entre outras coisas, ao aumento da disseminação de informação ao público em geral e à disponibilização de preservativos para a população. 'Limitados' porque a tônica no comportamento individual produziu e produz efeitos nas relações sociais que acarretaram novos problemas a serem enfrentados: de um lado uma culpabilização e/ou estigmatização tendenciosa de quem se põe em perigo; de outro, uma incapacidade de aplicar maciçamente modelos de intervenção comportamental para garantir uma produção de saúde de qualidade, transformadora, equitativa, integral e potente (Parker, 2000c). De qualquer modo, esses são modelos de prevenção que se ancoram em ideais de vida que não são, necessariamente, aqueles produzidos pelas próprias pessoas a quem eles se aplicam. Haja vista, por exemplo, a experiência emblemática do barebacking como prática social de recusa consciente do uso do preservativo, numa afirmativa, que é sobretudo política, de afirmar o controle de si sobre seu corpo e sua vida (Silva, 2009, 2010).

Ante essa dificuldade, uma guinada teórica se sucedeu, dando-se maior importância às questões de ordem cultural e social. Vários estudos passaram a propor intervenções que ampliavam o escopo de intervenção para além das dimensões individuais, ao atentarem mais para as questões sociais, políticas, econômicas e institucionais.

Do risco à 'vulnerabilidade': do comportamento individual à política

A história da epidemia da Aids implicou transformações importantes na maneira como concebemos a saúde pública, principalmente contribuindo para que as questões políticas e econômicas fossem amplamente incluídas nas discussões sobre as dinâmicas e determinações sociais da saúde. Um recorte histórico sobre a maneira de se compreender a epidemia nos permite verificar as principais trajetórias de intervenção teóricas e sociopolíticas no seu enfrentamento.

No início da epidemia, a caracterização das populações que em tese estariam mais sujeitas à contaminação pela Aids permitiu a utilização um pouco descuidada de um conceito que causou danos ainda não reparados na maneira de se apreender a síndrome: o conceito de 'grupo de risco'. O embate contra a epidemia decorrente desse conceito, privilegiando a prevenção junto àquele 'grupo de risco', acabou acarretando a cristalização da imagem da Aids ou como perversão - quando as vítimas adquiriam a síndrome em razão de seus comportamentos 'imorais' - ou como vitimização - quando o 'azar' levava à contaminação por meio da transmissão vertical ou da transmissão de sangue (Monteiro, 2002). As políticas de prevenção para esse 'grupo' circulavam em torno da necessidade de se reduzirem os 'comportamentos de risco', fundamentalmente por meio da divulgação da ideia de abstinência e isolamento - abstinência sexual, de consumo de droga, isolamento social, não transfusão de sangue por pessoas que integravam os grupos de risco etc. Nesse bojo, incutiram-se na sociedade ideias muitas vezes preconceituosas e moralistas. Como efeito, os estigmas sobre as populações mais atingidas pelo então 'flagelo da Aids' atualizaram um medo coletivo que circula nas sociedades ocidentais ao longo dos séculos: o medo do contágio (Czeresnia, 2000, p. 24). Ao mesmo tempo que crescia o preconceito, não se obtinha nenhuma vitória substancial no controle da síndrome. Muito pelo contrário: "o estigma e o processo de segregação de grupos historicamente considerados marginais assumem dimensão singular e crescem, par e passo, com a expansão da epidemia" (Matida, 2003, p. 35, grifo nosso).

Com a progressiva escalada da Aids em outros grupos sociais - mulheres, heterossexuais, jovens e adolescentes -, logo ficou patente a insuficiência do conceito do grupo de risco. Percebeu-se que todos estavam 'expostos' ao vírus não apenas no sentido biológico, mas, sobretudo, comportamental, bastando, para se contaminar, realizar uma prática sexual sem preservativos ou compartilhar seringas durante o uso de drogas injetáveis. Ficava claro que a disseminação do vírus não se limitava aos que se julgavam pertencer aos 'grupos de risco', mas, potencialmente, incluía todos os que realizavam qualquer forma de 'comportamento de risco'. As chances de contaminação (risco) seriam aumentadas não em razão de a pessoa pertencer a um grupo social em particular, mas por ela se comportar de maneira insegura, imprudente ou desprotegida, conclusão cientificamente estabelecida com base em inferência de causalidade viabilizada por modelagem estatística, donde o cálculo de risco, originariamente capaz de apreender a história da epidemia em populações, se transforma em risco individual (Czeresnia e Albuquerque, 1995). Além disso, as 'populações' afetadas pelo conceito de 'grupos de risco', em consequência da estigmatização sofrida, se mobilizaram politicamente, buscando resistir à discriminação decorrente do uso generalizado da noção de 'grupo de risco'. Tudo isso conduziu a um rearranjo das práticas de prevenção, ao mesmo tempo que se desenvolviam teorias mais bem estruturadas para se compreender e se modificar o comportamento das pessoas diante dos riscos identificados em modelos epidemiológicos, conforme vimos na seção anterior.

No entanto, mesmo sendo um avanço no processo de enfrentamento da epidemia da Aids, visto que o enfoque nos grupos de risco acabou por deixar desassistidos grupos outrora considerados 'imunes' à doença, as políticas de prevenção calcadas no conceito de comportamento de risco também não foram capazes de responder suficientemente às contingências sociopolítico-econômicas que se denunciavam com o aumento da epidemia nos setores populacionais mais pobres e menos alfabetizados do planeta. Esse fenômeno, conhecido como 'africanização/pauperização' da epidemia, revelou a necessidade de inclusão de fatores sociais e políticos na compreensão da doença e na intervenção sobre ela (Parker, 2000c). Finalmente, somou-se a essa constatação o aumento da pressão e da mobilização social para que as populações se tornassem atores nas decisões e nos desenhos das políticas de enfrentamento da Aids, recusando-se a aplicação dos conceitos teóricos e das práticas de intervenção unicamente atreladas aos conceitos de risco (Ayres et al., 2003).

Diante desse impasse, Parker (2000b) ressalta as contribuições de pesquisas de Jonathan Mann e outros colaboradores que consideravam as determinantes sociopolíticas como fatores fundamentais para explicar a exposição 'privilegiada' de alguns ao vírus da Aids. A principal ruptura produzida por essa abordagem é justamente a preferência pelo uso do conceito de 'vulnerabilidade' em lugar do conceito de 'risco'. Mais que uma mudança de terminologia, o que se procurou definir nessa linha de rasciocínio foi justamente o caráter não individual, mas social, político e econômico na determinação do percurso da epidemia no mundo. Logo se somaram a essa escola linhas teóricas que privilegiavam a pesquisa dos impactos da Aids nas economias nacionais e viceversa, bem como estudos que tomavam como análise os impactos das mobilizações sociais em reação à epidemia. Com isso, estruturou-se, muito rapidamente, um corpo de conhecimentos que tornava fundamental o conceito de 'vulnerabilidade' nas pesquisas sobre a epidemia.

Resulta daí a necessidade de se investir na compreensão sociopolítica e econômica das questões em torno da Aids e dos comportamentos a ela relacionados, que passaram a ser os eixos fundamentais a guiar a intervenção política e social na busca do arrefecimento da doença no mundo todo. No lugar da disseminação de uma educação com foco exclusivo em práticas sexuais seguras, procura-se, por meio desse conceito, o fortalecimento de cada grupo social no enfrentamento autônomo dos problemas de suas realidades, mediante a mobilização ou retomada da força de ação do coletivo, levando-se sempre em conta as contingências locais e as características culturais de cada lugar (Parker, 2000a). Em uma palavra, da 'prevenção à promoção', ou melhor, 'produção da saúde'. Esse terceiro momento é o que coroa o conceito de vulnerabilidade como uma potente arma de mobilização social e política. O conceitochave da ação aqui é o 'empoderamento' (empowerment).

Contudo, a passagem do conceito de risco ao conceito de vulnerabilidade não é tão antagônica assim. O conceito de vulnerabilidade circula tanto em torno de uma tentativa de se compreender a Aids e intervir sobre ela de maneira menos focada no comportamento individual quanto na necessidade de se apreenderem as bases sociais e culturais que sustentam os comportamentos de risco das pessoas e na necessidade de mobilização comunitária. Pode ser compreendido, de acordo com Ayres et al. (2003), como

a chance de exposição das pessoas ao adoecimento como a resultante de um conjunto de aspectos não apenas individuais, mas também coletivos, contextuais, que acarretam maior suscetibilidade à infecção e ao adoecimento e, de modo inseparável, maior ou menor disponibilidade de recursos de todas as ordens para se proteger de ambos (Ayres et al., 2003, p. 123).

