Acessibilidade / Reportar erro

Ciência e resistência: a contribuição da comunidade acadêmica para a luta indígena no Supremo Tribunal Federal

Science and resistance: the contribution of the academic community to the indigenous struggle in the Federal Supreme Court

Ciencia y resistencia: la contribución de la comunidad académica a la lucha indígena en la Corte Suprema

Resumo:

Esta nota de conjuntura tem como objetivo registrar historicamente o contexto de proposição da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709, primeira ação no âmbito do Supremo Tribunal Federal protagonizada por uma organização indígena, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, na conjuntura da pandemia da covid-19. Apresentamos neste texto a mobilização de grupos de pesquisadores da área de saúde indígena articulados com lideranças e movimentos indígenas que denunciaram a vulnerabilidade e os graves impactos da covid-19 para os povos indígenas e as fragilidades da resposta do governo federal. Destacamos a atuação dos pesquisadores do Grupo Temático de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva e da Fundação Oswaldo Cruz, que constituíram um grupo de especialistas para apoiar as decisões do ministro Luís Roberto Barroso no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709. Sintetizamos o vasto registro processual da proposição desta arguição de descumprimento, a qual apresenta um conjunto de evidências sobre as fragilidades do planejamento e da resposta governamental durante o período crítico da pandemia. Em um contexto de crise sanitária e violação de direitos, o movimento indígena valorizou a ciência e foi capaz de potencializar a incidência dos pesquisadores para sua resistência e luta pelo direito à saúde.

Palavras-chave:
judicialização da saúde; saúde indígena; povos indígenas; covid-19; participação social

ABSTRACT

This conjuncture note aims to record historically the context of proposition of the Argument of Noncompliance with Fundamental Precept 709, the first action within the scope of the Federal Supreme Court led by an indigenous organization, the Articulation of Indigenous Peoples of Brazil, in the context of the COVID-19 pandemic. In this text, we present the mobilization of groups of researchers in indigenous health articulated with indigenous leaderships and indigenous movements who denounced the vulnerability and severe impacts of COVID-19 on indigenous peoples and the weaknesses of the federal government’s response. We highlight the work of researchers from the Indigenous Health Thematic Group of the Brazilian Association of Collective Health and the Fundação Oswaldo Cruz, who constituted a group of experts to support the decisions of Minister Luís Roberto Barroso within the scope of the Argument of Noncompliance with Fundamental Precept 709. We summarize the vast procedural record of the proposition of this non-compliance allegation, which presents evidence on the weaknesses of government planning and response during the critical period of the pandemic. In a context of health crisis and violation of rights, the indigenous movement valued science and enhanced the incidence of researchers for their resistance and struggle for the right to health.

Keywords:
judicialization of health; indigenous health; indigenous peoples; covid-19; social participation

Resumen

Esta nota de conyuntura tiene como objetivo registrar históricamente el contexto en el que se presentó el Argumento de Incumplimiento del Precepto Fundamental 709, la primera acción ante el Tribunal Supremo por una organización indígena, la Articulación de los Pueblos Indígenas de Brasil, en el contexto de la pandemia del Covid-19. En este texto, presentamos la movilización de los grupos de investigadores en el campo de la salud indígena, en conjunto con las liderazgos y movimentos indígenas, que han denunciado la vulnerabilidad y los graves impactos del Covid-19 en los pueblos indígenas y las debilidades de la respuesta del gobierno federal. Destacamos el trabajo de los investigadores del Grupo Temático de Salud Indígena de la Asociación Brasileña de Salud Colectiva y de la Fundação Oswaldo Cruz, que formaron un grupo de expertos para apoyar las decisiones del juez Luís Roberto Barroso en el contexto de la Demanda de Incumplimiento del Precepto Fundamental 709. Recopilamos el amplio registro procesal de la moción de declaración de incumplimiento, que presenta un conjunto de pruebas sobre las debilidades de la planificación y la respuesta del gobierno durante el período crítico de la pandemia. En un contexto de crisis sanitaria y violación de derechos, el movimiento indígena valoró la ciencia y supo aprovechar la influencia de los investigadores en su resistencia y lucha por el derecho a la salud.

Palabras clave
judicialización de la salud; salud indígena; pueblos indígenas; Covid-19; participación social

Introdução

A pandemia da covid-19 se configurou como uma grave crise sanitária e humanitária global afetando de forma desigual alguns grupos sociais, sobremaneira os povos indígenas. Contudo, a veemência dos dados atuais não pode esmaecer o histórico de iniquidades sociais e de saúde que assola esses povos. Diversos autores (Horton, 2006 HORTON, Richard. Indigenous peoples: time to act now for equity and health. The Lancet, v. 367, n. 9.524, p. 1.705-1.707, 2006. 10.1016/S0140-6736(06)68745-X. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16731249/ Acesso em: 4 mar. 2024.
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16731249...
; Anderson et al., 2016 ANDERSON, Ian et al. Indigenous and tribal peoples’ health (The Lancet-Lowitja Institute Global Collaboration): a population study. The Lancet, v. 388, n. 10.040, p. 131-157, 2016. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(16)00345-7 . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(16)00...
; Coimbra et al., 2013 COIMBRA, Carlos E. A. et al. The First National Survey of Indigenous People’s Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health, v. 13, n. 52, p. 1-19, 2013. https://doi.org/10.1186/1471-2458-13-52 . Disponível em: https://bmcpublichealth.biomedcentral.com/articles/10.1186/1471-2458-13-52#citeas . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://doi.org/10.1186/1471-2458-13-52...
; Cardoso et al., 2019 CARDOSO, Andrey M. et al. Investigation of an outbreak of acute respiratory disease in an indigenous village in Brazil: contribution of influenza A(H1N1)pdm09 and human respiratory syncytial viruses. PLoS ONE, v. 14, n. 7, e0218925, 2019. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0218925 . Disponível em: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0218925 . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.021...
; Farias et al., 2019) vêm destacando maior taxa de mortalidade infantil, elevada carga de doenças infecciosas, parasitárias e de transmissão respiratória (com destaque para as infecções respiratórias agudas) e elevadas proporções de hospitalizações e óbitos por causas evitáveis em comparação com as populações não indígenas no seu entorno.

Seguindo essa mesma tendência, passados mais de três anos da chegada da covid-19 no Brasil, diversas análises evidenciam a maior gravidade de seus impactos nos povos indígenas, com indicadores mais desfavoráveis do que em não indígenas. Tais análises comungam da ideia de que a realidade sanitária poderia ter sido outra, caso a resposta governamental tivesse se adequado à gravidade do cenário.

