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Participação social e saúde: a qualificação de conselheiros indígenas no contexto da covid-19 no Amazonas

Social participation and health: the qualification of indigenous councilors in the context of COVID-19 in Amazonas, Brazil

Participación social y salud: la calificación de consejeros indígenas en el contexto de Covid-19 en Amazonas, Brasil

Resumo:

O artigo descreve a experiência do projeto “Capacitação de Conselheiros Indígenas de Saúde do DSEI/MAO com uso das TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação)”, realizado em 19 polos-base do Distrito Sanitário Especial Indígena Manaus, no Amazonas, ao longo de 2021. O seu objetivo foi desenvolver uma rede de formação de conselheiros locais de saúde indígena com base na perspectiva de rompimento com as lógicas ‘bancárias’ em direção a práticas libertadoras para a ação dos conselheiros e promoção de sua participação nas políticas públicas de saúde indígena. As atividades combinaram diferentes estratégias pedagógicas e mídias de interação, tais como 22 oficinas presenciais, que formaram 255 conselheiros e um curso na modalidade de Educação a Distância, que formou 268 conselheiros, totalizando 523 conselheiros; e a produção de material didático específico para o projeto sob a forma de três cartilhas. O conteúdo da formação incluiu, além de noções básicas de controle social, informações sobre a pandemia de covid-19, a construção de abordagens para ação do controle social no contexto da emergência sanitária e escutas sobre o enfrentamento da pandemia nos territórios e aldeias.

Palavras-chaves:
políticas de controle social; saúde de populações indígenas; conselhos de saúde; covid-19; sistemas locais de saúde

Abstract:

The article describes the experience of the project “Training Indigenous Health Counselors of the DSEI/MAO with the use of ICTs (Information and Communication Technologies),” conducted in 19 base centers of the Manaus Special Indigenous Health District in the state of Amazonas, Brazil, throughout 2021. It aimed to develop a training network for local indigenous health councilors based on the perspective of breaking away from ‘banking’ logic towards liberating practices for the action of councilors and promoting their participation in public Indigenous health policies. The activities combined different pedagogical strategies and interaction media, such as 22 face-to-face workshops, which trained 255 councilors and a distance education course, which trained 268 councilors, totaling 523 councilors; and the production of specific teaching material for the project in the form of three booklets. The training content included, in addition to fundamental notions of social control, information on the COVID-19 pandemic, the construction of approaches for social control action in the context of the health emergency, and hearings on coping with the pandemic in the territories and villages.

Keywords:
social control policies; health of indigenous populations; health councils; COVID-19; local health systems

Resumen:

El artículo describe la experiencia del proyecto “Capacitación de Consejeros Indígenas de Salud del DSEI/MAO utilizando las TIC (Tecnologías de la Información y Comunicación)”, realizado en 19 centros de base del Distrito Especial Indígena de Salud de Manaus, en el estado de Amazonas, Brasil, a lo largo de 2021. Su objetivo fue desarrollar una red de formación de consejeros indígenas locales de salud basada en la perspectiva de ruptura de las lógicas “bancarias” en dirección a prácticas liberadoras para la acción de los consejeros y la promoción de su participación en las políticas públicas de salud indígena. Las actividades combinaron diferentes estrategias pedagógicas y medios de interacción, como 22 talleres presenciales que capacitaron 255 consejeros y un curso de capacitación a distancia que formó 268 consejeros, totalizando 523 consejeros; y la producción de material didáctico específico para el proyecto en forma de tres cartillas. El contenido de la formación incluía, además de nociones básicas de control social, información sobre la pandemia de Covid-19, la construcción de enfoques para la acción de control social en el contexto de la emergencia sanitaria y la escucha sobre cómo hacer frente a la pandemia en los territorios y aldeas.

Palabras clave:
políticas de control social; salud de las poblaciones indígenas; consejos de salud; Covid-19; sistemas de salud locales

Introdução

Um dos maiores desafios para o Sistema Único de Saúde (SUS) desde sua estruturação na década de 1990 tem sido a efetivação do controle social. A construção de uma institucionalidade sobre o que seria a “participação da comunidade” – conforme descrita no artigo 7, inciso VIII, da lei n. 8.080 de 1990 (Brasil, 1990a BRASIL. Lei n 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990a. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm . Acesso em: 20 jun. 2024.
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) – passou por debates intensos sobre as metodologias necessárias para o efetivo exercício dessa participação. A questão ganha contornos mais complexos quando envolve a diferença cultural. Este trabalho tem como objetivo descrever a experiência do projeto de “Capacitação de Conselheiros Indígenas de Saúde do DSEI/MAO com uso das TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação)”, executado nos 19 polos-base do Distrito Sanitário Especial Indígena Manaus (DSEI/Manaus, também conhecido como DSEI/MAO), no Amazonas, ao longo de 2021. Esse projeto é uma iniciativa voltada para a construção de subsídios para o controle social em saúde indígena no contexto da pandemia de covid-19, buscando construir processos direcionados à intervenção dos indígenas nas políticas públicas de saúde voltadas para seus territórios.