Segundo os autores, esse conceito não exclui a compreensão e o enfoque sobre o risco ou comportamento de risco, mas busca situar esse 'risco' em uma dinâmica político-econômica. Inclui, então, alguns componentes em sua análise: um 'componente individual', que busca dar visibilidade à qualidade das informações disponíveis aos indivíduos, bem como sua capacidade de elaborá-las e incorporá-las ao repertório comportamental; um 'componente social', que busca compreender como se assentam as práticas de combate à Aids, a capacidade de mobilização social, os conjuntos de significados que sustentam, ignoram ou distorcem as compreensões sobre a epidemia ou seus determinantes; um 'componente programático', que inclui a capacidade e os recursos sociais de que os indivíduos dispõem ou necessitam para engendrar ações, políticas e redes de serviço no combate à epidemia.

O conceito de vulnerabilidade, entretanto, pode assumir outras definições, mais circunscritas à necessidade de se ampliar a compreensão sobre o comportamento. Vulnerabilidade, nesse caso, não seria muito mais que uma interface entre o comportamento individual e o coletivo:

'Vulnerabilidade', sob este prisma e no âmbito da construção do conhecimento sobre HIV/Aids, vem sendo a concepção utilizada para apoiar o trânsito necessário entre os efeitos da epidemia no indivíduo e o coletivo. Sua aplicação vem subsidiando a contextualização da epidemia e das práticas adotadas para o seu controle e prevenção (Matida, 2003, p. 37).

Nesse caso, que talvez represente o uso corrente do conceito em alguns programas municipais e estaduais de DST/Aids no Brasil, as potencialidades expressas no conceito de vulnerabilidade, sobretudo no que tange à possibilidade de reflexão sobre os problemas práticos, metodológicos e os diversos sentidos políticos decorrentes da atualização do conceito de risco (Almeida Filho, Castiel e Ayres, 2009), perdem espaço para uma apreensão puramente tecnicista. Aqui, menos que um conceito que afirma uma potência política de transformação da realidade, vulnerabilidade se torna uma contextualização social do risco. Se o foco da intervenção já não é mais o indivíduo, a noção de comportamento de risco está lá colocada, ainda, permanentemente. Sobre ele se erigem dinâmicas de intervenção que tendem, às vezes mais, às vezes menos, a referenciar os comportamentos das pessoas a uma condição idealizada de se viver - um determinado 'padrão' de vida - que, em tese, reduziria a dinâmica da epidemia. Nesse contexto, o risco do adoecimento já não é mais individual, mas muito mais social, o que, por um lado, aproxima-se de uma compreensão mais rigorosa sobre o próprio conceito de risco, já que este é "uma propriedade das populações e sua referência legítima será exclusivamente coletiva" (Almeida Filho, Castiel e Ayres, 2009, p. 330); por outro lado, pode reforçar a vitimização dos grupos ditos 'vulneráveis' (Ayres et al., 2003) - principalmente porque não é incomum se compreender a vulnerabilidade apenas como expressão da miséria econômica, social e, por que não, moral das pessoas.

Consideramos, porém, que além de um uso aparentemente impreciso do conceito, como apresentado nessa última acepção, o conceito vulnerabilidade traz ainda alguns problemas a serem superados: a ação pública é limitada, principalmente se tomarmos como ponto de partida as ações setoriais, visto que atuar sobre determinantes político-econômicos é muito menos objetivo e mais complexo que a prática de transmissão de informação; a disseminação das práticas de empoderamento é a forma de intervenção pública privilegiada, a despeito do fato de que, como observa Prado (2002), este conceito ter sido apropriado por uma perspectiva sociocognitivista, emergindo como um instrumento de transformação do pensamento e da percepção das pessoas acerca de sua realidade, para impulsioná-las a agir sobre essa mesma realidade, o que muitas vezes recai em propostas de intervenções semelhantes às propostas pelos modelos que enfrentam os comportamentos de risco; e, finalmente, de acordo com o conceito de vulnerabilidade, a concepção da potência produtiva da vida, embora existente, parece menos explícita, uma vez que o conceito realça mais o sentido de submissão das pessoas a determinadas contingências e adversidades. De fato, vulnerabilidade, em sua acepção comum, é a "qualidade ou estado do que é ou se encontra vulnerável", sendo este último verbete aquilo "que pode ser fisicamente ferido" ou "sujeito a ser atacado, derrotado, prejudicado ou ofendido" (Houaiss e Villar, 2007). Assim, por mais que se compreenda a vulnerabilidade como uma distribuição desigual de riscos de uma população em razão de determinantes complexos (políticos, ideológicos, econômicos etc.), o foco ainda está no que falta, na carência, nas deficiências das pessoas para enfrentarem determinadas situações da vida, o que as deixa vulneráveis aos possíveis danos nelas envolvidos. Ou seja, se o conceito de vulnerabilidade se aproxima de um uso mais rigoroso de um conceito de risco, esse uso ainda se refere a uma acepção negativa do risco, o que esconde um conjunto de estratégias, ações, decisões, mobilizações e produções que as pessoas, individual e coletivamente, fazem para viverem as suas vidas e que são, a posteriori, identificadas e denunciadas como indesejáveis, perigosas, insalubres. O foco de análise e ação, nesse caso, se dá mais na falta de condições sociais, políticas e econômicas das pessoas do que em seus esforços de viver e construir a vida. Sem negar a importância da análise e da ação sobre essas condições, quando não se reconhece a potência ativa das pessoas de construírem suas vidas, é muito provável que o conceito vulnerabilidade se torne sinônimo de pobreza, de um lado, e de incapacidade social e política, de outro. Fica colado a essas populações mais vulneráveis o estigma de incapacidade de viver adequadamente as vidas que elas poderiam viver e que, por isso, as ações de solidariedade, transformação, conscientização política etc. seriam justificadas. Embora isso pareça apenas uma digressão conceitual, aponta para uma concepção potente e ativa do poder de agir das pessoas (Clot, 2010), sem mencionar o fato de que tal concepção mais positiva do risco auxilia na compreensão de fenômenos mais complexos em que as escolhas das pessoas por situações ditas 'perigosas' são mais explícitas, conscientes, como é o caso das práticas de barebacking (Silva, 2009, 2010) ou do uso de drogas e do tabaco (Spink, 2009).

Ora, analisar o caso de Isabelle na ótica do conceito de vulnerabilidade responde a algumas questões que a abordagem sobre o comportamento individual não consegue resolver. Poderíamos pensar, por exemplo, que mulheres em sua idade, criadas conforme o signo principal da relação 'realização pessoalcasamentomaternidade', tenham uma grande vulnerabilidade quanto à negociação do uso do preservativo, por exemplo, o que explicaria a rápida declinação da resistência de Isabelle quanto ao seu uso. Entretanto, esse conceito deixa em parte escapar a dimensão da aposta que Isabelle faz em sua vida, arriscando-se em busca do prazer de construir uma vida, mesmo que sem todas as condições de fazêlo em sua total segurança. É aí, nessa aposta, que repousam aspectos da saúde que o conceito de risco, em sua possível positividade, pode ajudar a elucidar, potencializando o próprio conceito de vulnerabilidade. Uma transformação, nesse momento, muito mais filosófica. Outro modo de compreender a saúde, outra forma de compreender as relações sociais. Há que verificarmos, porém, que o modo usual de se refletir sobre o caso de Isabelle é interpretálo mediante uma reflexão que se baseia em concepções negativas do risco e da vulnerabilidade. Em geral, isso permite analisálo como instrumento de controle da população, sobretudo por meio de práticas preventivistas ou promocionais em que o que está em jogo é uma contínua vigilância autoinfligida das pessoas, tomando-se como base estilos de vida idealizados. Assim, antes de revisitarmos o conceito de risco para verificar que, segundo ele, existe uma forte pulsão que pressiona a vida nas veias da atividade, é importante compreender seu uso corrente na condição de tecnologia de governo.

