Resumo
O conceito de recovery no campo da saúde mental, oriundo do movimento de pacientes e familiares nos países anglo-saxões, tornou-se relevante para a compreensão de práticas de cuidado, valorizando aquelas que incorporem o protagonismo dos usuários e uma dimensão crítica dos métodos de tratamento. Tendo como objetivo investigar as diferentes perspectivas nas quais o conceito vem sendo compreendido e experimentado no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira, realizou-se uma revisão integrativa da literatura publicada no país sobre o recovery, tomando como critério de inclusão textos que relatam ou analisam experiências concretas de cuidado e que se definam como sendo ‘baseadas no recovery’. Após ampla busca, foram analisados 32 trabalhos, entre artigos, dissertações e teses. O termo recovery aparece na bibliografia brasileira de saúde mental a partir de 2011, e os trabalhos concentram-se notavelmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, ligados a instituições de ensino superior e pesquisa. Grande parte da produção não incorpora elementos-chave do conceito estudado, como o protagonismo de usuários, além de por vezes tomar recovery como sinônimo de reabilitação psicossocial. Apesar do avanço e da consolidação do campo da atenção psicossocial no país, a dimensão do protagonismo de usuários ainda é incipiente na experiência brasileira.
Palavras-chave:
recovery e saúde mental; reforma psiquiátrica brasileira; atenção psicossocial; recovery
Abstract
The concept of recovery in the field of mental health, originating from the movement of patients and families in Anglo-Saxon countries, has become relevant for the understanding of care practices, valuing those that incorporate the protagonism of users and a critical dimension of treatment methods. Aiming to investigate the different perspectives in which the concept has been understood and experienced in the context of the Brazilian Psychiatric Reform, an integrative review of the published literature in the country regarding recovery was carried out, taking as inclusion criteria texts that report or analyze concrete experiences of care and define themselves as ‘recovery based’. After an extensive search, 32 works were analyzed, including articles, dissertations and theses. The term recovery appears in the Brazilian mental health bibliography from 2011 onwards, and the works are notably concentrated in the states of São Paulo and Rio de Janeiro, linked to higher education and research institutions. Much of the production does not incorporate key elements of the concept studied, such as the role of users, in addition to sometimes taking recovery as a synonym for psychosocial rehabilitation. Despite the advancement and consolidation of the field of psychosocial care in the country, the dimension of the role of users is still incipient in the Brazilian experience.
Keywords:
recovery and mental health; Brazilian psychiatric reform; psychosocial care; recovery
Resumen
El concepto de recovery en el campo de la salud mental, originario del movimiento de pacientes y familiares en los países anglosajones, se volvió relevante para la comprensión de las prácticas de cuidado, valorando aquellas que incorporan el protagonismo de los usuarios y una dimensión crítica de los métodos de tratamiento. Con el objetivo de investigar las diferentes perspectivas en que el concepto ha sido entendido y vivido en el contexto de la Reforma Psiquiátrica Brasileña, se realizó una revisión integradora de la literatura publicada en el país sobre el recovery, tomando como criterio de inclusión textos que informen o analicen experiencias concretas de cuidado y que se definen a sí mismas como ‘basadas en el recovery’. Luego de una extensa búsqueda, se analizaron 32 trabajos, entre artículos, disertaciones y tesis. El término recovery aparece en la bibliografía brasileña de salud mental a partir de 2011, y los trabajos se concentran notablemente en los estados de São Paulo y Rio de Janeiro, vinculados a instituciones de enseñanza superior y de investigación. Gran parte de la producción no incorpora elementos clave del concepto estudiado, como el protagonismo de los usuarios, además de tomar, en ocasiones, recovery como sinónimo de rehabilitación psicosocial. A pesar del avance y consolidación del campo de la atención psicosocial en el país, la dimensión del protagonismo de los usuarios aún es incipiente en la experiencia brasileña.
Palabras clave:
recovery y salud mental; reforma psiquiátrica brasileña; atención psicosocial; recovery
Introdução
Ao longo das últimas décadas, a Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) obteve diversas conquistas, como a criação e a expansão dos serviços comunitários de saúde mental no país, a redução progressiva de leitos em hospitais psiquiátricos e a promulgação da lei n. 10.216, que contribuiu para a ampliação do patamar de sua institucionalidade e imprimiu a moldura da saúde pública na saúde mental, definindo “um novo cenário assistencial” (Couto e Martinez, 2007COUTO, Maria C. V.; MARTINEZ, Renata G. (orgs.). Saúde mental e saúde pública: questões para a agenda da Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: NUPPSAM/IPUB/UFRJ, 2007. Disponível em: https://www.nuppsam.org/saude-mental-e-saude-publica-questoes-para-a-agenda-da-reforma-psiquatrica /. Acesso em: 7 ago. 2021.
https://www.nuppsam.org/saude-mental-e-s...
, p. 9), além de revelar “desafios inéditos no enfrentamento de seu mandato social e terapêutico” (Couto e Martinez, 2007COUTO, Maria C. V.; MARTINEZ, Renata G. (orgs.). Saúde mental e saúde pública: questões para a agenda da Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: NUPPSAM/IPUB/UFRJ, 2007. Disponível em: https://www.nuppsam.org/saude-mental-e-saude-publica-questoes-para-a-agenda-da-reforma-psiquatrica /. Acesso em: 7 ago. 2021.
https://www.nuppsam.org/saude-mental-e-s...
, p. 9). Entre seus numerosos desafios, autores destacam a incorporação efetiva das ações de saúde mental na atenção básica (Dimenstein et al., 2009DIMENSTEIN, Magda et al. O apoio matricial em unidades de Saúde da Família: experimentando inovações em saúde mental. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 63-74, 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/4bpk7xBvqws9X7zg7XngFmB/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), a formação de recursos humanos (Alverga e Dimenstein, 2006ALVERGA, Alex R.; Dimenstein, Magda. Psychiatric reform and the challenges posed by deinstitutionalization. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 10, n. 20, p. 299-316, jul./dez. 2006. 10.1590/S1414-32832006000200003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/8ZjNQ6LKhtkhM4FtLXnXVbT/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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; Bezerra Jr., 2007BEZERRA JR, Benilton. Desafios da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 243-250, 2007. 10.1590/S0103-73312007000200002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/H4wVY4ZDk9nKqdGsdzyJkWg/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), a garantia da qualidade dos serviços substitutivos (Delgado, 2013DELGADO, Pedro G. G. Reforma Psiquiátrica: conquistas e desafios. Revista EPOS, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, 2013. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epos/v4n2/09.pdf . Acesso em: 7 ago. 2021.
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epos/v4n2/...
) e o estabelecimento de critérios de avaliação da efetividade das atividades terapêuticas (Bezerra Jr., 2007BEZERRA JR, Benilton. Desafios da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 243-250, 2007. 10.1590/S0103-73312007000200002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/H4wVY4ZDk9nKqdGsdzyJkWg/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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).
De acordo com Bezerra Jr. (2007BEZERRA JR, Benilton. Desafios da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 243-250, 2007. 10.1590/S0103-73312007000200002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/H4wVY4ZDk9nKqdGsdzyJkWg/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), a Reforma Psiquiátrica, por ser uma política pública de mudança de paradigma, se desdobra em diversos planos: assistencial, jurídico, político e sociocultural. Sobre o plano assistencial, o autor chama a atenção para a necessidade de se pensar sobre formas inovadoras de organizar o cuidado, além de modelos de intervenção que possam se adequar aos novos dispositivos, indo além da clínica tradicional. Como uma das dimensões do plano assistencial, a clínica precisa avançar no sentido da elaboração de dispositivos teóricos e de ações “que ao mesmo tempo retenham o horizonte fundamental da clínica (a ampliação da capacidade normativa psíquica, existencial e social do sujeito) e amplie o alcance da rede” (Bezerra Jr., 2007BEZERRA JR, Benilton. Desafios da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 243-250, 2007. 10.1590/S0103-73312007000200002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/H4wVY4ZDk9nKqdGsdzyJkWg/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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, p. 244).
Diante desse cenário, a noção de recovery tem sido progressivamente incorporada no campo brasileiro de práticas na atenção psicossocial. Esse conceito surgiu na década de 1970 nos países anglo-saxões, a partir de debates feitos por usuários e usuárias que, após receberem o diagnóstico de um transtorno mental grave, buscavam identificar os processos de retomada das rédeas das próprias vidas. O termo estabeleceu-se nos anos 1980, quando estudos começaram a indicar que a deterioração não é o único curso possível dos transtornos mentais (Jacobson e Greenley, 2001JACOBSON, Nora; GREENLEY, Dianne. What is recovery? A conceptual model and explication. Psychiatric Services [on-line], v. 52, n. 4, p. 482-485, 2001. 10.1176/appi.ps.52.4.482. Disponível em: https://ps.psychiatryonline.org/doi/full/10.1176/appi.ps.52.4.482 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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). Anthony (1993ANTHONY, Willian A. Recovery from mental illness: the guiding vision of the mental health service system in the 1990s. Psychosocial Rehabilitation Journal, v. 16, n. 4, p. 11-23, 1993. DOI: 10.1037/h0095655.
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, p. 15) define a experiência de recovery como um “processo profundamente pessoal e único de mudança nas atitudes, valores, sentimentos, objetivos, habilidades e papéis”; é uma forma de “viver uma vida satisfatória, esperançosa e significativa, mesmo com as limitações causadas pela doença” (Anthony, 1993ANTHONY, Willian A. Recovery from mental illness: the guiding vision of the mental health service system in the 1990s. Psychosocial Rehabilitation Journal, v. 16, n. 4, p. 11-23, 1993. DOI: 10.1037/h0095655.
https://doi.org/10.1037/h0095655....
, p. 15).