A questão da participação social na gestão pública surge na segunda metade da década de 1970, período crítico da ditadura militar no Brasil, mediante experiências no âmbito da gestão municipal e nas mobilizações da sociedade civil. Correia ( 2000CORREIA, Maria V. C. Que controle social?: Os conselhos de saúde como instrumento. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. ) cita como exemplos de gestão participativa as experiências em Lages, no estado de Santa Catarina, os conselhos populares de Saúde na Zona Leste de São Paulo, o Conselho Popular do Orçamento de Osasco e a Assembleia do Povo de Campinas, ações que se desenrolavam nas áreas urbanas.

É importante também lembrar que essa movimentação emergiu em meio ao contexto da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em Alma Ata, no Cazaquistão (então União Soviética), em setembro de 1974. A conferência deu o tom de um novo paradigma sanitário pautado no chamado aos governos para o compromisso em trabalhar na promoção da saúde como direito de todos os povos visando a superação das desigualdades. Desse encontro saiu a Declaração de Alma Ata, que, entre outras coisas, reforçava o entendimento pela OMS de saúde como “completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade” (Declaração..., 1978 DECLARAÇÃO de Alma Ata sobre Cuidados Primários. Alma Ata, URSS: Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, 1978. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_alma_ata.pdf . Acesso em: 20 jun. 2024.
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) e como direito fundamental humano. No Brasil, essas ideias sustentaram o chamado Movimento da Reforma Sanitária, que, na contramão do desmonte de políticas sociais no continente, pressionou o poder público em defesa de um sistema de saúde universal e integral e com equidade.

E a saúde indígena? Nesse mesmo período, estruturou-se o movimento indígena fundamentado em um processo intenso de assembleias locais apoiadas pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) nos territórios, além da mobilização de organizações indígenas – formalizadas ou não –, das quais a maior expressão foi a União das Nações Indígenas (UNI). Esse movimento fomentou o questionamento sobre a forma como o Estado brasileiro vinha, historicamente, abordando a questão da proteção à saúde indígena (Welper, 2021WELPER, Elena M. Cinco Encontros e a Oitava: as ações de saúde do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no contexto pré-Constituinte. In: PONTES, Ana L. M.; MACHADO, Felipe R. S.; SANTOS, Ricardo V. (org.). Políticas antes da política de saúde indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021. p. 67-97. ), até então marcada pelo campanhismo e descontinuidade (Verani, 1999VERANI, Cibele B. L. A política de saúde do índio e a organização dos serviços no Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, v. 15, p. 171-192, 1999. ).

Esse caldo crítico deságua nos debates preparatórios da Assembleia Constituinte de 1988, cuja articulação contou tanto com o movimento da reforma sanitária quanto com o movimento indígena, ambos expressão do momento de reconstrução democrática do Brasil pós-ditadura militar. Neste contexto, também é necessário lembrar o papel que tiveram a 8ª e 9ª Conferências Nacionais de Saúde, que propuseram pela primeira vez um modelo de atenção diferenciada baseado na estratégia de distritos sanitários para garantir o acesso universal e integral à saúde, com o envolvimento da população indígena em todas as etapas do processo de planejamento, execução e avaliação das ações (Pontes, 2021PONTES, Ana L. M. Debates e embates entre reforma sanitária e indigenismo na criação do subsistema de saúde indígena e do modelo de distritalização. In: PONTES, Ana L. M.; MACHADO, Felipe R. S.; SANTOS, Ricardo V. (org.). Políticas antes da política de saúde indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021. p. 205-231. ).

Outro marco foi a 1 a Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio (I CNPSI), realizada em novembro de 1986, oito meses após a 8 a Conferência Nacional de Saúde. Ambas incorporaram os princípios de Alma Ata na proposição de uma formulação de sistema de saúde participativo e com paradigma preventivista, não apenas curativo, além da valorização de abordagens locais de saúde, da qual se originam os Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena (DSEIs).

A lei n. 9.836/1999 (Brasil, 1999 BRASIL. Lei n. 9.836, de 23 de setembro de 1999. Acrescenta dispositivos à lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, que “dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”, instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Brasília, DF: Presidência da República, 1999. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9836.htm . Acesso em: 20 jun. 2024.
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) instituiu o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SIASI-SUS) para a atenção aos povos indígenas no território brasileiro, tendo o distrito sanitário como base para o modelo de serviço com foco na Atenção Básica. Tal modelo emprega a potência dos territórios para melhorar a capacidade do sistema, combater as iniquidades e garantir a promoção da saúde e o acesso, além da referência e contrarreferência no serviço: das aldeias aos centros de referência territoriais, os polos-base, até os centros de referência do SUS nas cidades, para os casos que exigem remoção do paciente para tratamento. Em 2002, o modelo foi consolidado na forma da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) (Brasil, 2002 BRASIL. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; Fundação Nacional de Saúde, 2002. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf . Acesso em: 20 jun. 2024.
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).