Algumas dinâmicas contemporâneas do risco

Moraes e Nascimento (2002) discutem a passagem de uma sociedade 'disciplinar' (Foucault, 1987) fundada na normalização dos sujeitos para uma sociedade 'de controle' dos riscos do cotidiano (Deleuze, 1992; Castel, 1987), constatando que a utilização do conceito de risco assume papéis cada vez mais importantes em nossa contemporaneidade, acarretando, inclusive, a constituição de uma nova temporalidade. Respaldam-se nas análises sociológicas de Beck (1992), nas quais o conceito de risco é interpretado como importante mecanismo de poder e eixo fundamental na conformação de transformações centrais na contemporaneidade. Para Beck, o conceito de 'sociedade do risco' alude ao reconhecimento social de uma surpreendente escalada dos perigos reais de extinção da vida na Terra atrelados ao imenso desenvolvimento técnicocientífico, principalmente em razão do potencial universalmente destruidor da corrida armamentista, do aumento inescrupuloso da poluição e do contínuo esgotamento da natureza desencadeados pela superprodução industrial em escala mundial. Resulta disso uma ampla reflexão por parte de numerosos grupos sociais - científicos ou não - sobre uma nova dimensão social das ameaças à sobrevivência, à saúde e à natureza que, transformadas em riscos calculados, conduzem a novas interpretações sobre as relações entre as instituições centrais da modernidade (o Estado, o capital e o trabalho) e propiciam um conjunto de mecanismos de previsão e controle de acidentes, de crises econômicas, de terrorismo, de adoecimento, entre outros. Nessas previsões, o conceito de risco tem uma função primordial.

Além de Beck (1992), outros autores auxiliam na compreensão das relações entre a produção da ideia de riscos à vida e à saúde e a produção de subjetividade. Castel (1987), por exemplo, mostra que os mecanismos de gestão das populações se distanciam das práticas insulares características do período disciplinar e se adaptam muito mais às transformações colocadas em curso na contemporaneidade, quando a prevenção se torna "primeiro vigiar, quer dizer, se colocar em posição de antecipar a emergência de acontecimentos indesejáveis (doenças, anomalias, comportamentos de desvio, atos de delinqüência, etc.) no seio de populações estatísticas, assinaladas como portadoras de riscos" (Castel, 1987, p. 125-126). É nesse sentido que o conceito de risco, em sua acepção mais científica conforme seu uso na epidemiologia, vai se tornando cada vez mais um instrumento de controle social, no qual a ciência e seus experts são os principais elementos de produção de normas, e a mídia um dos aparelhos de controle. A criação de conceitos tais como populações de risco e comportamento de risco, bem como uma minuciosa, intensiva e ampla investigação dos comportamentos XZhumanos atrelados a longos estudos sobre patologias, acidentes e morbidade, é efeito direto da operação desse mecanismo de poder que visa ao controle das mentes e das populações em suas dinâmicas próprias, e que tem no risco o seu principal instrumental. Enfim, uma extensa aplicação de instrumentos biopolíticos (Foucault, 1999) que se dá por uma crescente cientifização do cotidiano.

A partir de Moraes e Nascimento (2002), podemos apreender o risco como a antecipação de um grau provável de um futuro indesejável, ou, mais precisamente, de acordo com Almeida Filho, Castiel e Ayres (2009, p. 325), "uma forma presente de descrever o futuro, sob o suposto de que se pode decidir qual o futuro desejável". Em outras palavras, ver realizado no futuro algo que se não for atentado devidamente no presente não poderá mais ser desfeito. Ou, de maneira inversa, uma tentativa de deixar de ver realizado no futuro algo que, a princípio, segundo as condições que se apresentam no presente, poderia se ver concretizado. Enfim, uma tentativa de controle sobre o futuro, desencadeada a partir da apreensão das dinâmicas possíveis do presente, buscando garantir um futuro controlado, mas não disciplinado. Uma tentativa de tornar a experiência de vida no presente mais controlada, regulada, assistida, para garantir que, num determinado futuro, possa se repetir essa mesma dinâmica do presente. Uma tentativa de imortalizar o presente no futuro, como se buscasse garantir, no futuro, uma jovialidade que, se não for atentamente observada no presente, será perdida. Risco é justamente o controle sobre essa dobra futuropresente. Enfim, de maneira mais conceitual, segundo Castiel, "o conceito de risco iguala as contradições no presente, estabelecendo que só se pode administrar o risco (o futuro) de modo racional, ou seja, através da consideração criteriosa da probabilidade de ganhos e perdas, conforme decisões tomadas" (Castiel, 2003, p. 83). Um exercício de temporalidade e de subjetivação. Um mecanismo de poder.

Porém, as concepções sobre o risco, tal como qualquer conceito, não são únicas nem uniformes. O que indica que, de acordo com o ponto de vista políticofilosófico do teórico que analisa a questão, poderseá apreender o problema do risco de uma ou outra maneira. Castiel (2001, 2003), lançando mão de Lupton (1999), afirma que as concepções epistemológicas sobre o risco, no corpo das ciências sociais, obedecem a três grandes perspectivas principais: 1) os 'realistas', que compreendem o risco como um perigo real e mensurável, independentemente das características individuais, sociais ou históricas das pessoas que o percebem; essa perspectiva teórica é a que municia a maioria das análises epidemiológicas; 2) os 'construcionistas' 'fracos', que são aqueles que admitem uma 'realidade' e periculosidade 'concreta' do risco, embora entendam que, ao longo da história, ou em razão das influências socioculturais, a percepção sobre o risco vai transformando os comportamentos, atitudes e sentidos sobre ele; 3) os 'construcionistas' 'fortes', que são aqueles que apreendem o risco como uma produção de qualquer sociedade ou grupo social que elege quais são, ou o que são - se é que existam ou não -, situações que merecem ser investidas socialmente e que são consideradas situações de risco. Nada é um risco em si; apenas aquilo que se produz como tal. Essa tendência tem em Foucault o seu maior expoente, e sobre o qual nos deteremos um pouco mais.

Segundo Foucault (1979b), durante o século XVI emerge um novo modo de se conceber o problema do governo e sua relação com o Estado. Uma nova arte do governo, denominado por ele de governamentalidade, e que tem como elemento original o entrelaçamento de diferentes dimensões do governar: o autogoverno, o governo da família e dos estabelecimentos e o governo do Estado. Propondo articular essas três dimensões, essa arte do governo pretende repensar o problema da soberania não mais como transcendente à população e que se garante na forma da lei, mas sobretudo como uma nova forma de se pensar o governo das coisas com base em dimensões táticas de controle. Essa nova mentalidade de governo se torna materializada em políticas de governo com o advento das estatísticas e dos censos nacionais ao longo do século XVII, quando se inaugura uma nova onda de poderes que se tornarão fundamentais em nossa contemporaneidade (Foucault, 1979a). Foucault diz, por exemplo, que essas técnicas de poder, que ele chama de biopolíticas ou de biopoder, são calcadas em instrumentos bastante diversos daqueles das instituições disciplinares (escola, exército, fábrica, convento, hospital). Segundo o autor, seus instrumentos são a estatística, a demografia, as intervenções da medicina social e pública, o higienismo: ações do saberpoder aplicadas ao ar livre. A biopolítica é, nas palavras de Foucault, aquilo "que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do podersaber um agente de transformação da vida humana" (Foucault, 1988, p. 134). Na base, um modo de governar a população, tomandoa como fim da política, mas também como seu instrumento, na medida em que se produzem conhecimentos de gestão que se dá por meio do governo de si e que falam em nome da segurança, da vida, da prudência.

Temos, com isso, um poder (biopoder) que passa a situar a vida como locus de interesse que se dá em duas linhas de intervenção e abordagem: uma anátomopolítica da vida (controle sobre o corpo individual - a disciplina), e uma biopolítica da vida (controle sobre o corpo espécie) - técnicas que Foucault (1999) denominará 'regulamentação' e Deleuze (1992) chamará 'controle'. A anátomopolítica (disciplina) busca apreender o movimento do indivíduo em uma massa, daí centrarse na intervenção e no controle sobre o corpo do indivíduo. A biopolítica (regulamentação) busca apreender o movimento e a força da vida na massa e como ela é afetada pelos processos 'naturais' (doenças, nascimento, loucura, acidentes). Como argumenta Foucault, o cálculo estatístico, visando à vida em si, se torna aí um instrumento central:

pela biopolítica, vai se tratar, sobretudo, é claro, de previsões, de estimativas estatísticas, de medições globais; (...) E Trata-se sobretudo de estabelecer mecanismos reguladores que, nessa população global com seu campo aleatório, vão poder fixar um equilíbrio, manter uma média (...); em suma, de instalar mecanismos de previdência em torno desse aleatório que é inerente a uma população de seres vivos, de otimizar, se vocês preferirem, um estado de vida (Foucault, 1999, p. 293).