Internacionalmente, pesquisadores de diversos países, como Canadá, Noruega, Inglaterra e Austrália, vêm indicando o recovery como uma mudança paradigmática no campo da saúde mental (Costa, 2017COSTA, Mark N. Recovery como estratégia para avançar a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 1-16, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69532/41654 . Acesso em: 7 ago. 2021.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbs...
; Jacobson e Greenley, 2001JACOBSON, Nora; GREENLEY, Dianne. What is recovery? A conceptual model and explication. Psychiatric Services [on-line], v. 52, n. 4, p. 482-485, 2001. 10.1176/appi.ps.52.4.482. Disponível em: https://ps.psychiatryonline.org/doi/full/10.1176/appi.ps.52.4.482 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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). Em 2013, ao divulgar a visão do Plano de Ação em Saúde Mental para o período 2013-2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não só aponta o recovery como objetivo geral como também recorre ao conceito ao longo de todo o documento (World Health Organization, 2013WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Mental Health Action Plan 2013-2020. Geneva, Switzerland: WHO Document Production Services, 2013.; Costa, 2017COSTA, Mark N. Recovery como estratégia para avançar a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 1-16, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69532/41654 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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). A OMS indica a necessidade de os serviços comunitários de saúde mental incluírem em seu escopo abordagens ‘baseadas em recovery’, centralizando o cuidado no apoio aos indivíduos com transtorno mental em direção aos seus interesses e objetivos (Patel et al., 2018PATEL, Vikram et al. The Lancet Commission on global mental health and sustainable development. The Lancet, London, v. 392, n. 10.157, p. 1.553-1.598, 27 out. 2018. 10.1016/S0140-6736(18)31612-X. Disponível em: https://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736(18)31612-X.pdf . Acesso em: 7 ago. 2021.
https://www.thelancet.com/pdfs/journals/...
). Para tanto, os serviços devem contribuir para a compreensão dos usuários sobre sua condição, auxiliando-os em sua recuperação de forma horizontal e permitindo-lhes escolher formas de tratamento e de suporte. Além disso, orienta-se que os serviços garantam aos usuários o acesso a direitos, trabalho, moradia, educação e participação em atividades comunitárias.
No entanto, para outras realidades, como a brasileira, Vasconcelos (2013VASCONCELOS, Eduardo M. Empoderamento de usuários e familiares em saúde mental e em pesquisa avaliativa/interventiva: uma breve comparação entre a tradição anglo-saxônica e a experiência brasileira. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2.825-2.835, 2013. 10.1590/S1413-81232013001000007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/v8BSgLTPkSN4bMTTBYQHPNM/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) alerta para o processo de apropriação dessas abordagens, uma vez que países anglo-saxões e do norte da Europa dispõem de um contexto sociocultural favorável às experiências de empoderamento de usuários, perspectiva importante ao recovery, bastante distinto do brasileiro, com características históricas, sociais e culturais estruturais próprias. Ademais, o Brasil tem enfrentado um contexto político de desmonte de políticas públicas, cortes de investimento na saúde pública, precarização dos vínculos de trabalho e esvaziamento dos espaços formais de controle social. Nesse cenário de ameaça em que o Sistema Único de Saúde (SUS) e o modelo de atenção psicossocial proposto pela Reforma Psiquiátrica se encontram, faz-se necessário um esforço conjugado de resistência ante os retrocessos para o movimento antimanicomial e para o protagonismo de usuários, usuárias e familiares, fundamental ao movimento de recovery.
Desse modo, ao se buscar avançar no debate relacionado ao recovery no contexto brasileiro, foi realizada uma revisão integrativa da literatura, que teve o objetivo de compreender as formas como o conceito tem sido apreendido e utilizado nas práticas em saúde mental no país, incluindo pesquisas, assistência ou projetos de extensão. Com isso, procuramos contribuir para o campo da atenção psicossocial no Brasil, sobretudo no que diz respeito ao processo de inclusão de usuários, usuárias e familiares nesse campo.
Percurso seguido e critérios de inclusão e exclusão
Ao se considerar a escassez de produções em torno do conceito de recovery no Brasil (Presotto et al., 2013PRESOTTO, Rodrigo F. et al. Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2.837-2.845, out. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/aH7b4YzPnd3Kt4QPr6GVDJcy/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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; Vasconcelos, 2013VASCONCELOS, Eduardo M. Empoderamento de usuários e familiares em saúde mental e em pesquisa avaliativa/interventiva: uma breve comparação entre a tradição anglo-saxônica e a experiência brasileira. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2.825-2.835, 2013. 10.1590/S1413-81232013001000007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/v8BSgLTPkSN4bMTTBYQHPNM/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), primeiramente é realizada uma revisão exploratória com base na ferramenta de buscas Google Acadêmico, por se tratar de uma base de dados mais ampla que poderia auxiliar-nos nessa etapa de revisão. Utilizando os descritores “saúde mental” e “recovery”, com o filtro da língua portuguesa, encontramos 18.500 publicações. Após a inclusão do descritor “Brasil”, obtivemos 4.180 resultados.
Feita a análise das produções encontradas nas primeiras páginas da plataforma, verificou-se que grande parte não se referia ao conceito tratado neste artigo, mas à ideia de recuperação exclusivamente como remissão de sintomas, ligada à abstinência do uso de álcool e outras drogas, ou fora do campo da saúde mental, em outras áreas da saúde. Dentre os trabalhos encontrados que, de fato, se referiam ao conceito conforme tratamos neste artigo, a maioria apenas o citava, não o abordando de forma teórica ou apresentando suas repercussões nos processos de tratamento e recuperação de pessoas que vivem intensos sofrimentos psicossociais.
Verificou-se ainda que as publicações brasileiras sobre o conceito de recovery começaram a surgir a partir de 2011. Além de artigos publicados em periódicos, grande parte era referente a teses e dissertações, direcionando-nos à sua inclusão no presente estudo. Foi feita uma tentativa de busca no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que não se revelou produtiva com os descritores utilizados, considerando os diversos sentidos atribuídos à palavra “recovery” e os limites de busca avançada da plataforma. Assim, optou-se por seguir o caminho de busca pelas bases SciELO e pelo Google Acadêmico.
A partir da etapa exploratória, ao se considerarem a escassez de produções sobre o tema e a dificuldade de busca em razão da polissemia do termo recovery, optou-se pela inclusão de artigos, teses e dissertações encontrados e que abordam diretamente o conceito, tanto de forma teórica quanto prática, os quais pudessem contribuir para a compreensão das formas em que o recovery vem sendo apreendido e implementado no Brasil.
Após a etapa exploratória realizada no Google Acadêmico, por se tratar de uma plataforma de busca mais ampla, optou-se pela inclusão dos descritores “atenção psicossocial” e “reforma psiquiátrica”, além de “recovery”, de modo a se conferir um recorte mais específico, com uso dos filtros de língua portuguesa e temporal de 2011-2020. Nessa busca, encontramos 534 produções acadêmicas. Excluídos os resumos de anais de congresso e as publicações que não abordavam de fato o conceito, apenas 83 produções, entre artigos, dissertações e teses, foram pré-selecionadas. Destas, 47 imediatamente excluídas por apenas citarem o conceito brevemente. Após a leitura dos 36 trabalhos restantes, somente 12 foram incluídos na revisão por terem abordado o tema de forma mais aprofundada, discutindo o modelo teórico com o objetivo de contribuir para a qualificação do cuidado em saúde mental no Brasil e suas implicações com a RPB, contribuindo para o objetivo desta revisão.
Na revisão realizada na base SciELO, utilizaram-se os descritores “recovery” + “saúde mental”, adotando-se filtro de coleções brasileiras entre os anos 2011-2020, quando as produções começaram a surgir no país, encontrando-se então um resultado de 38 publicações. Realizada a leitura preliminar dos títulos e resumos, foram excluídas 26 publicações em que “recovery” não se refere ao conceito trabalhado neste artigo, bem como aquelas que não se referiam ao contexto brasileiro de atenção psicossocial. Desse modo, selecionaram-se 12 artigos para leitura na íntegra. Destes, três foram excluídos por não abordarem o conceito de recovery, e outros três por apenas o tangenciarem, sem alusão direta ao seu modelo teórico, relacionando-o ao enfrentamento do estigma sexual (Wainberg et al., 2017WAINBERG, Milton et al. Validação do Questionário de Estigma Sexual na Doença Mental (MISS-Q) em uma amostra de adultos brasileiros em atendimento psiquiátrico. Jornal Brasileiro de Psiquiatria , Rio de Janeiro, v. 66, n. 3, p. 132-138, 2017. 10.1590/0047-2085000000162. Disponível em: https://www.scielo.br/j/jbsiq/a/3Ld3tjzX3JkJG96CFkmMBSz/?format=pdf⟨=en . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) e indicando a necessidade de outro modelo de ‘recuperação’ que valorize a experiência dos usuários (Couto e Kantorski, 2020COUTO, Maria L. O.; KANTORSKI, Luciane P. Ouvidores de vozes de um serviço de saúde mental: características das vozes e estratégias de enfrentamento. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 32, e219779, 2020. 10.1590/1807-0310/2020v32219779. Disponível em: https://www.scielo.br/j/psoc/a/GjzpZbctVjvWwgwMvrPzTSL/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), ou com a realização de estudo de narrativas de usuários moradores de serviços residenciais terapêuticos (SRTs) sobre suas percepções de saúde (Massa e Moreira, 2019MASSA, Paula A.; MOREIRA, Maria I. B. Vivências de cuidado em saúde de moradores de serviços residenciais terapêuticos. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 23, p. 1-14, 2019. 10.1590/Interface.170950. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/7sjKsV7m7Y6d9ShQYgyXt/?lang=pt&format=pdf . Acesso em: 7 ago. 2021.
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). Selecionaram-se para a análise final, portanto, seis artigos da base SciELO.