São 34 DSEIs constituídos fundamentados em critérios etnológicos, linguísticos, geográficos e sociais, e por isso não se inserem em uma lógica de divisões estaduais ou municipais. No que diz respeito à participação das comunidades, a lei n. 8.142/1990 (Brasil, 1990b BRASIL. Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990b. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8142.htm . Acesso em: 20 jun. 2024.
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) estabeleceu as bases do controle social em saúde. Apresentou a formulação dos conselhos de saúde em vários níveis, sua composição paritária (50% de usuários, 50% de prestadores de serviço), e reforçou o papel das conferências de saúde, além de normas para a organização e o funcionamento do sistema de saúde e dos critérios de repasses para os estados e municípios.

Utilizou-se essa legislação para a estruturação do controle social em saúde indígena no âmbito dos DSEIs, primeiro pelo artigo 19-H da lei n. 9.836/1999 (Brasil, 1999 BRASIL. Lei n. 9.836, de 23 de setembro de 1999. Acrescenta dispositivos à lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, que “dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”, instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Brasília, DF: Presidência da República, 1999. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9836.htm . Acesso em: 20 jun. 2024.
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), depois complementada por algumas portarias, das quais a mais recente é a portaria n. 3.021, de 4 de novembro de 2020 (Brasil, 2020 BRASIL. Portaria n. 3.021, de 4 de novembro de 2020. Altera a Portaria de Consolidação GM/MS n. 4, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre o controle social no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena - SasiSUS e dá outras providências. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2020. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2020/prt3021_13_11_2020.html . Acesso em: 20 jun. 2024.
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). Esta norma determina a participação dos indígenas na formulação, acompanhamento, monitoramento e avaliação das políticas públicas de saúde e do controle dos conselhos locais compostos apenas por usuários indígenas nos polos-base.

De caráter consultivo, os conselhos locais elegem representantes dos usuários no Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi), em instância deliberativa. No âmbito nacional, a participação social se articula por meio do Fórum de Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (FPCondisi), embora sem o princípio da paridade. As conferências de saúde, que em geral ocorrem de quatro em quatro anos, orientam as diretrizes do sistema, conformando-se em um importante espaço de debates e de participação social dos diversos atores que participam do campo da saúde indígena. Na Figura 1 , temos um esquema de como funciona o controle social em saúde indígena.

Figura 1
. Esquema do controle social em saúde indígena no Brasil, 2024

O controle social em saúde indígena: desafios anteriores e posteriores à pandemia de covid-19

Um dos grandes desafios dos DSEIs, para além dos aspectos técnicos, é efetivar o princípio do controle social no cotidiano das práticas, especialmente no âmbito dos Conselhos Locais de Saúde Indígena, de caráter consultivo, que funcionam como articuladores entre a aldeia e o Conselho Distrital de Saúde.

A simples transposição das metodologias de representação política usadas pelo sistema de saúde não abrange a diversidade dos povos indígenas e de suas formas próprias de mobilização, algo que a I CNPSI já chamava a atenção. Nesse sentido, a discussão do controle social na saúde indígena assinala o necessário questionamento do próprio papel dos povos indígenas no Estado brasileiro e suas estratégias de representatividade, que são pautadas em outros princípios que não o da democracia ocidental, apresentando em seu lugar aspectos como o parentesco e o prestígio (Clastres, 2003CLASTRES, Pierre. Sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. ).

A emergência global da covid-19, doença infecciosa causada pelo vírus SARS-CoV-2, provocou alterações profundas nos serviços de saúde no mundo todo (Rothan e Byrareddy, 2020 ROTHAN, Hussin A.; BYRAREDDY, Siddappa N. The epidemiology and pathogenesis of coronavirus disease (COVID-19) outbreak. Journal of Autoimmunity, v. 109, p. 102433, maio 2020. https://doi.org/10.1016/j.jaut.2020.102433 . Disponível em: https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0896841120300469 . Acesso em: 20 jun. 2024.
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). Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) caracterizou como estado de pandemia o surto mundial da doença causada pelo novo vírus.

No Brasil, ela se espalhou rapidamente e atingiu os povos indígenas, população especialmente vulnerável à covid-19 em virtude das altas prevalências de doenças infecciosas, dos altos índices de contágio nas áreas urbanas próximas às terras indígenas e das dificuldades de acesso ao SUS, sobretudo à atenção especializada (Fundação Oswaldo Cruz, 2020 FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Programa de Computação Científica. Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2020. 36 p. Relatório, n. 4. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/40980 . Acesso em: 5 jun. 2024.
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). Segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde responsável pela atenção à saúde indígena, até fevereiro de 2023 foram registrados 73.149 casos confirmados da doença entre usuários atendidos pelos DSEIs, com 950 óbitos e mais de 163 povos indígenas atingidos (Brasil, 2023a BRASIL. Informe Epidemiológico n. 136. Brasília, DF: Ministério da Saúde; Secretaria Especial de Saúde Indígena, 2023a. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/covid-19/informes-tecnicos/2023/informe-no-136-doenca-por-coronavirus-covid-19-em-populacoes-indigenas . Acesso em: 20 jun. 2024.
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).