Assim, no centro das preocupações e intervenções do Estado sobre a população, o conceito de risco se revela um excelente operador das 'regulações' e instrumento de gestão estratégico. Atrelado a ele, dispositivos de segurança, mecanismos de previdência, que falam em nome da vida e da saúde, para otimizar um estado de vida: os discursos dos estilos de vida, da saúde promocional, da prudência (Spink, 2009).

Nesse sentido, para Castiel (1999), é o uso do conceito de risco como conceito epidemiológico um dos elementos fundamentais que permitem a operacionalização, em nossa sociedade, de um 'tecnobiopoder' capaz de circunscrever o possível (futuro) em potencial/provável, a partir do uso da racionalidade científica. Essa produção do provável (risco) mobiliza as práticas de promoção à/de/em saúde que, se sustentando sobre concepções moralizantes da vida, produzem referências a serem seguidas - hábitos de vida saudável e estilos de vida - pelas pessoas como sinal de 'amadurecimento', 'autocuidado', 'responsabilidade individual'. Aqui, a mídia exerce um papel fundamental para dar acesso das pessoas a esse conhecimento cientificamente produzido.

Em um caminho semelhante, Mary Jane Spink (2001) analisa outras dinâmicas do risco em nossa sociedade contemporânea. Atentando para uma dimensão positiva - embora não afirmativa - do risco, ela afirma que as transformações contemporâneas, sobretudo aquelas vinculadas à constituição de uma sociedade neoliberal, tornaram a experiência do risco, como uma experiência de aventura ou sucesso, num fenômeno político-ideológico que reforça as práticas individualizantes e destradicionalizantes, típicas da volátil e cambiante contemporaneidade. O 'risco-aventura', segundo sua perspectiva, seria muito mais que uma experiência individual ou coletiva: uma metáfora da chamada modernidade tardia. Uma ilustração de "novas sensibilidades decorrentes do imperativo do enfrentar a imponderabilidade e volatilidade dos riscos modernos" (Spink, 2001, p. 1.278).

Retomando o histórico das transformações da gestão dos riscos ao longo da modernidade, Spink diz que desde o início das investigações epidemiológicas o conceito de risco já era um importante instrumento de conduta e intervenção. Entretanto, com a complexificação da economia e o aperfeiçoamento das técnicas estatísticas, um importante campo de saber emerge ao longo do século XX, denominado de 'Gestão de Riscos'. Baseadas em uma complexa teia de análise dos riscos, as medidas de gestão dos riscos incluem desde aspectos legais que giram em torno das práticas sociais até a intervenção governamental, as políticas de seguro, os mecanismos de autorregulação e as políticas de comunicação dos riscos.

Spink (2001) afirma que esse processo de desenvolvimento da gestão dos riscos atrela-se à constituição da sociedade de riscos e indica uma experiência que ilustra esse processo na atualidade: a valorização do conceito de 'aventura', que vai sendo rapidamente relacionado ao conceito de risco, positivando esse conceito, incentivando, enfim, determinados comportamentos de risco. Com base em uma coletânea de propagandas, reportagens e imagens, Spink (2001) demonstra como a metáfora do risco prenuncia novas características da atualidade. De um lado, a falta de segurança social, política, econômica; de outro, a individualização que decorre desse processo. A aventura de 'arriscar-se' torna-se um fenômeno individual que demanda ou revela coragem física e emocional, autocontrole, flexibilidade, disponibilidade à mudança e grande poder de decisão da pessoa que se arrisca. Tudo isso sempre, é claro, baseado em cálculos racionais, bem informados e ilustrados com dados de análises sobre o presente e sobre as contingências. A aventura é tanto um 'treino' para as exigências de uma realidade de escassez de emprego quanto um elogio àqueles que, como atletas do Olimpo, conseguem um lugar de destaque com seus corpos joviais e seus espíritos empreendedores. Uma imagem de uma juventude responsável e racional elencada como ícone de uma era em que a competência está atrelada ao espírito de empreender. Até a imagem de uma terceira idade jovem e radical, potente sexualmente e corajosa em esportes de aventura, passa a se tornar o modelo de experiência de vida e exemplo de saúde a ser seguido. Promover a saúde das pessoas, com base nessa imagem, é o meio primordial de controle das populações. Da imagem do selfmademan, dos anos 30, a uma figura do jovem aventureiro. Dois modos de gestão, dois modelos de sociedade. Naquela, a imposição da norma; nesta, a gestão dos riscos, por meio da incitação à aventura.

Na vertente da prevenção, o principal mecanismo de controle é a norma, definida por meio da média estatística. Já na vertente da aposta, elemento essencial do comportamento em uma economia liberal, o principal mecanismo de gestão é a tomada de decisão informada que privilegia o processamento da informação numa perspectiva cognitiva intraindividual (...) [ampliando] assim, a experiência intersubjetiva do imperativo da opção, gerando novos mecanismos de exclusão social (Spink, 2001, p. 1.287).

Seguindo esse raciocínio de Spink (2001) e de Castiel (1999), podese argumentar que a operação do risco como poder biopolítico de controle sobre os corpos e populações procede da seguinte maneira: numa antecipação de um futuro projetado sobre uma observação atenta dos atos do presente, a vigilância sobre o comportamento individual, exercida por meio de uma autoobservação e controle, acaba restringindo o leque de comportamento socialmente esperado e valorizando, numa hierarquização já não mais estampada sobre a norma, alguns comportamentos sobre os demais. A grande valorização social do corpo atlético é, entre outras coisas, um efeito do atravessamento desse mecanismo de poder baseado na ideia de risco (dano), de um lado, e a experiência da aventura como um ícone 'glorioso' desse modelo, de outro. Uma arte de governo de si que se sustenta num cálculo estatístico sobre um futuro cientificamente conhecido e que promove a promessa de uma 'saúde' eternamente jovial se atenta a esse risco. Uma saúde promocional como instrumento de governo de pessoas e populações (Foucault, 1979b), em nome da vida e baseado em uma verdade neutra e incontestável.

O artigo de Spink (2001) revela um conjunto de poderes que se estruturam sob uma suposta neutralidade operativa do risco - seja nas ciências, seja na religião, seja na política. Entretanto, o debate teórico que segue a seu artigo, ambos publicados nos Cadernos de Saúde Pública, aponta algumas questões que merecem atenção. Em primeiro lugar, as dinâmicas do risco não podem ser consideradas como uniformes. Como já foi dito, a experimentação social da experiência do risco atrela-se, indubitavelmente, a uma construção histórica específica de cada grupo social. Assim, abordar uma determinada dimensão do 'risco-aventura' como metáfora da modernidade - embora a autora não afirme em nenhum momento que esta é a única metáfora, nem a melhor - pode esconder outras experiências de risco e que também produzem efeitos sociais, tais como as práticas do barebacking, compreendido como uma possível forma de afirmação de si, mesmo que alguns autores vejam aí, também, uma marca do individualismo neoliberal contemporâneo (Silva, 2009, 2010). Além disso, a experimentação do risco como aventura ou, de fato, perigo, vai variar, sobretudo, em razão das condições sociais e econômicas de cada grupo social. Assim, viver uma 'aventura' 'protegida', como nos esportes radicais das classes médias e altas, é uma opção mais improvável das populações mais economicamente desprotegidas, sendo seus jogos sociais de subversão e denúncia de suas condições de moradia, transporte e segurança marcados por uma violência intrínseca e fundamental - os 'surfistas ferroviários' ou aqueles das brigas dentro dos bailes funk são apenas alguns exemplos. O conceito de vulnerabilidade está, aqui, diretamente ligado à determinação dessa experimentação (Souza, 2001). Assim, esse conceito de vulnerabilidade, como dito anteriormente, procura revelar que o conceito de risco pode encobrir as experiências de desigualdade e exploração.