Por fim, foi realizada a leitura dos artigos publicados na edição especial de Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, de 2017, intitulada A Reforma Psiquiátrica e o Movimento Recovery no Brasil, nos Estados Unidos e na Itália: práticas, experiências e sistemas de saúde, por se tratar de uma edição temática destinada exclusivamente à discussão do recovery, mas publicada por revista que não se encontra indexada na base SciELO (Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, 2017Cadernos Brasileiros de Saúde Mental. A Reforma Psiquiátrica e o Movimento Recovery no Brasil, nos Estados Unidos e na Itália: práticas, experiências e sistemas de saúde, Florianópolis, v. 9, n. 21, 2017. Disponível em: http://stat.necat.incubadora.ufsc.br/index.php/cbsm/issue/view/v.9%20n.%2021%20%28Edi%C3%A7%C3%A3o%20Especial%29/showTOc . Acesso em: 24 fev. 2022.
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). Após a leitura dos artigos da edição, foram incluídos os 14 textos que abordam a realidade brasileira. Assim, obtivemos um total de 32 produções que tratam do conceito de recovery e suas contribuições para a atenção psicossocial brasileira, com 25 artigos, cinco dissertações e duas teses (Figura 1 e Quadro 1).
Resultados
Os estudos sobre recovery começaram a surgir no Brasil principalmente em 2011; cresceram em 2013 e permaneceram estáveis até 2017, quando ocorreu um aumento expressivo que coincide com a publicação da edição temática dos Cadernos Brasileiros de Saúde Mental. Embora o conceito pareça ganhar mais espaço no meio acadêmico ligado à atenção psicossocial nos últimos anos, as publicações ainda são escassas, e a maioria se restringe a citá-lo, como se já estivesse estabelecido no cenário nacional. Quanto ao uso do termo, encontramos alguns autores que optaram por mantê-lo em inglês, como fizemos neste artigo, por não haver ainda consenso de tradução, e outros que utilizam traduções como ‘restabelecimento’, ‘superação’, ‘superação pessoal’ e ‘recuperação’. Encontramos também o conceito traduzido como ‘participação no tratamento’, ‘recuperação total e integral’, ou equiparado ao modelo de reabilitação psicossocial adotado no Brasil pós-reforma.
Quanto aos 32 estudos selecionados, a maioria se divide entre grupos de pesquisa de São Paulo e do Rio de Janeiro, com publicações minoritárias de grupos do Rio Grande do Sul, Bahia, Minas Gerais, Santa Catarina, Pará, Brasília ou vinculados a instituições estrangeiras. Para facilitar a organização e a análise do material para maior clareza a respeito de como o conceito vem sendo efetivamente apropriado em nosso contexto, os trabalhos selecionados foram lidos integralmente e divididos em quatro categorias segundo os principais temas abordados em cada um. As publicações foram organizadas de acordo com as seguintes categorias: contribuição do conceito de recovery para a Reforma Psiquiátrica Brasileira; narrativas sobre recovery; experiências com e de recovery; e protagonismo de usuários e familiares.
Contribuição do conceito de recovery para a Reforma Psiquiátrica Brasileira
Destacamos aqui os artigos que abordam o conceito teórico de recovery e buscam aproximá-lo das práticas no campo da saúde mental no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Os autores identificam sua contribuição com base em temas como a mudança do modelo de saúde centrado no profissional e nas práticas dos trabalhadores (Baccari, Campos e Stefanello, 2015 BACCARI, Ivana O. P.; CAMPOS, Rosana T. O. C. ; STEFANELLO, Sabrina . Recovery: revisão sistemática de um conceito. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 125-136, 2015. 10.1590/1413-81232014201.04662013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/mRkLmqgPZmXXqYDLqY4dYvb/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
https://www.scielo.br/j/csc/a/mRkLmqgPZm...
; Costa, 2017COSTA, Mark N. Recovery como estratégia para avançar a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 1-16, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69532/41654 . Acesso em: 7 ago. 2021.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbs...
), a construção de práticas inovadoras para autonomia e protagonismo de usuários (Silveira, 2017SILVEIRA, Aparecida R. et al. Recovery e experiência brasileira na atenção psicossocial: diálogos e aproximações. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 17-30, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69533/41655 . Acesso em: 7 ago. 2021.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbs...
) e de novas políticas públicas, como a implementação do suporte de pares nos serviços de saúde mental (Costa, 2017COSTA, Mark N. Recovery como estratégia para avançar a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 1-16, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69532/41654 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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).
Dos artigos, dois buscaram relacionar o uso de instrumentos específicos, como a produção artística (Correia e Torrenté, 2016CORREIA, Pedro R.; TORRENTÉ, Mônica O. N. Efeitos terapêuticos da produção artística para a reabilitação psicossocial de pessoas com transtornos mentais: uma revisão sistemática da literatura. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 4, p. 487-495, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/F99LDR3djqcnSX3YtmXnPgJ/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) e os diários virtuais (Quinto e Silva, 2019QUINTO, Wanderson A. S.; SILVA, Maria N. R. M. O. O uso de diários virtuais como estratégia de recovery para o encontro tu e eu. Revista Nufen: Phenomenology and Interdisciplinarity, Belém, v. 11, n. 3, p. 45-65, dez. 2019. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rnufen/v11n3/a05.pdf . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), com o processo de recovery de usuários. A revisão realizada por Correia e Torrenté (2016) CORREIA, Pedro R.; TORRENTÉ, Mônica O. N. Efeitos terapêuticos da produção artística para a reabilitação psicossocial de pessoas com transtornos mentais: uma revisão sistemática da literatura. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 4, p. 487-495, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/F99LDR3djqcnSX3YtmXnPgJ/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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destacou o efeito benéfico da produção artística na reabilitação psicossocial de usuários e sua relação com alguns princípios identificados como fundamentais ao recovery, como a promoção de autonomia, empoderamento e autoestima; a reinserção social e a ideia de recuperação não ligada exclusivamente à remissão de sintomas, associada ao desenvolvimento de estratégias para enfrentar a doença e à construção de vínculos e retomada de controle da própria vida. Nesse caso, as obras artísticas produzidas serviram como facilitadoras, contribuindo para o alívio do sofrimento e a reconstrução de identidades; porém, os autores (Correia e Torrenté, 2016CORREIA, Pedro R.; TORRENTÉ, Mônica O. N. Efeitos terapêuticos da produção artística para a reabilitação psicossocial de pessoas com transtornos mentais: uma revisão sistemática da literatura. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 4, p. 487-495, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/F99LDR3djqcnSX3YtmXnPgJ/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) ressaltaram que pode haver efeitos negativos das produções artísticas, ligados a uma percepção negativa da autoimagem e à frustração, indicando a importância de projetos terapêuticos individualizados, centrados nos usuários e em seus desejos.
O trabalho desenvolvido por Quinto e Silva (2019QUINTO, Wanderson A. S.; SILVA, Maria N. R. M. O. O uso de diários virtuais como estratégia de recovery para o encontro tu e eu. Revista Nufen: Phenomenology and Interdisciplinarity, Belém, v. 11, n. 3, p. 45-65, dez. 2019. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rnufen/v11n3/a05.pdf . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) buscou caracterizar o uso de tecnologias de informação e comunicação como estratégia terapêutica em saúde mental, relacionando-o ao conceito de recovery. Os autores ressaltam o benefício do uso de tecnologias da informação em oficinas terapêuticas, contribuindo para a socialização, inclusão digital pelo ensino e aprendizagem e fortalecimento da autonomia dos usuários. Elegem, então, um aplicativo que funciona como um diário virtual de uso simples e que contém funções de registro de sentimentos, narrativas e projetos a serem feitos pelo usuário, relacionando-o aos princípios do recovery, como autonomia e autocuidado.
Baccari, Campos e Stefanello (2015 BACCARI, Ivana O. P.; CAMPOS, Rosana T. O. C. ; STEFANELLO, Sabrina . Recovery: revisão sistemática de um conceito. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 125-136, 2015. 10.1590/1413-81232014201.04662013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/mRkLmqgPZmXXqYDLqY4dYvb/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) sistematizam as diferentes concepções que cercam a noção de recovery em diferentes metodologias da literatura internacional, ressaltando que estudos qualitativos e de revisão são os que melhor abordam o conceito. As autoras não se propuseram a apontar caminhos e ações específicas para a realidade brasileira, mas defendem a relevância do conceito para o debate no campo da saúde. Nesse sentido, Oliveira (2017OLIVEIRA, Walter F. Recovery: o desvelar da práxis e a construção de propostas para aplicação no contexto da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 321-330, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69553/41674 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) discute a extensão do conceito para além do campo da saúde mental, em qualquer cenário em que houver barreiras ao exercício da cidadania, como no sistema prisional e em populações socialmente vulneráveis.
Silveira et al. (2017SILVEIRA, Aparecida R. et al. Recovery e experiência brasileira na atenção psicossocial: diálogos e aproximações. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 17-30, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69533/41655 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) partem da noção de território para alinhavar recovery, atenção psicossocial e atenção primária à saúde, entendendo que o modelo está associado à vida comunitária, à conquista e garantia de direitos civis e à construção de cidadania ativa. Destacam ainda as quatro dimensões da atenção psicossocial (jurídico-política, técnico-assistencial, teórico-conceitual e sociocultural) definidas por Amarante (2007AMARANTE, Paulo. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.), associando-as aos avanços para os quais o modelo de recovery poderia contribuir, mediante estratégias de inclusão no trabalho, novas formas de cuidado que valorizem as narrativas e experiências dos usuários, radicalização de práticas de conquista de cidadania e autonomia dos usuários, estratégias de fortalecimento de movimento de usuários e familiares e enfrentamento do estigma.
Costa (2017COSTA, Mark N. Recovery como estratégia para avançar a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 1-16, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69532/41654 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) retoma as origens do conceito a partir do movimento de ex-pacientes na década de 1970 nos Estados Unidos, influenciado pelas organizações de pessoas com desabilidades físicas e pelos movimentos sociais de libertação das populações negra, de mulheres e LGBT (associação específica do contexto norte-americano, segundo o autor). Os ex-pacientes que compunham o movimento entendiam que suas experiências eram diferentes das vividas por aqueles que eram ‘não pacientes’ e por trabalhadores de saúde mental, que faziam parte dos serviços de saúde dos quais usuários seriam vítimas e deveriam se libertar.