Soares e colaboradores ( 2022 SOARES, Gustavo H. et al. Disparities in excess mortality between indigenous and non-indigenous Brazilians in 2020: measuring the effects of the Covid-19 pandemic. Journal of Racial and Ethnic Health Disparities, New York, v. 9, n. 6, p. 2.227-2.236, 2022. 10.1007/s40615-021-01162-w. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34581998/ . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34581998...
) demonstraram que a estimativa de mortes em excesso de indígenas durante o ano de 2020 teve um aumento de 34,8%, enquanto em não indígenas foi de 18,1%. Ranzani e colaboradores ( 2021 RANZANI, Otavio T. et al. Characterisation of the first 250000 hospital admissions for Covid-19 in Brazil: a retrospective analysis of nationwide data. Lancet Respir Med (on-line), v. 9, n. 4, p. 407-418, jan. 2021. https://doi.org/10.1016/S2213-2600(20)30560-9 . Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lanres/article/PIIS2213-2600(20)30560-9/fulltext . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://doi.org/10.1016/S2213-2600(20)30...
) calcularam que as taxas de mortalidade hospitalar por covid-19 em 2020 foram maiores em indígenas do que em qualquer outro grupo de cor ou raça em todas as faixas etárias, com exceção de 60 a 69 anos. Pontes e colaboradores ( 2021PONTES, Ana, L. M. et al. Pandemia de covid-19 e os povos indígenas no Brasil: cenários sociopolíticos e epidemiológicos. In: MATTA, Gustavo C. et al. (orgs.). Os impactos sociais da covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021. p. 123-136. ) compararam as taxas de mortalidade específicas por idade reportadas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), com base no Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena (Siasi), e aquelas obtidas para a população geral, de acordo com o Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe), e concluíram que as taxas de mortalidade pela covid-19 foram superiores em pelo menos 50% nos indígenas em praticamente todas as faixas etárias (da semana epidemiológica 1 a 35 de 2020), sendo os diferenciais mais expressivos nos extremos de idade, chegando a se mostrar sete vezes maior em crianças indígenas de 0 a 9 anos. Para complementar as análises, Pontes e colaboradores ( 2021PONTES, Ana, L. M. et al. Pandemia de covid-19 e os povos indígenas no Brasil: cenários sociopolíticos e epidemiológicos. In: MATTA, Gustavo C. et al. (orgs.). Os impactos sociais da covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021. p. 123-136. ) evidenciaram que os óbitos de indígenas por síndrome respiratória aguda grave (SRAG) pela covid-19, no mesmo período, excedeu em 19% a de não indígenas, sendo esse diferencial maior nas regiões Norte e Centro-Oeste. Essas análises, porém, não dimensionam efetivamente os significados e impactos socioculturais, afetivos e políticos das perdas de vidas indígenas para suas famílias, comunidades e coletivo.

As memórias de episódios de epidemias que assolaram comunidades indígenas e dizimaram alguns povos ainda são recentes e vívidas para os indígenas, de modo que, em 12 de março de 2020, imediatamente depois de a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar que a covid-19 era uma pandemia, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) suspendeu o Acampamento Terra Livre (ATL), mobilização prevista para abril daquele ano, e lançou a campanha #ficanaaldeia, orientando os indígenas a se recolherem em seus territórios e organizarem barreiras sanitárias para impedir a circulação de pessoas (Amado e Ribeiro, 2020AMADO, Luiz H. E. Vukápanavo: o despertar do povo Terena para os seus direitos – movimento indígena e confronto político. Rio de Janeiro: E-papers, 2020. ). Rapidamente, o movimento indígena mostrou sua potente capacidade de articular atores, criar agenda e elaborar proposições para minimizar os impactos da pandemia em seus povos (Rosa, 2021 ROSA, Marlise. ‘Isso é uma emergência!’: panorama da mobilização da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) para o enfrentamento da covid-19. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 60-97, maio-ago. 2021. https://doi.org/10.22456/1982-6524.114318 . Disponível em: https://seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/view/114318 . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://doi.org/10.22456/1982-6524.11431...
).

Se os estudos epidemiológicos evidenciam o resultado da (in)capacidade (ou projeto?) do Estado brasileiro de proteger os povos indígenas, a luta indígena abriu novas trilhas e grafou suas reivindicações na mais alta corte brasileira. Pela primeira vez na história do país, um advogado indígena (Eloy Amado Terena) fez uma sustentação oral no púlpito do Supremo Tribunal Federal (STF). A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 (STF, 2020 STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709). Brasília, DF, 01 jul. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
)

É grito de socorro dos povos indígenas. Esta iniciativa é uma ação histórica. Porque pela primeira vez, no âmbito da jurisdição constitucional, os povos indígenas vêm ao Judiciário, em nome próprio, por meio de advogados próprios, defendendo interesse próprio. Pois durante muitos séculos esta qualidade de sujeito ativo de direito nos foi negada.

(Eloy Terena – sustentação oral STF, 3 de agosto de 2020 STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709). Brasília, DF, 01 jul. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
)

É importante enfatizar que não é a primeira vez que a atuação do campo jurídico se mostra fundamental para a estruturação da política de saúde indígena, mas é a primeira vez que a advocacia indígena protagoniza tal processo. Machado e Garnelo ( 2021MACHADO, Felipe R. S.; GARNELO, Luiza. A longa reforma sanitária indígena. In: PONTES, Ana L.; MACHADO, Felipe R. S.; SANTOS, Ricardo V. (orgs.). Políticas antes da política de saúde indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021. p. 277-308. ) ressaltam que em 1988 um parecer da procuradora Deborah Duprat, do Ministério Público Federal (MPF), foi fundamental para subsidiar a legitimidade das especificidades dos direitos indígenas na saúde e a responsabilidade da esfera federal na sua efetivação. Essa atuação do MPF deu consistência à proposta aprovada na lei n. 9.836, em 1999, que criou o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (Sasi-SUS). Portanto, a estratégia de luta pela via judicial, que a propósito tem sido largamente adotada no contexto da saúde – vide toda a discussão em torno do tema da judicialização da saúde (Machado, 2008 MACHADO, Felipe R. S. Contribuições ao debate da judicialização da saúde no Brasil. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 73-79, 2008. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v9i2p73-91 . Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/13118 . Acesso em: 5 mar. 2024.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9044....
; Ventura et al., 2010 VENTURA, Miriam et al. Judicialização da saúde, acesso à Justiça e a efetividade do direito à saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 77-100, 2010. https://doi.org/10.1590/S0103-73312010000100006 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/35xXdQXR9JrdvpPmtkktL9F/ . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201000...
) –, também passou a figurar como mais uma frente de luta dos povos indígenas.