Os mecanismos de controle operados por meio dos diversos usos do conceito de risco - compreendido como perigo, como risco individual, como risco populacional, estrutural e contingencial (Almeida Filho, Castiel e Ayres, 2009) - não devem ser apreendidos, então, como meio de homogeneizar a sociedade - característica muito acentuada nas sociedades disciplinares através da normatização do cotidiano. Muito pelo contrário, o que quase todos os conceitos de risco permitem desencadear é uma extrema autovigilância amplamente variável em razão das características próprias de cada grupo, sendo, pois, um eixo que permite capitalizar de maneira modulável os comportamentos diversos emitidos na sociedade. Trata-se de um novo modo de hierarquizar e gerenciar os diferentes grupos sociais por meio de princípios mais 'democráticos'. Além disso, o risco permite desencadear uma vigilância sobre outrem já não mais calcada na lógica da potencialidade ameaçadora do outro vigiado (o louco, a criança perversa, o presidiário eram sujeitos perigosos para a sociedade e, por isso, deviam ser vigiados em seus comportamentos e atitudes), e sim em nome de uma potencialização de sua vida. E se, por um lado, essa inversão do controle da vida para sua promoção se trata, em parte, de uma conquista da 'multidão' (Hardt e Negri, 2001) e um avanço em matéria de assistência social, por outro essas medidas impõem mecanismos de intensa vigilância e de grande restrição de comportamentos nos quais os efeitos são um controle mais sutil dos comportamentos, dos desejos e do cuidado de si. Trata-se, em suma, de uma política de existência - uma saúde promocional - que se traduz em modelos, estilos de vida que se afirmam em nome da segurança, da longevidade e da saúde, mas que limitam parcialmente as possibilidades da própria vida, porque a ela se atrelam valores morais e sentimentos negativos, tais como a culpa (Spink, 2009).

Além disso, vale lembrar que a dimensão do risco é uma tentativa do capital de subsumir o acaso em seus cálculos. Curioso é perceber que o acaso não apenas se torna tolerável, com a proliferação da ideia do cálculo de risco, mas muito mais: o acaso passa a ser desejado. Parece que a opção informada e bem racionalizada é uma tentativa de produzir prazeres e sensações em uma sociedade que consome emoções (Bauman, 1999). Isso pode ser ilustrado em um novo e valorizado segmento capitalista: a comercialização do bem-estar. Bauman (1999) nos mostra, por exemplo, que a experiência da globalização gira, basicamente, em torno da possibilidade de garantir à elite dominante da contemporaneidade prazeres de consumo diversificados e originais. Entretanto, esses prazeres devem ser cuidadosamente selecionados para que essa experiência não produza modificações demasiadamente fortes na pessoa que os experimenta. Isso porque, com o fim do Estado do bem-estar Social, as relações sociais estão por demais frágeis, e a possibilidade de alguém perder seus benefícios de consumidor em razão de suas experiências de vida é muito grande. Então, o prazer da experiência deve ser sempre mediado pelos limites do consumo. A 'afetação' controlada garante esse prazer em escala menor, mas sem o risco de afetar o posicionamento social da pessoa. O bem-estar atrelado à experiência de sucesso econômico e como garantia de vida se torna, assim, benefício de uma classe. A comercialização desse bem-estar se torna um empreendimento importante, e a análise dos riscos e sua gestão são instrumentos que permitem essa operação.

Outra importante contribuição que surge no debate subsequente ao artigo de Spink (2001) se refere ao fato de que a positividade do riscoaventura é interpretada apenas como mecanismo de controle. Emerge aqui uma ambiguidade. Se, por um lado, de fato os mecanismos de controle se articulam em torno de experiências denominadas como de risco, por outro, tanto na qualificação daqueles comportamentos indesejados como de risco quanto na promoção de comportamentos ditos saudáveis e idealizados, não podemos esquecer que, no seio dessa 'aventura', existe uma pulsão, uma vida que nos move ou nos conduz. Como afirma Caponi, incorporando materiais de Canguilhem: "saúde (...) é a capacidade de assumir riscos e de poder superá-los " (Caponi, 2001, p. 1.307), por meio de produção de normas de vida (Canguilhem, 1995), levando sempre adiante suas escolhas, podendo sempre criar outras novas. Essa aposta, então, pode ser uma experiência tanto de controle quanto de potência. Um paradoxo, entre outros, que revela as ambiguidades da chamada 'pós-modernidade': a sociedade do risco emerge como poder se não se pretende articular a experiência do risco como afirmação da potência da vida, mas como controle da vida, mesmo que em seu nome; porém, se se opera a vida como saúde, e a aposta é uma de suas expressões, o conceito de risco restabelece outro conjunto de acepções e o paradoxo se revela com mais clareza, requerendo reflexões para resolver tais questões na pós-modernidade. Um primeiro passo é dado quando se reconhece, com base nas análises sobre o conceito de risco, a urgência em se repensar a saúde pública para melhor adequá-la aos instrumentos de resistência e produção de um novo mundo. Como afirma Oliveira (2001, p. 1.308), "o reconhecimento da existência de diferentes sentidos para risco seria um bom começo para a necessária revisão da concepção sanitarista de risco, a qual, com raras exceções, tem sido arrogantemente proposta como verdade".

Outro passo é compreender mais adequadamente o que de fato significa a afirmação 'assumir os riscos', que mesmo diante dos perigos anunciados pode significar que há vida em movimento, na busca da construção de uma autonomia sobre si. Nessa acepção, 'assumir riscos' se aproxima mais da saúde conforme Canguilhem (1995), na medida em que, ao lançarmos mão de comportamentos 'de risco', nos embrenhamos pelas imensas e múltiplas estepes do imprevisto, em que o que importa é, talvez, mais o reconhecimento das capacidades criativas, do potencial de resolução de problemas e apresentação de novas questões. 'Assumir riscos' pode ser uma expressão da potência humana e de sua saúde, na medida em que implica também invenção. Uma aposta no devir e a experimentação do prazer com base na fruição e na produção do mundo e de si, pela afirmação da possibilidade de se ser e viver.

Risco e saúde: afirmação e potência do risco

Se voltarmos ao caso de Isabelle, lembraremos que sua decisão de ir para a cama com Ademar pode ser interpretada como uma aposta; uma aposta calcada na sua insatisfação com uma vida que se repetia na monotonia da solidão. Uma tentativa sincera de experimentar novos caminhos e novos prazeres. Aqui, atividade é sinal de possibilidade. Deixar de apreender essa hipótese é ignorar que os limites humanos estão além do conhecido, e permitir-se ultrapassar esses limites pode ser sinal de saúde e força. A aventura aqui, entretanto, não se aproxima do contexto apontado por Spink (2001). Isabelle assumiu uma aposta desconhecendo o seu futuro, mas decidida a permitir que ela fizesse parte da sua construção. O acaso dava as cartas, e Isabelle a ele se entregou. Diferentemente do riscoaventura, em que a ação se baseia na informação objetiva e calculada, comandada pela razão, na aposta do risco afirmando a potência da vida, Isabelle agia com sua sensibilidade em jogo. Caponi (2003), em um ensaio sobre uma possível interpretação da "Saúde como abertura ao risco", retoma Canguilhem para afirmar que, na compreensão da experiência da saúde e da doença, o que está em jogo não é, de fato, uma definição científica, uma experiência de uma curva estatística (do normal ao patológico), mas uma disposição filosófica. Saúde, então, não deve ser compreendida de maneira abstrata conforme a tônica do raciocínio científico, mas de maneira política e afirmativa. Saúde, para ela, é a capacidade do organismo de responder ao seu meio, incorporandoo em novas relações, e não apenas por meio de adaptação às transformações da realidade. Ter saúde, portanto, é ser capaz de se afetar e se transbordar de afeto. A incapacidade de uma pessoa que sofre alguma dor em achar sentido nessa dor, ou de compreender aquilo que se experimenta ou sofre, impedindoa de desgrudar desse sofrimento ou de responder a essas pressões, é o que poderíamos chamar de doença. Saúde é criação/recriação de si e do mundo em relação. Doença é cristalização de um modo de ser. Saúde não está no campo do corpo puro, mas no de um corpo repleto de sentido. Não puramente uma imagem corporal; muito menos a experiência de constituição de uma determinada subjetividade, mas sim a expressão de uma interseção entre o corpo biológico, a imagem corporal, a subjetividade que atravessa e arrasta o corpo, o sentido de si, o insentido de si e sua inconsciência. Aliás, é muito mais que uma simples experiência; é um campo de possibilidades que o organismo tolera em torno de si e de seus atos e que garante a esse organismo sua recomposição com o real. É a capacidade de tolerar os desafios, de se acometer em falhas e ressurgir para se afirmar como agente de construção. É a capacidade de escapar ao que está predeterminado. Afirmar a aposta e assumir os riscos: é isto que está em jogo na saúde; a possibilidade de abusar da saúde faz parte da saúde (Canguilhem, 1995).