A covid-19 representou um desafio a mais para os indígenas nos territórios, uma vez que em meio a um cenário de desmonte das políticas de saúde, com cortes de gastos e diminuição da estrutura de atendimento (Monterastelli, 2022 MONTERASTELLI, Alessandra. Como se desmonta a Saúde Indígena. Outra Saúde (on-line), 23 set. 2022. Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasaude/como-se-desmonta-a-saude-indigena/ . Acesso em: 20 jun. 2024.
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), a desorganização do atendimento foi uma consequência presente no cenário pandêmico.

Antes mesmo da pandemia, em 2019, os conselhos de saúde indígena sofreram um duro golpe com a tentativa do Governo Federal em extinguir os conselhos sociais que faziam a interlocução entre a população e a esfera pública por meio do decreto n. 9.759, de 11 de abril de 2019 (Brasil, 2019 BRASIL. Decreto n. 9.759, de 11 de abril de 2019. Extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/d9759.htm . Acesso em: 20 jun. 2024.
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), que deslegitimava boa parte do controle social em saúde.

Lembrando que a vacinação nos territórios indígenas só foi possível a partir de junho de 2021, por conta da disponibilidade do imunizante, esse cenário de incertezas sacrificou de forma incisiva o controle social nos DSEIs, obrigando à suspensão das reuniões ordinárias dos conselhos e impondo a interlocução entre os conselheiros por canais limitados, como as redes sociais. O fortalecimento do controle social na saúde indígena transformou-se em um desafio ainda maior no contexto pandêmico.

Nos DSEIs, seja pela necessária priorização dos atendimentos, seja por falta de pessoal qualificado ou de estrutura, a qualificação dos conselhos em seus três níveis, especialmente os locais, é frequentemente insuficiente para a demanda, especialmente quando levamos em conta a alta rotatividade dos conselheiros a cada dois anos, quando são realizadas as eleições locais desse cargo. O desenvolvimento de abordagens pedagógicas adequadas e a oferta de estrutura de atividades e ações continuadas de formação são os principais desafios.

Um levantamento efetuado por Ferreira ( 2012FERREIRA, Luciana B. O controle social no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena: uma reflexão bioética. 2012. 147 f. Tese (Doutorado em Bioética) – Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília, Brasília, 2012. ) dá um panorama dessas dificuldades: na ocasião do estudo, apenas nove dos 34 DSEIs tinham realizado capacitações para conselheiros no ano de 2009, e apenas dois destes criaram capacitações voltadas especificamente para conselheiros locais. Os resultados apresentados pela autora mostram que, para os entrevistados, uma das formas de melhorar o controle social seria pela capacitação dos conselheiros, sendo fundamental a compreensão desses atores sobre o papel do controle social para que possam atuar de forma mais resolutiva na fiscalização dos DSEIs e na busca de abordagens aos problemas.

Tais questões também estão presentes no DSEI Manaus, alvo do “Projeto de Capacitação de Conselheiros Indígenas de Saúde do DSEI/MAO com uso das TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação)”. A proposta teve como objetivo oferecer aos conselheiros os conhecimentos e as atitudes essenciais ao desempenho de suas atribuições legais e para o monitoramento e fiscalização das ações de combate ao coronavírus no DSEI Manaus. A iniciativa fazia parte de uma aprendizagem significativa, não só instrumentalizando os conselheiros para sua atuação, mas fortalecendo a lógica do controle social democrático no cenário da emergência sanitária da covid-19.

Metodologia

Apesar do nome, o DSEI Manaus não tem seu território de abrangência apenas em Manaus. Com dimensões continentais de 303.092 km 2 , 268 aldeias e 19 polos-base, atende cerca de 31 mil indígenas de várias etnias, dentre elas as que possuem maior percentual são Mura, Munduruku, Pirahã, Apurinã, Tikuna, Sateré, Hixkaryana (Brasil, 2023b BRASIL. Relatório Situacional do Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena Manaus. Manaus: Ministério da Saúde; Secretaria de Saúde Indígena, 2023b. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/chamamentos-publicos/2023/chamamento-publico-sesai-ms-no-01-2023/anexo-xxvii-relatorio-situacional-dsei-manaus.pdf . Acesso em: 20 jun. 2024.
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). A grande extensão territorial comporta uma diversidade de cenários sociais que vão de aldeias periurbanas, comunidades ribeirinhas e sítios até aldeias indígenas de pouco contato, como é o caso dos Pirahã.