O vasto registro processual da ADPF 709 (STF, 2020 STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709). Brasília, DF, 01 jul. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
) apresenta um conjunto de evidências sobre as fragilidades do planejamento e a falta de resposta governamental durante o período crítico da pandemia. Tal processo evidenciou ainda a construção de um trabalho entre pesquisadores da área de saúde coletiva e a advocacia indígena. Este artigo tem como objetivo registrar historicamente o contexto de proposição da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709, narrando a história do trabalho conjunto realizado entre movimento indígena e academia e indicando as dinâmicas e os caminhos trilhados que resultaram na chegada do movimento indígena como protagonista de um processo no STF.

APIB e Abrasco: o início da história

O Grupo de Trabalho (GT) de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) foi formado em dezembro de 2000, logo após a criação do Sasi-SUS, com a finalidade de produzir contribuições técnico-científicas para a nova política de saúde indígena. Além disso, os membros do GT têm atuado nas instâncias do controle social indígena, como membros de conselhos distritais de saúde indígena, da Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (Cisi/Conselho Nacional de Saúde) e como delegados nas conferências nacionais de saúde indígena.

A APIB foi criada em 2005 pelo Acampamento Terra Livre. O ATL, realizado anualmente em Brasília desde 2004, tornou-se um dos momentos fundamentais da luta indígena e tem como objetivo “tornar visível a situação dos direitos indígenas e reivindicar do Estado brasileiro o atendimento das demandas e reivindicações dos povos indígenas” (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2024 ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. 2024. Disponível em: https://neamp.pucsp.br/organizacoes/apib-articulacao-dos-povos-indigenas-do-brasil . https://neamp.pucsp.br/organizacoes/apib-articulacao-dos-povos-indigenas-do-brasil . 2024 Acesso em: 4 mar. 2024.
https://neamp.pucsp.br/organizacoes/apib...
).

A parceria da APIB com o GT de Saúde Indígena da Abrasco se fortaleceu institucionalmente desde 2019, diante da necessidade da criação de resistência contra a extinção da Sesai (uma das primeiras ameaças do governo Bolsonaro expressadas logo no primeiro mês de mandato pelo então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta) e ameaças de municipalização do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Associação Brasileira de Saúde Coletiva, 2019 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA (ABRASCO). Sesai permanece na estrutura do Ministério da Saúde. Abrasco. Notícias. 29 mar. 2019. Disponível em: https://abrasco.org.br/sesai-permanece-na-estrutura-do-ministerio-da-saude/ . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://abrasco.org.br/sesai-permanece-n...
). Essa aproximação se consolida rapidamente no enfrentamento da pandemia da covid-19. Ressalta-se que as articulações entre movimento social indígena e profissionais e pesquisadores no campo da saúde, em particular na saúde coletiva, se estendem por várias décadas, tendo sido fundamentais para no contexto pós-regime militar levar à concepção e à implementação de políticas públicas em saúde voltadas para os povos indígenas, como é o caso do Sasi no final dos anos 1990 (Pontes, Machado e Santos, 2021PONTES, Ana L. M.; MACHADO, Felipe R. S.; SANTOS, Ricardo V. (orgs.). Políticas antes da política de saúde indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021. ).

Logo no início da pandemia, ainda em março de 2020, a invisibilidade dos povos indígenas na organização da resposta do Ministério da Saúde (MS) à covid preocupava pesquisadores e lideranças. Chamava a atenção naquele momento, por exemplo, o fato de que a antecipação da campanha de vacinação contra influenza, uma das medidas iniciais do MS, excluía os indígenas do grupo prioritário. Em 16 de março de 2020, a Sesai solicitou a inclusão dos povos indígenas nesse grupo prioritário, pedido que não foi atendido. Após a pressão do movimento indígena e da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas, coordenada pela deputada federal Joenia Wapichana (Rede/RR), o pleito foi atendido em 14 abril pela Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS/Ministério da Saúde) (Verdum, 2022VERDUM, Ricardo. A pandemia de covid-19 e os povos indígenas no Congresso Nacional: frente parlamentar, representação e protagonismo possível. In: ALARCON, Daniela et al. ‘A gente precisa lutar de todas as formas’: povos indígenas e o enfrentamento da covid-19 no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2022. p. 167-214. ).

Nesse contexto, em nota pública da Abrasco no dia 21 de março de 2020, os pesquisadores procuraram evidenciar o conjunto de vulnerabilidades que afetavam os povos indígenas, mas também os desafios para implementação e garantia das medidas preventivas e assistenciais preconizadas.

São enormes os desafios para garantir o isolamento previsto para casos suspeitos ou confirmados em territórios indígenas, cujas habitações frequentemente têm grande número de moradores. Por esse motivo, uma das principais estratégias de prevenção ao coronavírus é controlar a entrada de pessoas com ou sem sintomas respiratórios (incluindo casos suspeitos e confirmados) em territórios indígenas.

Em geral, essas populações residem em locais remotos e têm dificuldade de acessar o sistema de saúde, o que vai demandar maior agilidade nas respostas, bem como recursos para garantir o deslocamento até unidades de internação, localizadas nas cidades. Além disso, muitos territórios indígenas estão mais próximos de pequenas cidades com precária estrutura de serviços de saúde, onde há pouca ou nenhuma disponibilidade de hospitais especializados e serviços de UTI, dificultando o tratamento de casos graves do coronavírus. (Associação Brasileira de Saúde Coletiva/Associação Brasileira de Antropologia, 2020 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA (ABRASCO). ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA (ABA). A covid-19 e os povos indígenas: desafios e medidas para controle do seu avanço. 21 mar. 2020. Disponível em: https://abrasco.org.br/a-Covid-19-e-os-povos-indigenas-desafios-e-medidas-para-controle-do-seu-avanco/#:~:text=Em%20reconhecimento%20a%20esses%20problemas,possibilidade%20de%20transmiss%C3%A3o%20da%20doen%C3%A7a . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://abrasco.org.br/a-Covid-19-e-os-p...
)