Nesse contexto histórico, marcado por movimentos de usuários pela desinstitucionalização, localiza-se também a experiência italiana liderada por Basaglia. Venturini e Goulart (2017 VENTURINI, Ernesto; GOULART, Maria S. B. Recovery: ambiguidades e confrontações. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 282-299, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69551/41672 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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, p. 290) ressaltam cinco elementos desse percurso que são também próprios do recovery: “a esperança, o suporte relacional, o poder de decisão, a autoestima e o senso de recuperação e de identidade”. Para que o serviço se oriente para o recovery, os autores defendem a ideia de que é necessária uma equipe conectada com o processo de inclusão social dos usuários, abandonando os instrumentos habituais da psiquiatria tradicional, sendo a rede de serviços substitutivos o “território de sustentação do recovery” (Venturini e Goulart, 2017 VENTURINI, Ernesto; GOULART, Maria S. B. Recovery: ambiguidades e confrontações. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 282-299, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69551/41672 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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, p. 293). Deve-se ainda fortalecer o otimismo e a esperança, “oferecendo instrumentos que facilitassem os processos de subjetivação emancipadores” (Venturini e Goulart, 2017 VENTURINI, Ernesto; GOULART, Maria S. B. Recovery: ambiguidades e confrontações. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 282-299, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69551/41672 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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, p. 293), com atuação na garantia de direitos e na reconstrução dos laços sociais dos usuários.
Vasconcelos (2017aVASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental I: uma apresentação histórica e conceitual para o leitor brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 31-47, 2017a. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69534/41656 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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; 2017bVASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental II: uma avaliação crítica para uma apropriação criteriosa no cenário brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 48-65, 2017b. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69535/4165 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) defende a ideia de uma apropriação crítica de recovery para a realidade brasileira, uma vez que sua abordagem tem sido formulada em um longo processo e mais adotada por movimentos de usuários e familiares em países anglo-saxões. A realidade anglo-saxã, no entanto, é referência para políticas e projetos em saúde mental para os demais países, que buscam um intercâmbio com autores do tema “para ampliar suas fontes de troca de experiências e inspiração” (Vasconcelos, 2017aVASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental I: uma apresentação histórica e conceitual para o leitor brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 31-47, 2017a. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69534/41656 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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, p. 39). Segundo o autor (Vasconcelos, 2013aVASCONCELOS, Eduardo M. Empoderamento de usuários e familiares em saúde mental e em pesquisa avaliativa/interventiva: uma breve comparação entre a tradição anglo-saxônica e a experiência brasileira. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2.825-2.835, 2013. 10.1590/S1413-81232013001000007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/v8BSgLTPkSN4bMTTBYQHPNM/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), o conceito de recovery foi pleiteado por movimentos sociais e tem um componente claro de reivindicação, mas ainda se vincula ao processo pessoal do usuário em lidar com seu sofrimento, incluindo estratégias como a de suporte de pares. Tal estratégia é também indicada por Costa (2017COSTA, Mark N. Recovery como estratégia para avançar a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 1-16, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69532/41654 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) como uma aposta para enfrentar alguns desafios presentes na Reforma Psiquiátrica Brasileira, como o de um cuidado verdadeiramente centrado no usuário e na sua inclusão na sociedade, na superação do modelo biomédico nas práticas e nos serviços.
É importante não perder de vista a origem e a contextualização do movimento de recovery, evitando o “tudo muda para nada mudar” (Venturini e Goulart, 2017 VENTURINI, Ernesto; GOULART, Maria S. B. Recovery: ambiguidades e confrontações. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 282-299, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69551/41672 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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, p. 285), a sua apropriação de forma “idealística e ingênua” (Vasconcelos, 2017aVASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental I: uma apresentação histórica e conceitual para o leitor brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 31-47, 2017a. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69534/41656 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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, p. 43) ou que suas estratégias e políticas sejam transplantadas de forma “mecânica e acrítica” (Vasconcelos, 2017aVASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental I: uma apresentação histórica e conceitual para o leitor brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 31-47, 2017a. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69534/41656 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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, p. 43). Também é necessário considerar o fato de que tais estratégias se constituíram como política institucionalizada nos países anglo-saxônicos há algumas décadas, e sua inspiração deve considerar “as especificidades sociais, econômicas, políticas e culturais de cada país” (Vasconcelos, 2017aVASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental I: uma apresentação histórica e conceitual para o leitor brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 31-47, 2017a. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69534/41656 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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, p. 43), abrindo a possibilidade de caminhos próprios para desafios locais (Venturini e Goulart, 2017 VENTURINI, Ernesto; GOULART, Maria S. B. Recovery: ambiguidades e confrontações. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 282-299, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69551/41672 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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).
Para o Brasil, Vasconcelos (2017VASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental II: uma avaliação crítica para uma apropriação criteriosa no cenário brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 48-65, 2017b. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69535/4165 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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b, p. 44) ressalta que igualmente é necessário um contexto anterior à implementação de políticas e programas de recovery, como as conquistas de cidadania e justiça social, ainda não universalizadas no país, e que demandam ancoragem em uma “teorização social e política crítica”. Para tanto, é imprescindível que fatores sociais, econômicos e culturais próprios de nossa realidade, como a desigualdade, a precariedade das políticas sociais, a falta de recursos dos usuários e familiares, a precarização das relações trabalhistas e a relação hierarquizada entre profissionais e usuários sejam considerados, pois podem operar como obstáculos aos dispositivos de recovery. Todavia, Vasconcelos (2017b) VASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental II: uma avaliação crítica para uma apropriação criteriosa no cenário brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 48-65, 2017b. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69535/4165 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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defende a ideia de que as iniciativas de recovery e empoderamento são importantes para o processo de Reforma Psiquiátrica e luta antimanicomial no Brasil, desde que não se deem de forma acrítica, desenvolvendo-se de acordo com a nossa realidade.
Venturini e Goulart (2017 VENTURINI, Ernesto; GOULART, Maria S. B. Recovery: ambiguidades e confrontações. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 282-299, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69551/41672 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) também fazem uma discussão crítica sobre a apropriação do conceito, discutindo ambiguidades e contradições que circundam o tema, como sua rápida aceitação nos ambientes mais conservadores da psiquiatria. Tal aceitação, segundo os autores, estaria ligada a um entendimento de que o modelo de recovery se aplicaria somente a alguns tipos de transtorno - e de que a subjetividade dos pacientes seria menos importante do que a neurobiologia, condicionando recovery a um projeto apenas adjacente e coexistente ao modelo biomédico. Para essa compreensão, o objetivo do recovery ainda seria a cura clínica e a adequação do usuário a uma ‘normalidade’, apontando para outra compreensão do conceito, distinta da que foi inicialmente proposta pelo movimento de usuários.
Narrativas sobre recovery
Alguns autores (Silveira et al., 2017SILVEIRA, Aparecida R. et al. Recovery e experiência brasileira na atenção psicossocial: diálogos e aproximações. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 17-30, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69533/41655 . Acesso em: 7 ago. 2021.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbs...
; Lopes et al., 2012LOPES, Tatiana S. et al. O processo de restabelecimento na perspectiva de pessoas com diagnóstico de transtornos do espectro esquizofrênico e de psiquiatras na rede pública de atenção psicossocial. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 21, n. 3, p. 558-571, 2012. 10.1590/S0104-12902012000300004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/mm3XCN3C79qDz5TJSFtdjTD/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) indicam que é por meio das narrativas de pessoas com sofrimento psíquico que se compreende melhor o processo de recovery. Para Vasconcelos (2017bVASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental II: uma avaliação crítica para uma apropriação criteriosa no cenário brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 48-65, 2017b. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69535/4165 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), as narrativas de usuários são importantes para o movimento de recovery no país e vêm sendo utilizadas por pesquisadores como fonte de avaliação de serviços, pesquisa clínica e abordagens mais humanizadas em psicopatologia.
Nesta revisão, deparamo-nos com estudos que abordam as narrativas de usuários, familiares e também de profissionais em diferentes perspectivas. Alguns desses são provenientes de um projeto de pesquisa multicêntrica realizada nos municípios de Campinas (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Salvador (BA) (Lopes, 2011LOPES, Tatiana S. Experiências e narrativas de psiquiatras trabalhadores de serviços públicos de saúde mental sobre a prática de cuidado da esquizofrenia. 2011. 141 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/309195/1/Lopes_TatianaScala_M.pdf . Acesso em: 7 ago. 2021.
http://repositorio.unicamp.br/jspui/bits...
; Lopes et al., 2012LOPES, Tatiana S. et al. O processo de restabelecimento na perspectiva de pessoas com diagnóstico de transtornos do espectro esquizofrênico e de psiquiatras na rede pública de atenção psicossocial. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 21, n. 3, p. 558-571, 2012. 10.1590/S0104-12902012000300004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/mm3XCN3C79qDz5TJSFtdjTD/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
https://www.scielo.br/j/sausoc/a/mm3XCN3...
; Dahl, 2012DAHL, Catarina M. Experiência, narrativa e intersubjetividade: o processo de restabelecimento (recovery) na perspectiva de pessoas com o diagnóstico de esquizofrenia em tratamento nos centros de atenção psicossocial. 2012. 191 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.; Montanher e Leal, 2013MONTANHER, Monica K.; LEAL, Erotildes M. As redes sociais na perspectiva de pessoas com o diagnóstico de esquizofrenia em tratamento em um Caps de Campinas e as implicações no recovery. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 24, n. 3, p. 183-190, 2013. 10.11606/issn.2238-6149.v24i3p183-90. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rto/article/view/68376/87150 . Acesso em: 7 ago. 2021.
https://www.revistas.usp.br/rto/article/...