O território também possui características naturais diversas, como regiões de florestas de terra firme, florestas fluviais alagadas e matas de igapó. Trata-se de uma região de infraestrutura precária, desprovida de estradas de alta rodagem, com acesso possibilitado, em geral, pelas vias fluvial e aérea. Os municípios do interior do Amazonas não possuem rede de UTI, o que atrapalha a referência e contrarreferência e a continuidade das ações da atenção básica para outras esferas do sistema de saúde.

Além da rede de atenção, pautada na Atenção Básica, o DSEI Manaus administra ainda a Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai), um ‘entreposto’ de saúde onde pacientes removidos do território para tratamentos de média e alta complexidade ficam hospedados com acompanhantes por conta de tratamentos ou cirurgias. A Casai Manaus também serve de referência para pacientes indígenas de outros DSEIs da Amazônia, como o Yanomami, Lábrea, Alto Solimões, Alto Rio Negro e Leste Roraima.

O Condisi é composto por 60 membros e 22 conselhos locais, totalizando 255 conselheiros titulares e o mesmo número de suplentes. Todas as aldeias elegem um conselheiro de saúde e um suplente, o que confere uma enorme capilaridade para esse segmento.

A execução do “Projeto de Capacitação de Conselheiros Indígenas de Saúde do DSEI/MAO com uso das TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação)” só foi possível graças à parceria entre a Fundação Oswaldo Cruz, o DSEI Manaus e o Condisi Manaus, que passou por compartilhamento de tarefas, pactuação de cronogramas, construção de abordagens pedagógicas e a divisão dos altos custos financeiros das oficinas presenciais, especialmente no que diz respeito ao transporte e à alimentação. O objetivo do projeto foi promover a qualificação em controle social com oficinas presenciais e um curso, na modalidade de Educação a Distância (EaD), para os conselheiros locais e distritais do DSEI Manaus. As oficinas presenciais ocorreram em locais disponibilizados pelas lideranças das comunidades: escolas, centros comunitários, sedes de associações e até igrejas. As datas foram pactuadas entre Condisi e DSEI e observaram os calendários locais.

A equipe de trabalho foi composta pela coordenadora do projeto, sanitarista com experiência em controle social de saúde indígena, dois antropólogos, uma pedagoga, um estudante de graduação que atuou no suporte administrativo. Do Condisi Manaus, participaram dois assessores indígenas, o secretário executivo, além do presidente e vice-presidente.

Para a integração das equipes, organizaram-se reuniões on-line , através do aplicativo Google Meet, e presenciais, na sede do Condisi, para discussão do conteúdo das oficinas, planejamento aos aspectos socioculturais dos indígenas, estratégias de uso das tecnologias da informação e comunicação (TICs) e orientações dos conselheiros e da equipe sobre medidas de prevenção da covid-19. Evitou-se qualquer hierarquia entre os membros, especialmente a tradicional ‘academia versus movimento social’. Todos eram igualmente envolvidos no processo de estabelecimento de objetivos, construção da abordagem e seleção de materiais.

A educação conjugada a processos reivindicatórios constitui-se em um processo formativo em que as pessoas vão se descobrindo seres humanos, se construindo sujeitos de direitos, baseadas na luta pela sua própria cidadania, como um projeto educativo maior (Lage, 2013LAGE, Allene. Elementos para compreensão da Educação nos movimentos sociais. In: LAGE, Allene. Educação e movimentos sociais: caminhos para uma pedagogia de luta. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2013. (Série Extensão, v. 19). p. 25-51. , p. 42). Nas oficinas presenciais, houve um grande envolvimento das lideranças de cada conselho local, que auxiliaram na estrutura dessas oficinas e na tradução para as línguas indígenas, quando necessário.

A orientação pedagógica das oficinas pautou-se na perspectiva freireana de uma educação libertadora que desenvolva processos de conhecimento e que faça sentido para seus sujeitos e na superação das práticas ‘bancárias’ que concebem os indígenas como receptores passivos de informações (Freire, 1987FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ). Outra referência são as metodologias ativas, que se baseiam na perspectiva do aluno como centro do processo ensino-aprendizagem, por intermédio da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP), que valoriza a transdisciplinaridade e o abandono de hierarquias entre quem aprende e quem ensina, adotando os problemas cotidianos como estímulo para a aprendizagem e para o desenvolvimento das habilidades de pesquisa e resolução (Levin, 2001LEVIN, Barbara B. Energizing teacher education and professional development with problem-based learning. ASCD: United States, 2001. ).

Também foram referenciais de orientação a noção de ‘bem-viver’ e a de território como produto de relações sociais. ‘Bem-viver’ é um termo oriundo do kíchwa ( sumake kawsay ) e propõe uma crítica à forma segmentada com que o pensamento ocidental concebe o conhecimento e a relação da humanidade com a natureza (Acosta, 2016ACOSTA, Alberto. O Bem-Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Elefante, 2016. ). O bem-viver religa formas de ver o mundo e reintegra as pessoas às outras expressões da existência com as quais partilham o planeta – outros humanos, outras espécies e outras ontologias –, buscando estratégias de equilíbrio e valorizando a perspectiva comunitária.