Assim, sair da invisibilidade e evidenciar que os indígenas constituíssem um grupo a ser priorizado nas ações de enfrentamento da covid-19 se tornou a pauta de luta do movimento indígena e de seus parceiros. A reivindicação feita naquele momento repercutiu na grande mídia (Anjos e Fonseca, 2020 ANJOS, Anna B.; FONSECA, Bruno. Inédito: mais de 200 terras indígenas na Amazônia têm alto risco para covid-19. 2020. Disponível em: https://apublica.org/2020/04/ineditomais-de-200-terras-indigenas-na-amazonia-tem-alto-risco-para-Covid-19/ . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://apublica.org/2020/04/ineditomais...
; Gutierrez, 2020 GUTIERREZ, Felipe. 81 mil indígenas estão em situação de vulnerabilidade crítica em caso de exposição à covid-19, diz estudo. G1, Rio de Janeiro, 23 abr. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/23/81-mil-indigenas-estao-em-situacao-de-vulnerabilidade-critica-em-caso-de-exposicao-a-covid-19-diz-estudo.ghtml . 2020. Acesso em: 4 mar. 2024.
https://g1.globo.com/bemestar/coronaviru...
; Reinholz, 2020 REINHOLZ, Fabiana. A vulnerabilidade das comunidades indígenas diante do coronavírus. 2020. Disponível em: https://www.brasildefators.com.br/2020/04/08/a-vulnerabilidade-das-comunidades-indigenas-diante-do-coronavirus . 2020. Acesso em: 4 mar. 2024.
https://www.brasildefators.com.br/2020/0...
) e em organizações internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS) (Reuters, 2020), a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas, 2020 ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE (OPAS). Opas insta países a intensificar esforços para impedir maior propagação da covid-19 entre povos indígenas. 2020. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/20-7-2020-opas-insta-paises-intensificar-esforcos-para-impedir-maior-propagacao-da-covid . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://www.paho.org/pt/noticias/20-7-20...
), a Organização dos Estados Americanos (OEA, 2020) e a Organização das Nações Unidas (United Nations, 2020 UNITED NATIONS (UN). Department of Economic and Social Affairs. Social Inclusion. COVID-19 and indigenous peoples: ‘We urge member States and the international community to include the specific needs and priorities of indigenous peoples in addressing the global outbreak of COVID 19’. 2020. Disponível em: https://www.un.org/development/desa/indigenouspeoples/Covid-19.html . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://www.un.org/development/desa/indi...
), que reforçaram a importância de que os estados tivessem especial atenção para seu enfrentamento no contexto dos povos indígenas.

No mês seguinte, 11 dias após o lançamento da nota da Abrasco, a APIB e o GT Abrasco construíram uma lista de reivindicações que circulou no documento intitulado ‘Carta aos governadores’, de 1º de abril de 2020, do qual destacamos:

1. A articulação entre todas as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde com o SASI-SUS e os Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEIs, a fim de garantir acesso à informação da situação epidemiológica e das ações que estão sendo realizadas em cada local, terras e aldeias indígenas, inclusive da população indígena em área urbana;

2. A garantia de que os planos emergenciais para atendimentos dos pacientes graves dos estados e municípios incluam a população indígena, deixando explícitos os fluxos e as referências para o atendimento em tempo hábil, em articulação com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e DSEIs;

(...)

5. Inclusão das populações indígenas como grupo prioritário na antecipação da vacinação contra influenza, medida que não sobrecarregará o restante da rede SUS, pois ela é executada pela Sesai; (...).

(Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2020a ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). Coronavírus: APIB articula com governadores estratégias para proteção aos povos indígenas de todo o Brasil. Notas da APIB. 2020a. Disponível em: https://emergenciaindigena.apiboficial.org/coronavirus-apib-articula-com-governadores-estrategias-para-protecao-aos-povos-indigenas-de-todo-brasil/ . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://emergenciaindigena.apiboficial.o...
)

Nesses primeiros meses, diversos grupos de pesquisa produziram materiais com vistas a subsidiar o debate acerca da vulnerabilidade dos povos indígena, tanto para apontar o cenário da precariedade de condições para o enfrentamento da pandemia (Azevedo et al., 2020 AZEVEDO, Marta et al. Análise de vulnerabilidade demográfica e infraestrutural das terras indígenas à covid-19. Caderno de insumos. 2020. Disponível em: https://apublica.org/wp-content/uploads/2020/04/caderno-demografia-indigena.pdf . Acesso em: 15 abr. 2024.
https://apublica.org/wp-content/uploads/...
; Oviedo et al., 2020OVIEDO, Antonio S. et al. A vulnerabilidade socioambiental dos povos indígenas no Brasil à covid-19. In: PACHECO, Rafael (org.). ‘Fica na aldeia, parente’: povos indígenas e a pandemia de covid-19. São Paulo: Primata, 2020. p. 271-313. ) quanto para demonstrar que um importante contingente populacional estava em risco imediato à pandemia (Lana et al., 2021LANA, Raquel M. et al. Vulnerabilidade das populações indígenas à pandemia de covid-19 no Brasil e os desafios para o seu monitoramento. In: FREITAS, Carlos M.; BARCELLOS, Christovam; VILLELA, Daniel A. M. (orgs.). Covid-19 no Brasil: cenários epidemiológicos e vigilância em saúde. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19 Fiocruz; Editora Fiocruz, 2021. p. 127-142. ). Abrasco e APIB produziram diversas notas públicas denunciando a situação dos indígenas, de modo a indicar caminhos possíveis para as políticas públicas e cobrar uma ação efetiva do governo federal. Os estudos realizados e as notas públicas também foram amplamente usados como mecanismos de pressão da resposta governamental pelo movimento indígena, mas também no Congresso Nacional e pelo Ministério Público Federal. Destaca-se, nesse sentido, o envio de uma nota técnica da Abrasco para a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid-19, do Senado (Associação Brasileira de Saúde Coletiva, 2021 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA (ABRASCO). Nota técnica: o enfrentamento da pandemia no contexto dos povos indígenas – aspectos da resposta governamental. Versão preliminar encaminhada para a CPI da Covid-19. 2021. Disponível em: https://abrasco.org.br/wp-content/uploads/sites/12/2021/12/FINAL_nota-tecnica-GT-saude-indigena-CPI-31-08.pdf . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://abrasco.org.br/wp-content/upload...
), em agosto de 2021, na qual são indicadas as lentas, frágeis e insuficientes respostas governamentais no enfrentamento da covid-19 nos povos indígenas.

O cenário da pandemia e a resposta do Sasi-SUS

A pandemia escancarou a necessidade estratégica do SUS para a garantia do direito à saúde da população e, igualmente, do Sasi-SUS para o acesso dos indígenas à atenção primária nos territórios indígenas e também para a coordenação do cuidado integral dessa população em todos os níveis de atenção do Sistema Único de Saúde. Entretanto, a pandemia agudizou ainda as fragilidades crônicas do SUS e do Sasi-SUS, agravadas pelas restrições orçamentárias em curso nos últimos anos. Historicamente, o Sasi-SUS apresenta problemas relacionados à contratação e retenção de profissionais de saúde, principalmente médicos. São também amplamente reconhecidas as limitações na articulação do Sasi-SUS com os demais níveis de atenção nos municípios e estados, refletidas na fragilidade dos fluxos para garantia do acesso integral e oportuno à saúde.