; Serpa Jr. et al., 2014SERPA JUNIOR, Octavio D. et al. Experiência, narrativa e conhecimento: a perspectiva do psiquiatra e a do usuário. Physis: Revista de Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 24, n. 4, p. 1.053-1.077, 2014. 10.1590/S0103-73312014000400005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/a/ChZPgMPrm9Y5brvyQK6hYKq/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
https://www.scielo.br/j/a/ChZPgMPrm9Y5br...
; Pereira e Leal, 2017PEREIRA, Mariana B.; LEAL, Erotildes M. Insight na perspectiva de pessoas com diagnóstico de esquizofrenia em tratamento em centros de atenção psicossocial. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 229-249, 2017. https://periodicos.ufsc.index.php/cbsm/article/view/69548/41669. Acesso em: 7 ago. 2021.), em que foram realizados grupos focais com psiquiatras e com usuários com diagnóstico de esquizofrenia de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) dos três municípios.
Entre eles, Lopes (2011LOPES, Tatiana S. Experiências e narrativas de psiquiatras trabalhadores de serviços públicos de saúde mental sobre a prática de cuidado da esquizofrenia. 2011. 141 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/309195/1/Lopes_TatianaScala_M.pdf . Acesso em: 7 ago. 2021.
http://repositorio.unicamp.br/jspui/bits...
) analisa as narrativas de psiquiatras sobre as experiências de adoecimento e as práticas de cuidado de usuários com diagnóstico de esquizofrenia, dialogando com o conceito de recovery. A autora identifica um predomínio do modelo biomédico em concepções e práticas desses profissionais que, embora sejam críticos em relação ao cuidado que ofertam e reconheçam a importância da dimensão da experiência dos usuários, não identificam outras possibilidades de cuidado. Apesar disso, também trazem em suas narrativas situações em que estiveram abertos à experiência de usuários de forma acolhedora.
A perspectiva de profissionais sobre os processos de recovery também foi alvo de reflexão por Anastácio e Furtado (2012ANASTÁCIO, Camila C.; FURTADO, Juarez P. Reabilitação psicossocial e recovery: conceitos e influências nos serviços oferecidos pelo sistema de saúde mental. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, Florianópolis, v. 4, n. 9, p. 72-83, 2012. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/68691/41360 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), que realizaram uma distinção entre os conceitos de recovery e de reabilitação psicossocial. Para os autores, ambos se apoiam na mesma noção ética de inclusão e superação do modelo hospitalocêntrico, porém ressaltam que são processos interdependentes - a reabilitação psicossocial relacionada a serviços e técnicas, e o recovery implicado na vivência pessoal dos indivíduos. Serviços orientados para o recovery devem priorizar a horizontalidade das relações, potencializando a autonomia e a participação dos usuários. Os autores, com base na tríade garantia de direitos, trabalho e educação, verificam se as práticas de profissionais nos serviços estariam em conformidade com os princípios de recovery; observam, no entanto, que essas práticas são precárias e, mesmo quando presentes, não são orientadas pela perspectiva do recovery, desconhecida entre os trabalhadores. Desse modo, defendem a ideia de que o princípio do recovery poderia retomar e potencializar os processos de reabilitação psicossocial.
Já Santos et al. (2016SANTOS, Elitiele O. et al. Empowerment para o recovery: potencialidades identificadas nas ações de reabilitação psicossocial. Ciência, Cuidado e Saúde, Maringá, v. 14, n. 4, p. 1.419-1.426, 2016. 10.4025/ciencuidsaude.v14i4.23373. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/CiencCuidSaude/article/view/23373/16591 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) apostam no empoderamento de usuários para potencializar os processos de recovery, solicitando que profissionais de serviços identifiquem, em suas práticas, o que poderia contribuir para esses processos. Como resultados, encontraram como mais relevantes citações de participação de usuários na organização do serviço e na construção do projeto terapêutico singular pelos profissionais entrevistados, que pareceram atentos aos interesses individuais dos usuários, reconhecendo ser esse o foco do tratamento. Porém, ainda havia dificuldade de inclusão de estratégias de inserção social para além dos Caps, o que era destacado pelos autores como necessário à ampliação de recovery.
Quanto à perspectiva de usuários com diagnóstico de esquizofrenia sobre o processo de ‘restabelecimento’ (recovery), Dahl (2012DAHL, Catarina M. Experiência, narrativa e intersubjetividade: o processo de restabelecimento (recovery) na perspectiva de pessoas com o diagnóstico de esquizofrenia em tratamento nos centros de atenção psicossocial. 2012. 191 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.) salienta que a religiosidade, a relação familiar e as estratégias pessoais para lidar com o adoecimento foram alguns dos elementos marcantes de suas narrativas. Em relação ao diagnóstico de esquizofrenia, havia uma associação negativa por parte desses usuários, que a compreendiam como uma doença grave, marcada pelo estigma e por impossibilidades. A autora entende, com base nas narrativas analisadas, que embora se vislumbre a possibilidade de melhora, a perspectiva de cura é remota e coexiste com concepções mais ou menos favoráveis de restabelecimento.
Ao analisarem as narrativas tanto de profissionais quanto de usuários, Lopes et al. (2012LOPES, Tatiana S. et al. O processo de restabelecimento na perspectiva de pessoas com diagnóstico de transtornos do espectro esquizofrênico e de psiquiatras na rede pública de atenção psicossocial. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 21, n. 3, p. 558-571, 2012. 10.1590/S0104-12902012000300004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/mm3XCN3C79qDz5TJSFtdjTD/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) verificaram que existem pontos convergentes e divergentes entre as perspectivas sobre o restabelecimento, sendo o pessimismo relacionado ao diagnóstico de esquizofrenia uma convergência que nos chamou a atenção. Para os autores, a categoria diagnóstica não fornecia aos psiquiatras o recurso para lidar com a diversidade das experiências dos sujeitos adoecidos, além de não permitir que usuários criassem versões mais promissoras para suas experiências. O Caps, por sua vez, apareceu como um espaço potente de criação de pontes de diálogo entre essas narrativas e a construção de “novos sentidos para o adoecer” (Lopes et al., 2012LOPES, Tatiana S. et al. O processo de restabelecimento na perspectiva de pessoas com diagnóstico de transtornos do espectro esquizofrênico e de psiquiatras na rede pública de atenção psicossocial. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 21, n. 3, p. 558-571, 2012. 10.1590/S0104-12902012000300004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/mm3XCN3C79qDz5TJSFtdjTD/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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, p. 1.072), embora permaneçam em aberto os meios e recursos necessários para que isso ocorra (Serpa et al., 2014SERPA JUNIOR, Octavio D. et al. Experiência, narrativa e conhecimento: a perspectiva do psiquiatra e a do usuário. Physis: Revista de Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 24, n. 4, p. 1.053-1.077, 2014. 10.1590/S0103-73312014000400005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/a/ChZPgMPrm9Y5brvyQK6hYKq/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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). Para verificar como usuários vivenciam o insight, fenômeno referente ao autoconhecimento do próprio adoecimento, Pereira e Leal (2017PEREIRA, Mariana B.; LEAL, Erotildes M. Insight na perspectiva de pessoas com diagnóstico de esquizofrenia em tratamento em centros de atenção psicossocial. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 229-249, 2017. https://periodicos.ufsc.index.php/cbsm/article/view/69548/41669. Acesso em: 7 ago. 2021.) ressaltam a identificação da disfunção social como um aspecto importante, o que também é prioritário ao modelo de recovery. As narrativas analisadas indicavam insuficiência do processo de recovery para a mudança da realidade de usuários brasileiros, uma vez que a grande desigualdade social do país restringe o acesso a direitos básicos, o que dificulta estratégias de empoderamento e participação social.
A relação entre as redes sociais e o processo de recovery de usuários também foi abordada por Montanher e Leal (2013MONTANHER, Monica K.; LEAL, Erotildes M. As redes sociais na perspectiva de pessoas com o diagnóstico de esquizofrenia em tratamento em um Caps de Campinas e as implicações no recovery. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 24, n. 3, p. 183-190, 2013. 10.11606/issn.2238-6149.v24i3p183-90. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rto/article/view/68376/87150 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), que buscavam compreender como as relações experienciadas por esses usuários poderiam ajudar ou não nesse processo. Para tanto, recovery foi relacionado à dimensão social, já que o seu processo ocorreria na relação comunitária, que deveria, portanto, ser incentivada por profissionais de saúde mental. Os serviços de saúde apareceram como um elemento importante na rede de relações, tanto por possibilitarem a construção de vínculo com outros usuários quanto por representarem um lugar de dependência. Também houve a indicação de relações que poderiam ser negativas a usuários, inclusive dentro da própria família, o que levou à conclusão de que não é possível ter concepções universais sobre a relação entre recovery e redes sociais, a não ser com base na experiência de cada usuário.
Por fim, a relação entre os diferentes espaços de tratamento e os processos de recovery foi analisada por Ricci (2017RICCI, Ellen C. Entre serviços e experiências de adoecimento: narrativas e possibilidades de recovery em saúde mental. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 212-228, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69547/41668 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), que identificou condições como a liberdade, o poder de voz e de contratualidade as indicadas como mínimas para que os processos de recovery possam ocorrer. Dessa forma, os CAPS foram apontados como os serviços mais propícios ao recovery, pois, apesar de serem espaços em que usuários se frustram com dúvidas relacionadas ao diagnóstico, à cura e ao uso de psicofármacos, também representam lugares em que eles se sentem acolhidos. A clínica ampliada, articulada, territorial e centrada no sujeito aparece como fundamental para o cuidado em saúde mental.