O conteúdo programático do curso foi dividido em quatro tópicos. O primeiro refere-se à atenção à saúde indígena no Brasil. Nele, é construído com os participantes um entendimento do campo da saúde indígena ao longo da história, desde as missões religiosas do período colonial, que marca o início da convivência dos saberes indígenas com o pensamento ocidental, passando pelas expedições de Noel Nutels, até as lutas do movimento indígena aliado ao movimento de reforma sanitária, que dão origem à criação do SUS na década de 1980 e seus desdobramentos. Nesse tópico, é muito importante a participação das lideranças mais idosas, pois é comum encontrar entre elas pessoas que testemunharam algumas dessas mobilizações nas últimas décadas. Quando ocorre, elas são convidadas a falar sobre suas experiências.

O segundo tópico é sobre a origem do SUS. Desenvolveu-se com os participantes as bases de funcionamento do sistema, a diferença entre as redes de atenção primária e de média e alta complexidade, bem como a forma como a saúde indígena se relaciona com cada uma através dos DSEIs. São conhecimentos importantes para a formação dos conselheiros e que serão orientadores de sua prática cotidiana.

O terceiro é o controle social em saúde indígena. A abordagem pedagógica utilizada evitou o vício frequente das formações de controle social de valorizar demais apostilas e conteúdo impresso, embora um compilado da legislação básica seja fornecido aos participantes para consultas futuras na atuação dos conselheiros. Optamos pelo uso da oralidade, o que evita a exclusão de participantes sem escolaridade formal, valorizando suas experiências e compreensões com diálogos. São apresentados em cartazes os artigos 196 a 200 da Constituição Federal, bem como a Lei do Controle Social no SUS (lei n. 8.142/1990) e a portaria do Ministério da Saúde que fornece as bases do controle social na saúde indígena (portaria n. 3.021/2020). Os grupos discutiram, ponto a ponto, o que a legislação estabelece, com amplo uso de exemplos do cotidiano dos territórios. Conteúdos sobre o funcionamento do Condisi e instâncias relacionadas também são construídos nesse tópico, que aborda o sistema de representação política, a composição do Condisi e dos conselhos locais, suas atribuições, e outras instâncias de controle social, como o Fórum de Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (FPCondisi), Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (CISI), que assessora o Conselho Nacional de Saúde nas questões da saúde indígena, e as conferências nacionais de saúde e saúde indígena.

O quarto e último tópico foi dedicado à construção de um entendimento sobre o papel do Conselheiro Local de Saúde frente à pandemia de covid-19. Fez-se amplo uso de teatro com encenações de reuniões de conselhos, reflexões sobre questões do cotidiano em rodas de conversa e a informação sobre a importância da vacinação – incluindo-se aí o combate às notícias falsas sobre imunização, que alcançaram as comunidades indígenas como o restante do país, bem como a construção de planos de trabalho para cada conselho local participante.

A formação, tanto na modalidade presencial como na on-line , tinha como público-alvo prioritário os conselheiros locais e distritais indígenas (titulares e suplentes) do DSEI Manaus, mas foi aberta a qualquer comunitário que quisesse participar das oficinas, envolvendo, dessa forma, o maior número possível de pessoas na discussão do controle social. As adesões dos conselheiros ao projeto nos territórios foram promovidas pelos conselheiros distritais, que também mobilizaram as comunidades de cada polo-base que receberia o evento.

Como medida de prevenção, as equipes do Condisi e da Fundação Oswaldo Cruz faziam exames individuais para a detecção de covid-19 antes da entrada nas aldeias e no retorno, além do uso de máscaras de proteção, que eram também disponibilizadas aos participantes. Além disso, incentivou-se o uso de álcool em gel no decorrer do evento. As entradas nas aldeias eram autorizadas pelo DSEI e pelas secretarias municipais de saúde do município de referência do polo-base, que aprovavam a reunião do evento mediante análise do momento epidemiológico da covid-19 naquela região.

Realizaram-se as oficinas na modalidade presencial entre os meses de junho de 2021 e fevereiro de 2022, em 19 polos-base, distribuídos em 16 municípios. Estabeleceu-se que dois dias de atividades seriam reservados à oficina e dois dias destinados às comunidades para que obtivessem da equipe do Condisi atualizações sobre o DSEI, discutissem o regimento interno dos conselhos locais e efetivassem a escolha de seus representantes (conselheiro local titular e suplente), conjugando conhecimento e prática em controle social. O Tabela 1 mostra o calendário de atividades das oficinas presenciais em cada polo-base do DSEI.

Tabela 1
. Calendário das oficinas presenciais, 2021

O conteúdo programático das oficinas foi composto pelas seguintes temáticas: apresentação e acolhimento dos participantes; bases históricas, princípios e funcionamento do Sistema Único de Saúde; política de saúde indígena; controle social e saúde indígena; relato de experiência sobre a covid-19 (quais são os problemas enfrentados na aldeia e quais são estratégias criadas pelos indígenas para o enfrentamento da covid-19 no território); rodas de conversa com os temas ‘Quais são os desafios dos conselheiros frente à covid-19?’ e ‘A importância da vacinação’; e grupo de trabalho com recomendações sobre a atuação dos conselheiros nas aldeias e no enfrentamento da pandemia.