Além disso, a pandemia trouxe à tona a vulnerabilidade dos indígenas em contexto urbano, sujeitos cuja etnicidade em geral é questionada e negada, e cujos óbitos são negados aos registros oficiais da Sesai, sendo contabilizados como ‘pardos’. Significa reconhecer que o número real de óbitos dos indígenas pela covid-19 é muito maior do que os números oficiais. Esta questão também motivou outra ação da APIB, que contou com o apoio do GT Abrasco: a criação do Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena, o qual buscou manter um monitoramento participativo com suas entidades de base para contabilizar os impactos do conjunto da população indígena (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2020b ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). ‘Nossa luta é pela vida’: covid-19 e povos indígenas – o enfrentamento das violências durante a pandemia. 2020b. Disponível em: https://emergenciaindigena.apiboficial.org/files/2020/12/APIB_nossalutaepelavida_v7PT.pdf . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://emergenciaindigena.apiboficial.o...
). Os resultados desse trabalho foram descritos no relatório intitulado ‘Covid-19 e povos indígenas: nossa luta é pela vida. O enfrentamento das violências durante a pandemia’, lançado em dezembro de 2020 (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2020b ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). ‘Nossa luta é pela vida’: covid-19 e povos indígenas – o enfrentamento das violências durante a pandemia. 2020b. Disponível em: https://emergenciaindigena.apiboficial.org/files/2020/12/APIB_nossalutaepelavida_v7PT.pdf . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://emergenciaindigena.apiboficial.o...
).

Nos primeiros meses da pandemia, ficou evidente que um expressivo contingente de trabalhadores da saúde indígena era afetado pela covid-19, com repercussões negativas previsíveis sobre a capacidade de manutenção da assistência e sobre o aumento da transmissão em territórios indígenas. Não havia regularidade nem suficiência na provisão de equipamentos de proteção individual (EPIs), o que prejudicava a proteção de trabalhadores e usuários do Sasi; havia pouco acesso à testagem laboratorial dos trabalhadores e usuários indígenas, fragilizando a vigilância e o monitoramento da progressão da pandemia. Indígenas com casos graves de covid-19 tinham acesso tardio a hospitais, o que desencadeou alta mortalidade hospitalar. Além disso, as invasões dos territórios indígenas incrementaram e levaram a transmissão da covid-19 até mesmo a povos isolados e de recente contato. Também chamava a atenção o fato de que, em um cenário de pandemia e crescimento da demanda por cuidados, a execução orçamentária da saúde indígena no primeiro semestre de 2020 estava abaixo do ano anterior (Saraiva e Cardoso, 2020 SARAIVA, Leila; CARDOSO, Alessandra. Nota técnica: execução orçamentária da saúde indígena diante da pandemia do novo coronavírus. Brasília: Inesc, 2020. Disponível em: https://inesc.org.br/execucao-orcamentaria-da-saude-indigena-diante-da-pandemia-do-novo-coronavirus/ . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://inesc.org.br/execucao-orcamentar...
). Importante destacar que ao mesmo tempo que cortava recursos para a saúde indígena, em 6 de fevereiro de 2020 o presidente da República apresentou ao executivo o projeto de lei n. 191/2020, que previa “a abertura das terras indígenas para a mineração, a exploração de gás e petróleo e a construção de hidrelétricas, entre outras atividades” (Indigenistas Associados/Instituto de Estudos Socioeconômicos, 2022 INDIGENISTAS ASSOCIADOS (INA). INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS (INESC). Fundação anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro. 2022. Disponível em: https://inesc.org.br/fundacao-anti-indigena-um-retrato-da-funai-sob-o-governo-bolsonaro/ . Acesso em: 5 mar. 2024.
https://inesc.org.br/fundacao-anti-indig...
, p. 9).

Diante desse cenário de evidente descaso com a saúde indígena (na verdade, com a existência indígena), a APIB decide acionar o STF para requerer, entre outras medidas fundamentais, a elaboração de um ‘Plano de Enfrentamento e Monitoramento da Covid-19 para Povos Indígenas Brasileiros’ (também chamado de ‘Plano da União’). Tal processo se iniciou em julho de 2020, sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, e permanecia até março de 2024 em tramitação. Contudo, a tramitação dessa ADPF produziu importantes frutos e demarcou uma nova fronteira de atuação do movimento indígena. Em março de 2021, um ano após o início da pandemia, o relator da ADPF homologou parcialmente o Plano da União para os povos indígenas.

A atuação do grupo de especialistas da Fiocruz e da Abrasco na ADPF 709

Na petição inicial da ADPF 709 (STF, 2020 STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709). Brasília, DF, 01 jul. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
), a APIB solicita que

Seja determinado ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) que, com auxílio técnico das equipes competentes da Fundação Oswaldo Cruz e do Grupo de Trabalho de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), e participação de representantes dos povos indígenas, elabore, em 20 dias, plano de enfrentamento do covid-19 para os povos indígenas brasileiros.

(Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, apud Barroso, 2020 BARROSO, Luís R. Medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709. Ementa: Direitos Fundamentais. Povos indígenas. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Tutela do direito à vida e à saúde dos povos indígenas face à pandemia da covid-19. Cautelares parcialmente deferidas. Decisão monocrática. Brasília, DF, Supremo Tribunal Federal, 10 jul. 2020. 41 p. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
, p. 8)

Tal solicitação, homologada em 10 de julho de 2020 pelo ministro relator, é o resultado desse intenso período de parceria estabelecido desde o início do governo Bolsonaro. Ressalta-se que a elaboração do plano fora definida adequadamente pelo STF como de responsabilidade da União, pois são os gestores que têm acesso às informações, governança e recursos para elaboração desse planejamento e monitoramento.

Atendendo à solicitação do STF, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) indicou os seguintes pesquisadores: André Reynaldo Santos Périssé (Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Ensp), médico infectologista e epidemiologista; Maria Ogrzewalska (Instituto Oswaldo Cruz/IOC), da área de microbiologia/virologia; André Machado de Siqueira (Instituto Nacional de Infectologia/INI), médico infectologista e de medicina tropical; Raquel Paiva Dias Scopel (Escritório Campo Grande), antropóloga; Ricardo Ventura Santos (Ensp e Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro), antropólogo; e Maria Luiza Garnelo Pereira (Instituto Leônidas e Maria Deane/ILMD), médica sanitarista e antropóloga.

Pela Abrasco, foram indicados: Maurício Soares Leite (Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC), nutricionista e epidemiologista; Ana Lucia Escobar (Universidade Federal de Roraima), médica e epidemiologista; Inara do Nascimento Tavares (Universidade Federal de Roraima/UFRR), indígena antropóloga; Ana Lúcia de Moura Pontes (Ensp/Fiocruz), médica sanitarista; e Andrey Moreira Cardoso (Ensp/Fiocruz), médico e epidemiologista.

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) indicou: Mariana Maleronka Ferron (Instituto Iepé e Faculdade de Medicina do Instituto Israelita Albert Einstein/FMIAE), médica especialista em medicina de família e comunidade; Juliana Rosalen (Instituto Iepé), antropóloga; e Clayton Coelho (Projeto Xingu/Universidade Federal de São Paulo), médico especialista em medicina de família e comunidade.