Experiências com e de recovery
Práticas e ideias análogas às de empoderamento e recovery também foram verificadas em experiências brasileiras, tais como as atividades desenvolvidas por Nise da Silveira, a educação popular de Paulo Freire, o movimento antimanicomial e os dispositivos de controle social do SUS (Vasconcelos, 2017bVASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental II: uma avaliação crítica para uma apropriação criteriosa no cenário brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 48-65, 2017b. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69535/4165 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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). Foi a partir dos anos 2000, no entanto, que ideias de empoderamento e recovery começaram a ser difundidas no país, principalmente em razão do intercâmbio acadêmico com países anglo-saxônicos, o que deu início a projetos de pesquisa e experimentação (Vasconcelos, 2017bVASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental II: uma avaliação crítica para uma apropriação criteriosa no cenário brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 48-65, 2017b. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69535/4165 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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; Presotto et al., 2013PRESOTTO, Rodrigo F. et al. Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2.837-2.845, out. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/aH7b4YzPnd3Kt4QPr6GVDJcy/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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). Aqui destacaremos as iniciativas decorrentes desses intercâmbios, encontradas em nossa revisão, além de outras experiências vinculadas ao conceito de recovery.
O Wellness Recovery Action Plan (WRAP) foi desenvolvido por usuárias norte-americanas mediante um esforço de sistematizar as estratégias utilizadas em seus cotidianos para manter o bem-estar. Trata-se de um dispositivo disseminado em outros países e testado na realidade brasileira com base em um projeto-piloto de Florianópolis (SC), em que se realizaram tradução e adaptação do instrumento (plano pessoal de ação - WRAP), seguindo-se oficinas com usuários para elaboração dos planos pessoais (Grigolo et al., 2017GRIGOLO, Tânia M. et al. Plano pessoal de ação para bem-estar e recovery: experimentando o ‘WRAP’ no Brasil. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 300-320, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69552/41673 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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). Determinados aspectos próprios do contexto sociocultural brasileiro apresentaram-se como dificultadores do uso da ferramenta, tais como a limitação de alguns participantes para leitura e escrita, bem como a dificuldade de projetarem planos para suas vidas. Apesar disso, as autoras ressaltaram a potência do dispositivo mediante os retornos positivos dos participantes e da possibilidade de capacitar usuários para atuarem como facilitadores.
Silva et al. (2017SILVA, Tiago R. et al. Validação da Recovery Assessment Scale (RAS) no Brasil para avaliar a capacidade de superação das pessoas com esquizofrenia. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 66, n. 1, p. 1-8, 2017. 10.1590/0047-2085000000144. Disponível em: https://www.scielo.br/j/jbpsiq/a/CSxNtLWD8gDfdZTV75mkCTh/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), por sua vez, traduziram e adaptaram para o português a Recovery Assessment Scale (RAS), investigando a sua confiabilidade e validade. Trata-se de um instrumento padronizado que busca aferir o recovery segundo uma escala autoaplicável. Os resultados do estudo-piloto com pessoas com diagnóstico de esquizofrenia sugeriram boa consistência interna do instrumento e levaram a alterações visuais na escala, além da adoção, pelos autores, da palavra ‘superação’ como tradução mais adequada do conceito. A tradução e a adaptação de instrumentos que buscam aferir recovery foram também realizadas por Pereira (2019PEREIRA, Mariana B. Avaliação de serviços de saúde mental: validação da versão para trabalhadores de instrumento de avaliação de recovery. 2019. 185 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/334852/1/Pereira_MarianaBarbosa_M.pdf . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), que teve como objetivo analisar o uso da Recovery Self Assessment (RSA) em profissionais, na avaliação dos serviços de saúde mental. Como resultados, a autora defende a ideia de que o envolvimento de profissionais com práticas ligadas ao recovery tende a produzir efeitos positivos para os trabalhadores e para a equipe como um todo, corroborando os achados em estudos de outros países.
Bilbao (2019BILBAO, Eduardo V. Avaliação das dimensões trabalho, lazer e religiosidade como indicadores de condição para recovery no agravo transtorno grave de saúde mental: dados do inquérito sobre acesso a partir da atenção básica, o funcionamento e a utilização da atenção especializada em quatro grandes cidades brasileiras. 2019. 133 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, 2019. Disponível em: https://1library.org/document/y491520z-avaliacao-dimensoes-religiosidade-indicadores-funcionamento-utilizacao-especializada-brasileiras.html . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), ainda buscando compreender as experiências de recovery, avaliou as ações de cuidado e reabilitação em saúde mental dos CAPS baseado na retomada das atividades de lazer, trabalho e religião pelos usuários vinculados aos serviços de quatro grandes cidades brasileiras. A tríade foi considerada como importante indicadora de recovery pelo autor, que procurou construir indicadores de avaliação para os serviços de saúde mental que tivessem como centro o real aumento da qualidade de vida dos usuários.
Protagonismo de usuários e familiares
No grupo de artigos desta seção, abordaremos iniciativas que tenham como central o protagonismo de usuários e familiares, tais como a Rede Américas, originada da parceria de pesquisadores norte e latino-americanos para constituir uma rede colaborativa de pesquisa em saúde mental. Além de qualificar pesquisadores, profissionais e usuários em processos de restabelecimento, a parceria realizou ensaio clínico randomizado controlado para avaliar a intervenção para períodos de transição - compartilhamento de cuidados (Critical Time Intervention - Task Shifting, CTI-TS) (Dahl et al., 2017DAHL, Catarina M. et al. Suporte interpares no contexto de uma pesquisa clínica: dificuldades, facilitadores e experiências significativas no processo de trabalho. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 179-198, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69544/41666 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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). Mascayano et al. (2019MASCAYANO, Franco et al. Implementação de um protocolo para um estudo-piloto randomizado e controlado sobre uma intervenção voltada para a recuperação em pessoas com psicoses em duas cidades latino-americanas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 4, p. 1-13, 2019. 10.1590/0102-311X00108018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/gfcJKPFdHmG5GYv9SMnwmFw/?format=pdf⟨=en . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) descrevem a implementação desse estudo-piloto em duas cidades latino-americanas, a fim de avaliar os benefícios do CTI-TS no cuidado em saúde mental comunitário e na promoção de recovery. O desenvolvimento do projeto contou com a colaboração de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na garantia da adequação à população e ao contexto da cidade do Rio de Janeiro.
A intervenção do CTI-TS consiste, em linhas gerais, no acompanhamento de curta duração de usuários dos serviços comunitários de saúde mental por uma dupla de trabalhadores, formada por um agente comunitário de saúde mental e um usuário ‘parceiro do cuidado’, atuando na perspectiva do suporte interpares. Os usuários participantes da intervenção apresentaram melhora na qualidade de vida em relação aos usuários do grupo controle, que receberam apenas o cuidado tradicional dos serviços comunitários.
Os benefícios da intervenção também foram vividos pelos usuários parceiros do cuidado, que indicaram como favorecedores aspectos como a remuneração, a responsabilidade diante dos compromissos, o reconhecimento de seu trabalho, o treinamento e a supervisão, podendo ocupar um novo papel social como o de trabalhadores. Além disso, de acordo com Dahl et al. (2017DAHL, Catarina M. et al. Suporte interpares no contexto de uma pesquisa clínica: dificuldades, facilitadores e experiências significativas no processo de trabalho. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 179-198, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69544/41666 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), o suporte interpares contribuiu para o processo de recovery dos usuários, com base na criação de um ambiente dialógico com pesquisadores, na experiência de mutualidade com usuários acompanhados e na integração das diferentes dimensões da experiência.
As práticas de suporte entre pares são anteriores ao movimento de recovery, mas começam a ser amplamente difundidas e viabilizadas a partir dessa abordagem. Vasconcelos (2017bVASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental II: uma avaliação crítica para uma apropriação criteriosa no cenário brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 48-65, 2017b. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69535/4165 . Acesso em: 7 ago. 2021.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbs...
) relata que algumas iniciativas de grupos de ajuda e suporte mútuos para usuários e familiares foram inspiradas no movimento internacional, mas desenvolvidas de forma particular no contexto brasileiro, tendo sido bem-sucedidas, como é o caso da experiência realizada no Rio de Janeiro sob supervisão do projeto Transversões, da UFRJ, que conta com bolsas ou registros formais de trabalho para os facilitadores.
A vivência desses grupos também é abordada por Figueiredo (2017FIGUEIREDO, Angela P. ‘Nada sobre nós, sem nós’: empoderamento e recovery em um estudo de um grupo de ajuda e suporte mútuos em saúde mental no município do Rio de Janeiro-RJ. 2017. 180 f. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/4403#preview-link0 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) e Presotto et al. (2013PRESOTTO, Rodrigo F. et al. Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2.837-2.845, out. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/aH7b4YzPnd3Kt4QPr6GVDJcy/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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). Figueiredo relata que os encontros são liderados por uma dupla de usuários ou familiares, que atuam como facilitadores no compartilhamento de experiências dos participantes em torno de um tema escolhido por eles. A troca coletiva de vivências, o cuidado de si, o suporte grupal e o protagonismo são alguns pontos identificados na narrativa dos usuários, que ressaltam a importância da participação nos grupos para seus processos de recovery e empoderamento. A autora destaca que, para sua pesquisa, encontros extras foram realizados com os integrantes do grupo, com o objetivo de organizar e trabalhar o material do diário de campo de forma coletiva, de maneira condizente com os pressupostos de empoderamento e recovery, tendo inclusive um dos usuários do projeto como integrante de sua banca de qualificação e de defesa do mestrado. Ela defende ainda a valorização dos saberes e experiências dos usuários, que devem ser considerados de modo mais efetivo para a produção de conhecimento em saúde mental (Figueiredo, 2017FIGUEIREDO, Angela P. ‘Nada sobre nós, sem nós’: empoderamento e recovery em um estudo de um grupo de ajuda e suporte mútuos em saúde mental no município do Rio de Janeiro-RJ. 2017. 180 f. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/4403#preview-link0 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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).