A capacidade singular de cada um de transitar e abusar da sua saúde, apostando seu corpo na tentativa de contornar os acidentes e "infidelidades do meio" (Canguilhem, 1995, p. 159), é o que torna a experiência da saúde uma experiência eminentemente subjetiva. As práticas de saúde, então, não devem ser mais que uma "capacidade de administrar de forma autônoma esta margem de risco, de tensão, de infidelidade, e por que não dizer, de 'malestar', com que inevitavelmente devemos conviver" (Caponi, 2003, p. 68). Isso porque a centralidade da aposta, das imponderabilidades do risco, no seio da capacidade inventiva humana é aquilo que nos torna seres incansavelmente criadores.

Entretanto, não se pode considerar que as reservas de saúde são igualmente distribuídas. As definições históricas da constituição dos corpos das pessoas - seja pela imposição de condutaspadrão desencadeadas pelas campanhas higienistas e preventivistas, seja pela simples exposição a condições insalubres - vão interferir no campo de possibilidades das escolhas e apostas de cada um. Assim, alguém que experimentou muita privação nutricional quando criança terá, muito provavelmente, menos tolerâncias a determinadas variabilidades sazonais e viróticas. Aqui, o conceito de risco reencontra o de vulnerabilidade, mas não o qualificando. Vulnerabilidade, pois, deixa de ser aquilo que vai determinar se um grupo social específico está ou não com um determinado risco de ser acometido por alguma doença, para se tornar uma dimensão mais aproximada da reserva de segurança e saúde de que a pessoa pode abusar, com relação à qual pode 'assumir riscos'. Ou seja, vulnerabilidade pode ser interpretada como conjuntos de reservas de saúde distribuídos na população, entendendo tais reservas como capacidade de criar normas, normatizar, criar mundos, formas de vidas, experimentar. Garantir uma equidade e ampliação dessas reservas (possibilidade de normatizar) é que deve ser o objetivo da saúde pública, e não trabalhar para reduzir o potencial dos riscos calculados ou promover a manutenção de um estado anterior (sempre idealizado), capaz de enfrentar as contingências da vida, conforme preconiza o conceito de resiliência e que também pode ser compreendido, nesse sentido, como mecanismo de poder (Castiel, 1999). Naquele caso, a ação se dá sobre o fortalecimento do ente vivente como produtor de diferenças e diferenciações (de si e do mundo); neste, a ação recai na proteção de um ser idealizado contra um meio 'calculado' como perigoso. Em outras palavras, no conceito de risco positivo, a saúde deixa de ser algo a ser conquistado pela luta contra a vulnerabilidade; menos ainda, deixa de ser um precioso tesouro que periga se perder. A vulnerabilidade passa a ser expressão de exercício de potência. Reafirmá-la e alimentála passa a ser a função da saúde pública, bem como é sua função ampliar o leque de conhecimentos das pessoas para auxiliá-las a clarificar e ponderar o peso dessas escolhas. Para isso, é claro, as práticas que o conceito de vulnerabilidade põe em funcionamento são essenciais: educação para libertação, mobilização comunitária, produção de saúde. Aproximam-se também dessa concepção as práticas que procuram compreender como se dão os movimentos de aposta que as pessoas exercem em suas vidas, fornecendo condições para que esse exercício se sintonize com as reservas de possibilidades que caracterizam a saúde, como as políticas de redução de danos. Enfim, retomar as práticas de vulnerabilidade atreladas ao conceito positivo de risco e de saúde de Canguilhem (1995) permite garantir aquilo que ele define como exercício de saúde: a capacidade do organismo de instituir novas normas em situações novas.

Para auxiliar na compreensão e na aplicação prática dessa afirmação positiva do conceito de risco que Caponi aponta, podemos obter contribuições com base em outra linhagem canguilhemiana que extrai da experiência humana do trabalho conhecimentos para nos auxiliar na compreensão da vida humana e da saúde. Trata-se, pois, da perspectiva ergológica (Schwartz e Durrive, 2007). Nessa linhagem, é Nouroudine (2004) quem se destaca na reflexão em torno do conceito de risco, quando propõe a construção de um conceito positivo do risco com base na investigação teórica sobre práticas sociais relacionadas aos riscos nos mundos do trabalho.

As análises sobre o trabalho articulam diversas dimensões humanas: a economia, a invenção, o corpo etc. Nessa articulação, a capacidade inventiva do homem se torna um aspectochave. Inventar inclui o lançarse ao desconhecido, operar os limites e sobre eles, lançando-se mais na aposta diante dos riscos que em seus cálculos. Lançarse ao risco, como vimos, pode ser também um agir-saúde. Para compreender melhor como isso se dá, Nouroudine (2004) relaciona a experiência do arriscar-se no trabalho com o conceito ergológico de 'atividade'.

Atividade, seguindo a tradição da ergonomia francófona, pode ser aqui definida como 'processo' de engendramento do comportamento por meio da mobilização singular de uma pessoa visando à realização de uma ação (reflexão, interpretação, criação, produção ou transformação do que quer que seja), em uma situação que lhe impõe limites e exigências, mas que a pessoa também cria (Montmollin, 1997). Essa mobilização é sempre singular porque sempre o é a situação em que a mobilização de si se dá. Para se executar uma atividade, devem-se sempre tomar como referência as prescrições, os patrimônios históricos, as normas antecedentes, acumuladas e materializadas em modos de se fazer e compreender essas coisas, tais como regras, receitas, padrões, demandas, fórmulas, prescrições, tradições etc. Estas referências funcionam como balizas que demarcam previamente a ação das pessoas. No entanto, devese considerar, na mobilização singular da pessoa, o modo como seu corpo e subjetividade são convocados naquele momento em que atuam. E aí, entram em cena, inevitavelmente, a história da pessoa (biológica, cultural, subjetiva), suas sensações antes e durante a atividade, suas emoções, seus desejos, planejamentos e antecipações em jogo, suas relações coletivas, disponíveis ou não, presentes ou imaginadas, entre outros aspectos. Trata-se, portanto, de uma experiência do corposi, conceito que expressa a indissociabilidade do corpo, da subjetividade e da história (Schwartz e Durrive, 2007). Esse corposi sinaliza para o modo como o corpo e as diversas dimensões subjetivas das pessoas são engajados na produção da ação durante a sempre enigmática atividade (Nouroudine, 2004).

Atividade envolve, portanto, a produção do mundo tomando, de um lado, o conjunto de normas e procedimentos desenvolvidos pela história e expresso em saberes, regras, modos de atuação, donde se impõem as prescrições; e, de outro, as situações reais e sempre singulares que requerem, de quem age, a gestão dos instrumentos e ferramentas disponíveis, assim como das características da situação, das condições de seu corpo e de suas necessidades e interesses no exato momento da ação. Atividade é sempre uma gestão de si - 'si' sempre complexo e enigmático (Schwartz, 2000) - num movimento paradoxal entre as generalidades do jádado da história e as singularidades da situação. Entre as prescrições, antecipadas individual e socialmente, e a situação existe uma condição singular que remete o ser em atividade a uma 'reinvenção', 'releitura' ou 'reinterpretação', por mais micro que seja, das determinações, dos meios (e de si) que se utilizam na experiência em curso. É pela atividade humana que o homem 'engendra' o seu mundo (e a si mesmo) como, de certo modo, o 'seu' mundo. Nesse sentido, atividade é a experiência de transformar o mundo à sua cara, um "recentramento do meio em torno de possíveis singulares do sujeito, recomposição, mesmo no ínfimo, de um mundo à sua conveniência" (Schwartz, 2000, 44). Uma atividade é, por isso, em certa medida sempre uma transgressão (Schwartz e Durrive, 2007; Schwartz, 2005).