Assim, os 14 indicados por Fiocruz, Abrasco e CNDH constituíram um único grupo de consultores (GC) para a ADPF 709 (STF, 2020 STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709). Brasília, DF, 01 jul. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
). A primeira tarefa do grupo foi a participação nas reuniões do grupo de trabalho coordenado pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) – na época chefiado por Damares Alves – para elaborar o ‘Plano de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas Brasileiros’ (Plano da União). Na avaliação do GC, as propostas de atuação indicadas no Plano da União no ‘Eixo Saúde’, na versão preliminar apresentada em 23 de julho de 2020, caracterizavam-se por serem vagas e imprecisas, definindo basicamente intenções e não um planejamento operacional de ações urgentes. Assinalou-se a falta de metas, de responsáveis, de protocolos, indicadores de acompanhamento, cronograma e orçamento. O grupo também questionou a linguagem excessivamente genérica, que não se mostrava adequada para orientar a ação das equipes dos DSEIs e de âmbito central. O GC contestou ainda a manutenção no Plano da União no ‘Eixo Saúde’ dos ‘níveis de resposta’ à disseminação da pandemia (alerta; perigo iminente; e emergência em saúde pública), quando naquele momento, em julho de 2020, todo o país encontrava-se em fase de transmissão sustentada da covid-19, isto é, quando praticamente todos os municípios já se encontravam em situação de ‘emergência em saúde pública’.

As reuniões coordenadas pelo MMFDH ocorreram nos dias 27, 29 e 31 de julho e 4 e 6 de agosto de 2020. Do ponto de vista do GC, não se caracterizavam como um ‘grupo de trabalho’ para planejamento de ações, uma vez que:

a) envolveu [envolveram] um número excessivo de participantes [mais de cem], dificultando discussões aprofundadas; b) não houve estratégia para discussão do problema em questão; c) não houve discussão sobre os objetivos ou ações a serem elaboradas; d) predominou ênfase em listar ações realizadas pelos órgãos governamentais e gerentes dos DSEIs, além de detalhamento dos procedimentos burocráticos; e) não foram realizadas discussões aprofundadas de quaisquer dos aspectos técnicos do plano, particularmente sobre as ações da Sesai. (...) O Grupo de Consultores não recebeu qualquer solicitação de questionamentos ou debate acerca de questões técnicas que poderiam ser aprimoradas, tampouco a equipe técnica da Sesai participou na segunda, quarta, quinta ou sexta reunião do GT. Os representantes da Sesai presentes nas reuniões não se manifestaram sobre quaisquer assuntos pontuados, e a equipe técnica somente participou da terceira reunião.

(Associação Brasileira de Saúde Coletiva/Fundação Oswaldo Cruz, 2020 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA (ABRASCO). Grupo de Trabalho em Saúde Indígena. FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Nota técnica em resposta à intimação n. 2.636/2020. 2020. Disponível em: https://abrasco.org.br/wp-content/uploads/sites/12/2020/08/Resposta-intimacao-Fiocruz-Abrasco-Final-17-08-c2-2.pdf . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://abrasco.org.br/wp-content/upload...
, p. 6)

Evidentemente, o governo federal seguia apenas um rito formal para atender à determinação do STF, cujo objetivo era protelar qualquer ação efetiva voltada para a proteção dos povos indígenas. No entanto, mesmo tendo feito parte, ainda que apenas formalmente, do grupo de elaboração do ‘Plano de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas Brasileiros’, o ministro Barroso solicitou a manifestação dos especialistas da Fiocruz e da Abrasco sobre esse plano. Estratégia idêntica foi empregada em todas as quatro versões do Plano da União.

As quatro versões do Plano da União

O GC elaborou como contribuições para a ADPF 709 – de agosto de 2020 a fevereiro de 2021 – 12 notas técnicas, algumas delas por intimação do ministro relator para que se analisassem, em prazos de cinco a 15 dias, documentos anexados pela União. Somente em 16 de março de 2021, após oito meses de início da ADPF 709 (STF, 2020 STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709). Brasília, DF, 01 jul. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
) e algumas versões, o Plano da União foi parcialmente homologado pelo ministro Barroso. Ressalta-se, contudo, a peculiar decisão do relator proferida em 8 de dezembro de 2020 para que a União executasse imediatamente a ‘terceira versão’ do próprio plano, ainda que sem a sua homologação.

Destaca-se ainda que os comentários presentes nas notas técnicas que analisavam os documentos do governo insistiam nos mesmos pontos: 1) desatualização e imprecisão de dados apresentados pelo governo; 2) falta de celeridade ou falta de prazos para as ações diante da gravidade da situação; 3) ausência de detalhamento orçamentário, especialmente num contexto de sobrecarga e demandas extras para o subsistema; 4) falta de diagnóstico inicial e dados sobre a capacidade instalada do subsistema que permitam analisar o planejamento da ação; 5) falta de detalhamento quanto a critérios, indicadores e metas das ações.

Num documento de cinquenta páginas, a Abrasco e a Fiocruz responderam à intimação do relator para se analisar a quarta versão do Plano da União (Associação Brasileira de Saúde Coletiva/Fiocruz, 2021a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA (ABRASCO). Grupo de Trabalho em Saúde Indígena. FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Nota técnica em resposta à intimação n. 300 e 301/2021. 2021a. Disponível em: https://abrasco.org.br/wp-content/uploads/sites/12/2021/03/nota-tecnica-fiocruz-abrasco-12-02-final-v2_diagramacao-ajustada_2021-02-12.pdf . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://abrasco.org.br/wp-content/upload...
). Considera-se que houve um importante avanço na proposição desse plano, fruto evidente da atuação do movimento indígena por dentro das engrenagens do direito, que lhes permitiu tanto o acesso à oferta de ações do governo quanto o desenvolvimento de estratégias como a garantia de pareceres técnicos qualificados.

A partir de abril de 2021, a ADPF 709 (STF, 2020 STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709). Brasília, DF, 01 jul. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
) encontrava-se em sua terceira etapa, o monitoramento do ‘Plano de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas Brasileiros’, cuja metodologia fora definida pelo ministro Barroso em sua decisão de 16 de março de 2021. Tal monitoramento deveria ocorrer de forma trimestral por meio de uma planilha anexada à decisão com dados. Não foi nenhuma surpresa constatar que o primeiro conjunto de planilhas e relatórios produzidos pelo governo federal não seguiu as orientações indicadas pelo ministro relator. Em 20 de agosto de 2021, a nota técnica da Abrasco e da Fiocruz indicou que,

a despeito do aparente esforço de produção dos dados, o material apresentado se mostra confuso e de difícil localização quanto ao que foi solicitado. Isso por certo dificultará, em larga medida, o necessário e efetivo monitoramento por parte dos setores interessados e afetados.