Desenvolvimento

Logo no início das atividades, a equipe do projeto percebeu a necessidade de reforçar as medidas de proteção sanitária no contexto pós-imunização, pois havia a ideia de que, com a vacina nas áreas indígenas, iniciada em 2021, a proteção não seria mais necessária. Dessa percepção da equipe do projeto nasceu a cartilha Os indígenas estão vacinados. E agora? , construída com os conselheiros da etnia Munduruku do polo-base Nova Olinda ( Figura 2 ). O material buscou privilegiar o ponto de vista indígena na linguagem e na imagética. O conteúdo foi formulado por conselheiros com a assistência da equipe do projeto, e os desenhos foram feitos por Marques Ferreira dos Santos e Uziel Glória de Oliveira, artistas dessa etnia. A cartilha serviu de apoio nas oficinas presenciais e orientava as comunidades no pós-vacinação sobre o protocolo de visitas às cidades, vulnerabilidade de crianças ao vírus (pois naquele período a vacina para menores ainda não havia sido liberada) e monitoramento de novos casos.

Figura 2
. Capa da cartilha Os indígenas estão vacinados. E agora?, produzida pelo projeto

A inscrição no curso na modalidade EaD, visando ampliar o público das oficinas presenciais, foi franqueada pela plataforma Google Forms, de fácil utilização pelos smartphones , e divulgada pelos conselheiros distritais nos territórios. Inicialmente, a proposta era desenvolver um aplicativo de celular específico para o projeto on-line . Entretanto, a equipe ponderou que isso inviabilizaria o curso para muitas pessoas, uma vez que precisaria de espaço de memória nos smartphones e outras demandas que os usuários indígenas nas comunidades nem sempre poderiam responder. Avaliou-se que o melhor seria usar um aplicativo que os indígenas já tivessem familiaridade. Assim, definiu-se o WhatsApp, que é também a rede social mais usada pelos indígenas nas aldeias.

De forma complementar, criou-se uma página web em HTML para hospedar o material didático da versão on-line do curso. Após a conclusão do curso, os participantes fizeram uma atividade avaliativa no próprio Google Forms, e, após a aprovação, a equipe de execução do projeto enviou o certificado de conclusão em formato PDF pelo próprio WhatsApp.

O material didático foi composto principalmente da cartilha Os indígenas estão vacinados. E agora? , de vídeos produzidos no projeto e de um conjunto de mais três cartilhas, em formato de quadrinhos, intituladas O que é SUS? , Vamos conhecer a Política de Saúde Indígena? e Controle Social em Saúde Indígena , com o detalhamento do conteúdo ministrado nas oficinas em português, incluindo as referências na legislação, de forma lúdica, além de um caderno com os artigos 196 a 200 da Constituição Federal, a lei n. 8.142/1990 e a portaria n. 3.021/2020. Por conta das restrições orçamentárias, não foi possível a tradução do material para as mais de 15 línguas indígenas praticadas no território do DSEI.

O curso on-line foi desenvolvido de forma que os conselheiros atuassem como multiplicadores de conhecimento em suas comunidades, podendo baixar e compartilhar os conteúdos.

Em consenso com a equipe e com as instituições parceiras, estabeleceu-se que o curso ficaria por tempo indeterminado no site oficial do Condisi Manaus, para que todos que tivessem interesse pudessem acessar e realizar o curso, e não apenas os indígenas.

Figura 3
. Página da cartilha Vamos conhecer a Política de Saúde Indígena?, produzida pelo projeto)

O projeto foi amplamente divulgado em portais, blogs e redes sociais e pela equipe do Condisi. Realizaram-se 22 oficinas presenciais em todos os polos-base do DSEI Manaus, com 255 conselheiros qualificados presencialmente e 268 na modalidade a distância, o que superou as expectativas do projeto. Por seu caráter aberto, o material disponibilizado ultrapassou as fronteiras do DSEI Manaus, alcançando as populações de outros DSEIs.

Os momentos de formação ensejaram processos de reflexão e construção de entendimentos coletivos do papel dos conselheiros de saúde no acompanhamento e na avaliação das ações de saúde nos seus territórios, fundamentais para a valorização do princípio do controle social no SUS.

Conclusão

A capacitação de conselheiros é uma demanda constante apresentada nas reuniões do Condisi e nas conferências de saúde indígena, considerando a rotatividade deles e a densidade dos temas da política de saúde indígena que são a base para a atuação dos conselheiros. O Condisi do DSEI Manaus realiza capacitações, em geral ministradas pelos próprios membros da diretoria e assessores indígenas, unindo tais atividades com as reuniões dos conselhos distritais e locais. O “Projeto Capacitação de Conselheiros Indígenas de Saúde do DSEI/MAO com uso das TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação)” constituiu-se em uma quebra de paradigma ao desenvolver ações exclusivamente voltadas para a capacitação, conjugando-as com as atividades dos conselhos, fomentando senso crítico com ferramentas criadas especificamente para esse contexto e ensejando um processo de formação que se quer permanente e contínuo e que contribuiu no enfrentamento da pandemia de covid-19.