Sobre esse tema, Presotto et al. (2013PRESOTTO, Rodrigo F. et al. Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2.837-2.845, out. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/aH7b4YzPnd3Kt4QPr6GVDJcy/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) defendem a ideia de que a participação de usuários e familiares em pesquisa é um desafio relevante e obrigatório, considerando que as experiências vividas por esses atores assumem direção ética e metodológica no campo de recovery e empoderamento. Afirmam que “a pesquisa no campo prático e teórico do recovery deve incluir necessariamente a participação de usuários como protagonistas na produção de conhecimento” (Presotto et al., 2013PRESOTTO, Rodrigo F. et al. Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2.837-2.845, out. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/aH7b4YzPnd3Kt4QPr6GVDJcy/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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, p. 2.838), mas que essa inclusão é ainda incipiente na Reforma Psiquiátrica Brasileira. Os autores indicam, então, algumas experiências aproximadas no país, como o projeto de grupos de ajuda e suporte mútuos e as iniciativas vinculadas às intervenções de Gestão Autônoma da Medicação (GAM-BR) e ao Projeto Familiares Parceiros do Cuidado.
O projeto de pesquisa que traduziu, adaptou e testou em alguns Caps a versão do Guia Pessoal de Gestão Autônoma da Medicação (Guia GAM), de origem canadense, foi realizado em parceria entre a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a UFRJ. Para testagem e adaptação do guia à realidade brasileira, o projeto contou com a participação de usuários, profissionais de saúde e estudantes de pós-graduação, além da equipe de pesquisadores. Os usuários envolvidos com as atividades de pesquisa do GAM-BR ressaltaram diversos benefícios dessa participação, como aumento da qualidade de vida e da autonomia em relação ao tratamento e melhor compreensão e uso da medicação psiquiátrica, o que contribuiu para seus processos de recovery (Presotto et al., 2013PRESOTTO, Rodrigo F. et al. Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2.837-2.845, out. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/aH7b4YzPnd3Kt4QPr6GVDJcy/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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; Presotto, 2013PRESOTTO, Rodrigo F. Participação de usuários de serviços de saúde mental em pesquisas: um olhar a partir dos conceitos de empowerment e recovery. 2013. 151 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013.). Com base na experiência GAM-BR, alguns usuários ocuparam outros espaços, multiplicando o conhecimento adquirido, coordenando grupos e propondo outros projetos de própria autoria, como é o caso do ‘Conquista de Cidadania: como se constrói a cidadania?’, que conta com grupo de intervenção coordenado por usuários para a leitura do Guia GAM, tendo a sua aprovação permitido o pagamento dos coordenadores, de modo a caracterizá-lo efetivamente como trabalho (Presotto et al., 2013PRESOTTO, Rodrigo F. et al. Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2.837-2.845, out. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/aH7b4YzPnd3Kt4QPr6GVDJcy/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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). Desse modo, Presotto et al. (2013)PRESOTTO, Rodrigo F. et al. Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2.837-2.845, out. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/aH7b4YzPnd3Kt4QPr6GVDJcy/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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ressaltam a importância da inserção de usuários na academia, na tentativa de desenvolver relações mais horizontais com pesquisadores e ocupar outros lugares para além daquele de usuários de saúde mental.
O grupo de pesquisa Interfaces, responsável pelo GAM-BR na Unicamp, desenvolve desde 2005 pesquisas qualitativas de caráter participativo que buscam a produção de conhecimento fundamentado na inclusão da perspectiva dos principais atores sociais. Essa inclusão pode se dar por meio da realização de grupos focais, no planejamento de atividades ou na colaboração com formas mais acessíveis de divulgação de informação para usuários e familiares (Presotto, 2013PRESOTTO, Rodrigo F. Participação de usuários de serviços de saúde mental em pesquisas: um olhar a partir dos conceitos de empowerment e recovery. 2013. 151 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013.). Nascimento et al. (2017NASCIMENTO, Nilson S. et al. Grupo de Trabalho Recovery: um olhar para si. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 271-281, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69550/41671 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) destacam a experiência da formação de um grupo de trabalho vinculado ao Interfaces e composto por estudantes, pesquisadores, usuários e familiares para estudar o tema do recovery, tendo surgido em razão de curiosidades e inquietações em relação ao conceito.
Sobre o Projeto Familiares Parceiros do Cuidado, Reis (2018REIS, Thaíssa L. Participação de familiares em pesquisa como estratégia de empoderamento: análise de uma experiência-piloto em centros de atenção psicossocial. 2018. 131 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Mental) - Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: http://objdig.ufrj.br/52/teses/872185.pdf . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) também abordou o tema da participação dos atores sociais na produção de conhecimento, ancorada nos conceitos de empoderamento e recovery. Inspirada no movimento internacional de participação de usuários em pesquisa científica e no monitoramento da qualidade dos serviços de saúde, a pesquisa relatada no artigo contou com a inclusão de um grupo de familiares em suas diferentes etapas. Das oficinas de capacitação e consenso às idas a campo para aplicação do instrumento-piloto de avaliação de serviços comunitários de saúde mental, foi possível identificar os benefícios da participação de familiares em pesquisas científicas para seus processos de recovery.
As experiências de recovery de familiares e usuários participantes de projetos de pesquisa da UFRJ que tenham a abordagem como base são ainda relatadas por Serpa Jr. et al. (2017SERPA JUNIOR, Octavio D . et al. Relatos de experiências em recovery: usuários como tutores, familiares como cuidadores/pesquisadores e efeitos destas práticas em docentes e pesquisadores em saúde mental. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 250-270, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69549/41670 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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). Apesar de ser um estudo que explora narrativas sobre o tema, optamos por incluí-lo nessa categoria por se tratar de um artigo em que usuários e familiares assinam como autores, integrando a equipe de pesquisadores em uma metodologia desenhada com o intuito de favorecer a horizontalidade, minimizar a hierarquia entre os participantes e valorizar o conhecimento proveniente de suas experiências de vida. Com base na narrativa dos autores, é possível verificar que a participação em diferentes projetos, como atividades de grupos de suporte mútuo, educação em saúde e práticas em docência, tem sido benéfica para o processo de recovery de usuários e familiares.
Para finalizar, o projeto ‘Comunidade de Fala’, realizado nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Maria (RS), é apresentado por Weingarten (2017WEINGARTEN, Richard. Empoderando a voz do usuário. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 146-157, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/csbm/article/view/69542 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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). Esse projeto tem como estratégia de enfrentamento ao estigma a publicização das narrativas de usuários sobre suas vivências com transtornos mentais e também suas experiências de recovery. Para isso, conta com apresentações dos participantes, que são remunerados, em diversos contextos, como os serviços de saúde e universidades. Sobre o mesmo projeto, Costa e Noal (2017COSTA, Elisangela S.; NOAL, Martha H. O. O papel do projeto ‘Comunidade de Fala’ no empoderamento e recovery de usuários dos serviços de saúde mental. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 199-211, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69545/41667 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) buscaram analisar o seu impacto no processo de empoderamento e recovery dos usuários com base em seus relatos. As idas a congressos e ao colóquio sobre recovery se destacaram, sobretudo pelo efeito positivo do convite que receberam para a participação, além de poderem compartilhar experiências com outros usuários e pesquisadores de diversos países, o que fez com que se sentissem orgulhosos por pertencerem ao projeto.
Discussão e considerações finais
Com este artigo, procuramos compreender como o conceito de recovery vem sendo apreendido e utilizado nas práticas de saúde mental no Brasil e quais têm sido as principais contribuições para a atenção psicossocial em nossa realidade. Desse modo, primeiramente ressaltamos que as publicações sobre o conceito são ainda incipientes e, em sua maioria, regionalmente limitadas a grupos de pesquisa e projetos localizados nos contextos do Rio de Janeiro e de São Paulo.
O debate sobre recovery é ainda mais escasso fora das universidades, o que contribui para que sua abordagem seja desconhecida para grande parte de trabalhadores, usuários e familiares de serviços de saúde mental. Apesar disso, a aproximação de alguns desses atores a grupos de pesquisa sobre o tema aparenta surtir efeitos benéficos para seus processos de recovery, para o trabalho exercido nos serviços e, igualmente, para a produção de conhecimento.
Nesse sentido, ressaltamos como fundamental que, especialmente para as pesquisas no campo do recovery, haja a inclusão de usuários para o seu processo de produção. Apesar de identificarmos principalmente alguns projetos, tais como iniciativas de suporte de pares ou comunidades de fala, que têm como central a participação protagonista de usuários de saúde mental, é importante salientar que, em relação às pesquisas, poucas são aquelas que incluem efetivamente esses atores como parceiros para a produção de conhecimento (como se vê em Presotto et al., 2013PRESOTTO, Rodrigo F. et al. Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2.837-2.845, out. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/aH7b4YzPnd3Kt4QPr6GVDJcy/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
https://www.scielo.br/j/csc/aH7b4YzPnd3K...
; Serpa Jr. et al., 2017SERPA JUNIOR, Octavio D . et al. Relatos de experiências em recovery: usuários como tutores, familiares como cuidadores/pesquisadores e efeitos destas práticas em docentes e pesquisadores em saúde mental. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 250-270, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69549/41670 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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; e Reis, 2018REIS, Thaíssa L. Participação de familiares em pesquisa como estratégia de empoderamento: análise de uma experiência-piloto em centros de atenção psicossocial. 2018. 131 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Mental) - Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: http://objdig.ufrj.br/52/teses/872185.pdf . Acesso em: 7 ago. 2021.
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), o que mostra a necessidade de compreendermos as particularidades brasileiras do campo para buscarmos avanços.