(Associação Brasileira de Saúde Coletiva/Fundação Oswaldo Cruz, 2021b ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA (ABRASCO). Grupo de Trabalho em Saúde Indígena. FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Nota técnica em resposta à intimação n. 2.311 e 2.312/2021. 2021b. Disponível em: https://abrasco.org.br/wp-content/uploads/sites/12/2021/08/nota-tecnica-Fiocruz-Abrasco_2021-08-20_siteAbrasco.pdf . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://abrasco.org.br/wp-content/upload...
, p. 1-2)

Os dados apresentados no segundo e no terceiro relatórios indicaram melhorias quanto à inteligibilidade; entretanto, as respostas do governo Bolsonaro continuaram sendo insuficientes.

A ADPF 709 e as contribuições da Abrasco na CPI da covid-19

No início de 2021, viveu-se um agravamento dramático da pandemia no Brasil, que levou ao colapso dos sistemas de saúde em todo o país, particularmente em Manaus (AM), resultando em dezenas de mortes em decorrência da falta de oxigênio nos hospitais para suporte respiratório de pacientes graves pela covid-19. Em poucos meses, ultrapassamos quinhentos mil mortos – destes, mais de mil indígenas de centenas de povos. Diante de diversas evidências do descontrole da pandemia e de um lento início da campanha de vacinação contra a covid-19, surgiu um movimento no Senado para a investigação das responsabilidades dos gestores.

A CPI da covid-19 foi criada em 13 de abril e instalada no Senado em 27 de abril de 2021, depois de decisão liminar proferida pelo (mesmo) ministro Barroso que havia oito meses se debruçava sobre a ADPF 709 (STF, 2020 STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709). Brasília, DF, 01 jul. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
). Registre-se que a decisão liminar fora necessária, pois o presidente do Senado não cumprira o regimento da casa e postergava ad aeternum a implantação da CPI.

O objetivo da CPI era investigar as omissões do governo federal, as irregularidades no uso de recursos da União pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios e a crise de falta de oxigênio em Manaus. Suas atividades foram encerradas com a entrega do relatório final em 26 de outubro de 2021, sendo que diversas entidades enviaram contribuições para investigações e análises dos senadores, dentre elas a Abrasco. Assim, o relatório final da CPI também citava informações encaminhadas por meio da nota técnica ‘O enfrentamento da pandemia no contexto dos povos indígenas: aspectos da resposta governamental’, encaminhada para a CPI da Covid-19 (referida adiante como Nota Técnica da Abrasco para a CPI) (Associação Brasileira de Saúde Coletiva, 2021 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA (ABRASCO). Nota técnica: o enfrentamento da pandemia no contexto dos povos indígenas – aspectos da resposta governamental. Versão preliminar encaminhada para a CPI da Covid-19. 2021. Disponível em: https://abrasco.org.br/wp-content/uploads/sites/12/2021/12/FINAL_nota-tecnica-GT-saude-indigena-CPI-31-08.pdf . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://abrasco.org.br/wp-content/upload...
).

A nota técnica da Abrasco para a CPI (Associação Brasileira de Saúde Coletiva, 2021 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA (ABRASCO). Nota técnica: o enfrentamento da pandemia no contexto dos povos indígenas – aspectos da resposta governamental. Versão preliminar encaminhada para a CPI da Covid-19. 2021. Disponível em: https://abrasco.org.br/wp-content/uploads/sites/12/2021/12/FINAL_nota-tecnica-GT-saude-indigena-CPI-31-08.pdf . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://abrasco.org.br/wp-content/upload...
) remete a diversos dados e análises feitas pelos pesquisadores e pesquisadoras da Fiocruz e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva e encaminhadas na ADPF 709 (STF, 2020 STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709). Brasília, DF, 01 jul. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
), particularmente quanto à gravidade dos impactos da pandemia nos povos indígenas em termos de risco de exposição ao vírus, mortalidade e letalidade pela covid-19 (Pontes et al., 2021PONTES, Ana, L. M. et al. Pandemia de covid-19 e os povos indígenas no Brasil: cenários sociopolíticos e epidemiológicos. In: MATTA, Gustavo C. et al. (orgs.). Os impactos sociais da covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021. p. 123-136. ; Lana et al. 2021LANA, Raquel M. et al. Vulnerabilidade das populações indígenas à pandemia de covid-19 no Brasil e os desafios para o seu monitoramento. In: FREITAS, Carlos M.; BARCELLOS, Christovam; VILLELA, Daniel A. M. (orgs.). Covid-19 no Brasil: cenários epidemiológicos e vigilância em saúde. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19 Fiocruz; Editora Fiocruz, 2021. p. 127-142. ; Hallal et al., 2020 HALLAL, Pedro et al. Sars-CoV-2 antibody prevalence in Brazil: results from two successive nationwide serological household surveys. Lancet Global Health, v. 8, n, 11, e1390-e1398, 2020. https://doi:10.1016/S2214-109X(20)30387-9 . Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/langlo/article/PIIS2214-109X(20)30387-9/fulltext . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://doi:10.1016/S2214-109X(20)30387-...
; Ranzani et al., 2021 RANZANI, Otavio T. et al. Characterisation of the first 250000 hospital admissions for Covid-19 in Brazil: a retrospective analysis of nationwide data. Lancet Respir Med (on-line), v. 9, n. 4, p. 407-418, jan. 2021. https://doi.org/10.1016/S2213-2600(20)30560-9 . Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lanres/article/PIIS2213-2600(20)30560-9/fulltext . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://doi.org/10.1016/S2213-2600(20)30...
; Soares et al., 2022 SOARES, Gustavo H. et al. Disparities in excess mortality between indigenous and non-indigenous Brazilians in 2020: measuring the effects of the Covid-19 pandemic. Journal of Racial and Ethnic Health Disparities, New York, v. 9, n. 6, p. 2.227-2.236, 2022. 10.1007/s40615-021-01162-w. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34581998/ . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34581998...
).

Considerações finais

A história aqui brevemente narrada é composta por diversos lances de estratégia, de avanços e recuos. Embora consideremos uma importante vitória para o movimento indígena ter suas demandas repercutidas na mais alta corte judicial brasileira, isso não significou, automaticamente, o fim da luta. É importante registrar que, mesmo nesse contexto de ADPF e de CPI, apesar das demandas extraordinárias da pandemia, houve tanto redução orçamentária quanto baixa execução orçamentária (para a compra de materiais de consumo, como medicamentos, equipamentos de proteção individual e testes) por parte da Sesai no governo Bolsonaro (Saraiva e Cardoso, 2020 SARAIVA, Leila; CARDOSO, Alessandra. Nota técnica: execução orçamentária da saúde indígena diante da pandemia do novo coronavírus. Brasília: Inesc, 2020. Disponível em: https://inesc.org.br/execucao-orcamentaria-da-saude-indigena-diante-da-pandemia-do-novo-coronavirus/ . Acesso em: 4 mar. 2024.
https://inesc.org.br/execucao-orcamentar...
).