No momento em que realizamos uma atividade, inauguramos um campo de possibilidades (possíveis). O controle escapa à consciência, mesmo que fugazmente, e o corpo se nutre de acaso. Como a atividade inclui, em seu cerne, a experiência do acaso, a pessoa que se lança em uma atividade não consegue determinar, com precisão, os efeitos desta. Essa aposta, definida negativamente como risco pela ciência, pode ser interpretada, por meio de sua positividade, como afirmação da potência da vida que se dá na atividade. Aqui, os 'possíveis' não são necessariamente os 'prováveis' cientificamente calculados, mas uma afirmação do poder de agir de cada um (Clot, 2010). Temos aí um possível elemento de potencialidade de saúde. Além disso, a partir da atividade há sempre a possibilidade de se ressignificar a vida das pessoas, criando-se e reinventando-se as normas do ente que age. Nesse sentido, de acordo com Canguilhem (1995), atividade se aproxima de saúde - o conceito de risco se centrando na atividade e esta sendo a operadora da criação do mundo e, correlativamente, da saúde. Pensar na articulação entre esses três conceitos, atividade, risco e saúde, auxilia na compreensão da saúde como efeitos da atividade das pessoas.

Afirmamos, com isso, que qualquer atividade é produtora de saúde? Não. Apenas demonstramos que há sempre potência de saúde na pessoa que está em atividade e que, no sentido inverso, a saúde é sempre um exercício/ efeito da atividade das pessoas. Nouroudine (2004) sugere, além disso, que a busca para se incorporar o conceito positivo do risco pode ser uma importante arma contra as próprias consequências perigosas do arriscar-se. Isso porque as práticas que afirmam a positividade do risco, ao menos no campo do trabalho, tendem a basearse em articulações políticas e coletivas bastante positivas na construção de experiências humanas mais produtivas e saudáveis, tais como a autonomia, a autogestão, a coletividade e a solidariedade. De maneira inversa, as práticas de controle dos riscos no mundo do trabalho, expressas pelas tradicionais políticas de SST, tendem a se limitar, segundo Nouroudine (2004), em: 1) identificar as situações e os fatores de risco que influenciam na atividade posterior; nesse caso, os fatores de risco tendem a ser concebidos como os próprios riscos (Almeida Filho, Castiel e Ayres, 2009); 2) produzir ou mobilizar conhecimentos sobre esses fatores/ riscos; 3) implementar disposições ou medidas visando a impedir que o risco se transforme em perigo. Essas estratégias, produzidas segundo a acepção de risco concebido como perigo estruturado (Almeida Filho, Castiel e Ayres, 2009), não se distanciam muito das práticas de prevenção comportamental já descritas aqui nos primeiros momentos da expansão da epidemia da Aids.

Entretanto, Nouroudine (2004) nos diz que não se podem mensurar, com propriedade e exaustão, os fatores de risco, visto que eles envolvem, no cotidiano de trabalho, a experiência e a atividade humana, sem mencionar a própria interpretação desses riscos. Todos esses aspectos são fenômenos que não podem ser totalmente objetivados. Portanto, qualquer tentativa de utilizar tais ferramentas 'científicas' da SST na esperança de controle dos acidentes será menos eficaz do que se afirma. O que se produz, quando muito, é um conjunto de comportamentos resistentes às normas e sujeitas à punição. Basta lembrar que não é incomum encontrar trabalhadores da construção civil sem equipamentos de proteção individual (como capacete) nos canteiros de obras, principalmente quando neles a questão é tratada de maneira a, fundamentalmente, proteger a empresa no plano legal. Porém, mesmo que a prática tenha sido essa, Nouroudine (2004) se pergunta por que as pessoas tendem a não se acidentar, mesmo que consideremos que ainda é grande o número de acidentes de trabalho. Com isso em mente, sugere que existe uma série de fenômenos na determinação dos riscos. Entre eles, encontra-se aquilo que Cru (1987; Cru e Dejours, 1987) denomina de saberesfazeres de prudência, que são conjuntos de conhecimentos adquiridos na própria experiência e, muitas vezes, coletivizados, dando aos trabalhadores informações, sensações e 'macetes/dicas' sobre a realidade do trabalho e sobre possíveis acontecimentos e efeitos atrelados a cada ação. Esse conjunto de saberesfazeres vai sendo constituído com base na experimentação coletiva cotidiana. Tudo se passa, basicamente, por meio de uma 'confiança' que as pessoas produzem e partilham coletivamente sobre a sua realidade, permitindo-se 'abusar' cada vez mais dela. Ou seja, com o passar do tempo, o domínio sobre a realidade permite às pessoas testarem novas formas de fazer o seu trabalho, recompondo, por meio de novas experiências e outros usos de 'si', outros saberes sobre o trabalho e sobre 'si' mesmas, bem como sobre seus colegas e sobre suas realidades. A criação de um ambiente de partilha, coletivização e análises de experiências, bem como de recomposição de si e de sua prática produtiva com base nesses conhecimentos e reflexões coletivas empreendidas, se revela aqui como fundamental para a manutenção da saúde. A singularidade da saúde se amparando na coletivização e na análise dos saberes sobre a vida - eis outro elemento fundamental na relação conceitual entre saúde, risco e atividade.

De maneira geral, a utilização, por Nouroudine (2004), do conceito de atividade na compreensão do conceito de risco permite rechear este último conceito com uma força que auxiliaria os profissionais de saúde a focar mais na capacidade das próprias pessoas em se mobilizarem com melhores níveis de segurança em torno de suas ações. Isso porque, se se considerasse a positividade do risco nas práticas de prevenção e produção de saúde, as possibilidades de experimentar e inventar (a si e ao mundo) seriam inevitavelmente analisadas diante de comportamentos compreendidos, pela epidemiologia, como de risco. Até porque, por meio dessa concepção, compreendese que o que mobiliza a atividade humana é, antes de tudo, o campo da autonomia e da troca de experiências com o mundo. E incorporar tal conceito no campo da saúde permitiria assumir a dimensão da saúde como um fenômeno singular e que remete apenas às pessoas. A questão, portanto, não é somente permitir às pessoas tomarem consciência sobre as suas ações e os efeitos delas, mas, principalmente, permitir que o comportamento seja assumido como expressão de si e como experiência de atividade e potência - eis aí o princípio da saúde. Não se negando os efeitos perniciosos que podem vir a ocorrer em uma atividade, o foco de análise deixa de se limitar em tais efeitos e passa a ser o seu próprio processo, buscando-se verificar aí as condições em que o corposi mobilizado na atividade não conseguiu transformar a potência de saúde em novas normas de vida. O adoecimento não é, aqui, o efeito de 'ação negativa' de alguém, mas um efeito frustrado, contrariado, impossibilitado, da expressão positiva da vida de quem age.

Positividade do risco e saúde pública

De tudo isso que se disse, podemos chegar a uma conclusão fundamental: há potência de vida em qualquer atividade humana, mesmo naquelas atividades relacionadas aos diversos conceitos de risco: 1) sejam naquelas em que os danos não são necessariamente conhecidos por quem age - como no caso das pessoas expostas a ambientes de trabalho com radiação; 2) sejam naquelas em que os riscos são previamente conhecidos (entendidos como danos possíveis), mas assumidos como tal, pois a pessoa aposta na capacidade de construir o mundo como seu, tendo prazer em fazê-lo - como se dá no caso do barebacking, mas também no consumo de açúcar por diabéticos ou no uso de álcool pelos aposentados; 3) sejam naquelas em que há aventura, mesmo que mobilizadas por mecanismos de poder, mas nas quais a pessoa procura reinventar um sentido para si; 4) sejam naquelas em que visivelmente os danos se manifestam a todos, inclusive a quem age, pois aí, mesmo que apesar de se reconhecerem movimentos de 'impotência' e de 'adoecimento', é sempre a tentativa de saúde e a potência que mobilizam a ação da pessoa em primeiro lugar. Enfim, é dessa aposta na vida que se deve lançar mão para auxiliar as pessoas a produzirem suas saúdes e é com esse ser de potência que se deve sempre dialogar, porque é ele quem agirá, inevitavelmente, em sua vida. Em suma, a positividade do risco significa que há sempre potência naquilo que a saúde e a epidemiologia chamam de risco.