O caráter de parceria do projeto, envolvendo gestores, conselheiros e pesquisadores, promoveu uma intensa rede de troca de conhecimento e compartilhamento de responsabilidades em prol do controle social, que saiu fortalecido como uma área importante na política de saúde indígena no âmbito do DSEI Manaus.

Os conselheiros avaliaram que a aplicação dos recursos pedagógicos contribuiu para qualificar a atuação deles e para que se difundisse nas aldeias informações fidedignas sobre a covid-19, combatendo as notícias falsas relacionadas às vacinas e aos tratamentos. No polo-base Novo Airão, por exemplo, um conselheiro representante de uma comunidade que não havia se vacinado por influência de fundamentalismo religioso foi convencido da importância da imunização durante a oficina.

Outro aspecto das atividades que repercutiu na qualidade do sistema de informações foi o entendimento da necessidade de preenchimento dos cadastros corretamente, com identificação étnica, para que o sistema possa ter informações corretas sobre os usuários, um problema perceptível principalmente em comunidades onde o DSEI passou a atender mais recentemente.

O controle social precisa estar relacionado com a gestão dos serviços de saúde, mas mantendo independência política das coordenações dos distritos e da secretaria de saúde indígena. O financiamento das ações do controle social é responsabilidade da Sesai, e cabe aos gestores zelarem pela independência política dos conselhos locais e distritais. No entanto, na prática, os conselheiros enfrentam muita dificuldade para manter sua autonomia em relação à gestão distrital, com frequente confusão em relação ao papel do conselheiro e do próprio controle social.

A atuação efetiva e construtiva do controle social depende em grande parte de uma educação permanente que possibilite uma visão crítica dos programas e ações de saúde, bem como das decisões da gestão. À Sesai cabe garantir que essa educação permanente seja efetivada e não sofra interrupções administrativas. Para tanto, é necessário que se crie no DSEI parâmetros pedagógicos que observem e reconheçam as especificidades étnicas, além das demandas específicas de cada nível de educação permanente para o controle social.

Durante a pandemia, os conselheiros locais e distritais assumiram, com outras lideranças indígenas como caciques, professores e agentes indígenas de saúde, o protagonismo diante do cenário pandêmico em várias frentes, como na organização da assistência social e de saúde nas aldeias, na organização de barreiras sanitárias, na distribuição de cestas básicas, na remoção de pacientes da covid-19 para os serviços de referência, na participação das comissões responsáveis em sacar as aposentadorias e benefícios dos indígenas, entre outras ações.

O momento de formação oportunizou, ainda, que os participantes pudessem compartilhar sentimentos de medo e apreensões vivenciados na pandemia, bem como esclarecer dúvidas em relação aos mecanismos de prevenção e proteção à covid-19.

Como afirma Lima ( 2008LIMA, Kátia M. S. O controle social e a saúde indígena: um estudo dos conselhos de saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena de Manaus/AM. 2008. 148 f. Dissertação (Mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia) – Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2008. ), os quadros de saúde indígenas devem ser vistos em uma perspectiva integralizada, na qual elementos como a ameaça aos territórios, representadas por invasões e poluição do entorno, colaboram para a degradação das condições de saúde das populações indígenas em seus territórios. A pandemia de covid-19 tornou tais cenários ainda mais desafiadores.

Qualificar o controle social em saúde indígena por sua potência e capilaridade é um elemento fundamental no enfrentamento dos problemas e no fortalecimento do sistema de saúde de modo geral, na promoção do princípio da equidade do SUS e na formação de lideranças com maior capacidade de intervir e participar de fato das decisões da gestão da saúde indígena. Portanto, seu papel não deve se restringir apenas ao de um legitimador passivo de instâncias representativas dos não-indígenas.

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  • Como citar:
    MENEZES, Kátia M. L. et al . Participação social e saúde: a qualificação de conselheiros indígenas no contexto da covid-19 no Amazonas. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 22, 2024, e02775256. https://doi.org/10.1590/1981-7746-ojs2775
  • 2
    Este trabalho foi financiado com recursos do “Projeto Capacitação de Conselheiros Indígenas de Saúde do DSEI/MAO com uso das Tecnologias de Informática e Comunicação (TICs)”, do Programa Inova Fiocruz, edital “Encomendas Estratégicas – Saúde Indígena” (número de inscrição: 73321177561468).
  • 3
    Este artigo desenvolveu reflexão sobre uma experiência, não tendo sido submetido a um Comitê de Ética em Pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2024
  • Aceito
    17 Maio 2024
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