Esse fato por si só evidencia que o protagonismo do movimento indígena na luta por direitos e pela garantia do acesso à saúde sempre foi e sempre será um vetor-chave na efetivação desses direitos, requerendo articulações e pressões nacionais e internacionais. Os ataques aos direitos indígenas, especialmente as invasões de seus territórios e a interrupção de processos demarcatórios que ocorreram nos quatro anos do governo Bolsonaro, concomitantemente à chegada da pandemia de covid-19 no país, voltaram a catalisar a ampla mobilização do movimento indígena em prol da garantia de direitos e de proteção (Alarcon et al., 2022ALARCON, Daniela et al. (orgs.). ‘A gente precisa lutar de todas as formas’: povos indígenas e o enfrentamento da covid-19 no Brasil. São Paulo; Rio de Janeiro: Hucitec; Abrasco, 2022. ). A situação grave demandava uma firme atuação da União, bem como o envolvimento de toda a sociedade civil, na mobilização pela proteção dos povos indígenas. Conforme Amado destacou:

As lideranças (...), tanto caciques quanto chefes de retomadas, têm demonstrado uma capacidade qualificada de resistência na mobilização pela garantia de direitos. As instâncias estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário) constituem um elemento de análise por parte das lideranças que buscam compreender a sistemática da burocracia e a operacionalidade da máquina administrativa. Essa tarefa, assumida por parte das comunidades, aperfeiçoa as formas de incidir junto aos atores representativos dos poderes estatais. Isso é revelador de como o movimento indígena brasileiro, ao longo dos séculos, resistiu às ações estatais. Não é uma resistência apenas defensiva, mas qualificada pelo protagonismo indígena que se apropriou e ressignificou elementos que antes eram estranhos à sua cultura e, nos dias atuais, são acionados pelas lideranças em suas reivindicações.

(Amado, 2020AMADO, Luiz H. E. Vukápanavo: o despertar do povo Terena para os seus direitos – movimento indígena e confronto político. Rio de Janeiro: E-papers, 2020. , p. 226)

O processo narrado descreve um importante ciclo de estímulo, de apoio e de conhecimento que evidencia importantes elos entre o movimento social indígena e a academia. Numa conjuntura em que o governo federal adotou uma perspectiva negacionista (antivacina, anticiência e anti-indígena), o movimento indígena defendeu a ciência, aproximando-se dos pesquisadores e divulgando os dados científicos. Ao instigar tecnicamente a Abrasco e a Fiocruz, a APIB mobilizou a capacidade de resistência dos povos indígenas, a boa técnica jurídica e o conhecimento científico numa ação que obrigou o governo federal a implementar novas ações.

Por sua vez, os pesquisadores aprenderam com o movimento indígena novas formas de incidência de seus conhecimentos técnico-científicos em prol da defesa dos direitos dos povos indígenas à saúde. Além da atuação na ADPF 709 no STF, o GT de Saúde Indígena da Abrasco colaborou com o Ministério Público Federal, teve ampla repercussão em vários meios de comunicação, apoiou ações educativas para diversas organizações indígenas, subsidiou a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas e suas assessorias parlamentares, entre outras ações, de modo que podemos afirmar que a sua relevância e repercussões sociais foram potencializadas.

A partir de 2023, na conjuntura de um novo governo e com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, a ADPF 709 (STF, 2020 STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709). Brasília, DF, 01 jul. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
) passou a ser supervisionada por esse ministério, no qual atuam diversas lideranças envolvidas com a APIB. Também na Sesai, temos uma nova gestão com um secretário indicado pelo movimento indígena. Nesse cenário, a ADPF 709 (STF, 2020 STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709). Brasília, DF, 01 jul. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
) ganha novos contornos que ainda precisam ser aprofundados. Destacamos que em novembro de 2023 o ministro Barroso determinou uma nova fase da ADPF 709 (STF, 2020 STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709). Brasília, DF, 01 jul. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
), na qual o foco passa a ser o aperfeiçoamento e reorganização do Sasi-SUS:

(...) constata-se a necessidade de rever o planejamento das ações desenvolvidas pelo Executivo federal em matéria de saúde indígena. É preciso readequar as políticas sanitárias ao novo contexto, promover uma melhor estruturação do Sasi-SUS, do uso dos recursos disponíveis à Sesai, garantindo o acesso à saúde para as comunidades indígenas de forma ampla, residam elas em territórios homologados ou não.

(Barroso, 2023 BARROSO, Luís R. Medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709. Ementa: Direito Constitucional. Direito fundamental à saúde da população indígena e desintrusão de terras ilegalmente ocupadas. (...). Decisão monocrática. Brasília, DF, Supremo Tribunal Federal, 9 nov. 2023. 16 p. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
, p. 13)

Dessa forma, o ministro evidencia o caráter de litígio estrutural da ADPF 709 (STF, 2020 STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709). Brasília, DF, 01 jul. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
), na qual “as decisões estruturais são prospectivas; (...) mediante a modificação das condições que dão causa a essas violações e à reorganização das instituições que estão falhando” (Barroso, 2023 BARROSO, Luís R. Medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709. Ementa: Direito Constitucional. Direito fundamental à saúde da população indígena e desintrusão de terras ilegalmente ocupadas. (...). Decisão monocrática. Brasília, DF, Supremo Tribunal Federal, 9 nov. 2023. 16 p. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
, p. 13). A ADPF 709 (STF, 2020 STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709). Brasília, DF, 01 jul. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986 . Acesso em: 20 maio 2024.
https://portal.stf.jus.br/processos/deta...
) talvez seja um dos eventos mais evidentes e contundentes do fenômeno denominado de ‘judicialização da política’ (Tate, 1995TATE, Chester N. Why the expansion of judicial power? In: VALLINDER, Torbjorn (ed.). The global expansion of judicial power. New York; London: New York University Press, 1995. p. 27-37. ), pois congrega tanto a opção do ministro relator de conduzir o processo político quanto a tentativa deliberada da advocacia indígena de interferir judicialmente na condução da política pública pelo Executivo. Entendemos que esse cenário merece novas e profundas análises.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2023
  • Aceito
    07 Mar 2024
Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio Avenida Brasil, 4.365, 21040-360 Rio de Janeiro, RJ Brasil, Tel.: (55 21) 3865-9850/9853, Fax: (55 21) 2560-8279 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revtes@fiocruz.br