A recusa contra o risco em sua negatividade se vincula à tradicional produção de saberes normalizadores e moralizantes da vida das pessoas produzidos com base nas balizas cientificamente estabelecidas que, segundo inferências causais individualizantes, ignoram os sentidos que as pessoas historicamente vêm produzindo para si e para sua vida. Não se pode negar, no entanto, que as relações entre danos e comportamentos precisam ser também devidamente conhecidas. O que se questiona aqui é que para que as pessoas consigam realizar tais movimentos de produção de novas normas devem ter os meios adequados para que isso se torne possível. E esses meios são produzidos também pelas ciências e práticas de saúde, mas não unicamente. As pessoas fazem uso de saberes que são científicos, mas também religiosos, políticos, morais e éticos para recentrar sua vida mediante suas próprias perspectivas, numa aposta que elas tendem a achar que vale a pena. O quão ciente as pessoas estão acerca dos possíveis efeitos dessa aposta e, sobretudo, dos instrumentos para gerir todas as consequências decorrentes dela, sejam consequências positivas ou negativas, é o que deve chamar mais a atenção da saúde pública. A lógica das reduções de danos parece caminhar nesse sentido. Ademais, como ocorre no campo da atividade de trabalho, mais complicado que um imprevisto nas prescrições das tarefas é a ausência de um saber coletivo que autoriza a ação dos trabalhadores, fornecendo-lhe parâmetros, mais ou menos coletivamente avaliados, acerca das decisões a se tomar. A esses saberes coletivos Clot (2006) denomina de gêneros da atividade profissional, que auxilia de maneira fundamental no desenvolvimento das pessoas por meio das suas atividades de trabalho. O problema não é, então, o risco das decisões e ações, mas a falta de coletivos que forneçam os apoios, em termos de saber e de suporte psicossocial, os meios para as pessoas suportarem melhor suas escolhas, e os sentidos que lhes permitam se relacionar com os efeitos de suas escolhas como uma obra na qual possam se reconhecer como membros da sociedade (Clot, 2010). Nesse sentido, cabe à saúde pública garantir que um ponto de vista mais científico se some aos outros meios mobilizados pela pessoa na produção de suas apostas, auxiliando esses outros modos e saberes quando eles não são suficientes. Mas é crucial que esse ponto de vista científico, por meio de uma humildade epistemológica (Schwartz e Durrive, 2007), não se sobreponha aos demais, nem como o mais correto, menos ainda como o mais importante.

Há, ainda, dois elementos cruciais que se devem manter em análise nessa positivação do conceito de risco por parte da saúde pública: a atividade é sempre uma invenção sobre determinadas condições previamente antecipadas, mais ou menos impostas, mais ou menos esperadas e controladas; e a atividade se dá por meio de instrumentos/ferramentas socialmente disponibilizados. Ora, diante desses dois elementos, é também tarefa do Estado, por um lado, ampliar o poder de agir de quem está em atividade, pondo-lhe à disposição oportunidades diversificadas que o auxiliem na ampliação das possibilidades de melhor escolher e estruturar suas antecipações, e por outro, garantir a proliferação dos meios adequados para a atividade - diversidade de possibilidade de escolha e de instrumentos e meios para se viver. Não se trata aqui de estilos de vida, mas de oportunidades de ser diferente. Isabelle, retomando nosso caso, não deve apenas aprender a negociar preservativos: tratarseia, talvez, de reconhecer que como ela está tentando amar e ser amada, o que se deve fazer é auxiliála na busca e na manutenção de outras relações amorosas em sua vida, ou outras identificações de si com o coletivo, com outros grupos sociais, ou produzir outras atividades e outros sentidos para sua vida etc.

Entretanto, o desenvolvimento dessas estratégias não é tarefa fácil. Tanto no texto de Caponi (2003) quanto no de Nouroudine (2004), não se encontram encaminhamentos concretos que nos permitam criar uma agenda de intervenção e políticas públicas de saúde. O conceito de vulnerabilidade, em que pesem seus possíveis usos que podem reforçar apreensões negativas do conceito de risco, parece ser operacionalmente muito mais útil, uma vez que indica sobre quais aspectos sociais atuar: transformação das instituições, acesso aos insumos de prevenção etc. Entretanto, apontar possíveis caminhos para a saúde pública, ao incorporar em seus debates a concepção da positividade do risco, já é um convite à comunidade científica para inventar práticas que se coadunem com essa perspectiva de saúde como abertura à invenção e ao risco. Mas tudo isso só será possível se passarmos a conceber a saúde pública, como nos diz Caponi (2003), como um espaço de discrição, em que o que está em foco é a doença como falta de potência. O que quer dizer que, para se garantir a saúde pública, deverseá garantir que a saúde seja, de fato, um assunto de cada um. Para tanto, o que se pode fazer é criar condições concretas para que cada um tome para si, em sua máxima extensão, a sua saúde como expressão de si e exercício/efeito de sua atividade. Há que se alertar, contudo, que singular aqui não se refere a individual. Como vimos, Trata-se sempre de reconhecer que essa ação singular baseia-se em saberes que são também coletivos, inclusive saberes científicos. Por isso, não se trata nunca de responsabilizar as pessoas por suas escolhas ou apostas; muito menos Trata-se de aceitar qualquer coisa que as pessoas escolham. O que importa, enfim, é que uma positividade do conceito de risco pode ser uma ferramenta para os profissionais de saúde criarem condições de analisar, preferencialmente em coletivo, o adoecimento como efeito de uma atividade cujos resultados são parcialmente frustrados. Esses espaços coletivos de reflexão e análise exigem a reflexão, com as próprias pessoas, das mobilizações e escolhas em torno da atividade, das possibilidades imaginadas, antecipadas ou desejadas por tais apostas, aquelas negadas, frustradas ou inviabilizadas (Clot, 2006) e como elas avaliam, esperam e se organizam para enfrentar os seus possíveis efeitos que se desdobram das atividades. Além disso, devese refletir sobre quais ferramentas as pessoas dispõem para agir e que sentidos se produziram e se podem produzir, de maneira diferente, segundo a atividade de cada um. Enfim, criar espaços, coletivos de análise sobre si, sobre seu mundo, propiciando vozes diferentes em diálogos sobre tais situações e comportamentos, vozes essas que garantam uma polifonia de vidas, desejos e sentidos que conduzem a alternativas nunca antes avaliadas pelas pessoas e pelos coletivos. Devese aceitar tudo isso, contudo, sem deixar de se reconhecer que também há dramas, enganos, problemas, e que o sofrimento também faz parte da saúde. As escolhas e apostas enganosas também podem e devem fazer parte da saúde, se não se naturaliza o adoecimento nem se culpabilizam tais escolhas e apostas, responsabilizando as pessoas por elas. A questão é garantir a possibilidade de se ultrapassar essa condição de tragédia.

Enfim, não se trata de valorizar os comportamentos de risco em si mesmos, mas de reconhecer a vida que pulsa por meio dessa aposta que as pessoas fazem em suas vidas. Assegurar, porém, a contínua possibilidade de auxiliá-las nessa aposta, antes, durante e depois dela, é o que talvez se deva propor a fazer a saúde pública, ou melhor, coletiva. Mas não definindo quais apostas que valham a pena viver, e sim propiciando a composição de um patrimônio coletivo que autorize as pessoas a viver em plenitude, sempre ampliando as possibilidades de escolhas e os meios de agir e de usufruir de suas produções.

Notas

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Recebido em 27/10/2010

Aprovado em 21/07/2011

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  • 1
    Professor adjunto do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Vitória, Espírito Santo, Brasil. Doutor em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). <
  • *
    Correspondência: Universidade Federal do Espírito Santo, Campus Goiabeiras, Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento, Cemuni VI, Av. Fernando Ferrari, 514, CEP 29075910, Campus Universitário, Goiabeiras, Vitória, Espírito Santo, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Nov 2011

    Histórico

    • Recebido
      27 Out 2010
    • Aceito
      21 Jul 2011
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