Quanto à concepção teórica de recovery, pesquisadores brasileiros têm destacado a importância da apropriação crítica de sua abordagem para o contexto nacional, evitando a transposição de experiências estrangeiras, sem que se leve em conta a realidade local da Reforma Psiquiátrica e as especificidades das experiências de saúde mental no país. Para tanto, torna-se importante a compreensão do conceito, visto que, por vezes, identificamos estudos que apenas citavam recovery, como se este já estivesse estabelecido no Brasil, ou em que não era clara a sua diferenciação em relação ao modelo de reabilitação psicossocial, podendo até ser considerados sinônimos. Aqui sinalizamos a argumentação de Anastácio e Furtado (2012ANASTÁCIO, Camila C.; FURTADO, Juarez P. Reabilitação psicossocial e recovery: conceitos e influências nos serviços oferecidos pelo sistema de saúde mental. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, Florianópolis, v. 4, n. 9, p. 72-83, 2012. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/68691/41360 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) sobre o desconhecimento da concepção de recovery por parte de profissionais de serviços de saúde mental e a distinção que os autores fazem entre o conceito de recovery e o de reabilitação psicossocial, relacionando o primeiro à vivência pessoal de usuários e o último a técnicas e serviços - o que, para a realidade brasileira, faz sentido, uma vez que não temos recovery orientando nosso modelo de assistência, diferentemente de outros países, para os quais o conceito é institucionalizado e guia práticas concretas em saúde mental.
Grande parte das pesquisas incluídas nesta revisão considera a contribuição do paradigma de recovery para o avanço da Reforma Psiquiátrica Brasileira, alicerçada, principalmente, na centralidade do usuário, associando-o a desafios inerentes à nossa realidade. É relevante salientar o debate que relaciona recovery à reabilitação psicossocial no contexto brasileiro. Ao considerar que o primeiro contribuiria para o campo da atenção psicossocial, sobretudo mediante o protagonismo do usuário, torna-se importante localizarmos os possíveis limites para a defesa da autonomia de usuários naqueles serviços que se orientam pela reabilitação psicossocial.
Consideramos esse debate significativo e necessário para os avanços no campo brasileiro de saúde mental e melhor compreensão de suas particularidades, para podermos nos apropriar de modo adequado de conceitos como o de recovery, desenvolvidos inicialmente em outras realidades. Quanto a isso, dialogamos também com o estudo de Vasconcelos (2017bVASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental II: uma avaliação crítica para uma apropriação criteriosa no cenário brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 48-65, 2017b. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69535/4165 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) e sua discussão em torno da conquista de cidadania e justiça social. Se avaliamos que tais pressupostos são fundamentais ao desenvolvimento de recovery e demandam ancoragem em uma teorização social e política críticas, novamente seria importante localizarmos o nosso modelo de Reforma Psiquiátrica e seus obstáculos para repensar tanto o modelo de assistência quanto a sociedade em que ele se insere, além de uma possível implementação de práticas de recovery.
Em outros países de contextos diversos, que têm a abordagem de recovery institucionalizada e orientando práticas, como é o caso do Reino Unido, por mais que haja políticas de bem-estar social mais estabelecidas, a luta por cidadania e justiça social é também constante. Em relação ao movimento britânico de usuários de saúde mental, Harper e Speed (2012HARPER, David; SPEED, Ewen. Uncovering recovery: the resistible rise of recovery and resilience. Studies in Social Justice, St. Catharines, v. 6, n. 1, p. 9-26, 2012. 10.26522/ssj.v6i1.1066. Disponível em: https://link.springer.com/chapter/10.1057/9781137304667_3 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) ressaltam que ele é, sobretudo, um movimento por justiça social. Essa perspectiva também é defendida pelo próprio movimento, que apresenta posicionamento crítico ao modo pelo qual o recovery tem sido desenvolvido naquele país - assumindo viés fortemente neoliberal e ‘cooptado’ por profissionais - e reivindica, sobretudo, a defesa de direitos humanos e a luta por justiça social (Edwards, Burgess e Thomas, 2019EDWARDS, Bethan; BURGESS, Rick; THOMAS, Ellie. Neorecovery: a survivor led conceptualization and critique. 2019. Keynote presented at the 25th International Mental Health Nursing Research Conference. Recovery in the Bin. The Royal College of Nursing, London, UK, 2019. Disponível em: https://recoveryinthebin.org/neorecovery-a-survivor-led-conceptualisation-and=critique-mhrn2019 /. Acesso em: 7 ago. 2021.
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).
Para os serviços que se orientam por recovery, Wallcraft (2005WALLCRAFT, Jan. The place of recovery. In: WILLIAMS, Janet; RAMON, Shulamit. (eds.). Mental health at the crossroads: the promise of the psychosocial approach. London: Ashgate, 2005, p. 127-137. , p. 210) defende a ideia de que devem ser proporcionadas aos usuários “escolhas de suas próprias habilidades a serem desenvolvidas, suas próprias metas e o uso do serviço de acordo com seus próprios tempos”. Além de estratégias como as assembleias, que podem ser organizadas nas práticas de reabilitação psicossocial, a assistência que se oriente por recovery deve ter como primordial a participação do usuário. No entanto, ainda de acordo com o movimento de usuários no Reino Unido, atualmente faltam serviços democráticos, coletivistas e emancipatórios (Edwards, Burgess e Thomas, 2019EDWARDS, Bethan; BURGESS, Rick; THOMAS, Ellie. Neorecovery: a survivor led conceptualization and critique. 2019. Keynote presented at the 25th International Mental Health Nursing Research Conference. Recovery in the Bin. The Royal College of Nursing, London, UK, 2019. Disponível em: https://recoveryinthebin.org/neorecovery-a-survivor-led-conceptualisation-and=critique-mhrn2019 /. Acesso em: 7 ago. 2021.
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), o que nos sugere que, mesmo em um contexto orientado por recovery, o usuário pode não ter o seu protagonismo garantido.
Desse modo, reiteramos o pensamento de Vasconcelos (2013VASCONCELOS, Eduardo M. Empoderamento de usuários e familiares em saúde mental e em pesquisa avaliativa/interventiva: uma breve comparação entre a tradição anglo-saxônica e a experiência brasileira. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2.825-2.835, 2013. 10.1590/S1413-81232013001000007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/v8BSgLTPkSN4bMTTBYQHPNM/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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; 2017aVASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental I: uma apresentação histórica e conceitual para o leitor brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 31-47, 2017a. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69534/41656 . Acesso em: 7 ago. 2021.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbs...
; 2017bVASCONCELOS, Eduardo M. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental II: uma avaliação crítica para uma apropriação criteriosa no cenário brasileiro. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental , Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 48-65, 2017b. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/view/69535/4165 . Acesso em: 7 ago. 2021.
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) de que é imprescindível que fatores sociais, econômicos e culturais próprios de nossa realidade sejam considerados, pois é só por intermédio de nossas práticas locais que podemos vislumbrar avanços, amparados ou não em recovery. Além disso, acreditamos que a desigualdade social no país deve ser levada em conta para a política de atenção psicossocial como um todo, que também deve pressupor o protagonismo de usuários e o fortalecimento dos mecanismos de controle social. Lutar por justiça social deve ser princípio para qualquer prática assistencial, vinculada ou não a recovery.
De toda maneira, o debate sobre recovery no Brasil é desafiador, especialmente em um contexto político desfavorável como esse em que nos encontramos atualmente. A falta de investimento em projetos colaborativos, sobretudo na ciência, a extrema desigualdade social no país, que marca também as relações já tradicionalmente hierarquizadas entre profissionais e usuários, o sucateamento dos serviços de saúde e a precarização dos vínculos de trabalho tornam o terreno pouco fértil para o surgimento de iniciativas mais progressistas, conforme ressaltam Cruz, Gonçalves e Delgado (2020CRUZ, Nelson F. O.; GONÇALVES, Renata W.; DELGADO, Pedro G. G. Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, e00285117, 2020. 10.1590/1981-7746-sol00285. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/j6rLVysBzMQYyFxZ6hgQqBH/?lang=pt . Acesso em: 7 ago. 2021.
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).
De acordo com a revisão realizada, a centralidade no usuário, apoiada na visibilidade de suas narrativas, em sua inserção em grupos de pesquisa ou no cuidado assistencial, tem sido o principal aspecto que permeia o que vem sendo trabalhado até o momento. Para a assistência em saúde mental, em especial, essa centralidade no usuário, defendida segundo a abordagem de recovery, implicaria sobretudo a mudança de um modelo profissional-centrado, focado principalmente na remissão de sintomas, para a adoção de práticas inovadoras que considerem a participação do usuário no serviço e contribuam para a compreensão de sua condição (e de seu insight sobre a experiência), assim como para suas escolhas em relação a estratégias de lida com o sofrimento psíquico, na defesa da cidadania e do cuidado em liberdade. Os estudos analisados demonstram que ainda é incipiente a experiência de serviços com participação de usuários na gestão, isto é, não se identificam situações concretas e sustentáveis de serviços ‘centrados no usuário’, apesar da intenção e dos esforços desenvolvidos no campo da atenção psicossocial.
Uma questão central está presente em todos os trabalhos revisados: o protagonismo de usuários e familiares como desafio inerente às práticas orientadas pelo recovery. O diálogo entre o movimento do recovery e a experiência brasileira de atenção psicossocial deverá ter como objetivo permanente a construção compartilhada do protagonismo dos usuários e usuárias nos serviços, no ensino e na pesquisa. Assim, ressaltamos a importância do debate que se paute no protagonismo de usuários e usuárias de saúde mental, tanto para as práticas nos serviços, incentivando relações mais horizontais entre profissionais e usuários, como também para a produção de conhecimento implicada com avanços para a rede pública brasileira de saúde mental e atenção psicossocial.
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Financiamento
Não houve financiamento específico para este trabalho. -
Apresentação prévia
Este artigo é resultante do projeto de pesquisa, em desenvolvimento, “Familiares Parceiros do Cuidado”, iniciado em 2011 no Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental, do Instituto de Psiquiatria, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NUPPSAM/IPUB/UFRJ).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
20 Maio 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
29 Set 2021 -
Aceito
03 Fev 2022